LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
O Guarani, de José de Alencar
Edição de Referência:
A Biblioteca Virtual do Estudante
Brasileiro
PRÓLOGO
Minha prima. —Gostou da minha história, e pede-me
um romance; acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura.
Engana-se; quando se conta aquilo que nos
impressionou profundamente, o coração é que fala; quando se exprime aquilo que
outros sentiram ou podem sentir, fala a memória ou a imaginação.
Esta pode errar, pode exagerar-se; o coração é
sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu; e o sentimento, qualquer que ele
seja, tem a sua beleza.
Assim, não me julgo habilitado a escrever um
romance, apesar de já ter feito um com a minha vida.
Entretanto, para satisfazê-la, quero aproveitar as
minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei
em um armário desta casa, quando a comprei.
Estava abandonado e quase todo estragado pela
umidade e pelo cupim, esse roedor eterno, que antes do dilúvio já se havia
agarrado à arca de Noé, e pôde assim escapar ao cataclisma.
Previno-lhe que encontrará cenas que não são comuns
atualmente, não as condene à primeira leitura, antes de ver as outras que as
explicam.
Envio-lhe a primeira parte do meu manuscrito, que
eu e Carlota temos decifrado nos longos serões das nossas noites de inverno, em
que escurece aqui às cinco horas.
Adeus.
Minas, 12 de dezembro.
AO LEITOR
Publicado este livro em 1857, se disse ser aquela
primeira edição uma prova tipográfica, que algum dia talvez o autor se
dispusesse a rever.
Esta nova edição devia dar satisfação do empenho,
que a extrema benevolência do público ledor, tão minguado ainda, mudou em bem
para dívida de reconhecimento.
Mais do que podia fiou de si o autor. Relendo a
obra depois de anos, achou ele tão mau e incorreto quanto escrevera, que para
bem corrigir, fora mister escrever de novo. Para tanto lhe carece o tempo e
sobra o tédio de um labor ingrato.
Cingiu-se pois às pequenas emendas que toleravam o
plano da obra e o desalinho de um estilo não castigado.
PRIMEIRA
PARTE
OS
AVENTUREIROS
I
CENÁRIO
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um
fio de água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que
recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal.
É o Paquequer: saltando de cascata em cascata,
enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber
no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das
águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se
humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática; suas ondas
são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e
as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.
Não é neste lugar que ele deve ser visto; sim três
ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indômito
desta pátria da liberdade.
Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito,
e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pêlo esparso pelas
pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De
repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento
para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como o tigre
sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende
sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o
recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores
agrestes.
A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo
o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio,
que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques
das palmeiras.
Tudo era grande e pomposo no cenário que a
natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos
elementos, em que o homem e apenas um simples comparsa.
No ano da graça de 1604, o lagar que acabamos de
descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado
havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o
interior.
Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa
larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de todos os lados
por uma muralha de rocha cortada a pique.
A esplanada, sobre que estava assentado o edifício,
formava um semi-círculo irregular que teria quando muito cinqüenta braças
quadradas; do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade
pela natureza e metade pela arte.
Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra
da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma
fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se
à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas grandes
gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.
Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado
habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa.
De um e outro lado da escada seguiam dois renques
de árvores, que, alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do
rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava
aquele pequeno vale impenetrável.
A casa era edificada com a arquitetura simples e
grosseira, que ainda apresentam as nossas primitivas habitações; tinha cinco
janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas.
Do lado direito estava a porta principal do
edifício, que dava sobre um pátio cercado por uma estacada, coberta de melões
agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até à borda da esplanada uma asa do
edifício, que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.
No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa,
havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de
toda a natureza rica, vigorosa e esplêndida, que a vista abraçava do alto do
rochedo.
Flores agrestes das nossas matas, pequenas árvores
copadas, um estendal de relvas, um fio de água, fingindo um rio e formando uma
pequena cascata, tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço com
uma arte e graça admirável.
À primeira vista, olhando esse rochedo da altura de
duas braças, donde se precipitava um arroio da largura de um copo de água, e o
monte de grama, que tinha quando muito o tamanho de um divã, parecia que a
natureza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho uma miniatura.
O fundo da casa, inteiramente separado do resto da
habitação por uma cerca, era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas, que
serviam de morada a aventureiros e acostados.
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira
do precipício, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que
haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até o chão;
um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem.
Agora que temos descrito o aspecto da localidade,
onde se deve passar a maior parte dos acontecimentos desta história, podemos
abrir a pesada porta de jacarandá, que serve de entrada, e penetrar no interior
do edifício.
A sala principal, o que chamamos ordinariamente
sala da frente, respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa
época em um deserto, como era então aquele sitio.
As paredes e o teto eram calados, mas cingidos por
um largo florão de pintura a fresco; nos espaços das janelas pendiam dois
retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama também idosa.
Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão de
armas em campo de cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de
prata sobre palas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata orlada de
vermelho, via-se um elmo também de prata, paquife de ouro e de azul, e por
timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça.
Um largo reposteiro de damasco vermelho, onde se
reproduzia o mesmo brasão, ocultava esta porta, que raras vezes se abria, e
dava para um oratório. Defronte, entre as duas janelas do meio, havia um
pequeno dossel fechado por cortinas brancas com apanhados azuis.
Cadeiras de couro de alto espaldar, uma mesa de
jacarandá de pés torneados, uma lâmpada de prata suspensa ao teto, constituíam
a mobília da sala, que respirava um ar severo e triste.
Os aposentos interiores eram do mesmo gosto, menos
as decorações heráldicas; na asa do edifício, porém, esse aspecto mudava de
repente, e era substituído por um quer que seja de caprichoso e delicado que
revelava a presença de uma mulher.
Com efeito, nada mais loução do que essa alcova, em
que os brocatéis de seda se confundiam com as lindas penas de nossas aves,
enlaçadas em grinaldas e festões pela orla do teto e pela cúpula do cortinado
de um leito colocado sobre um tapete de peles de animais selvagens.
A um canto, pendia da parede um crucifixo em
alabastro, aos pés do qual havia um escabelo de madeira dourada.
Pouco distante, sobre uma cômoda, via-se uma dessas
guitarras espanholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de
Portugal, e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e formas
esquisitas.
Junto à janela, havia um traste que à primeira
vista não se podia definir; era uma espécie de leito ou sofá de palha matizada
de várias cores e entremeada de penas negras e escarlates.
Uma garça-real empalhada, prestes a desatar o vôo,
segurava com o bico a cortina de tafetá azul que ela abria com a ponta de suas
asas brancas e caindo sobre a porta, vendava esse ninho da inocência aos olhos
profanos.
Tudo isto respirava um suave aroma de benjoim, que
se tinha impregnado nos objetos com o seu perfume natural, ou como a atmosfera
do paraíso que uma fada habitava.
II
LEALDADE
A habitação que descrevemos, pertencia a D. Antônio
de Mariz, fidalgo português de cota d'armas e um dos fundadores da cidade do
Rio de Janeiro.
Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido
nas guerras da conquista, contra a invasão dos franceses e os ataques dos
selvagens.
Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro, e
depois da vitória alcançada pelos portugueses, auxiliou o governador nos
trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa
capitania.
Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr.
Antônio de Salema contra os franceses, que haviam estabelecido uma feitoria em
Cabo Frio para fazerem o contrabando de pau-brasil.
Serviu por este mesmo tempo de provedor da real
fazenda, e depois da alfândega do Rio de Janeiro; mostrou sempre nesses
empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei.
Homem de valor, experimentado na guerra, ativo,
afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e
explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu
merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua
com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito
tempo devoluta.
A derrota de Alcácer-Quibir, e o domínio espanhol
que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.
Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia
que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza, e que só a ele
devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Felipe
11 como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada
e retirou-se do serviço.
Por algum tempo esperou a projetada expedição de D.
Pedro da Cunha, que pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa,
colocada então sobre a cabeça do seu legitimo herdeiro, D. Antônio, prior do
Crato.
Depois, vendo que esta expedição não se realizava,
e que seu braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal, jurou que ao
menos lhe guardaria fidelidade até a morte. Tomou os seus penates, o seu
brasão, as suas armas, a sua família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que
lhe concedera Mem de Sá. Aí, de pé sobre a eminência em que ia assentar o seu
novo solar, D. Antônio de Mariz, erguendo o vulto direito, e lançando um olhar
sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno, exclamou:
—Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade
um coração leal, que nunca desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi
dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu
reinarás, Portugal, como viverás n'alma de teus filhos. Eu o juro!
Descobrindo-se, curvou o joelho em terra, e
estendeu a mão direita sobre o abismo, cujos ecos adormecidos repetiram ao
longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza, em face
do sol que transmontava.
Isto se passara em abril de 1593; no dia seguinte,
começaram os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que serviu de
residência provisória, até que os artesãos vindos do reino construíram e
decoraram a casa que já conhecemos.
D. Antônio tinha ajuntado fortuna durante os
primeiros anos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas
em atenção à sua família, procurava dar a essa habitação construída no meio de
um sertão, todo o luxo e comodidade possíveis.
Além das expedições que fazia periodicamente à
cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e gêneros de Portugal, que trocava
pelos produtos da terra, mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e
hortelãos, que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica, para proverem
os seus habitantes de todo o necessário.
Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo
português, menos as ameias e a barbacã, as quais haviam sido substituídas por
essa muralha de rochedos inacessíveis, que ofereciam uma defesa natural e uma
resistência inexpugnável.
Na posição em que se achava, isto era necessário
por causa das tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das
vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas
florestas, costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição.
Em um circulo de uma légua da casa, não havia senão
algumas cabanas em que moravam aventureiros S pobres, desejosos de fazer
fortuna rápida, e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em
parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro
e pedras preciosas, que iam vender na costa.
Estes, apesar das precauções que tomavam contra os
ataques dos índios, fazendo paliçadas e reunindo-se uns aos outros para defesa
comum, em ocasião de perigo vinham sempre abrigar-se na casa de D. Antônio de
Mariz, a qual fazia as vezes de um castelo feudal na idade Média.
O fidalgo os recebia como um rico-homem que devia
proteção e asilo aos seus vassalos; socorria-os em todas as suas necessidades,
e era estimado e respeitado por todos que vinham, confiados na sua vizinhança,
estabelecer-se por esses lugares.
Deste modo, em caso de ataque dos índios, os
moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão com os seus próprios
recursos; e por isso D. Antônio, como homem prático e avisado que era, havia-se
premunido para qualquer ocorrência.
Ele mantinha, como todos os capitães de descobertas
daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas
explorações e correrias pelo interior; eram homens ousados, destemidos,
reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade
do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, soldados
e selvagens ao mesmo tempo.
D. Antônio de Mariz, que os conhecia, havia
estabelecido entre eles uma disciplina militar rigorosa, mas justa; a sua lei
era a vontade do chefe; o seu dever a obediência passiva, o seu direito uma
parte igual na metade dos lucros. Nos casos extremos, a decisão era proferida
por um conselho de quatro, presidido pelo chefe; e cumpria-se sem apelo, como
sem demora e hesitação.
Pela força da necessidade, pois, o fidalgo se havia
constituído senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seus
domínios; devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação
dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a
ordem, a disciplina e a harmonia.
Quando chegava a época da venda dos produtos, que
era sempre anterior à saída da armada de Lisboa, metade da banda dos
aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro, apurava o ganho, fazia a troca dos
objetos necessários, e na volta prestava suas contas. Uma parte dos lucros
pertencia ao fidalgo, como chefe; a outra era distribuída igualmente pelos
quarenta aventureiros, que a recebiam em dinheiro ou em objetos de consumo.
Assim vivia, quase no meio do sertão, desconhecida
e ignorada essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, os
seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados ao seu
chefe pelo respeito, pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que
a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.
Para D. Antônio e para seus companheiros a quem ele
havia imposto sua fidelidade, esse torrão brasileiro, esse pedaço de sertão,
não era senão um fragmento de Portugal livre, de sua pátria primitiva; ai só se
reconhecia como rei ao duque de Bragança, legitimo herdeiro da coroa; e quando
se corriam as cortinas do dossel da sala, as armas que se viam, eram as cinco
quinas portuguesas, diante das quais todas as frontes inclinavam.
D. Antônio tinha cumprido o seu juramento de
vassalo leal; e, com a consciência tranqüila por ter feito o seu dever, com a
satisfação que dá ao homem o mando absoluto, ainda mesmo em um deserto, rodeado
de seus companheiros que ele considerava amigos, vivia feliz no seio de sua
pequena família.
Esta se compunha de quatro pessoas:
Sua mulher, D. Lauriana, dama paulista, imbuída de
todos os prejuízos de fidalguia e de todas as abusões religiosas daquele tempo;
no mais, um bom coração, um pouco egoísta, mas não tanto que não fosse capaz de
um ato de dedicação.
Seu filho, D. Diogo de Mariz, que devia mais tarde
prosseguir na carreira de seu pai, e lhe sucedeu em todas as honras e forais;
ainda moço, na flor da idade, gastava o tempo em correrias e caçadas.
Sua filha, D. Cecília, que tinha dezoito anos, e
que era a deusa desse pequeno mundo que ela iluminava com o seu sorriso, e
alegrava com o seu gênio travesso e a sua mimosa feceirice.
D. Isabel, sua sobrinha, que os companheiros de D.
Antônio, embora nada dissessem, suspeitavam ser o fruto dos amores do velho
fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações.
Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas
das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se
compreendam os acontecimentos que depois se passaram.
Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por
si mesmos.
III
A
BANDEIRA
Era meio-dia.
Um troço de cavaleiros, que constaria quando muito
de quinze pessoas, costeava a margem direita do Paraíba.
Estavam todos armados da cabeça até aos pés além da
grande espada de guerra que batia as ancas do animal, cada um deles trazia à
cinta dois pistoletes, um punhal na ilharga do calção, e o arcabuz passado a
tiracolo pelo ombro esquerdo.
Pouco adiante, dois homens a pé tocavam alguns
animais carregados de caixas e outros volumes cobertos com uma sarapilheira
alcatroada, que os abrigava da chuva.
Quando os cavaleiros, que seguiam a trote largo,
venciam a pequena distancia que os separava da tropa, os dois caminheiros, para
não atrasarem a marcha, montavam na garupa dos animais e ganhavam de novo a
dianteira.
Naquele tempo dava-se o nome de bandeiras a essas
caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos sertões do Brasil, à busca
de ouro, os brilhantes e esmeraldas, ou à descoberta de rios e terras ainda
desconhecidos. A que nesse momento costeava a margem do Paraíba, era da mesma
natureza; voltava do Rio de Janeiro, onde fora vender os produtos de sua
expedição pelos terrenos auríferos.
Uma das ocasiões, em que os cavaleiros se
aproximaram da tropa que seguia a alguns passos, um moço de vinte e oito anos,
bem parecido, e que marchava à frente do troço, governando o seu cavalo com
muito garbo e gentileza, quebrou o silêncio geral.
—Vamos, rapazes! disse ele alegremente aos
caminheiros; um pouco de diligência, e chegaremos com cedo. Restam-nos apenas
umas quatro léguas!
Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras,
chegou as esporas à cavalgadura, e avançando algumas braças, colocou-se ao lado
do moço.
—Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Álvaro
de Sá? disse ele com um ligeiro acento italiano, e um meio sorriso cuja
expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita.
—Decerto, Sr. Loredano; nada é mais natural a quem
viaja, do que o desejo de chegar.
—Não digo o contrário; mas confessareis que nada
também é mais natural a quem viaja, do que poupar os seus animais.
—Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano?
perguntou Álvaro com um movimento de enfado.
—Quero dizer, sr. cavalheiro, respondeu o italiano
em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje
pouco antes das seis horas.
Álvaro corou.
—Não vejo em que isto vos causa reparo; a alguma
hora havíamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite.
—Assim como melhor é que seja em um sábado do que
em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom.
Um novo rubor assomou às faces de Álvaro, que não
pôde disfarçar o seu enleio; mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada,
e respondeu:
—Ora, Deus, Sr. Loredano; estais ai a falar-me na
ponta dos beiços e com meias palavras; à fé de cavalheiro que não vos entendo.
—Assim deve ser. Diz a Escritura que não há pior
surdo do que aquele que não quer ouvir.
—Oh! temos anexim! Aposto que aprendeste isto agora
em São Sebastião: foi alguma velha beata, ou algum licenciado em cânones que
vo-lo ensinou? disse o cavalheiro gracejando.
—Nem um nem outro, sr. cavalheiro; foi um fanqueiro
da Rua dos Mercadores, que por sinal também me mostrou custosos brocados e
lindas arrecadas de pérolas, bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro à
sua dama.
Álvaro enrubesceu pela terceira vez.
Decididamente o sarcástico italiano, com o seu
espírito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão
que o incomodava; e isto no tom o mais natural do mundo.
Álvaro quis cortar a conversação neste ponto; mas o
seu companheiro prosseguiu com extrema amabilidade:
—Não entrastes por acaso na loja desse fanqueiro de
que vos falei, sr. cavalheiro?
—Não me lembro; é de crer que não, pois apenas tive
tempo de arranjar os nossos negócios, e nem um me restou para ver essas
galantarias de damas e fidalgas, disse o moço com frieza.
—É verdade! acudiu Loredano com uma ingenuidade
simulada; isto me faz lembrar que só nos demoramos no Rio de Janeiro cinco
dias, quando das outras vezes eram nunca menos de dez e quinze.
—Tive ordem para haver-me com toda a rapidez; e
creio, continuou fitando no italiano um olhar severo, que não devo contas de
minhas ações senão àqueles a quem dei o direito de pedi-las.
— Per Bacco, cavalheiro! Tomais as coisas ao
revés. Ninguém vos pergunta por que motivo fazeis aquilo que vos praz; mas
também achareis justo que cada um pense à sua maneira.
—Pensai o que quiserdes! disse Álvaro levantando os
ombros e avançando o passo da sua cavalgadura.
A conversa interrompeu-se.
Os dois cavaleiros, um pouco adiantados ao resto do
troço, caminhavam silenciosos um a par do outro.
Álvaro às vezes enfiava um olhar pelo caminho como
para medir a distancia que ainda tinham de percorrer, e outras vezes parecia
pensativo e preocupado.
Nestas ocasiões, o italiano lançava sobre ele um
olhar a furto, cheio de malícia e ironia; depois continuava a assobiar
entredentes uma cançoneta de condottiere, de quem ele apresentava o verdadeiro
tipo.
Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra,
entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos
vivos, a fronte larga, descoberta pelo chapéu desabado que caía sobre o ombro;
alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa, eram os principais
traços deste aventureiro.
A pequena cavalgata tinha deixado a margem do rio,
que não oferecia mais caminho, e tomara por uma estreita picada aberta na mata.
Apesar de ser pouco mais de duas horas, o
crepúsculo reinava nas profundas e sombrias abóbadas de verdura: a luz, coando
entre a espessa folhagem, se decompunha inteiramente; nem uma réstia de sol
penetrava nesse templo da criação, ao qual serviam de colunas os troncos
seculares dos acaris e araribás.
O silêncio da noite, com os seus rumores vagos e
indecisos e os seus ecos amortecidos, dormia no fundo dessa solidão, e era
apenas interrompido um momento pelo passo dos animais, que faziam estalar as
folhas secas.
Parecia que deviam ser seis horas da tarde, e que o
dia caindo envolvia a terra nas sombras pardacentas do ocaso.
Álvaro de Sá, embora habituado a esta ilusão, não
pôde deixar de sobressaltar-se um instante, em que, saindo da sua meditação,
viu-se de repente no meio do claro-escuro da floresta.
Involuntariamente ergueu a cabeça para ver se
através da cúpula de verdura descobria o sol, ou pelo menos alguma centelha de
luz que lhe indicasse a hora.
Loredano não pôde reprimir a risada sardônica que
lhe veio aos lábios.
—Não vos dê cuidado, sr. cavalheiro, antes de seis
horas li estaremos; sou eu que vo-lo digo.
O moço voltou-se para o italiano, rugando o
sobrolho.
—Sr. Loredano, é a segunda vez que dizeis esta
palavra em um tom que me desagrada; pareceis querer dar a entender alguma coisa,
mas falta-vos o animo de a proferir. Uma vez por todas, falai abertamente, e
Deus vos guarde de tocar em objetos que são sagrados.
Os olhos do italiano lançaram uma faisca; mas o seu
rosto conservou-se calmo e sereno.
—Bem sabeis que vos devo obediência, sr.
cavalheiro, e não faltarei dela. Desejais que fale claramente, e a mim me
parece que nada do que tenho dito pode ser mais claro do que é.
—Para vós, não duvido; mas isto não é razão de que
o seja para outros.
—Ora dizei-me, sr. cavalheiro; não vos parece
claro, à vista do que me ouvistes, que adivinhei o vosso desejo de chegar o
mais depressa possível?
—Quanto a isto, já vos confessei eu; não há pois
grande mérito em adivinhar.
—Não vos parece claro também que observei haverdes
feito esta expedição com a maior rapidez, de modo que em menos de vinte dias
eis-nos ao cabo dela?
—Já vos disse que tive ordem, e creio que nada
tendes a opor.
—Não decerto; uma ordem é um dever, e um dever
cumpre-se com satisfação, quando o coração nele se interessa.
—Sr. Loredano! disse o moço levando a mão ao punho
da espada e colhendo as rédeas.
O italiano fez que não tinha visto o gesto de
ameaça; continuou:
—Assim tudo se explica. Recebestes uma ordem; foi
de D. Antônio de Mariz, sem dúvida?
—Não sei que nenhum outro tenha direito de dar-me,
replicou o moço com arrogância.
—Naturalmente por virtude desta ordem, continuou o
italiano cortesmente, partistes do Paquequer em uma segunda-feira, quando o dia
designado era um domingo.
—Ah! também reparastes nisto? perguntou o moço
mordendo os beiços de despeito.
—Reparo em tudo, sr. cavalheiro; assim, não deixei
de observar ainda, que sempre em virtude da ordem, fizestes tudo para chegar
justamente antes do domingo.
—E não observastes mais nada? perguntou Álvaro com
a voz trêmula e fazendo um esforço para conter-se.
—Não me escapou também uma pequena circunstância de
que já vos falei.
—E qual é ela, se vos praz? —Oh! não vale a pena
repetir: é coisa de somenos.
—Dizei sempre, Sr. Loredano; nada é perdido entre
dois homens que se entendem, replicou Álvaro com um olhar de ameaça.
—Já que o quereis, força é satisfazer-vos. Noto que
a ordem de D. Antônio, e o italiano carregou nessa palavra, manda-vos estar no
Paquequer um pouco antes de seis horas, a tempo de ouvir a prece.
—Tendes um dom admirável, Sr. Loredano: o que é de
lamentar, é que o empregueis em futilidades.
—Em que quereis que um homem gaste seu tempo neste
sertão, senão a olhar para seus semelhantes, e ver o que eles fazem?
—Com efeito é uma boa distração.
—Excelente. Vede vós, tenho visto coisas que se
passam diante dos outros, e que ninguém percebe, porque não se quer dar ao
trabalho de olhar como eu, disse o italiano com o seu ar de simplicidade
fingida.
—Contai-nos isto, há de ser curioso.
—Ao contrário, é o mais natural possível; um moço
que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite à luz das estrelas... Pode
haver coisa mais simples?
Álvaro empalideceu desta vez.
—Sabeis uma coisa, Sr. Loredano?
—Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de
dizer.
—Está me parecendo que a vossa habilidade de
observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o
oficio de espião.
O aventureiro ergueu a cabeça com um gesto altivo,
levando a mão ao cabo de uma larga adaga que trazia à ilharga: no mesmo
instante porém dominou este movimento, e voltou à bonomia habitual.
-Quereis gracejar, sr. cavalheiro?...
—Enganais-vos, disse o moço picando o seu cavalo e
encostando-se ao italiano, falo-vos seriamente; sois um infame espião! Mas
juro, por Deus, que à primeira palavra que proferirdes, esmago-vos a cabeça
como a uma cobra venenosa.
A fisionomia de Loredano não se alterou; conservou
a mesma impassibilidade; apenas o seu ar de indiferença e sarcasmo desapareceu
sob a expressão de energia e maldade que lhe acentuou os traços vigorosos.
Fitando um olhar duro no cavalheiro, respondeu:
—Visto que tomais a coisa neste tom, Sr. Álvaro de
Sá, cumpre que vos diga que não é a vós que cabe ameaçar; entre nós dois,
deveis saber qual é o que tem a temer!...
—Esqueceis a quem falais? disse o moço com altivez.
—Não, senhor, lembro tudo; lembro que sois meu
superior, e também, acrescentou com voz surda, que tenho o vosso segredo.
E parando o animal, o aventureiro deixou Álvaro
seguir só na frente, e misturou-se com os seus companheiros.
A pequena cavalgata continuou a marcha através da
picada, e aproximou-se de uma dessas clareiras das matas virgens, que se
assemelham a grandes zimbórios de verdura.
Neste momento um rugido espantoso fez estremecer a
floresta, e encheu a solidão com os ecos estridentes.
Os caminheiros empalideceram e olharam um para o
outro; os cavaleiros engatilharam os arcabuzes e seguiram lentamente, lançando
um olhar cauteloso pelos ramos das árvores.
IV
CAÇADA
Quando a cavalgata chegou à margem da clareira, ai
se passava uma cena curiosa.
Em pé, no meio do espaço que formava a grande
abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um
índio na flor da idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas
chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe
dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um
junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor
do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a
tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a
pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de
dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e
da inteligência.
Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à
qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma
longa espiral, vinham rogar com as pontas negras o pescoço flexível.
Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a
perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se
sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e
as flechas com a mão direita calda, e com a esquerda mantinha verticalmente
diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo.
Perto dele estava atirada ao chão uma clavina
tauxiada, uma pequena bolsa de couro que devia conter munições, e uma rica faca
flamenga, cujo uso foi depois proibido em Portugal e no Brasil.
Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos
numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distancia, e se agitava
imperceptivelmente.
Ali por entre a folhagem, distinguiam-se as
ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes
viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os
reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol.
Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um
grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo,
preparando o salto gigantesco.
Batia os flancos com a larga cauda, e movia a
cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar
o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraia-lhe as negras
mandíbulas, e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas
aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.
O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao
tronco seco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a
calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade
do olhar revelava um pensamento de defesa.
Assim, durante um curto instante, a fera e o
selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o
tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada
da clareira. Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue,
eriçou o pêlo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o
ataque.
O índio, que ao movimento da onça acurvara
ligeiramente os joelhos e apertava o forcado, endireitou-se de novo; sem deixar
a sua posição, nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua
direita.
Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei,
que rei das florestas ele era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua
marcha.
Como, porém, o italiano, com o arcabuz em face,
procurasse fazer a pontaria entre as folhas, o índio bateu com o pé no chão em
sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao
peito:
—É meu!... meu só!
Estas palavras foram ditas em português, com uma
pronúncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução.
O italiano riu.
—Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que
se ofenda a vossa amiga?... Está bem, dom cacique, continuou, lançando o
arcabuz a tiracolo; ela vo-lo agradecerá.
Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou
desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, como para
exprimir que, se ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro. Os
cavaleiros compreenderam o gesto, porque, além da precaução necessária para o
caso de algum ataque direto, não fizeram a menor demonstração ofensiva.
Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem
que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo.
A um sinal de Álvaro de Sá, os cavaleiros
prosseguiram a sua marcha, e entranharam-se de novo na floresta.
O tigre, que observava os cavaleiros, imóvel, com o
pêlo eriçado, não ousara investir nem retirar-se, temendo expor-se aos tiros
dos arcabuzes; mas apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da
mata, soltou um novo rugido de alegria e contentamento.
Ouviu-se um rumor de galhos que se espedaçavam como
se uma árvore houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no
ar; de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e o seu adversário
uma distancia de trinta palmos.
O selvagem compreendeu imediatamente a razão disto:
a onça, com os seus instintos carniceiros e a sede voraz de sangue, tinha visto
os cavalos e desdenhava o homem, fraca presa para saciá-la.
Com a mesma rapidez com que formulou este
pensamento, tomou na cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço,
e esticou a corda do grande arco, que excedia de um terço à sua altura.
Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado por
um bramido da fera; a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e
uma segunda, açoitando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior.
O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrível,
aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos
aproximou-se novamente.
Era uma luta de morte a que ia se travar; o índio o
sabia, e esperou tranqüilamente, como da primeira vez; a inquietação que
sentira um momento de que a presa lhe escapasse, desaparecera: estava
satisfeito.
Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil,
cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua
coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.
O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a
coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade
extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.
Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas
detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e
os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.
A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no
mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua
pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.
Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela
força e agilidade.
Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os
joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos
sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara,
curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo
com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo,
e vacilou.
Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade
da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco,
arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de
costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu
vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.
Esta luta durou minutos; o índio, com os pés
apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha,
mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando
obstáculos à sua passagem.
Quando o animal, quase asfixiado pela
estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando
sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que
tinha enrolada à cintura em muitas voltas.
Nas pontas desta corda havia dois laços que ele
abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à
outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas,
de modo que a onça não pudesse abrir a boca.
Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava
perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio
borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu
vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra
os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.
Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na
lezíria da mata, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pêlo
vermelho e afogueado.
O índio saltou sobre o arco, e abateu-a daí a
alguns passos no meio da carreira; depois, apanhando o corpo do animal que
ainda palpitava, arrancou a flecha, e veio deixar cair nos dentes da onça as
gotas do sangue quente e fumegante.
Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça,
e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma
contorção violenta, e quis soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo
e abafado.
O índio sorria, vendo os esforços da fera para
arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento,
a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela
tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar
das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrível.
Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o
seu cativo quebrou na mata dois galhos secos de biribá, e rogando rapidamente
um contra o outro, tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para
jantar.
Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição,
que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as
suas colmeias no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles de água, lavou as
mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.
Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que
suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções,
tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata.
Momentos depois, no lugar desta cena já deserto,
entreabriu-se uma moita espessa, e surdir um índio completamente nu, ornado
apenas com uma trofa de penas amarelas.
Lançou ao redor um olhar espantado, examinou
cautelosamente o fogo que ardia ainda e os restos da caça; deitou-se encostando
o ouvido em terra, e assim ficou algum tempo.
Depois se ergueu e entranhou de novo pela floresta,
na mesma direção que o outro tomara pouco tempo antes.
V
LOURA E
MORENA
Caía a tarde.
No pequeno jardim da casa do Paquequer, uma linda
moça se embalançava indolentemente numa rede de palha presa aos ramos de uma
acácia silvestre, que estremecendo deixava cair algumas de suas flores miúdas e
perfumadas.
Os grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se
abriam languidamente como para se embeberem de luz, e abaixavam de novo as
pálpebras rosadas.
Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor da
gardênia dos nossos campos, orvalhada pelo sereno da noite; o hálito doce e
ligeiro exalava-se formando um sorriso. Sua tez alva e pura como um froco de
algodão, tingia-se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando,
morrer no colo de linhas suaves e delicadas.
O seu trajo era do gosto o mais mimoso e o mais
original que é possível conceber; mistura de luxo e de simplicidade.
Tinha sobre o vestido branco de cassa um ligeiro
saiote de riço azul apanhado à cintura por um broche; uma espécie de arminho
cor de pérola, feito com a penugem macia de certas aves, orlava o talho e as
mangas; fazendo realçar a alvura de seus ombros e o harmonioso contorno de seu
braço arqueado sobre o seio.
Os longos cabelos louros, enrolados negligentemente
em ricas tranças, descobriam a fronte alva, e caíam em volta do pescoço presos
por uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro, feita com uma arte e
perfeição admirável.
A mãozinha afilada brincava com um ramo de acácia
que se curvava carregado de flores, e ao qual de vez em quando segurava-se para
imprimir à rede uma doce oscilação.
Esta moça era Cecília.
O que passava nesse momento em seu espírito
infantil é impossível descrever; o corpo cedendo à languidez que produz uma
tarde calmosa, deixava que a imaginação corresse livre.
Os sopros tépidos da brisa que vinham impregnados
dos perfumes das madressilvas, e das açucenas agrestes, ainda excitavam mais
esse enlevo e bafejavam talvez nessa alma inocente algum pensamento indefinido,
algum desses mitos de um coração de moça aos dezoito anos.
Ela sonhava que uma das nuvens brancas que passavam
pelo céu anilado, rogando a ponta dos rochedos se abria de repente; e um homem
vinha cair a seus pés tímido e suplicante.
Sonhava que corava; e um rubor vivo acendia o
rosado de suas faces; mas a pouco e pouco esse casto enleio ia se desvanecendo,
e acabava num gracioso sorriso que sua alma vinha pousar nos lábios.
Com o seio palpitante, toda trêmula e ao mesmo
tempo contente e feliz, abria os olhos; mas voltava-os com desgosto, porque, em
vez do lindo cavalheiro que ela sonhara, via a seus pés um selvagem.
Tinha então, sempre em sonho, um desses assomos de
cólera de rainha ofendida, que fazia arquear as sobrancelhas louras, e bater
sobre a relva a ponta de um pezinho de menina.
Mas o escravo suplicante erguia os olhos tão
magoados, tão cheios de preces mudas e de resignação, que ela sentia um quer
que seja de inexprimível, e ficava triste, triste, até que fugia e ia chorar.
Vinha porém o seu lindo cavalheiro, enxugava-lhe as
lágrimas, e ela sentia-se consolada, e sorria de novo; mas conservava sempre
uma sombra de melancolia, que só a pouco e pouco o seu gênio alegre conseguia
desvanecer.
Neste ponto do seu sonho, a portinha interior do
jardim abriu-se, e outra moça, roçando apenas a grama com o seu passo ligeiro,
aproximou-se da rede.
Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília;
era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura, com o encantador
contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade.
Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado,
cabelos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, davam a este rosto um
poder de sedução irresistível.
Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a
rede, e não pôde furtar-se à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada,
de contornos tão suaves; e uma sombra imperceptível, talvez de um despeito,
passou pelo seu rosto, mas esvaeceu-se logo.
Sentou-se numa das bandas da rede, reclinando sobre
a moça para beijá-la ou ver se estava dormindo.
Cecília, sentindo um estremecimento, abriu os olhos
e fitou-os em sua prima.
—Preguiçosa!... disse Isabel sorrindo.
—É verdade! respondeu a moça, vendo as grandes
sombras que projetavam as árvores; está quase noite.
—E desde o sol alto que dormes, não é assim?
perguntou a outra gracejando.
—Não, não dormi nem um instante, mas não sei o que
tenho hoje que me sinto triste.
—Triste! tu, Cecília? não creio; era mais fácil não
cantarem as aves ao nascer do sol.
—Está bem! não queres acreditar!
—Mas vem cá! Por que razão hás de estar triste, tu
que durante todo o ano só tens um sorriso, tu que és alegre e travessa como um
passarinho?
—É para veres! Tudo cansa neste mundo.
—Ah! compreendo! estás enfastiada de viver aqui
nestes ermos.
-Já me habituei tanto a ver estas árvores, este
rio, estes montes, que quero-lhes como se me tivessem visto nascer.
—Então o que é que te faz triste?
—Não sei; falta-me alguma coisa.
—Não vejo o que possa ser. Sim!... já adivinho!
—Adivinhas o quê? perguntou Cecília admirada.
—Ora! o que te falta.
—Se eu mesma não sei! disse a moça sorrindo.
—Olha, respondeu Isabel; ali está a tua rola
esperando que a chames, e o teu veadinho que te olha com os seus olhos doces;
só falta o outro animal selvagem.
—Peri! exclamou Cecília rindo-se da idéia de sua
prima.
—Ele mesmo! Só tens dois cativos para fazeres as
tuas travessuras; e como não vês o mais feio, e o mais desengraçado, estás aborrecida.
—Mas agora me lembro, disse Cecília tu já o viste
hoje?
—Não; nem sei o que é feito dele.
—Saiu antes de ontem à tarde; não vá ter-lhe
sucedido alguma desgraça! disse a moça estremecendo.
—Que desgraça queres tu que lhe possa suceder? Não
anda ele todo dia batendo o mato, e correndo como uma fera bravia?
—Sim; mas nunca lhe sucedeu ficar tanto tempo fora,
sem voltar à casa.
—O mais que pode acontecer, é terem-lhe apertado as
saudades da sua vida antiga e livre.
—Não! exclamou a moça com vivacidade; não é
possível que nos abandonasse assim!
—Mas então que pensas que andará fazendo por esse
sertão?
—E verdade!... disse a moça preocupada.
Cecília ficou um momento com a cabeça baixa, quase
triste; nesta posição, a vista caiu sobre o veado, que fitava nela a sua pupila
negra com toda a languidez e suavidade, que a natureza pusera em seus olhos.
A moça estendeu a mão e deu com a ponta dos dedos
um estalinho, que fez o lindo animal saltar de alegria e vir pousar a cabeça no
seu regaço.
—Tu não abandonarás tua senhora, não é? disse ela
passando a mão sobre o seu pêlo acetinado.
—Não faças caso, Cecília, replicou Isabel reparando
na melancolia da moca; pedirás a meu tio para caçar-te outro que farás
domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri.
—Prima, disse a moça com um ligeiro tom de
repreensão, tratas muito injustamente esse pobre índio que não te fez mal
algum.
-Ora, Cecília, como queres que se trate um selvagem
que tem a pele escura e o sangue vermelho? Tua mãe não diz que um índio é um
animal como um cavalo ou um cão?
Estas últimas palavras foram ditas com uma ironia
amarga, que a filha de Antônio de Mariz compreendeu perfeitamente.
—Isabel!... exclamou ela ressentida.
—Sei que tu não pensas assim, Cecília; e que o teu
bom coração não olha a cor do rosto para conhecer a alma. Mas os outros?...
Cuidas que não percebo o desdém com que me tratam?
—Já te disse por vezes que é uma desconfiança tua;
todos te querem, e te respeitam como devem.
Isabel abanou tristemente a cabeça.
—Vai-te bem o consolar-me; mas tu mesma tens visto
se eu tenho razão.
—Ora, um momento de zanga de minha mãe...
—E um momento bem longo, Cecília! respondeu a moça
com um sorriso amargo.
—Mas escuta, disse Cecília passando o braço pela
cintura de sua prima e chamando-a a si, tu bem sabes que minha mãe é uma
senhora muito severa mesmo para comigo.
—Não te canses, prima; isto só serve para provar-me
ainda mais o que já te confessei: nesta casa só tu me amas, os mais me
desprezam.
—Pois bem, replicou Cecília, eu te amarei por
todos; não te pedi já que me tratasses como irmã?
—Sim! e isto me causou um prazer, que tu não
imaginas. Se eu fosse tua irmã!...
—E por que não hás de sê-lo? Quero que o sejas!
—Para ti, que para ele...
Este ele foi murmurado dentro dalma.
—Mas olha que exijo uma coisa.
—O que é? perguntou Isabel.
—É que eu serei a irmã mais velha.
—Apesar de seres mais moça?...
—Não importa! Como irmão mais velha, tu me deves
obedecer?
—Decerto, respondeu a prima sem poder deixar de
sorrir.
—Pois bem! exclamou Cecília beijando-a na face, não
te quero ver triste, ouviste? Senão fico zangada.
—E tu não estavas triste há pouco?
—Oh! já passou! disse a moça saltando ligeiramente
da rede.
Com efeito, aquela doce languidez com que se
embalançava há pouco, cismando em mil coisas, tinha desaparecido completamente:
seu gênio de menina alegre e feiticeira havia cedido um momento ao enlevo, mas
voltava de novo.
Era agora como sempre uma moça risonha e faceira,
respirando toda a graciosa gentileza, misturada de inocência e estouvamento,
que dão o ar livre e a vida passada no campo.
Erguendo-se, apinhou em botão de rosa os lábios
vermelhos e imitou com uma graça encantadora os arrulhos doces da juriti;
imediatamente a rola saltou dos galhos da acácia, e veio aninhar-se no seu
seio, estremencendo de prazer ao contato da mãozinha que alisava a sua penugem
macia.
—Vamos dormir, disse ela à rola com a garridice com
que as mães falam aos filhinhos recém-nascidos: a rolinha está com sono, não é?
E deixando sua prima um momento só no jardim, foi
agasalhar os seus dois companheiros de solidão, com tanto carinho e solicitude
que bem revelava a riqueza de sentimento que havia no fundo desse coração,
envolta pela graça infantil de seu espírito.
Nesta ocasião ouviu-se um tropel de animais perto
da casa; Isabel lançou os olhos sobre as margens do rio, e viu uma banda de
cavaleiros que entravam a cerca.
Soltou um grito de surpresa, de alegria e susto ao
mesmo tempo.
—Que é? perguntou Cecília correndo para sua prima.
—São eles que chegam.
—Eles quem?
—O Sr. Álvaro e os outros.
—Ah!... exclamou a moça corando.
—Não achas que voltaram muito depressa? perguntou
Isabel sem reparar na perturbação de sua prima.
—Muito; quem sabe se houve alguma coisa!
—Dezenove dias apenas... disse Isabel
maquinalmente.
—Contaste os dias?
—É fácil! respondeu a moça corando por sua vez;
depois de amanhã faz três semanas.
—Vamos a ver que lindas coisas eles nos trazem!
—Nos trazem? repetiu Isabel carregando sobre a
palavra com um tom de melancolia.
—Nos trazem, sim; porque eu encomendei um fio de
pérolas para ti. Devem ir-te bem as pérolas, com tuas faces cor de jambo! Sabes
que eu tenho inveja do teu moreninho, prima?
—E eu daria a minha vida para ter a tua alvura,
Cecília
—Ai! o sol está quase a se pôr! Vamos.
E as duas moças tomaram pelo interior da casa,
dirigindo-se ao lado da entrada.
VI
A VOLTA
Ao mesmo tempo que esta cena se passava no jardim,
dois homens passeavam do outro lado da esplanada, na sombra que projetava o
edifício.
Um deles, de alto porte, conhecia-se imediatamente
que era um fidalgo pela altivez do gesto e pelo trajo de cavalheiro.
Vestia um gibão de velado preto com alamares de
seda cor de café no peito e nas aberturas das mangas; os calções do mesmo
estofo, e também pretos, caíam sobre as botas longas de couro branco com
esporas de Ouro.
Uma simples preguilha de linho alvíssimo cercava o
talho do seu gibão, e deixava a descoberto o pescoço, que sustentava com graça
uma bela e nobre cabeça de velho.
De seu chapéu de feltro pardo sem pluma
escapavam-se os anéis de cabelos brancos, que calam sobre os ombros; através da
longa barba alva como a espuma da cascata, brilhavam suas faces rosadas, sua
boca ainda expressiva, e seus olhos pequenos mas vivos.
Este fidalgo era D. Antônio de Mariz que, apesar de
seus sessenta anos, mostrava um vigor devido talvez à vida ativa; trazia ainda
o porte direito, e tinha o passo firme e seguro como se estivesse na força da idade.
O outro velho, que caminhava a seu lado com o
chapéu na mão, era Aires Gomes, seu escudeiro e antigo companheiro de sua vida
aventureira; o fidalgo depositava a maior confiança na sua discrição e zelo.
A fisionomia deste homem tinha, quer pela sagacidade
inquieta que era a sua expressão ordinária, quer pelos seus traços alongados,
uma certa semelhança com o focinho da raposa, semelhança que era ainda mais
aumentada pelo seu trajo bizarro. Trazia sobre o gibão de belbutina cor de
pinhão uma espécie de véstia do pêlo daquele animal, do qual eram também as
botas compridas, que lhe serviam quase de calções.
—Em que o negues, Aires Gomes, dizia o fidalgo ao
seu escudeiro, medindo a passos lentos o terreno; estou certo que és do meu
parecer.
—Não digo de todo que não, sr. cavalheiro; confesso
que D. Diogo cometeu uma imprudência matando essa índia.
—Dize uma barbaria, uma loucura!... Não penses que
com ser meu filho, o desculpo!
—Julgais com demasiada severidade.
—E o devo, porque um fidalgo que mata uma criatura
fraca e inofensiva, comete uma ação baixa e indigna. Durante trinta anos que me
acompanhas, sabes como trato os meus inimigos; pois bem, a minha espada, que
tem abatido tantos homens na guerra, cair-me-ia da mão se, num momento de
desvario, a erguesse contra uma mulher.
—Mas é preciso ver que casta de mulher é esta, uma
selvagem...
—Sei o que queres dizer; não partilho essas idéias
que vogam entre os meus companheiros; para mim, os índios quando nos atacam,
são inimigos que devemos combater; quando nos respeitam são vassalos de uma
terra que conquistamos, mas são homens!
—Vosso filho não pensa assim, e bem sabeis que os
princípios que lhe deu a Sra. D. Lauriana...
—Minha mulher!... replicou o fidalgo com algum
azedume. Mas não é disto que discorríamos.
—Sim; faláveis dos receios que vos inspirava a
imprudência de D. Diogo.
—E que pensas tu?
—Já vos disse que não vejo as coisas tão negras
como vós, Sr. D. Antônio. Os índios vos respeitam, vos temem, e não se animarão
a atacar-vos.
—Digo-te que te enganas, ou antes que procuras
enganar-me.
—Não sou capaz de tal, sr. cavalheiro!
—Conheces tão bem como eu, Aires, o caráter desses
selvagens; sabes que a sua paixão dominante é a vingança, e que por ela
sacrificam tudo, a vida e a liberdade.
—Não desconheço isto, respondeu o escudeiro.
—Eles me temem, dizes tu; mas desde o momento em
que se julgarem ofendidos por mim, sofrerão tudo para vingar-se
—Tendes mais experiência do que eu, sr. cavalheiro;
mas queira Deus que vos enganeis.
Voltando-se na beira da esplanada para continuarem
o seu passeio, D. Antônio de Mariz e o seu escudeiro viram um moço cavaleiro
que atravessava pela frente da casa.
—Deixa-me, disse o fidalgo a Aires Gomes; e pensa
no que te disse; em todo o caso que estejamos preparados para recebê-los.
—Se vierem! retrucou o teimoso escudeiro
afastando-se.
D. Antônio dirigiu-se lentamente para o moço
fidalgo que se havia sentado a alguns passos.
Vendo aproximar-se seu pai, D. Diogo de Mariz
ergueu-se e descobrindo-se esperou-o numa atitude respeitosa.
—Sr. cavalheiro, disse o velho com um ar severo,
infringistes ontem as ordens que vos dei.
—Senhor...
—Apesar das minhas recomendações expressas,
ofendestes um desses selvagens e excitastes contra nós a sua vingança. Pusestes
em risco a vida de vosso pai, de vossa mãe e de homens dedicados. Deveis estar
satisfeito de vossa obra.
—Meu pai!...
—Cometestes uma ação má assassinando uma mulher,
uma ação indigna do nome que vos dei; isto mostra que ainda não sabeis fazer
uso da espada que trazeis à cinta.
—Não mereço esta injúria, senhor! Castigai-me, mas
não rebaixeis vosso filho.
—Não é vosso pai que vos rebaixa, sr. cavalheiro, e
sim a ação que praticastes. Não vos quero envergonhar, tirando essa arma que
vos dei para combater pelo vosso rei; mas como ainda não vos sabeis servir
dela, proíbo-vos que a tireis da bainha ainda que seja para defender a vossa
vida.
D. Diogo inclinou-se em sinal de obediência.
—Partireis brevemente, apenas chegar a expedição do
Rio de Janeiro; e ireis pedir a Diogo Botelho que vos dê serviço nas
descobertas. Sois português, e deveis guardar fidelidade ao vosso rei legitimo;
mas combatereis como fidalgo e cristão em prol da religião, conquistando ao
gentio esta terra que um dia voltará ao domínio de Portugal livre.
—Cumprirei as vossas ordens, meu pai.
—Daqui até então, continuou o velho fidalgo, não
arredareis pé desta casa sem minha ordem. Ide, sr. cavalheiro; lembrai-vos que
tenho sessenta anos, e que vossa mãe e vossa irmã breve carecerão de um braço
valente para defendê-las, e de um conselho avisado para protegê-las.
O moço sentiu as lágrimas borbulharem nos olhos,
mas não balbuciou uma palavra; curvou-se e beijou respeitosamente a mão de seu
pai.
D. Antônio de Mariz, depois de olhá-lo um momento
com uma severidade sob a qual transpareciam os assomos do amor de pai, voltou
pelo mesmo caminho e ia continuar o seu passeio quando sua mulher apareceu na
soleira da porta.
D. Lauriana era uma senhora de cinqüenta e cinco anos;
magra, mas forte e conservada como seu marido; tinha ainda os cabelos pretos
matizados por alguns fios brancos que escondia o seu alto penteado, coroado por
um desses antigos pentes tão largos que cingiam toda a cabeça, e fingiam uma
espécie de diadema.
Seu vestido de lapim cor de fumo, de cintura
comprida, um pouco curto na frente, tinha uma cauda respeitável, que ela
arrastava com um certo donaire de fidalga, resto de sua beleza, há muito
perdida. Longas arrecadas de ouro com pingentes de esmeralda, que lhe rogavam
quase os ombros, e um colar com uma cruz de ouro ao pescoço, eram todos os seus
ornatos.
Quanto ao moral, já dissemos que era uma mistura de
fidalguia e devoção; o espírito de nobreza que em D. Antônio de Mariz era um
realce, nela tornava-se uma ridícula exageração.
No ermo em que se achava, em lugar de procurar
desvanecer um pouco a distinção social que podia haver entre ela e os homens no
meio dos quais vivia, ao contrário, aproveitava o fato de ser a única dama
fidalga daquele lugar para esmagar os outros com a sua superioridade, e reinar
do alto de sua cadeira de espaldar, que para ela era quase um trono.
Em religião o mesmo sucedia; e um dos maiores
desgostos que ela sentia na sua existência, era não se ver cercada de todo esse
aparato do culto, que D. Antônio, como os homens de uma fé robusta e de um
espírito direito, tinha sabido substituir perfeitamente.
Apesar desta diferença de caracteres, D. Antônio de
Mariz, ou por concessões ou por serenidade, vivia em perfeita harmonia com sua
mulher; procurava satisfazê-la em tudo, e quando não era possível, exprimia a
sua vontade de um certo modo, que a dama conhecia imediatamente que era
escusado insistir.
Só em um ponto a sua firmeza tinha sido baldada; e
fora em vencer a repugnância que D. Lauriana tinha por sua sobrinha; mas como o
velho fidalgo sentia talvez doer-lhe a consciência nesse objeto, deixou sua
mulher livre de proceder como lhe parecesse, e respeitou os seus sentimentos.
—Faláveis a D. Diogo com um ar tão severo! disse D.
Lauriana descendo os degraus da porta, e vindo ao encontro de seu marido.
—Dava-lhe uma ordem, e um castigo que ele mereceu,
respondeu o fidalgo.
—Tratais esse filho sempre com excessivo rigor, Sr.
D. Antônio!
—E vós com extrema benevolência, D. Lauriana.
Assim, como não quero que o vosso amor o perca, vejo-me obrigado a privar-vos
da sua companhia.
—Jesus! Que dizeis, Sr. D. Antônio?
—D. Diogo partirá nestes dias para a cidade do
Salvador, onde vai viver como fidalgo, servindo à causa da religião e não
perdendo o tempo em extravagâncias.
—Vós não fareis isto, Sr. Mariz, exclamou sua
mulher; desterrar vosso filho da casa paterna!
—Quem vos fala em desterro, senhora? Quereis que D.
Diogo passe toda a sua vida agarrado ao vosso avental e à vossa roca?
—Mas, senhor; eu sou mãe, e não posso viver assim
longe de meu filho, cheia de inquietações pela sua sorte.
—Entretanto, assim há de ser, porque assim o
decidi.
—Sois cruel, senhor.
—Sou justo apenas.
Foi nesta ocasião que se ouviu o tropel de animais,
e que Isabel distinguiu a banda de cavaleiros que se aproximava da casa.
—Oh! exclamou D. Antônio de Mariz; eis Álvaro de
Sá.
O moço que já conhecemos, o italiano e seus
companheiros apearam-se, subiram a ladeira que conduzia à esplanada, e aproximaram-se
do cavalheiro e de sua mulher, a quem cortejaram respeitosamente.
O velho fidalgo estendeu a mão a Álvaro de Sá, e
respondeu à saudação dos outros com uma certa amabilidade. Quanto a D.
Lauriana, a inclinação da cabeça foi tão imperceptível, que seus olhos nem se
abaixaram sobre o rosto dos aventureiros.
Depois de trocada essa saudação, o fidalgo fez um
sinal a Álvaro, e os dois se separaram, e foram conversar a um canto do
terreiro, sentados sobre dois grossos troncos de árvore lavrados toscamente,
que serviam de bancos.
D. Antônio desejava saber noticias do Rio de
Janeiro e de Portugal, onde se haviam perdido todas as esperanças de uma
restauração, que só teve lugar quarenta anos depois com a aclamação do duque de
Bragança.
O resto dos aventureiros ganhou o outro lado da
esplanada e foi misturar-se com os seus companheiros que saiam ao seu encontro.
Aí foram recebidos por um tiroteio de perguntas, de
risadas e ditos chistosos, em que tomaram parte; depois, uns, curiosos de
novidades, outros, ávidos de contar o que viram, começaram a falar ao mesmo
tempo, de modo que ninguém se entendia.
Nesse instante, as duas moças apareceram na porta:
Isabel parou trêmula e confusa; Cecília descendo ligeiramente os degraus,
correu para sua mãe.
Enquanto ela atravessava o espaço que a separava de
D. Lauriana, Álvaro tendo obtido a permissão do fidalgo adiantou-se e com o
chapéu na mão foi inclinar-se corando diante da moça.
—Eis-vos de volta, Sr. Álvaro! disse Cecília com um
certo repente, para disfarçar o enleio que também sentia; depressa tornastes!
—Menos do que desejava, respondeu o moço
balbuciando; quando o pensamento fica, o corpo tem pressa de voltar-se.
Cecília corou e fugiu para junto de sua mãe.
Durante que esta breve cena se passava no meio da
esplanada, três olhares bem diferentes a acompanhavam, e partindo de pontos
diversos cruzavam-se sobre essas duas cabeças que brilhavam de beleza e
mocidade.
D. Antônio de Mariz, sentado a alguma distancia,
considerava aquele lindo par, e um sorriso intimo de felicidade expandia o seu
rosto venerável.
Ao longe, Loredano, um pouco retirado dos grupos
dos seus companheiros, cravava nos moços um olhar ardente, duro, incisivo;
enquanto as narinas dilatadas aspiravam o ar com a delícia da fera que fareja a
vítima.
Isabel, a pobre menina, fitava sobre Álvaro os seus
grandes olhos negros, cheios de amargura e de tristeza; sua alma parecia
coar-se naquele raio luminoso e ir curvar-se aos pés do moço.
Nenhuma das testemunhas mudas desta cena percebeu o
que se passava além do ponto para onde convergiam os seus olhares; à exceção do
italiano que viu o sorriso de D. Antônio de Mariz e o compreendeu.
Enquanto isto sucedia, D. Diogo, que se havia
retirado, voltou a saudar Álvaro, e seus companheiros recém-chegados; o moço
tinha ainda no rosto a expressão de tristeza que lhe haviam deixado as palavras
severas de seu pai.
VII
A PRECE
A tarde ia morrendo.
O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as
grandes florestas, que iluminava com os seus últimos raios.
A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela
verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem
das árvores.
Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas
e delicadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu
cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada; enquanto
a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que
se despede do dia.
Um concerto de notas graves saudava o pôr-do-sol, e
confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua
queda, e ceder à doce influência da tarde.
Era a Ave-Maria.
Como é solene e grave no meio das nossas matas a
hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador
para murmurar a prece da noite!
Essas grandes sombras das árvores que se estendem
pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha;
esses raios perdidos, que, esvazando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar
um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.
O urutau no fundo da mata solta as suas notas
graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas de verdura, vão ecoar ao
longe como o toque lento e pausado do ângelus.
A brisa, rogando as grimpas da floresta, traz um
débil sussurro, que parece o último eco dos rumores do dia, ou o derradeiro
suspiro da tarde que morre.
Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais
ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a
esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um
certo temor.
De repente, os sons melancólicos de um clarim
prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde; era um dos aventureiros
que tocava a Ave-Maria.
Todos se descobriram.
D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da
esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.
Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas
moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo,
ajoelharam-se a alguns passos de distancia.
O sol com seu último reflexo esclarecia a barba e
os cabelos brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele basto de
antigo cavalheiro.
Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a
que apresentava essa prece meio cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos,
iluminados pelos raios do ocaso, respirava um santo respeito.
Loredano foi o único que conservou o seu sorriso
desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro,
ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplá-la, como se ela fosse a
divindade a quem dirigia a sua prece.
Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no
horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um
fundo recolhimento, e diziam uma oração muda, que apenas agitava
imperceptivelmente os lábios.
Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o
mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.
Era noite.
Todos se ergueram; os aventureiros cortejaram e
foram-se retirando a pouco e pouco.
Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de
sua mãe, e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Álvaro.
Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio, e
curvou-se em face de D. Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade
e altivez de um abade.
Depois, a família chegando-se para junto da porta,
dispôs-se a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas
suculenta ceia.
Álvaro, em atenção a ser o seu primeiro dia de
chegada, fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da
família, o que havia recebido como um favor imenso.
O que explicava esse apreço e grande valor dado por
ele a um tão simples convite, era o regime caseiro que D. Lauriana havia
estabelecido na sua habitação.
Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da
casa inteiramente separados da família; durante o dia corriam os matos e
ocupavam-se com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.
Era unicamente na hora da prece que se reuniam um
momento na esplanada, onde, quando o tempo estava bom, as damas vinham também
fazer a sua oração da tarde.
Quanto à família, esta conservava-se sempre
retirada no interior da casa durante a semana; o domingo era consagrado ao
repouso, à distração e à alegria; então deva-se às vezes um acontecimento
extraordinário como um passeio, uma caçada, ou uma volta em canoa pelo rio.
Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos
desejos, como dizia o italiano, de chegar ao Paquequer em um sábado, e antes
das seis horas; o moço sonhava com a aventura desses curtos instantes de
contemplação e com a liberdade do domingo, que lhe ofereceria talvez ocasião de
arriscar uma palavra.
Formado o grupo da família, a conversa travou-se
entre D. Antônio de Mariz, Álvaro e D. Lauriana; Diogo ficara um pouco
retirado; as moças, tímidas, escutavam, e quase nunca se animavam a dizer uma
palavra sem que se dirigissem diretamente a elas, o que rara vez sucedia.
Álvaro, desejoso de ouvir a voz doce e argentina de
Cecília, da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava,
procurou um pretexto que a chamasse à conversa.
—Esquecia-me contar-vos, Sr. D. Antônio, disse ele
aproveitando-se de uma pausa, um dos incidentes da nossa viagem.
—Qual? Vejamos, respondeu o fidalgo.
—A coisa de quatro léguas daqui encontramos Peri.
—Inda bem! disse Cecília; há dois dias que não
sabemos noticias dele.
—Nada mais simples, replicou o fidalgo; ele corre
todo este sertão.
—Sim! tornou Álvaro, mas o modo por que o
encontramos é que não vos parecerá tão simples.
—O que fazia então?
—Brincava com uma onça como vós com o vosso
veadinho, D. Cecília.
—Meu Deus! exclamou a moça soltando um grito. —Que
tens, menina? perguntou D. Lauriana.
—É que ele deve estar morto a esta hora, minha mãe.
—Não se perde grande coisa, respondeu a senhora.
—Mas eu serei a causa de sua morte!
—Como assim, minha filha? disse D. Antônio.
—Vede vós, meu pai, respondeu Cecília enxugando as
lágrimas que lhe saltavam dos olhos; conversava quinta-feira com Isabel, que
tem grande medo de onças, e brincando, disse-lhe que desejava ver uma viva!...
—E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo,
replicou o fidalgo rindo. Não há que admirar. Outras tem ele feito.
—Porém, meu pai, isto é coisa que se faça! A onça
deve tê-lo morto.
—Não vos assusteis, D. Cecília; ele saberá
defender-se.
—E vós, Sr. Álvaro, por que não o ajudastes a
defender-se? disse a moça sentida.
—Oh! se vísseis a raiva com que ficou por querermos
atirar sobre o animal!
E o moço contou parte da cena passada na floresta.
—Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua
cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para
mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse
índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida
tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro
português no corpo de um selvagem!
A conversa continuou; mas Cecília tinha ficado
triste, não tomou mais parte nela.
D. Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o
velho fidalgo e o moço conversaram até oito horas, em que o toque de uma campa
no terreiro da casa veio anunciar a ceia.
Enquanto os outros subiam os degraus da porta e
entravam na habitação, Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com
Cecília.
—Não me perguntais pelo que me ordenastes, D.
Cecília? disse ele à meia voz.
—Ah! sim! trouxestes todas as coisas que vos pedi?
—Todas e mais... disse o moço balbuciando.
—E mais o quê? perguntou Cecília.
—E mais uma coisa que não pedistes.
—Esta não quero! respondeu a moça com um ligeiro
enfado.
—Nem por vos pertencer já? replicou ele
timidamente.
—Não entendo. É uma coisa que já me pertence,
dizeis?
—Sim; porque é uma lembrança vossa.
—Nesse caso guardai-a, Sr. Álvaro, disse ela
sorrindo, e guardai-a bem.
E fugindo, foi ter com seu pai, que chegava à
varanda, e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre, que o moço fez
conduzir, e que continha as suas encomendas. Estas consistiam em jóias, sedas,
espiguilhas de linho, fitas, glacês, holandês, e um lindo par de pistolas
primorosamente embutidas.
Vendo essas armas, a moça soltou um suspiro abafado
e murmurou consigo:
—Meu pobre Peri! Talvez já não te sirvam nem para
te defenderes.
A ceia foi longa e pausada, como costumava ser
naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação seria, e a mesa um altar que
se respeitava.
Durante a colação, Álvaro esteve descontente pela
recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto
amor e tanta esperança.
Logo que seu pai ergueu-se, Cecília recolheu ao seu
quarto, e ajoelhando diante do crucifixo, fez a sua oração. Depois,
erguendo-se, foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se
erguia na ponta do rochedo, e estava deserta e solitária.
Sentia apertar-se o coração com a idéia de que, por
um gracejo, tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara
a vida, e arriscava todos os dias a sua somente para fazê-la sorrir.
Tudo nesta recâmara lhe falava dele: suas aves,
seus dois amiguinhos que dormiam, um no seu ninho e outro sobre o tapete, as
penas que serviam de ornato ao aposento, as peles dos animais que seus pés
rogavam, o perfume suave de benjoim que ela respirava; tudo tinha vindo do
índio, que, como um poeta ou um artista, parecia criar em torno dela um pequeno
templo dos primores da natureza brasileira.
Ficou assim a olhar pela janela muito tempo; nessa
ocasião nem se lembrava de Álvaro, o jovem cavalheiro elegante, tão delicado,
tão tímido, que corava diante dela, como ela diante dele.
De repente a moça estremeceu.
Tinha visto a luz das estrelas passar um vulto que
ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão, e pelas formas esbeltas e
flexíveis; quando o vulto entrou na cabana, não lhe restou a menor dúvida.
Era Peri.
Sentiu-se aliviada de um grande peso; e pôde então
entregar-se ao prazer de examinar um por um, com toda a atenção, os lindos
objetos que recebera, e que lhe causavam um vivo prazer.
Nisto gastou seguramente meia hora; depois
deitou-se, e como já não tinha inquietação nem tristeza, adormeceu sorrindo à
imagem de Álvaro e pensando na mágoa que lhe fizera, recusando o seu mimo.
VIII
TRÊS
LINHAS
Tudo estava em sossego; apenas quando o vento
escasseava, ouvia-se do lado do edifício habitado pelos aventureiros um rumor
de vozes abafadas.
A esta hora, havia naquele lagar três homens bem
diferentes pelo seu caráter, pela sua posição e pela sua origem, que entretanto
tinham uma mesma idéia.
Separados pelos costumes e pela distância, os seus
espíritos quebravam essa barreira moral e física, e se reuniam num só
pensamento, convergindo para um mesmo ponto como os raios de um círculo.
Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas
existências, que mais cedo ou mais tarde hão de cruzar-se no seu vértice.
Numa das alpendradas que corriam no fundo da casa,
trinta e seis aventureiros cercavam uma longa mesa, no meio da qual trescalavam
em escudelas de pau algumas peças de caça, já estreadas de uma maneira que
fazia honra ao apetite dos convivas.
O catalão não corria nos canjirões de louça e de
metal com tanta fartura quanta era de desejar; mas, em compensação, viam-se aos
cantos do alpendre, grossas talhas cheias de vinho de caju e ananás, onde os
aventureiros podiam beber à larga.
O vício tinha suprido os licores europeus pelas
bebidas selvagens; afora uma pequena diferença de sabor, havia no fundo de
todas elas o álcool que excita o espírito, e produz a embriaguez.
A colação começara há meia hora; nos primeiros
momentos não se ouviu senão o mastigar dos dentes, os beijos dados aos
canjirões, e o ranger da faca na escudela.
Depois, um dos aventureiros proferiu uma palavra,
cuja réplica correu imediatamente à roda da mesa; a conversa tornou-se uma
espécie de coro confuso e discordante.
Foi no meio desta algazarra que um dos convivas,
erguendo a voz, lançou estas palavras:
—E vós, Loredano, nada dizeis? Estais ai que não há
modo de vos ouvir uma palavra!
—Certo, acudiu outro, Bento Simões diz verdade; se
não é a fome que vos traz mudo, algo tendes, misser italiano.
—Voto a Deus, Martim Vaz, disse um terceiro, que
são penares por alguma moçoila que andou reqüestando em São Sebastião.
—Tirai-vos lá com os vossos penares, Rui Soeiro;
achais que Loredano seja homem de se amofinar por coisa de tal jaez?
—E por que não, Vasco Afonso? Todos calçamos pelo
mesmo sapato, em que o aperte mais a uns do que a outros.
—Não julgueis os mais por vós, dom namorado; homens
há que trazem seu pensamento empregado em coisa de mor valia do que requebros e
galanteios.
O italiano conservava-se taciturno, e deixava que
os outros o trouxessem à baila, sem dar-se por achado: era fácil de ver que ele
seguia com afinco uma idéia que lhe trabalhava no espírito.
—Mas, por Deus, continuou Bento Simões, falai-nos
do que vistes na vossa viagem, Loredano; apostaria que alguma vos sucedeu!
—Ide com o que vos digo, retrucou Rui Soeiro,
misser italiano está penado de amores.
—E por quem, se vos parece? perguntaram alguns.
—Ora, não custa sabê-lo; por aquele canjirão de
vinho que ai lhe está fronteiro; não vedes que olhos que lhe deita?
Os aventureiros largaram-se a rir, aplaudindo a
lembrança.
Aires Comes apareceu à porta do saguão.
—Eia, rapazes! disse ele com uma voz que se
esforçava por tornar severa. Leva rumor!
—É um dia de chegada, sr. escudeiro; e deveis
levá-lo em conta, acudiu Rui Soeiro.
Aires sentou-se, e começou a fazer as honras a um
resto de veado que estava em frente dele.
—Olá! vós outros, gritou ele, com a boca cheia,
para dois aventureiros que se haviam levantado; ide encher vosso quarto, que já
refizestes, e os mais esperam sua vez.
Os dois aventureiros saíram para ir revezar os
outros, que era costume ficarem de sentinela à noite; medida esta necessária
naquele tempo.
—Estais hoje muito severo, Sr. Aires Gomes, disse
Martim Vaz.
—Aquele que dá as ordens, sabe o que faz; a nós
cumpre obedecer, respondeu o escudeiro.
—Ah! por que não dizíeis isto logo?
—Pois ficareis agora entendidos; boa guarda, que
talvez breve tenhamos que ver.
—Venha isso, acudiu Bento Simões, que já me
enfastio de atirar às pacas e porcos do mato.
—E em honra de quem pensais vós que queimaremos
breve algumas libras de pólvora? perguntou Vasco Afonso.
—Tem que saber isso? Quem, senão os índios, nos dão
esta folia?
Loredano ergueu a cabeça.
—Que histórias contais ai? Supondes que os índios
nos atacarão? perguntou ele.
—Oh! eis misser italiano que acorda; foi preciso
cheirar-lhe a chamusco, exclamou Martim Vaz.
A presença de Aires Gomes, reprimindo a franca
hilaridade dos aventureiros, fez com que fossem uns após outros desamparando a
mesa, e deixassem o escudeiro na companhia dos canjirões e escudelas.
Loredano, levantando-se, fez um gesto a Rui Soeiro
e a Bento Simões; e os três seguiram juntos até ao meio do terreiro; o italiano
murmurou-lhes ao ouvido uma simples palavra:
—Amanhã!
Depois, como se nada se tivesse passado entre eles,
os dois aventureiros seguiram cada um de seu lado, e deixaram Loredano
continuar o seu caminho até à beira do precipício.
Do lado oposto, o italiano viu refletir-se sobre as
árvores o tênue reflexo da luz que esclarecia o quarto de Cecília, cujas
janelas não podia distinguir por causa do ângulo que formava a esplanada.
Aí esperou.
Álvaro, deixando Cecília, voltara triste e sentido
da recusa que sofrera, embora o consolasse a sua última palavra, e sobretudo o
sorriso que a acompanhou.
Não se podia resignar à perda desse prazer infinito
com que havia contado, de ver nos ornatos da moça uma prenda sua, uma lembrança
que lhe dissesse que pensava nele. Tinha afagado tanto essa idéia, tinha vivido
tanto tempo dela, que arrancá-la do seu espírito seria um sofrimento cruel.
Enquanto atravessava o espaço que o separava do seu
aposento, formulou um projeto e tomou uma resolução. Meteu numa pequena bolsa
de seda uma caixinha de jóias; e envolvendo-se no seu manto, costeou a casa e
aproximou-se do pequeno jardim que entestava com o gabinete de Cecília.
Também ele viu a luz das janelas se refletir
defronte; e esperou que a noite se adiantasse, e toda a casa dormisse.
Ao tempo que isto se passava, Peri, o índio que já
conhecemos, tinha chegado com o seu fardo, tão precioso que não o trocaria por
um tesouro.
No valado que se estendia à beira do rio, deixou o
seu prisioneiro, depois de o ter metido numa espécie de tronco que arranjou,
curvando um galho de árvore. Subiu então à esplanada, e foi nesta ocasião que a
moça o viu entrar na sua cabana; o que porém não pôde distinguir, foi a maneira
por que saíra quase logo.
Havia dois dias que não via sua senhora, que não
recebia dela uma ordem, que não adivinhava um desejo seu para satisfazê-lo
imediatamente.
O primeiro pensamento do índio, foi pois ver
Cecília, ou ao menos a sua sombra; entrando na cabana percebeu, como os outros,
a réstia de luz que coava entre as cortinas da janela.
Suspendeu-se a uma das palmeiras que servia de
esteio à choça, e por um desses movimentos ágeis que lhe eram tão naturais, de
um salto segurou-se ao galho de um óleo 19 gigante que, elevando-se sobre a
encosta fronteira, deitava alguns ramos do lado da casa.
Durante um momento o índio pairou sobre o abismo,
balançando-se no galho fraco que o sustinha; depois equilibrou-se e continuou
essa viagem aérea com a mesma segurança e a mesma firmeza com que um velho
marinheiro caminha sobre as gáveas e sobre as enxárcias.
Com uma ligeireza extraordinária ganhou o outro
lado da árvore e, escondido pela folhagem, aproximou-se até um galho que ficava
fronteiro das janelas de Cecília cerca de uma braça. Era nesse mesmo momento
que Loredano chegava de um lado e Álvaro de outro, e se colocavam igualmente a
alguns passos.
A princípio, Peri só teve olhos para ver o que se
passava dentro do aposento: Cecília examinava ainda por uma última vez as
encomendas que lhe haviam chegado do Rio de Janeiro.
Nessa muda contemplação, o índio esqueceu tudo. Que
lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragá-lo ao menor
movimento, e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir
a todo o instante!
Era feliz: tinha visto sua senhora; ela estava
alegre, contente e satisfeita; podia ir dormir e repousar.
Uma lembrança triste porem o assaltou; vendo os
lindos objetos que a moça recebera, pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas
que não tinha primores como aqueles para ofertar-lhe.
O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo
de desespero, como para ver se, colocado duzentos palmos acima da terra, sobre
as grimpas da árvore, poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos
pés de Cecília.
Assim, era esse o ponto onde se irradiavam aquelas
três linhas partidas de pontos tão diferentes. De maneira por que estavam
colocados, formavam um verdadeiro triângulo, cujo centro era a janela frouxamente
iluminada.
Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida,
unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia; e entretanto nem um
pesava o perigo que ia correr; nem um julgava que sua vida valesse a pena de
mercadejar por ela um prazer.
É que as paixões no deserto, e sobretudo no seio
desta natureza grande e majestosa, são verdadeiras epopéias do coração.
IX
AMOR
As cortinas da janela cerraram-se; Cecília tinha-se
deitado.
Junto da inocente menina adormecida na isenção de
sua alma pura de virgem, velavam três sentimentos profundos, palpitavam três
corações bem diferentes.
Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse
sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe
requeimava o sangue; o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda
aumentado pela impossibilidade moral que a sua condição criava, pela barreira
que se elevava entre ele, pobre colono, e a filha de D. Antônio de Mariz, rico
fidalgo de solar e brasão.
Para destruir esta barreira e igualar as posições,
seria necessário um acontecimento extraordinário, um fato que alterasse
completamente as leis da sociedade naquele tempo mais rigorosas do que hoje;
era preciso uma dessas situações em face das quais os indivíduos, qualquer que
seja a sua hierarquia, nobres e párias, nivelam-se; e descem ou sobem à
condição de homens.
O aventureiro compreendia isto; talvez que o seu
espírito italiano já tivesse sondado o alcance dessa idéia; em todo o caso o
que afirmamos é que ele esperava, e esperando vigiava o seu tesouro com um zelo
e uma constância a toda a prova; os vinte dias que passara no Rio de Janeiro
tinham sido verdadeiro suplício.
Em Álvaro, cavalheiro delicado e cortês, o
sentimento era uma afeição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma
as primeiras flores do coração, e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia
dava aos amores daquele tempo de crença e lealdade.
Sentir-se perto de Cecília vê-la e trocar alguma
palavra a custo balbuciada; corarem ambos sem saberem por quê, e fugirem desejando
encontrar-se; era toda a história desse afeto inocente, que se entregava
descuidosamente ao futuro, librando-se nas asas da esperança.
Nesta noite Álvaro ia dar um passo que na sua
habitual timidez, ele comparava quase com um pedido formal de casamento; tinha
resolvido fazer a moça aceitar, malgrado seu, o mimo que recusara, deitando-o
na sua janela; esperava que encontrando-o no dia seguinte, Cecília lhe
perdoaria o seu ardimento, e conservaria a sua prenda.
Em Peri o sentimento era um culto, espécie de
idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo; amava
Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se
inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a
moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.
Ao contrário dos outros ele não estava ali, nem por
um ciúme inquieto, nem por uma esperança risonha; arrostava a morte unicamente
para ver se Cecília estava contente, feliz e alegre; se não desejava alguma coisa
que ele adivinharia no seu rosto, e iria buscar nessa mesma noite, nesse mesmo
instante.
Assim o amor se transformava tão completamente
nessas organizações, que apresentava três sentimentos bem distintos; um era uma
loucura, o outro uma paixão, o último uma religião.
Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava. O
aventureiro daria a vida para gozar; o cavalheiro arrostaria a morte para
merecer um olhar; o selvagem se mataria, se preciso fosse, só para fazer
Cecília sorrir.
Entretanto nenhum desses três homens podia tocar a
janela da moça, sem correr um risco iminente; e isto pela posição em que se
achava o quarto de Cecília.
Embora o alicerce e a parede corressem a uma braça
de distancia da ribanceira, D. Antônio de Mariz para defender esta parte do
edifício tinha feito construir um respaldo que se abaixava da precinta das
janelas até à beira da esplanada; era impossível pois caminhar sobre este plano
inclinado, cuja face lisa e polida não oferecia nenhuma adesão ao pé o mais
firme e o mais seguro.
Abaixo da janela abria-se a rocha cortada a pique e
formava um valado profundo, coberto por um dossel verde de trepadeiras e cipós
que servia de habitação a todos esses répteis de mil formas que pululam na
sombra e na umidade.
Assim o homem que se precipitasse do alto da
esplanada nessa fenda larga e funda, se por um milagre não se espedaçasse nas
pontas da rocha, seria devorado em um momento pelas cobras e insetos venenosos
que enchiam essas grotas e alcantis.
Havia alguns instantes que a cortina da janela se
tinha cerrado; apenas uma luz vaga e mortiça desenhava na folhagem verde-negro
do óleo o quadro da janela.
O italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo
como em um espelho, onde revia todas as imagens de sua louca paixão, estremeceu
de repente. Na claridade debuxava-se uma sombra móbil; um homem se aproximava
da janela.
Pálido, com os olhos ardentes e os dentes cerrados,
pendido sobre o precipício, seguia as menores evoluções da sombra.
Viu um braço que se estendia para a janela, e a mão
que deixava no parapeito um objeto qualquer, mas tão pequeno que não se
percebia a forma. Pela manga larga do gibão, ou antes pelo instinto, o italiano
adivinhou que este braço pertencia a Álvaro; e compreendeu o que esta mão havia
deitado na janela.
E não se enganava.
Álvaro, segurando-se a uma estaca do jardim e pondo
um pé sobre o respaldo, coseu o corpo à parede; inclinando conseguiu realizar o
seu intento.
Depois voltou partilhado entre o temor da ação que
praticara, e a esperança de que Cecília lhe perdoaria.
Loredano apenas viu desaparecer a sombra, e ouviu
os ecos dos passos do moço, que se repercutiam surdamente no fundo do
precipício, sorriu. Sua pupila fulva brilhou na treva, como os olhos da irara.
Tirou a sua adaga e cravou-a na parede tão longe
quanto lhe permitiu a curva que o braço era obrigado a fazer para abarcar o
ângulo.
Suspendendo-se então a este fraco apoio pôde galgar
o respaldo e aproximar-se da janela; à menor indecisão, ao menor movimento,
bastava que o pé lhe faltasse, ou que o punhal vacilasse no cimento, para
precipitar-se com a cabeça sobre as pedras.
Enquanto isto se passava, Peri sentado
tranqüilamente no galho do óleo, e escondido pela folhagem, assistia imóvel a
toda esta cena.
Logo que Cecília cerrou as cortinas da janela, o
índio vira os dois homens que colocados à direita e a esquerda pareciam
esperar.
Esperou também, curioso de saber o que se ia
passar, mas resolvido, se fosse preciso, a lançar-se de um pulo sobre aquele
que ousasse fazer a menor violência, e a caírem ambos do alto da esplanada.
Tinha reconhecido Álvaro e Loredano; desde muito tempo que conhecia o amor do
cavalheiro por Cecília; mas sobre o italiano nunca tivera a menor suspeita.
O que podiam querer estes dois homens? Que vinham
eles fazer ali àquela hora silenciosa da noite?
O movimento de Álvaro explicou-lhe parte do enigma;
o de Loredano ia fazer-lhe compreender o resto.
Com efeito, o italiano que se aproximara da janela,
conseguiu com um esforço fazer cair o objeto, que Álvaro ai tinha deixado, no
fundo do precipício. isto voltou do mesmo modo, e retirou-se retirou-se o
prazer dessa vingança simples, mas cujo alcance ele previa.
Peri não se moveu.
Tinha compreendido com a sua sagacidade natural o
amor de um e o ciúme do outro; e formulou na sua inteligência selvagem e na sua
adoração fanática um pensamento, que para ele era muito simples.
Se Cecília julgasse que isto devia ser assim, pouco
lhe importava o mais; porém, se o que tinha visto lhe causasse uma sombra de
tristeza, e empanasse um momento o brilho de seus olhos azuis, então era
diferente. O índio sacrificaria tudo, antes do que consentir que um pesar
anuviasse o rostinho faceiro de sua bela senhora.
Assim, tranqüilizado por esta idéia, ganhou a
cabana, e dormiu sonhando que a lua lhe mandava um raio de sua luz branca e
acetinada para dizer-lhe que protegesse sua filha na terra.
E com efeito, a lua se elevava sobre a cúpula das
árvores, e iluminava a fachada do edifício.
Então quem se aproximasse de uma das janelas que
ficavam na extrema do jardim, veria na penumbra do portal um vulto imóvel.
Era Isabel que velava pensativa, enxugando de vez
em quando uma lágrima que desfiava-lhe pela face.
Pensava no seu amor infeliz, na solidão de sua
alma, tão erma de recordações doces, de esperanças queridas. Toda essa tarde
fora um martírio para ela; vira Álvaro falar a Cecília, adivinhara quase as
suas palavras. Há poucos momentos tinha percebido a sombra do moço que
atravessara a esplanada, e sabia que não era por sua causa que ele passava.
De vez em quando seus lábios tremiam e deixavam
escaparem-se algumas palavras imperceptíveis:
—Se eu quisesse!
Tirava do seio uma redoma de ouro, sob cuja tampa
de cristal se via um anel de cabelos que se enroscava no estreito aro de metal.
O que havia dentro desta redoma, de tão poderoso,
de tão forte, que justificasse aquela exclamação, e o olhar brilhante que
iluminava a pupila negra de Isabel?
Seria um segredo, um desses segredos terríveis que
mudam de repente a face das coisas, e fazem surgir o passado para esmagar o
presente?
Seria algum tesouro inestimável e fabuloso, a cuja
sedução a natureza humana não devia resistir?
Seria uma arma poderosa e invencível, contra a qual
não houvesse defesa possível senão em um milagre da Providência? Era o pó sutil
do curare, o veneno terrível dos selvagens. Isabel colou os lábios no cristal
com uma espécie de delírio. —Minha mãe!... minha mãe!.. Um soluço rompeu-lhe o
seio.
X
AO
ALVORECER
No dia seguinte, ao raiar da manhã, Cecília abriu a
portinha do jardim e aproximou-se da cerca.
—Peri! disse ela.
O índio apareceu à entrada da cabana; correu
alegre, mas tímido e submisso.
Cecília sentou-se num banco de relva; e a muito
custo conseguiu tomar um arzinho de severidade, que de vez em quando quase
traia-se por um sorriso teimoso que lhe queria fugir dos lábios.
Fitou um momento no índio os seus grandes olhos
azuis com uma expressão de doce repreensão; depois disse-lhe em um tom mais de
queixa do que de rigor:
—Estou muito zangada com Peri!
O semblante do selvagem anuviou-se.
—Tu, senhora, zangada com Peri! Por quê?
—Porque Peri é mau e ingrato; em vez de ficar perto
de sua senhora, vai caçar em risco de morrer! disse a moça ressentida.
—Ceci desejou ver uma onça viva!
—Então não posso gracejar? Basta que eu deseje uma
coisa para que tu corras atrás dela como um louco?
—Quando Ceci acha bonita uma flor, Peri não vai
buscar? perguntou o índio.
—Vai, sim.
—Quando Ceci ouve cantar o sofrer, Peri não o vai
procurar?
—Que tem isso?
—Pois Ceci desejou ver uma onça, Peri a foi buscar.
Cecília não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse
silogismo rude, a que a linguagem singela e concisa do índio dava uma certa
poesia e originalidade.
Mas estava resolvida a conservar a sua severidade,
e ralhar com Peri por causa do susto que lhe havia feito na véspera.
—Isto não é razão, continuou ela; porventura um
animal feroz é a mesma coisa que um pássaro, e apanha-se como uma flor?
—Tudo é o mesmo, desde que te causa prazer,
senhora.
—Mas então, exclamou a menina com um assomo de
impaciência, se eu te pedisse aquela nuvem?...
E apontou para os brancos vapores que passavam
ainda envolvidos nas sombras pálidas da noite.
—Peri ia buscar.
—A nuvem? perguntou a moça admirada.
—Sim, a nuvem.
Cecília pensou que o índio tinha perdido a cabeça;
ele continuou:
—Somente como a nuvem não é da terra e o homem não
pode tocá-la, Peri morria e ia pedir ao Senhor do céu a nuvem para dar a Ceci.
Estas palavras foram ditas com a simplicidade com
que fala o coração.
A menina que um momento duvidara da razão de Peri,
compreendeu toda a sublime abnegação, toda a delicadeza de sentimento dessa
alma inculta.
A sua fingida severidade não pôde mais resistir;
deixou pairar nos seus lábios um sorriso divino.
—Obrigada, meu bom Peri! Tu és um amigo dedicado;
mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu; e sim que
a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez.
—Senhora, não está mais zangada com Peri?
—Não; apesar de que devia estar; porque Peri ontem
fez sua senhora afligir-se cuidando que ele ia morrer.
—E Ceci ficou triste? exclamou o índio.
—Ceci chorou! respondeu a menina com uma graciosa
ingenuidade.
—Perdoa, senhora!
—Não só te perdôo, mas quero também fazer-te o meu
presente.
Cecília correu ao seu quarto e trouxe o rico par de
pistolas que havia encomendado a Álvaro.
—Olha! Peri não desejava ter umas?
—Muito!
—Pois aqui tens! Tu não as deixarás nunca porque
são uma lembrança de Cecília, não é verdade?
—Oh! o sol deixará primeiro a Peri, do que Peri a
elas.
—Quando correres algum perigo, lembra-te que
Cecília as deu para defenderem e salvarem a tua vida.
—Por que é tua, não é, senhora?
—Sim, porque é minha, e quero que a conserves para
mim.
O rosto de Peri irradiava com o sentimento de um
gozo imenso, de uma felicidade infinita; meteu as pistolas na cinta de penas e
ergueu a cabeça orgulhoso, como um rei que acabasse de receber a unção de Deus.
Para ele essa menina, esse anjo louro, de olhos
azuis, representava a divindade na terra; admirá-la, fazê-la sorrir, vê-la
feliz, era o seu culto; culto santo e respeitoso em que o seu coração vertia os
tesouros de sentimentos e poesia que transbordavam dessa natureza virgem.
Isabel entrou no jardim; a pobre menina tinha
velado toda a noite, e o seu rosto parecia conservar ainda os traços de algumas
dessas lágrimas ardentes que escaldam o seio e requeimam as faces.
A moça e o índio nem se olharam; odiavam-se
mutuamente; era uma antipatia que começara desde o momento em que se viram, e
que cada dia aumentava.
—Agora, Peri, Isabel e eu vamos ao banho.
—Peri te acompanha, senhora?
—Sim, mas com a condição de que Peri há de estar
muito quieto e sossegado.
A razão por que Cecília impunha esta condição, só
podia bem compreender quem tivesse assistido a uma das cenas que se passavam
quando as duas moças iam banhar-se, o que sucedia quase sempre ao domingo.
Peri, com o seu arco, companheiro inseparável e
arma terrível na sua mão destra, sentava-se longe, à beira do rio, numa das
pontas mais altas do rochedo ou no galho de alguma árvore, e não deixava
ninguém aproximar-se num raio de vinte passos do lagar onde as moças se
banhavam.
Quando algum aventureiro por acaso transpunha esse
círculo que o índio traçava com o olhar em redor de si, Peri na posição
sobranceira em que se colocara o percebia imediatamente.
Então se o descuidado caçador sentia o seu chapéu
ornar-se de repente com uma pena vermelha que voava pelos ares sibilando; se
via uma seta arrebatar-lhe o fruto que ele estendia a mão para colher; se
parava assustado diante de uma longa flecha emplumada que despedida por
elevação vinha cair-lhe a dois passos da frente como para embargar-lhe o
caminho e servir de baliza: não se admirava.
Compreendia imediatamente o que isto queria dizer;
e pelo respeito que todos votavam a D. Antônio de Mariz e à sua família,
arrepiava caminho; e voltava lançando uma jura contra Peri que lhe crivara o
chapéu e o obrigara a encolher a mão de susto.
E fazia bem em voltar, porque o índio com o seu
zelo ardente não duvidaria vazar-lhe os olhos para evitar que chegando-se à
beira do rio, visse a moça a banhar-se nas águas.
Entretanto Cecília e sua prima tinham o costume de
banhar-se vestidas com um trajo feito de ligeira estamenha que ocultava
inteiramente sob a cor escura as formas do corpo, deixando-lhes os movimentos
livres para nadarem.
Mas Peri entendia que apesar disto seria uma
profanação consentir que um olhar de quem quer que fosse visse a senhora no seu
trajo de banho; nem mesmo o dele que era seu escravo, e por conseguinte não
podia ofendê-la, a ela que era o seu único deus.
Enquanto porém o índio mantinha assim pela certeza
de sua vista rápida, e pela projeção das suas flechas esse círculo impenetrável
para quem quer que fosse, não deixava de olhar com uma atenção escrupulosa a
corrente e as margens do rio.
O peixe que beijava a flor da água, e que podia ir
ofender a moca; uma cobra verde inocente que se enroscava pelas folhas dos
aguapés; um camaleão que se aquecia ao sol fazendo cintilar o seu prisma de
cores brilhantes; um sagüi branco e felpudo que se divertia a fazer caretas
maliciosas suspendendo-se pela cauda ao galho de uma árvore; tudo quanto podia
ir causar um susto à moça, o índio fazia fugir, se estava longe, e se estava
perto, pregava o animal imóvel sobre o tronco ou sobre o chão.
Se um ramo arrastado pela corrente passava, se um
pouco do limo das águas despegava-se da margem pedregosa do rio, se o fruto de
uma sapucaia pendida sobre o Paquequer estalava prestes a cair, o índio, veloz
como o tiro do seu arco, lançava-se e retinha o coco no meio da sua queda, ou
precipitava-se na água e apanhava os objetos que boiavam.
Cecília podia ser ofendida pelo tronco que a
correnteza carregava, pela fruta que caía; podia assustar-se com o contato do
limo julgando ser uma cobra; e Peri não perdoaria a si mesmo a mais leve mágoa
que a moça sofresse por falta de cuidado seu.
Enfim ele estendia ao redor dela uma vigilância tão
constante e infatigável, uma proteção tão inteligente e delicada, que a moça
podia descansar, certa de que, se sofresse alguma coisa, seria porque todo o
poder do homem fora impotente para evitar.
Eis pois a razão por que Cecília recomendava a Peri
que estivesse quieto e sossegado; é verdade que ela sabia que essa recomendação
era sempre inútil, e que o índio faria tudo para que uma abelha sequer não
viesse beijar os seus lábios vermelhos confundindo-os com uma flor de pequiá.
Quando as duas mocas atravessaram a esplanada,
Álvaro passeava junto da escada.
Cecília saudou de passagem com um sorriso ao jovem
cavalheiro; e desceu ligeiramente seguida por sua prima.
Álvaro que tinha procurado ler-lhe nos olhos e no
rosto o perdão de sua loucura da véspera, e nada havia percebido que acabasse
com o seu receio, quis seguir a moça, e falar-lhe.
Voltou-se para ver se alguém estava ali que
reparasse no que ia fazer, e deu com o italiano que a dois passos dele o olhava
com um dos seus sorrisos sarcásticos.
—Bom dia, sr. cavalheiro.
Os dois inimigos trocaram um olhar que se cruzara
como laminas de aço que rogassem uma na outra.
Nesse momento Peri se aproximava lentamente deles,
carregando uma das pistolas que Cecília lhe havia dado há alguns minutos.
O índio parou, e com um ligeiro sorriso de uma
expressão indefinível tomou as pistolas pelo cano e apresentou-as uma a Álvaro
e outra a Loredano.
Ambos compreenderam o gesto e o sorriso; ambos
sentiram que tinham cometido uma imprudência, e que o espírito perspicaz do
selvagem havia lido nos seus olhos um ódio profundo, e talvez a causa desse
ódio.
Voltaram-se fingindo não ter visto o movimento.
Peri levantou os ombros e metendo as pistolas na
cinta passou entre eles com a cabeça alta, o olhar sobranceiro, e acompanhou
sua senhora.
XI
NO BANHO
Descendo a escada de pedras da esplanada Cecília
perguntava à sua prima:
—Dize-me uma coisa, Isabel; por que é que tu não
falas ao Sr. Álvaro?
Isabel estremeceu.
—Tenho reparado, continuou a menina, que nem mesmo
respondes à cortesia que ele nos faz.
—Que ele te faz, Cecília, replicou a moça
docemente.
—Confessa que não gostas dele. Tens-lhe antipatia?
A moça calou-se.
—Não falas?... olha que então vou pensar outra
coisa! continuou Cecília galanteando.
Isabel empalideceu; e levando a mão ao coração para
comprimir as pulsações violentas, fez um esforço supremo e arrancou algumas
palavras que pareciam queimar-lhe os lábios:
—Bem sabes que o aborreço!...
Cecília não viu a alteração da fisionomia de sua
prima, porque tendo chegado à baixa nesse momento, esquecera a conversa, e
começara a brincar com uma alegria infantil sobre a relva.
Mas ainda que visse a perturbação da moça e o
choque que ela tinha sentido, decerto atribuiria isso a qualquer outro motivo,
menos ao verdadeiro.
A afeição que tinha a Álvaro lhe parecia tão
inocente, tão natural, que nunca se lembrara que devia um dia passar daquilo
que era, isto é, de um prazer que fazia sorrir, e de um enleio que fazia corar.
Esse amor pois, se era amor, não podia conhecer o
que se passava na alma de Isabel; não podia compreender a sublime mentira que
os lábios da moça acabavam de proferir.
Quanto a Isabel, temendo trair o seu segredo, tinha
arrancado do seu coração cheio de amor, essa palavra de ódio, que para ela era
quase uma blasfêmia.
Mas antes isso do que revelar o que se passava em
sua alma; esse mistério, essa ignorância que envolvia o seu amor, e o escondia
a todos os olhos, tinha para ela uma voluptuosidade inexprimível.
Podia assim fitar horas e horas o moço, sem que ele
o percebesse, sem o incomodar talvez com a prece muda do olhar suplicante;
podia rever-se em sua alma sem que um sorriso de desdém ou de zombaria a
fizesse sofrer.
O sol vinha nascendo.
O seu primeiro raio espreguiçava-se ainda pelo céu
anilado, e ia beijar as brancas nuvenzinhas que corriam ao seu encontro.
Apenas a luz branda e suave da manhã esclarecia a
terra e surpreendia as sombras indolentes que dormiam sob as copas das árvores.
Era a hora em que o cacto, a flor da noite, fechava
o seu cálice cheio das gotas de orvalho com que destila o seu perfume, temendo
que o sol crestasse a alvura diáfana de suas pétalas.
Cecília com a sua graça de menina travessa corria
sobre a relva ainda úmida colhendo uma gracíola azul que se embalançava sobre a
haste, ou um malvaísco que abria os lindos botões escarlates.
Tudo para ela tinha um encanto inexprimível; as
lágrimas da noite que tremiam como brilhantes das folhas das palmeiras; a
borboleta que ainda com as asas entorpecidas esperava o calor do sol para
reanimar-se; a viuvinha que escondida na ramagem avisava o companheiro que o
dia vinha raiando: tudo lhe fazia soltar um grito de surpresa e de prazer.
Enquanto a menina brincava assim pela várzea, Peri,
que a seguia de longe, parou de repente tomado por uma idéia que lhe fez correr
pelo corpo um calafrio; lembrara-se do tigre.
De um pulo sumiu-se numa grande moita de arvoredo
que se elevava a alguns passos; ouviu-se um rugido abafado, um grande farfalhar
de folhas que se espedaçavam, e o índio apareceu.
Cecília tinha-se voltado um pouco trêmula:
—Que é isto, Peri?
—Nada, senhora.
—E assim que prometeste estar quieto?
—Ceci não se há de zangar mais.
—Que queres tu dizer?
—Peri sabe! respondeu o índio sorrindo.
Na véspera tinha provocado uma luta espantosa para
domar e vencer um animal feroz, e deitá-lo submisso e inofensivo aos pés da
moça, julgando que isso lhe causava um prazer.
Agora estremecendo com o susto que sua senhora
podia sofrer, destruíra em um instante essa ação de heroísmo, sem proferir uma
palavra que a revelasse. Bastava que ele soubesse o que tinha feito, e o que
todos deviam ignorar; bastava que sua alma sentisse o orgulho da nobre
dedicação que se expandia no sorriso de seus lábios.
As moças que estavam bem longe de saber até que
ponto tinha chegado a loucura de Peri, e que não julgavam possível que um homem
pudesse fazer o que ele tinha feito, não compreenderam nem a frase, nem o
sorriso.
Cecília tinha chegado a uma latada de jasmineiros
que havia à borda dágua, e que lhe servia de casa de banho; era um dos
trabalhos do índio, que o havia arranjado com aquele cuidado e esmero que punha
em satisfazer as vontades da menina.
Peri já tinha ganho a margem do rio, e estava
longe; Isabel sentou-se na relva.
Então afastando as ramas dos jasmineiros que
ocultavam inteiramente a entrada, Cecília penetrou naquele pequeno pavilhão de
verdura, e examinou se as folhas estavam bem embastidas, se não havia alguma
fresta por onde o olhar do dia penetrasse.
A inocente menina tinha vergonha até do raio de luz
que podia vir espiar o tesouros de beleza que ocultava a cambraia de suas
roupagens.
Assim, foi depois desse exame escrupuloso, e ainda
corando de si mesma, que começou o seu vestuário de banho. Mas quando o
corpinho da anágua caindo, descobriu suas alvas espáduas e seu colo paro e
suave, a menina quase morreu de pejo e de susto. Um passarinho, escondido entre
as folhas, um gárrulo travesso e malicioso, gritara distintamente:—Bem-te-vi!
Cecília riu-se do susto que tivera, e acabou o seu
vestuário de banho que a cobria toda, deixando apenas nus os braços e o pezinho
de menina.
Atirou-se à água como um passarinho; Isabel que a
acompanhara por comprazer ficou sentada à beira do rio.
Como Cecília estava bela nadando sobre as águas
límpidas da corrente, com seus cabelos louros soltos, e os braços alvos que se
curvavam graciosamente para imprimir ao corpo um doce movimento! Parecia uma
dessas garças brancas, ou colhereiras de rósea cor que deslizam mansamente à
flor do lago, nas tardes serenas, espelhando-se no cristal das águas.
Às vezes a linda menina se deitava de braços e
sorrindo ao céu azul ia levada pela corrente; ou perseguia as jaçanãs e
marrecas que fugiam diante dela. Outras vezes Peri que estava distante, do lado
superior do rio, colhia alguma flor parasita que deitava sobre um barquinho
feito de uma casca de pau e que vinha trazido pela correnteza.
A menina perseguia o barquinho a nado, apanhava a
flor, e ia oferecê-la na pontinha dos dedos a Isabel, que desfolhando-a
tristemente, murmurava as palavras cabalísticas com que o coração procura
iludir-se.
Em vez porém de consultar o presente, perguntava o
futuro, porque sabia que o presente não tinha esperanças para ela, e se a flor
dissesse o contrário mentia.
Havia meia hora que Cecília estava no banho, quando
Peri, que colocado sobre uma árvore não deixava de lançar o olhar ao redor de
si, viu na margem oposta as guaximas se agitarem.
A ondulação produzida nos arbustos foi-se
estendendo como um caracol e aproximando-se do lagar onde a moça se banhava,
até que parou detrás de umas grandes pedras que havia à beira do rio.
Do primeiro lanço de olhos o índio conheceu que o
largo sulco traçado entre as hastes verdes do arvoredo não podia deixar de ser
produzido por um animal de grande corpulência.
Seguiu rapidamente pelos ramos das árvores,
atravessou o rio sobre essa ponte aérea, e conseguiu, escondido pelas folhas,
colocar-se perpendicularmente ao lagar onde ainda se fazia sentir a oscilação
dos arbustos.
Viu então sentados entre as guaximas dois
selvagens, mal cobertos por uma tanga de penas amarelas, que com o arco
esticado e a flecha a partir, esperavam que Cecília passasse diante da fresta
que formavam as pedras para despedirem o tiro.
E a menina descuidada e tranqüila já tinha
estendido o braço e ferindo a água passava sorrindo por diante da morte que a
ameaçava.
Se se tratasse de sua vida, Peri teria sangue-frio;
mas Cecília corria um perigo, e portanto não refletiu, não calculou.
Deixou-se cair como uma pedra do alto da árvore; as
duas flechas que partiam, uma cravou-se-lhe no ombro, a outra rogando-lhe pelos
cabelos mudou de direção.
Ergueu-se então, e sem mesmo dar-se ao trabalho de
arrancar a seta, de um só movimento tomou à cinta as pistolas que tinha
recebido de sua senhora, e despedaçou a cabeça dos selvagens.
Ouviram-se dois gritos de susto que partiam da
margem oposta, e quase logo a voz trêmula e colérica de Cecília que chamava:
—Peri!...
Ele beijou as pistolas ainda fumegantes e ia
responder, quando a dois passos surgiu de entre a touça o vulto de uma índia
que sumiu-se ligeiramente no mato.
Enfiou um olhar pela fresta e julgando Cecília já
fora do banho e em lugar seguro, lançou-se atrás da índia a que já lhe levava
um grande avanço.
Uma larga fita vermelha que escapava da ferida
tingia a sua alva túnica de algodão; Peri sentiu-se vacilar de repente e
apertou com desespero o coração como para reter o sangue que espadanava.
Foi um momento de luta terrível entre o espírito e
a matéria, entre a força da vontade e o poder da natureza.
O corpo desfalecia, os joelhos se dobravam, e Peri
erguendo os braços como para agarrar-se à cúpula das árvores, estorcendo os
músculos para manter-se em pó, lutava debalde com a fraqueza que se apoderava
dele.
Debateu-se um momento contra a poderosa gravitação
que o vergava para a terra; mas era homem, e tinha de ceder à lei da criação.
Entretanto sucumbindo o valente índio resistia sempre; e vencido parecia querer
lutar ainda.
Não caiu, não; quando a força lhe faltou de todo,
foi-se lentamente retraindo e tocou a terra com os joelhos.
Mas então lembrou-se de Cecília, de sua senhora a
quem tinha de vingar, e para quem devia viver a fim de salvá-la, e de velar
sobre ela. Fez um esforço supremo: contraindo-se conseguiu reerguer-se; deu
dois passos vacilantes, girou no ar e foi bater de encontro a uma árvore com a
qual se abraçou convulsivamente.
Era uma cabuíba de alta grandeza que se elevava
pelo cimo da floresta, e de cujo tronco cinzento borbulhava um óleo cor de
opala que desfiava em lágrimas.
O suave aroma que recendia dessas gotas fez o índio
abrir os olhos amortecidos, que se iluminaram de uma brilhante irradiação de
felicidade. Colou ardentemente os lábios no tronco, e sorveu o óleo, que entrou
no seu seio como um bálsamo poderoso.
Sentiu-se renascer
Estendeu o óleo sobre a ferida, estancou o sangue e
respirou.
Estava salvo.
XII
A ONÇA
Voltemos a casa.
Loredano, depois do movimento de Peri, tinha
acompanhado com os olhos a Álvaro, o qual seguia pela borda da esplanada para
ver Cecília que dirigia-se ao rio.
Apenas o moço dobrou o ângulo que formava o
rochedo, o italiano desceu a ladeira rapidamente, e meteu-se pelo mato.
Poucos instantes se tinham passado quando Rui
Soeiro apareceu na esplanada, ganhou a baixa, e entranhou-se por sua vez na floresta.
Bento Simões imitou-o com pequeno intervalo, e
guiando-se por alguns talhos frescos que viu nas árvores, tomou a mesma
direção.
O pátio ficou deserto.
Decorreu cerca de meia hora: a casa tinha aberto
todas as suas janelas para receber o ar paro da manhã, e as emanações saudáveis
dos campos; um ligeiro penacho de fumo alvadio coroava o tubo da chaminé,
anunciando que os trabalhos caseiros haviam começado.
De repente ouviu-se um grito no interior da
habitação; todas as portas e janelas do edifício fecharam-se com um estrépito e
uma rapidez, como se um inimigo caísse de assalto.
Pela fresta de uma janela entreaberta apareceu o
rosto de D. Lauriana, pálida, e com os cabelos sem estarem riçados, o que era
uma coisa extraordinária.
—Aires Gomes!... O escudeiro!... Chamem Aires
Gomes! Que venha já! gritou a dama.
A janela fechou-se de novo com o ferrolho.
A personagem que já conhecemos pouco tardou, e
atravessando a esplanada dirigiu-se à casa, sem compreender a razão por que
àquela hora com o sol alto ainda toda a habitação parecia dormir.
—Fizestes-me chamar! disse ele chegando-se à
janela.
—Sim; estais armado? perguntou D. Lauriana por
detrás da porta.
—Tenho a minha espada; mas que novidade há?
A fisionomia decomposta de D. Lauriana apareceu de
novo na fresta da janela.
—A onça!... Aires Gomes! A onça!...
O escudeiro deu um salto prodigioso julgando que o
animal de que se falava ia saltar-lhe ao cangote, e sacou da espada pondo-se em
guarda.
A dama vendo o movimento do escudeiro supôs que a
onça atirava-se à janela, e caiu de joelhos murmurando uma oração ao santo
advogado contra as feras.
Alguns minutos se passaram assim; D. Lauriana
rezando; e Aires Gomes rodando no pátio como um corrupio, com receio de que a
onça não o atacasse pelas costas, o que além de ser uma vergonha para um homem
de armas da sua têmpera, seria um pouco desagradável para sua saúde.
Por fim, de pulo em pulo o escudeiro conseguiu
ganhar de novo a parede do edifício e encostar-se nela, o que o tranqüilizou
completamente; pela frente não havia inimigo que o fizesse pestanejar.
Então batendo com a folha da espada na ombreira da
janela disse em voz alta:
—Explicar-me-eis que onça é essa de que falais,
Sra. D. Lauriana; ou estou cego, ou não vejo aqui sombra de semelhante animal.
—Estais bem certo disso, Aires Gomes? disse a dama
reerguendo-se.
—Se estou certo! Assegurai-vos com os vossos
próprios olhos.
—E verdade! Mas em alguma parte há de estar!
—E por que quereis vós à fina força que aqui esteja
uma onça, Sra. D. Lauriana? disse o escudeiro um tanto impacientado.
—Pois não sabeis! exclamou a dama.
—O quê, senhora?
—Aquele bugre endemoninhado não se lembrou de
trazer ontem uma onça viva para a casa!
—Quem, o perro do cacique?
—E quem mais senão aquele cão tinhoso!
—É das que ele costuma fazer!
—Viu-se já uma coisa semelhante, Aires Gomes!
—Mas a culpa não tem ele!
—Quero ver se o Sr. Mariz ainda teima em guardar
essa boa jóia.
—E que é feito da fera, Sra. D. Lauriana?
—Algures deve estar. Procurai-a, Aires; corram
tudo, matem-na, e tragam-me aqui.
—É dito e feito, respondeu o escudeiro correndo
tanto quanto lhe permitiam as suas botas de couro de raposa.
Com pouca demora cerca de vinte aventureiros
armados desceram da esplanada.
Aires Gomes marchava na frente com um enorme chuço
na mão direita, a espada na mão esquerda, e uma faca atravessada nos dentes.
Depois de percorrerem quase todo o vale e baterem o
arvoredo, voltavam, quando o escudeiro estacou de repente e gritou:
—Ei-la, rapazes! Fogo antes que faça o pulo!
Com efeito, por entre a ramagem das árvores via-se
a pele negra e marchetada do tigre e os olhos felinos que brilhavam com o seu
reflexo pálido.
Os aventureiros levaram o mosquete à face, mas no
momento de puxarem o gatilho, largaram todos uma risada homérica, e abaixaram
as armas.
—Que é lá isso? Têm medo?
E o destemido escudeiro sem se importar com os
outros, mergulhou por sob as árvores e apresentou-se arrogante em face do
tigre.
Aí porém caiu-lhe o queixo de pasmo e de surpresa.
A onça embalava-se a um galho suspensa pelo pescoço
e enforcada pelo laço que apertando-se com o seu próprio peso, a estrangulara.
Enquanto viva, um só homem bastara para trazê-la
desde o Paraíba até à floresta, onde tinha sido caçada, e da floresta até
àquele lugar onde havia expirado.
Era depois de morta que fazia todo aquele
espalhafato; que punha em armas vinte homens valentes e corajosos; e produzia
uma revolução na casa de D. Lauriana.
Passado o primeiro momento de admiração, Aires
Gomes cortou a corda e arrastando o animal foi apresentá-lo à dama.
Depois que de fora lhe asseguraram que o tigre
estava bem morto, entreabriu-se a porta, e D. Lauriana ainda toda arrepiada
olhou estremecendo o corpo da fera.
—Deixe-o ai mesmo. O Sr. D. Antônio há de vê-lo com
seus olhos!
Era o corpo de delito, sobre o qual pretendia
basear o libelo acusatório que ia fulminar contra Peri.
Por diferentes vezes a dama tinha procurado
persuadir seu marido a expulsar o índio que ela não podia sofrer, e cuja
presença bastava para causar-lhe um faniquito.
Mas todos os seus esforços tinham sido baldados; o
fidalgo com a sua lealdade e o cavalheirismo apreciava o caráter de Peri, e via
nele embora selvagem, um homem de sentimentos nobres e de alma grande. Como pai
de família estimava o índio pela circunstância a que já aludimos de ter salvado
sua filha, circunstância que mais tarde se explicará.
Desta vez porém, D. Lauriana esperava vencer; e
julgava impossível que seu marido não punisse severamente esse crime abominável
de um homem que ia ao mato amarrar uma onça e trazê-la viva para casa. Que
importava que ele tivesse salvado a vida de uma pessoa, se punha em risco a
existência de toda a família, e sobretudo a dela?
Terminava esta reflexão justamente no momento em
que D. Antônio de Mariz assomava à porta.
—Dir-me-eis, senhora, que rumor é este, e qual a
causa?
—Aí a tendes! exclamou D. Lauriana apontando para a
onça com um gesto soberbo.
—Lindo animal! disse o fidalgo adiantando-se e
tocando com o pé as presas do tigre.
—Ah! achais lindo! Inda mais achareis quando
souberdes quem o trouxe!...
—Deve ter sido um hábil caçador, disse D. Antônio
contemplando a fera com esse prazer de montearia que era um dom dos fidalgos
daquele tempo: não tem o sinal de uma só ferida!
—E obra daquele excomungado caboclo, Sr. Mariz!
respondeu D. Lauriana preparando-se para o ataque.
—Ah! exclamou o fidalgo rindo; é a caça que Peri
ontem perseguia, e de que nos falou Álvaro!
—Sim; e que trouxe viva como se fosse alguma paca!
—Ah! trouxe viva! Mas não vedes que é impossível?
—Como impossível se Aires Gomes vem de acabá-la
agora mesmo! Aires Gomes quis retrucar; mas a dama impôs-lhe silêncio com um
gesto.
O fidalgo curvou-se e segurando o animal pelas
orelhas ergueu-o; ao passo que examinava o corpo para ver se lhe descobria
alguma bala, notou que tinha as patas e as mandíbulas ligadas.
—É verdade! murmurou ele; devia estar viva há coisa
de uma hora; ainda conserva o calor.
D. Lauriana deixou que seu marido se fartasse de
contemplar o animal, certa de que as reflexões que esta vista produziria não
podiam deixar de ser favorável ao seu plano.
Quando julgou que tinha chegado o momento, deu dois
passos, arranjou a cauda do seu vestido, e dando um certo descaído ao corpo,
dirigiu-se a D. Antônio:
—Bom é que vejais, Sr. Mariz, que nunca me iludo!
Que de vezes vos hei dito que fazíeis mal em conservar esse bugre? Não queríeis
acreditar: tínheis um fraco inexplicável pelo pagão. Pois bem...
A dama tomou um tom oratório e acentuou a palavra
com um gesto enérgico apontando para o animal morto:
—Aí tendes o pago. Toda a vossa família ameaçada!
Vós mesmo que podíeis sair desapercebido; vossa filha que ignorando o perigo
que corria, foi banhar-se, e podia a esta hora estar pasto de feras.
O fidalgo estremeceu à idéia do perigo que correra
sua filha e ia precipitar-se; mas ouviu um doce murmúrio de vozes que parecia
um chilrear de sais: eram as duas moças que subiam a ladeira.
D. Lauriana sorria-se do seu triunfo.
—E se fosse só isto? continuou ela. Porém não pára
aqui: amanhã vereis que nos traz algum jacaré, depois uma cascavel ou uma
jibóia; encher-nos-á a casa de cobras e lacraus. Seremos aqui devorados vivos,
porque a um bugre arrenegado deu-lhe na cabeça fazer as suas bruxarias!
—Exagerais muito também, D. Lauriana. É certo que
Peri fez uma selvajaria; mas não há razão para que receemos tanto. Merece uma
reprimenda: lha darei e forte. Não continuará.
—Se o conhecêsseis como eu, Sr. Mariz! É bugre e
basta! Podeis ralhar-lhe quanto quiserdes; ele o fará mesmo por pirraça!
—Prevenções vossas, que não partilho.
A dama conheceu que ia perdendo terreno; e resolveu
dar o golpe decisivo; amaciou a voz, e tomou um tom choroso.
—Fazei o que vos aprouver! Sois homem, e não tendes
medo de nada! Mas eu, continuou arrepiando-se, não poderei mais dormir, só com
a idéia de que uma jararaca sobe-me à cama; de dia a todo momento julgarei que
algum gato montês vai saltar-me pela janela; que a minha roupa está cheia de
lagartas de fogo! Não há forças que resistam a semelhante martírio!
D. Antônio começou a refletir seriamente sobre o
que dizia sua mulher, e a pensar no sem-número de faniquitos, desmaios e
arrufos que ia produzir o terror pânico justificado pelo fato do índio; contudo
conservava ainda a esperança de conseguir acalmá-la e dissuadi-la.
D. Lauriana espiava o efeito do seu último ataque.
Contava vencer.
XIII
REVELAÇÃO
Isabel e Cecília que voltavam do banho conversando,
aproximaram-se da porta, não sem algum susto do animal; susto que se desfez com
o sorriso do velho fidalgo, revendo-se na beleza de sua filha.
Com efeito, Cecília estava nesse momento de uma
formosura que fascinava.
Tinha os cabelos ainda úmidos, dos quais se
escapava de vez em quando um aljôfar que ia perder-se na covinha dos seios
cobertos pelo linho do roupão; a pele fresca como se ondas de leite corressem
pelos seus ombros; as faces brilhantes como dois cardos rosas que se abrem ao
pôr-do-sol.
As duas meninas falavam com alguma vivacidade; mas
ao aproximarem-se da porta, Cecília que ia um pouco adiante voltou-se para sua
prima na pontinha dos pés, e com um arzinho petulante levou o dedo aos lábios
recomendando silêncio.
—Sabes, Cecília, que tua mãe está muito zangada com
Peri? disse D. Antônio tomando o rostinho mimoso de sua filha e beijando-a na
fronte.
—Por quê, meu pai? Fez ele alguma coisa?
—Uma das suas, e de que já sabes parte.
—E eu vou contar-te o resto, atalhou D. Lauriana,
tocando com a mão o braço de sua filha.
E de fato apresentou com as cores mais negras, e
com a ênfase mais dramática, não só o risco iminente que na sua opinião tinha
corrido a casa inteira, mas os perigos que ameaçavam ainda a paz e sossego da
família.
Referiu que, se por um milagre a sua caseira não
tivesse há coisa de uma hora chegado a esplanada e visto o índio fazendo partes
diabólicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na
casa, todos àquela hora estariam defuntos.
Cecília empalideceu, lembrando-se do descuido e
alegria com que atravessara o vale e se banhara; Isabel conservou-se calma, mas
seus olhos brilhavam.
—Assim, concluiu peremptoriamente D. Lauriana, não
é concebível que continuemos com semelhante praga em casa.
—Que dizeis, minha mãe? exclamou Cecília assustada:
pretendeis mandá-lo embora?
—Sem dúvida: essa casta de gente, que nem gente é,
só pode viver bem nos matos.
—Mas ele nos ama tanto! Tem feito tanto por nós,
não é verdade, meu pai? disse a menina voltando-se para o fidalgo.
D. Antônio respondeu à sua filha por um sorriso que
a sossegou:
—Vós ralhareis com ele, meu pai; eu ficarei
agastada, continuou Cecília, e ele se emendará e não fará mais outra.
—E a de há pouco? replicou Isabel dirigindo-se a
Cecília.
D. Lauriana, que via a sua causa mal parada depois
da chegada das moças, apesar da repugnância que sentia por Isabel, conheceu que
tinha nela um aliado; e dirigiu-lhe a palavra, o que sucedia uma vez por
semana.
—Chega-te, menina; o que é que dizes ter acontecido
há pouco?
—É também um perigo que correu Cecília.
—Qual! minha mãe; foi mais susto de Isabel do que
outra coisa.
—Susto, sim; mas pelo que vi...
—Conta-me isso; e tu, Cecília, fica ai sossegada.
A menina pelo respeito que tinha a sua mãe não se
animou a dizer mais uma palavra; porém aproveitando-se do movimento que fez D.
Lauriana ao voltar-se para ouvir a Isabel, abanou a cabeça à sua prima
pedindo-lhe que nada dissesse.
A moça fez que não viu o gesto e respondeu à sua
tia:
—Cecília estava se banhando e eu tinha ficado à
beira do rio: daí a algum tempo vejo Peri que passava ao longe pelo galho de
uma árvore. Ele sumiu-se, e de repente uma seta partida daquele lugar veio cair
a dois passos de minha prima!
—Ouça cá, Sr. Mariz! exclamou D. Lauriana; ouça as
estripulias do capeta!
—No mesmo instante, continuou Isabel, ouvimos dois
tiros de pistola, que ainda mais nos assustaram, porque decerto foram apontados
também para nosso lado.
—Senhor Deus! É pior do que uma judiaria! Mas quem
deu pistolas a esse bugio?
—Fui eu, minha mãe, respondeu timidamente Cecília.
—Melhor seria que rezasses as tuas contas. Era
bem-feito que com elas mesmo... Senhor Deus! perdoai-me!
D. Antônio tinha ouvido as palavras de Isabel,
apesar de conservar-se a alguma distancia; o rosto do fidalgo tomara uma
expressão grave.
Fez um ligeiro aceno a Cecília, e afastou-se com
ela em ar de quem passeava pela esplanada:
—O que diz tua prima é verdade?
—É, meu pai; mas estou certa que Peri não o fez por
maldade.
—Contudo, replicou o fidalgo, isto pode renovar-se;
por outro lado tua mãe está atemorizada; assim, o melhor é afastá-lo.
—Ele vai sentir muito!
—E eu e tu também, porque o estimamos; mas não
seremos ingratos; eu pagarei a tua e a minha divida de gratidão; deixa isto ao
meu cuidado.
—Sim, meu pai! exclamou a menina com um olhar úmido
de reconhecimento e de admiração: Sim! Vós que sabeis compreender tudo que é
nobre!
—Como tu, minha Cecília! respondeu o fidalgo
acariciando-a.
—Oh! eu aprendi no vosso coração, e nas vossas
menores ações.
D. Antônio abraçou-a.
—Ah! tenho uma coisa a pedir-vos!
—Dize: há muito que não me pedes nada, e eu já
tenho queixa disso.
—Mandareis conservar este animal. Sim?
—Desde que o desejas...
—Será uma lembrança que teremos de Peri.
—Para ti, que para mim a melhor lembrança és tu. Se
não fosse ele, podia eu agora apertar-te nos meus braços?
—Sabeis que tenho vontade de chorar só de pensar
que ele se vai?
—É natural, minha filha, as lágrimas são um bálsamo
que Deus deu à fraqueza da mulher, e que negou à força do homem.
O fidalgo separou-se de sua filha, e chegou-se à
porta onde se achavam ainda sua mulher, Isabel e Aires Gomes.
—Que decidistes, Sr. D. Antônio? perguntou a dama.
—Decidi fazer-vos a vontade, para sossego vosso e
descanso meu. Hoje mesmo ou amanhã Peri deixará esta casa; mas enquanto ele
aqui estiver, eu não quero, disse carregando ligeiramente sobre aquele
monossílabo, que se lhe diga uma palavra sequer de desagrado. Peri sai desta
casa porque lho peço, e não porque isto seja-lhe ordenado por alguém.
Entendeis, minha mulher?
D. Lauriana, que compreendia o que havia de energia
e resolução naquela imperceptível entonação dada pelo fidalgo a uma simples
frase, inclinou a cabeça.
—Incumbo-me de falar eu mesmo a Peri! Dir-lhe-ás de
minha parte, Aires Gomes, que venha ter comigo.
O escudeiro inclinou-se; o fidalgo que se ia
retirando, voltou-se:
—Ah! esquecia-me. Mandarás encher este lindo animal
que desejo conservar; será uma curiosidade para o meu gabinete de armas.
D. Lauriana fez à sorrelfa uma careta de nojo.
—E servirá para que minha mulher se habitue com sua
vista, e tenha menos medo de onças.
D. Antônio afastou-se.
A dama pôde então ir riçar os seus cabelos, e
preparar o seu toucado domingueiro; tinha alcançado uma importante vitoria.
Peri ia finalmente ser expulso dessa casa, onde na sua opinião nunca devera ter
entrado.
Enquanto isto passava, Cecília, ao separar-se de
seu pai, voltara o canto da casa para entrar no jardim, e encontrara Álvaro que
passeava inquieto e pensativo.
—D. Cecília! disse o moço.
—Oh! deixai-me Sr. Álvaro! respondeu Cecília sem
parar.
—Em que vos ofendi eu para que me trateis assim?
—Desculpai-me, estou triste; em nada me ofendestes.
—É que quando se cometeu uma falta...
—Uma falta? perguntou a menina admirada.
—Sim! respondeu o moço abaixando os olhos.
—E que falta cometestes vós, Sr. Álvaro?
—Desobedeci-vos.
—Ah! é grave! disse a moça com um meio sorriso.
—Não zombeis, D. Cecília! Se soubésseis que
inquietações isto me tem feito passar! Arrependo-me mil vezes do que pratiquei,
e contudo parece-me que era capaz de praticá-lo de novo.
—Mas, Sr. Álvaro, esqueceis que falais de uma coisa
que ignoro; sei apenas que se trata de uma desobediência!
—Lembrai-vos que ontem me mandastes guardar um
objeto, que...
—Sim, atalhou a moça corando; um objeto que...
—Que vos pertencia, e que eu contra vontade vossa
restitui.
—Como! que dizeis?
—Oh! perdoai! foi uma ousadia! mas...
—Mas enfim eu não entendo nem uma palavra de tudo
isto! exclamou a moça com um movimento de impaciência.
Álvaro vencendo enfim o seu acanhamento contou
rapidamente o que tinha feito na véspera à noite.
Cecília ouvindo-o, ia-se tornando séria.
—Sr. Álvaro, disse ela num tom de exprobação, fizestes
mal em praticar semelhante ação, muito mal. Que ninguém o saiba ao menos.
—Eu juro pela minha honra!
—Não basta; vis mesmo desfareis o que fizestes. Não
abrirei aquela janela enquanto houver ali um objeto que não me veio de meu pai,
e em que não posso tocar.
—Senhora!... balbuciou o moço pálido e abatido.
Cecília levantou os olhos, e viu no rosto de Álvaro
tanta amargura e desespero, que sentiu-se comovida.
—Não me acuseis do que sucede, disse ela com a voz
meiga, a culpa é vossa.
—Eu o sinto; e não me queixo.
—Bem vistes que não podendo aceitar, pedi que a
conservásseis como uma lembrança.
—Oh! eu a conservarei ainda: ela me ensinará a
expiar a minha falta, e ma recordará sempre.
—Será agora uma triste recordação.
—E posso-as eu ter alegres!
—Quem sabe! disse Cecília desentrançando dos seus
cabelos louros um jasmim; é tão doce esperar!
Voltando-se para esconder o rubor de suas faces,
Cecília viu perto a Isabel que devorava esta cena com um olhar ardente.
A menina soltou um grito de susto e entrou
rapidamente no jardim, Álvaro apanhou no ar a pequena flor que se escapara dos
dedos de Cecília e beijou-a julgando que ninguém ali estava. Quando o
cavalheiro deu com os olhos na moça, ficou tão perturbado que deixou cair o
jasmim sem sentir.
Isabel apanhou-o; e apresentando-o a Álvaro, disse
com um acento de voz inimitável:
—É também uma restituição!
Álvaro empalideceu.
A moça, trêmula, passou diante dele, e entrou no
quarto de sua prima.
Cecília vendo chegar Isabel corou e não se animou a
levantar os olhos, lembrando-se do que ela tinha visto e ouvido: pela primeira
vez a inocente menina conhecia que havia na sua pura afeição alguma coisa que
se escondia aos olhos dos outros.
Isabel, entrando no aposento da prima ao qual fora
arrastada por um sentimento irresistível, arrependera-se imediatamente; a
perturbação que sentia era tão grande, que temeu trair-se; encostou-se no leito
defronte de Cecília, muda e com os olhos cravados no chão.
Assim passou-se um longo intervalo; depois as duas
moças quase ao mesmo tempo ergueram a cabeça; e lançaram um olhar para a
janela; seus olhos se encontraram, e ambas coraram ainda mais.
Cecília revoltou-se; a menina alegre e travessa que
conservava num cantinho do coração, sob os risos e as graças, o germe da
firmeza de caráter que distinguia seu pai, sentiu-se ofendida por se ver
obrigada a corar de vergonha diante de outrem, como se tivesse cometido uma
falta.
Revestiu-se de coragem e tomou uma resolução cuja
energia se desenhava em um movimento imperceptível das sobrancelhas.
—Isabel, abre esta janela.
A moça estremeceu como se uma faisca elétrica
tivesse abalado o seu corpo; hesitou, mas por fim atravessou o aposento.
Dois olhares ávidos, ardentes, caíram sobre a
janela no momento em que se abriu.
Nada havia ali.
A emoção que teve Isabel foi tão forte, que
involuntariamente voltou-se para sua prima soltando uma exclamação de prazer;
sua fisionomia iluminou-se com um desses reflexos divinos, que parecem descer
do céu sobre a cabeça da mulher que ama.
Cecília olhava sua prima sem compreendê-la; mas a
pouco e pouco a admiração e o espanto desenharam-se no semblante da menina.
—Isabel!...
A moça caiu de joelhos aos pés de Cecília.
Tinha-se traído.
XIV
A ÍNDIA
Peri apenas sentiu voltarem-lhe as forças,
continuou a sua marcha através da floresta.
Por muito tempo seguiu as pegadas da índia pelo
meio do mato com uma rapidez e uma certeza incríveis para quem não conhecer a
facilidade com que os selvagens percebem os mais fracos vestígios que deixam as
pisadas de um animal qualquer.
Um ramo quebrado, o capim abatido, as folhas secas
espalhadas e partidas, um galho que ainda se agita, as pérolas do orvalho
desfeitas, são aos seus olhos exercitados o mesmo que uma linha traçada na
floresta, e que eles seguem sem hesitação.
Uma razão havia para que Peri se encarniçasse assim
em perseguir aquela índia inofensiva, e a fazer esforços inauditos a fim de
agarrá-la.
Para bem compreender esta razão, é necessário
conhecer alguns acontecimentos que se haviam passado nos últimos dias pelas
vizinhaças do Paquequer.
No fim da lua das águas, uma tribo de Aimorés
descera das eminências da Serra dos Órgãos para fazer a colheita dos frutos e
preparar os vinhos, bebidas e diversos alimentos de que costumava fazer
provisão.
Uma família dessa tribo trazida pela caça aparecera
há dias nas margens do Paraíba; compunha-se de um selvagem, sua mulher, um
filho e uma filha.
Esta última era uma bela índia, cuja posse se
disputavam todos os guerreiros Aimorés; seu pai, o chefe da tribo, sentia o
orgulho de ter uma filha tão formosa, como a mais linda seta do seu arco, ou a
mais vistosa pena do seu cocar.
Estamos no domingo.
Na sexta-feira, eram dez horas da manhã, Peri
atravessava a mata imitando alegremente o canto do saixê, cujas notas sibiladas
ele traduzia pelo doce nome de Ceci.
Ia então em procura desse animal que tão importante
papel representa nesta história, especialmente depois de morto; como não o
satisfazia qualquer pequeno jaguar, assentara buscar nos seus próprios domínios
um dos reis das grandes florestas que corriam ao longo do Paraíba.
Cecília havia dito uma palavra, e ele que não
discutia os desejos de sua senhora, tomara o seu arco e seu clavinote e se
tinha posto a caminho. Chegava a um pequeno regato, quando um cãozinho felpudo
saiu do mato, e logo depois uma índia que deu dois passos e caiu ferida por uma
bala.
Peri voltou-se para ver donde partia o tiro, e
reconheceu D. Diogo de Mariz que se aproximava lentamente acompanhado por dois
aventureiros.
O moço ia atirar a um pássaro, e a índia que
passava nesse momento, recebera a carga da espingarda e caíra morta.
O cãozinho lançou-se para sua senhora Uivando,
lambendo-lhe as mãos frias e rogando a cabeça pelo corpo ensangüentado como
procurando reanimá-la. D. Diogo, apoiado sobre o arcabuz, volvia um olhar de
piedade sobre essa moça vitima de um capricho de caçador, que não desejava
perder a sua pontaria.
Quanto a seus companheiros, riam-se do
acontecimento e divertiam-se a fazer comentários sobre a qualidade de caça que
o cavalheiro tinha escolhido.
De repente o cãozinho que acariciava sua senhora
morta, ergueu a cabeça, farejou o ar, e partiu como uma flecha.
Peri que tinha sido testemunha muda desta cena,
aconselhou a D. Diogo que se recolhesse à casa por prudência, e continuou a sua
caminhada.
O espetáculo que acabava de presenciar o
entristecera; lembrou-se de sua tribo, de seus irmãos que ele havia abandonado
há tanto tempo, e que talvez àquela hora eram também vitimas dos conquistadores
de sua terra, onde outrora viviam livres e felizes.
Tendo andado cerca de meia légua, avistou ao longe
um fogo na mata; ao redor estavam sentados dois selvagens e uma índia.
O mais velho, de estatura gigantesca, engastava as
presas longas e aguçadas da capivara nas pontas de canas silvestres, e afiava
numa pedra essa arma terrível. O mais moço enchia de pequenas sementes pretas e
vermelhas um fruto oco, ornado de penas e preso a um cabo de dois palmos de
comprimento.
A mulher, que ainda era moça, cardava uma porção de
algodão cujos flocos alvos e puros caiam sobre uma grande folha que tinha no
regaço.
Junto do fogo havia um pequeno vaso vidrado com
brasas no qual a índia de vez em quando deitava umas grandes folhas secas, que
levantavam grossos novelos de fumo. Então os dois índios por meio de uma taboca
aspiravam as baforadas deste fumo, até que os olhos lhes choravam; depois
continuavam o seu trabalho.
No momento em que Peri examinava de longe esta
cena, o cãozinho saltava no meio do grupo: o animal apenas respirou da corrida
em que vinha, puxou com os dentes a trota de penas do índio mais moço, que o
atirou a quatro passos com um empurrão.
Aproximou-se então da índia, repetiu o mesmo
movimento; e como fosse mal acolhido ainda, saltou sobre o algodão, e mordeu-o:
a mulher tomou-o pela coleira de frutos que trazia ao pescoço, sacudiu-o pelas
costas, e arranjou as suas pastas; mas estavam tintas de sangue.
Examinou com inquietação o animal; e não o vendo
ferido, lançou os olhos ao redor de si e soltou um grito rouco e gutural; os
dois índios ergueram a cabeça interrogando com os olhos a causa dessa
exclamação.
Por toda resposta, a índia mostrou o sangue que
cobria o animal, e pronunciou com a voz cheia de aflição uma palavra de uma
língua desconhecida, e que Peri não entendeu.
O índio mais moço saltou pela floresta como um
campeiro atrás do cãozinho que lhe servia de guia; o velho e a mulher o
seguiram de perto.
Peri compreendeu perfeitamente o que se passava, e
seguiu seu caminho pensando que os colonos já deviam àquela hora estar fora do
alcance dos selvagens.
Era isto o que o índio tinha visto; o que ele
ignorava, o acontecimento do banho lhe revelara claramente.
Os selvagens haviam encontrado o corpo de sua
filha, e reconhecido o sinal da bala; por muito tempo procuraram debalde as
pisadas dos caçadores, até que no dia seguinte a cavalgata que passava
serviu-lhes de guia.
Toda a noite rondaram em torno da habitação, e
nessa manhã vendo sair as duas moças, resolveram vingar-se com a aplicação
dessa lei de talião que era o único princípio de direito e justiça que
reconheciam.
Tinham morto sua filha, era justo que matassem
também a filha do seu inimigo; vida por vida, lágrima por lágrima, desgraça por
desgraça.
Como pretenderam realizar a sua vingança e o fim
que tiveram, já sabemos; os dois selvagens dormiam para sempre nas margens do
Paquequer, sem que uma mão amiga lhes viesse dar sepultura.
Agora é fácil conhecer a razão por que Peri
perseguia a índia, resto da infeliz família sabia que ela ia direito ter com
seus irmãos, e que à primeira palavra que proferisse, toda a tribo se
levantaria como um só homem para vingar a morte do seu cacique e a perda da
mais bela filha dos Aimorés.
Ora, o índio conhecia a ferocidade desse povo sem
pátria e sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como feras, no
chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a idéia de que pudesse vir
assaltar a casa de D. Antônio de Mariz.
Era preciso pois exterminar toda a família e não
deixar nem um vestígio de sua passagem.
Fazendo estas reflexões, Peri tinha gasto perto de
uma hora a percorrer a floresta inutilmente; a índia ganhara um grande avanço
durante o tempo em que ele lutava contra o desfalecimento produzido pela
ferida. Por fim julgou que o mais prudente era avisar a D. Antônio
imediatamente, a fim de que tomasse todas as medidas de prevenção que exigia a
iminência do perigo.
Tinha chegado a um campo coberto por algumas moitas
de carrascos, que se destacavam aqui e ali sobre um capim áspero e queimado pelo
sol.
Apenas o índio deu alguns passos para atravessar o
campo, parou fazendo um gesto de surpresa; diante dele arquejava um cãozinho,
que reconheceu pela coleira de frutos escarlates que tinha ao pescoço.
Era o mesmo que há dois dias encontrara na floresta,
e que naturalmente seguia a índia no momento em que ela fugia; o índio não o
tinha visto por causa das guaximas.
O animal mostrava ter sido estrangulado por uma
torção tão violenta, que lhe partira a coluna vertebral; entretanto ainda
agonizava.
Do primeiro lanço de olhos Peri tinha visto tudo
isto, e calculado o que se havia passado.
Aquela morte, pensava ele, não podia ter sido feita
senão por uma criatura humana; qualquer outro animal usaria dos dentes ou das
garras, e deixaria traços de ferimento.
O cão pertencia à índia; fora ela pois quem o havia
estrangulado há bem poucos momentos, porque a fratura do pescoço era de
natureza a produzir a morte quase imediatamente.
Mas por que motivo tinha feito essa barbaridade?—Porque,
respondia o espírito do índio, ela sabia que era perseguida, e o cão que a não
podia acompanhar serviria para denunciá-la.
Apenas formulou este pensamento, Peri deitou-se e
auscultou o seio da terra por muito tempo; duas vezes ergueu a cabeça julgando
iludir-se, e encostou de novo o ouvido ao chão.
Quando levantou-se, o seu rosto exprimia grande
surpresa e admiração; tinha ouvido alguma coisa de que parecia duvidar ainda,
como se os seus sentidos o iludissem.
Caminhou para o lado do nascente, auscultando a
terra a cada momento, e assim chegou a alguns passos de uma grande touça de
cardos que se elevava numa baixa do terreno.
Então colocando-se de encontro ao vento,
aproximou-se com toda cautela e ouviu um murmúrio de vozes confusas, e o som de
um instrumento que cavava a terra.
Peri aplicou o ouvido e procurou ver o que se
passava além, mas era impossível; nem uma aberta, nem uma fresta davam passagem
ao som ou ao olhar.
Só quem tem viajado nos sertões e visto esses
cardos gigantes, cujas largas palmas crivadas de espinhos se entrelaçam
estreitamente formando uma alta muralha de alguns pés de grossura, poderá fazer
idéia da barreira impenetrável que cercava por todos os lados as pessoas cuja
voz Peri ouvia sem distinguir as palavras.
Entretanto esses homens deviam ter ai entrado por
alguma parte; e não podia ser senão pelo galho de uma árvore seca que se
estendia sobre os cardos, e ao qual se enroscava um cipó nodoso e forte como
uma vide.
Peri estudava a posição, e tratava de descobrir o
meio de saber o que se passava atrás daquelas árvores, quando uma voz que
julgou reconhecer exclamou:
—Per
Dio! ei-la!
O índio estremeceu ouvindo esta voz, e resolveu a
todo o custo conhecer o que faziam aqueles homens; pressentiu que havia ali um
perigo a conjurar, e um inimigo a combater. Inimigo talvez mais terrível do que
os Aimorés, porque se estes eram feras, aquele podia ser a serpente escondida
entre as folhas e a relva.
Assim esqueceu tudo, e o seu pensamento
concentrou-se numa única idéia, ouvir o que aqueles homens diziam.
Mas por que meio?
Era o que Peri procurava: tinha rodeado a touça
aplicando o ouvido, e pareceu-lhe que em um lugar o ruído das vozes e do ferro
que continuava a cavar, lhe chegava mais distinto.
O índio abaixou os olhos, que brilhavam de
contentamento.
O que produzira essa agradável impressão fora um
simples montículo de barro gretado, que se elevava como um pão de açúcar dois
palmos acima da terra, e que estava encoberto por folhas de tanchagem.
Era a entrada de um formigueiro, de uma dessas
casas subterrâneas construídas pelos pequenos arquitetos que à força de
paciência e trabalho minam um campo inteiro, e formam verdadeiras abóbadas
debaixo da terra.
Aquele que Peri descobrira tinha sido abandonado
pelos seus habitantes, em virtude da enxurrada que penetrara no pequeno
subterrâneo.
O índio tirou a sua faca, e cerceando a cúpula
dessa torre em miniatura, deixou a descoberto um buraco que penetrava pelo
interior da terra, e decerto ia ter à baixa onde estavam reunidas as pessoas
que conversavam.
Este buraco tornou-se para ele uma espécie de tubo
acústico, que lhe trazia as palavras claras e distintas.
Sentou-se e ouviu.
XV
OS TRÊS
Loredano que nessa mesma manhã saíra de casa tão
cedo, apenas se entranhou na mata, esperou.
Um quarto de hora depois vieram ter com ele Bento
Simões e Rui Soeiro.
Os três seguiram juntos sem dar uma palavra; o
italiano caminhava adiante, e os dois aventureiros o acompanhavam trocando de
vez em quando um olhar significativo. Por fim Rui Soeiro rompeu o silêncio:
—Não foi decerto para espairecer pelos matos ao
romper da alva, que nos fizestes vir aqui, misser Loredano?
—Não, respondeu o italiano laconicamente.
—Mas então desembuchai de uma vez, e não percamos
tempo.
—Esperai!
—Que espereis, vos digo eu, atalhou Bento Simões,
ides numa batida... Onde nos pretendeis levar nesta marcha?
—Vereis.
—Já que não há meio de vos sacar mais palavra,
segui com Deus, misser Loredano.
—Sim, acudiu Rui Soeiro, segui; que nós tornamos
por onde viemos.
—Quando estiverdes de vez para falar, nos
avisareis.
E os dois aventureiros pararam dispostos a
retroceder; o italiano voltou-se com um gesto de desprezo.
—Parvos que sois! disse ele. Se vos parece,
revoltai-vos agora que estais em meu poder, e que não tendes outro remédio
senão seguir a minha fortuna! Voltai!... Também eu voltarei; mas para
denunciar-vos a todos.
Os dois aventureiros empalideceram.
—Não me façais lembrar, Loredano, disse Rui Soeiro
abaixando um olhar rápido para o punhal, que há um meio de fechar para sempre
as bocas que se obstinam a falar.
—Isto quer dizer, replicou o italiano
desdenhosamente, que me mataríeis no caso de que eu vos quisesse denunciar?
—À fé que sim! respondeu Rui Soeiro com um tom que
mostrava a sua resolução.
—E eu pela minha parte faria o mesmo! Primeiro está
a nossa vida que as vossas venetas, misser italiano.
—E que ganharíeis vós em matar-me? perguntou
Loredano sorrindo.
—Essa é melhor! que ganharíamos? Achais que é coisa
de pequena valia assegurar a sua existência e o seu descanso?
—Néscios!... disse o italiano cobrindo-os com um
olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo. Não vedes que quando um homem
traz um segredo como o meu, a menos que esse homem não seja um truão da vossa
laia, ele deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes?
—Bem vejo que estais armado, e mais vale assim,
respondeu Rui Soeiro; será morte antes que homizio.
—Direis melhor, execução, Rui Soeiro! retrucou
Bento Simões.
O italiano continuou:
—Não são essas armas que me servirão contra vós;
outras tenho eu que mais podem; sabei unicamente que vivo ou morto, a minha voz
virá de longe, ate mesmo da campa, denunciar-vos e vingar-me.
—Quereis gracejar, misser italiano? A ocasião não é
azada.
—A seu tempo vereis se gracejo. Tenho na mão de D.
Antônio de Mariz o meu testamento, que ele deve abrir quando me saiba ou me
julgue morto. Nesse testamento conto as relações que existem entre nós, e o fim
para que trabalhamos.
Os dois aventureiros tornaram-se lívidos como
espetros.
—Compreendeis agora, disse Loredano sorrindo, que
se me assassinardes, se um acidente qualquer me privar da vida, se me der na
cabeça mesmo fugir e fazer supor que morri, estais perdidos irremediavelmente.
Bento Simões ficou paralisado como se uma
catalepsia o tivesse fulminado. Rui Soeiro, apesar do violento abalo que
sentia, conseguiu com um esforço recobrar a palavra.
—É impossível!... gritou ele. isso que dizeis é
falso. Não há homem que o fizesse.
—Ponde à prova! respondeu o italiano calmo e
impassível.
—Ele o fez... estou certo... balbuciou Bento Simões
em voz sumida.
—Não, retrucou Rui Soeiro; Satanás não o faria.
Vamos, Loredano: confessai que nos enganastes, que quisestes atemorizar-nos?
—Disse a verdade.
—Mentes! gritou o aventureiro desesperado.
O italiano sorriu: tirando a sua espada estendeu a
mão sobre a cruz do punho, e disse lentamente deixando cair as palavras uma a
uma:
—Por esta cruz e pelo Cristo que nela sofreu; por
minha honra neste mundo, e minha alma no outro, juro.
Bento Simões caiu de joelhos esmagado por este
juramento, que não deixava de ter alguma solenidade no meio da floresta sombria
e silenciosa.
Rui Soeiro, pálido, com os olhos a saltarem-lhe das
órbitas, os lábios trêmulos, os cabelos eriçados e os dedos hirtos, parecia a
múmia do desespero.
Estendeu os braços para Loredano, e exclamou com a
voz trêmula e sufocada:
—Pois vós, Loredano, confiastes a D. Antônio de
Mariz um papel onde existe a maquinação infernal que tramastes contra sua
família?
—Confiei-o!
—E nesse papel escrevestes que o pretendeis
assassinar a ele e a sua mulher, e lançar fogo à casa se preciso for para a
realização de vossos intentos?
—Escrevi tudo!
—Tivestes o arrojo de confessar que tencionais
roubar sua filha e fazer dela, nobre moça, a barregã de um aventureiro e
réprobo como vós?
—Sim!
—E dissestes também, continuou Rui no auge da
desesperação, que a outra sua filha nos pertencerá, a nós que jogaremos a sorte
para decidir a qual deverá tocar?
—Não me esqueci de nada, e menos desse ponto
importante, respondeu o italiano com um sorriso; tudo isso está escrito em um
pergaminho, nas mãos de D. Antônio de Mariz. Para sabê-lo, basta que o fidalgo
rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira, tabelião do Rio
de Janeiro, o cerrou na minha penúltima viagem.
Loredano pronunciou estas palavras com a maior
calma, contemplando os dois aventureiros pálidos e humilhados diante dele.
Passou-se algum tempo em silêncio.
—Já vedes, disse o italiano, que estais na minha
mão; sirva-vos isto de exemplo. Quando uma vez se pôs o pé sobre o precipício,
amigos, é preciso caminhar por cima dele, para não rolar e ir ao fundo.
Caminhemos pois. Só de uma coisa vos advirto;—de hoje em diante obediência cega
e passiva!
Os dois aventureiros não disseram palavra; porém a
sua atitude respondia melhor do que mil protestos.
—Agora deixai essa cara triste e consternada. Estou
vivo: e D. Antônio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento.
Criai esperança, confiai em mim, que breve alcançaremos a meta.
A fisionomia de Bento Simões reanimou-se.
—Falai claro uma vez ao menos, retrucou Rui Soeiro.
—Não aqui; segui-me, que vos levarei a um lugar
onde conversaremos à vontade.
—Esperai, acudiu Bento Simões; antes de tudo,
reparação vos é devida. Há pouco vos ameaçamos; aqui tendes as nossas armas.
—Sim, depois do que se passou, é justo que
desconfieis de nós; tomai.
Os dois tiraram os punhais e as espadas.
—Guardai as vossas armas, disse Loredano
escarnecendo, servirão para me defenderdes. Eu sei quanto vos é preciosa e cara
a minha existência!
Ambos os aventureiros empalideceram, e seguiram o
italiano, que depois de uma meia hora de caminho chegou à touça de cardos que
já descrevemos.
A um sinal de Loredano, os seus companheiros
subiram à árvore, e desceram pelo cipó ao centro dessa área cercada de
espinhos, que tinha quando muito três braças de comprimento sobre duas de
largura.
De um lado, na quebrada que fazia o terreno, via-se
uma espécie de grata ou abóbada, restos desses grandes formigueiros que se
encontram pelos nossos campos, já meio aluídos pela chuva. Neste lagar, à
sombra de um pequeno arbusto que nascera entre os cardos, sentaram-se os três
aventureiros.
—Oh! disse o italiano imediatamente; há algum tempo
já que não venho dessas bandas; mas parece-me que ainda deve haver aqui o quer
que seja que vos dará no goto.
Reclinou-se, e estendendo o braço pela cava retirou
uma botija que ali estava deitada, e que colocou no meio do grupo.
—É de Caparica, mas do bom. Deste cá não vem!
—Diabo! tendes uma adega!... exclamou Bento Simões
a quem a vista da botija tinha restituído todo o bom humor.
—A falar a verdade, disse Rui, esperaria tudo,
menos ver sair deste buraco uma botija de vinho.
—É para verdes! Como costumo vir a este lugar, onde
às vezes passo bem boas soalheiras, precisava ter um companheiro com quem
espairecesse.
—E não podíeis achar melhor! disse Bento Simões
dando uma empinadela à botija e estalando a língua. Já lhe tinha saudades!
Cada um dos três tomou a sua vez de vinho e a
botija voltou ao seu lugar.
—Bom, disse o italiano, agora tratemos do que
serve. Prometi, quando vos convidei a seguir-me, que vos faria ricos, muito
ricos.
Os dois inclinaram a cabeça.
—A promessa que vos fiz vai-se realizar: a riqueza
está aqui perto de nós, podemos tocá-la.
—Onde? perguntaram os aventureiros lançando um
olhar ávido em roda.
—Não vai assim também; fala-se figuradamente. Digo
que a riqueza está diante de nós, mas para nos apoderarmos dela é preciso...
—O quê? Dizei?
—A seu tempo; agora quero contar-vos uma história.
—Uma história! replicou Rui Soeiro.
—Da carocha? perguntou Bento Simões.
—Não, uma história verídica como uma bula do nosso
santo padre. Ouvistes falar algum dia, em um certo Robério Dias?
—Robério Dias... Ah! sei! um tal do São Salvador?
disse Rui Soeiro.
—O mesmo, sem tirar nem pôr.
—Vi-o há coisa de oito anos em São Sebastião, donde
se passou às Espanhas.
—E sabeis o que ia fazer às Espanhas esse digno descendente
de Caramuru, amigo Bento Simões? perguntou o italiano.
—Ouvi rosnar que se tratava de um tesouro fabuloso
que contava oferecer a Filipe 11, o qual em volta o faria marquês, e grande
fidalgo de sua casa.
—E o resto, não vos chegou à noticia?
—Não; nunca mais ouvi falar do tal Robério Dias.
—Pois ouvi lá; chegando a Madri, o homem fez a sua
oferta mui lampeiro; e foi recebido na palma das mãos por el-rei Filipe II que,
como sabeis, tinha as unhas demasiado longas.
—E cinzou-o como uma raposa que era? acudiu Rui
Soeiro.
—Enganai-vos; dessa vez a raposa tornara-se macaco;
quis ver o coco antes de pagá-lo.
—E então?
—Então, disse o italiano sorrindo maliciosamente, o
coco estava oco.
—Como oco?
—Sim, amigo Rui, tinham-lhe deixado apenas as
cascas; felizmente para nós, que vamos lograr o miolo.
—Sois um homem de caixas encouradas, Loredano!
—Dá-se a gente a tratos, e não é possível
entender-vos.
—Tenho culpa eu, que não sejais lido na história
das coisas de vossa terra?
—Nem todos são mitrados como vós, dom italiano.
—Bom, acabemos de uma vez; o que Robério Dias
julgava oferecer em Madri a Filipe II, amigos, está aqui!
E Loredano dizendo estas palavras assentou a mão
sobre um seixo que havia ao lado.
Os dois aventureiros olharam-se sem compreender, e
duvidando da razão de seu companheiro. Quanto a este, sem se importar com o que
eles pensavam, tirou a espada, e depois de desenterrar a pedra, começou a
cavar.
Enquanto prosseguia neste trabalho, os dois
observando-o passavam alternadamente a botija de vinho, e faziam conjeturas e
suposições.
O italiano já cavava há tempo, quando o ferro tocou
num objeto duro, que o fez tinir.
—Per
Dio, exclamou, ei-la!
Daí a alguns momentos retirava do buraco um desses
vasos de barro vidrado, a que os índios chamavam camuci; este era pequeno e
fechado por todos os lados.
Loredano tomando-o pelas duas mãos abalou-o e
sentiu o imperceptível vascolejar que fazia dentro um objeto qualquer.
—Aqui tendes, disse ele lentamente, o tesouro de
Robério Dias; pertence-nos. Um pouco detento, e seremos mais ricos que o sultão
de Bagdá, e mais poderosos que o doge de Veneza.
O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se
partiu em pedaços.
Os aventureiros, com os olhares incendidos de
cobiça, esperando ver correr ondas de ouro, de diamantes e esmeraldas, ficaram
estupefatos. Do bojo do vaso saltara apenas um pequeno rolo de pergaminho
coberto por um couro avermelhado, e atado em cruz por um fio pardo.
Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço, e abrindo
rapidamente o pergaminho, mostrou aos aventureiros um rótulo escrito em grandes
letras vermelhas.
Rui Soeiro soltou um grito: Bento Simões começou a
tremer de prazer, de pasmo e admiração.
Passado um momento, o italiano estendeu a mão para
o papel colocado no meio do grupo; seus olhos tomaram uma expressão dura.
—Agora, disse ele com a sua voz vibrante, agora que
tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão, jurai que o vosso braço não
tremerá quando chegar a ocasião; que obedecereis ao meu gesto, à minha palavra,
como à lei do destino.
—Juramos!
—Estou cansado de esperar, e resolvido a aproveitar
o primeiro ensejo. A mim como chefe, disse o italiano com um sorriso diabólico,
devia pertencer D. Antônio de Mariz; eu vo-lo cedo, Rui Soeiro Bento Simões
terá o escudeiro. Eu reclamo para mim Álvaro de Sá, o nobre cavalheiro.
—Aires Gomes vai-se ver numa dança! disse Bento
Simões com um aspecto marcial.
—Os mais, se nos incomodarem, irão depois; se nos
acompanharem serão bem-vindos. Unicamente vos aviso que aquele que tocar a
soleira da porta da filha de D. Antônio de Mariz, é um homem morto; essa é a
minha parte na presa! E a parte do leão.
Nesse momento ouviu-se um rumor como se as folhas
se tivessem agitado.
Os aventureiros não fizeram reparo, e atribuíram
naturalmente ao vento.
—Mais alguns dias, amigos, continuou Loredano, e
seremos ricos, nobres, poderosos como um rei. Tu, Bento Simões, serás marquês
de Paquequer; tu, Rui Soeiro, duque das Minas; eu... Que serei eu, disse
Loredano com um sorriso que iluminou a sua fisionomia inteligente. Eu serei...
Uma palavra partiu do seio da terra, surda e
cavernosa, como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado:
—Traidores!...
Os três aventureiros ergueram-se de um só
movimento, hirtos e lívidos: pareciam cadáveres surgindo da campa.
Os dois persignaram-se. O italiano suspendeu-se ao
ramo da árvore, e lançou um olhar rápido.
Tudo estava em sossego.
O sol a pino derramava um oceano de luz: nenhuma
folha se agitava ao sopro da brisa; nenhum inseto saltitava sobre a relva.
O dia no seu esplendor dominava a natureza.
SEGUNDA PARTE
PERI
I
O
CARMELITA
Corria o mês de março de 1603.
Era portanto um ano antes do dia em que se abriu
esta história.
Havia à beira do caminho que então servia às
expedições entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um vasto pouso onde
habitavam alguns colonos e índios catequizados.
Estava quase a anoitecer.
Uma tempestade seca, terrível e medonha, como as há
freqüentemente nas faldas das serranias, desabava sobre a terra. O vento
mugindo açoitava as grossas árvores que vergavam os troncos seculares; o trovão
ribombava no bojo das grossas nuvens desgarradas pelo céu; o relâmpago amiudava
com tanta velocidade, que as florestas, os montes, toda a natureza nadava num
oceano de fogo.
No vasto copiar do pouso havia três pessoas
contemplando com um certo prazer a luta espantosa dos elementos, que para
homens habituados como eles, não deixava de ter alguma beleza.
Um desses homens, gordo e baixo, deitado em uma rede
no meio do alpendre, com as pernas cruzadas e os braços sobre o peito, soltava
uma exclamação a cada novo estrago produzido pela tempestade.
O segundo, encostado num dos esteios de jacarandá
que sustentava o teto da alpendrada, era homem trigueiro, de perto de quarenta
anos; a sua fisionomia apresentava uns longes do tipo da raça judaica; tinha os
olhos fitos em uma vereda que serpejava pela frente da casa até perder-se no
mato.
Defronte dele, também apoiado sobre a outra coluna,
estava um frade carmelita, que acompanhava com um sorriso de satisfação intima
o progresso da borrasca; animava-lhe o rosto belo e de traços acentuados um
raio de inteligência e uma expressão de energia que revelava o seu caráter.
Ao ver esse homem sorrindo à tempestade e afrontando
com o olhar a luz do relâmpago, conhecia-se que sua alma tinha a força de
resolução e a vontade indomável capaz de querer o impossível, e de lutar contra
o céu e a terra para obtê-lo.
Fr. Ângelo di Luca achava-se então no pouso como
missionário, incumbido da catequese e cura das almas entre o gentio daquele
lugar; em seis meses que apostolava conseguira aldear algumas famílias que
esperava breve trazer ao grêmio da igreja.
Um ano havia que obtivera do prior-geral da ordem
do Carmo a graça de passar do seu convento de Santa Maria Transpontina, em
Roma, para a casa que a sua ordem tinha fundado em 1590 no Rio de Janeiro, a
fim de empregar-se no trabalho das missões.
Tanto o geral como o provincial de Lisboa, tocados
por esse ardente entusiasmo apostólico, o haviam recomendado expressamente a
Fr. Diogo do Rosário, então prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro,
pedindo-lhe que empregasse no serviço do Senhor e na glória da ordem da
Beatíssima Virgem do Monte Carmelo, o zelo e o santo fervor do irmão Fr. Ângelo
di Luca.
Eis a razão por que o filho de um pescador, saído
das lagunas de Veneza, achava-se no sertão do Rio de Janeiro, encostado ao
esteio de um pouso, contemplando a tempestade que redobrava de furor.
—Sempre partireis esta noite, Fernão Aines? disse o
homem que estava deitado na rede.
—Ao quarto d'alva, respondeu o outro sem voltar-se.
—E o tempo que vais fazer?
—Não é isso que me estorva, bem o sabeis, mestre
Nunes. Esta maldita caçada!...
—Receais que vossos homens não tornem dela a tempo?
—Receio que não os leve a todos a breca por esses
matos com semelhante borrasca.
O frade voltou-se:
—Aqueles que seguem a lei de Deus estão bem em toda
a parte, irmão, em andurriais como neste pouso; os maus é que devem temer o
fogo do céu, e a esses não há abrigo que os salve.
Fernão Aines sorriu ironicamente.
—Credes isso, Fr. Ângelo?
—Creio em Deus, irmão.
—Pois embora; prefiro estar onde estou do que por
ai metido nalgum despenhadeiro.
—Contudo, acudiu Nunes, o que diz o nosso reverendo
missionário...
—Ora, deixa falar Fr. Ângelo. Aqui sou eu que zombo
da tempestade, lá seria a tempestade que zombaria de mim.
—Fernão Aines!... exclamou Nunes.
—Maldita lembrança de caçada! murmurou o outro sem
atendê-lo.
O silêncio se restabeleceu.
De repente uma nuvem abriu-se; a corrente elétrica
enroscando-se pelo ar, como uma serpente de fogo, abateu-se sobre um tronco de
cedro que havia defronte do pouso.
A árvore fendeu-se desde o olho até à raiz em duas
metades; uma permaneceu em pé, esguia e mutilada; a outra, tombando sobre o
terreiro, bateu nos peitos de Fernão Aines e o atirou esmagado no fundo do
alpendre.
Seu companheiro ficou imóvel por muito tempo;
depois começou a tremer como se tiritasse com o frio de terças; o polegar estendido
para fazer o sinal-da-cruz, os dentes chocando uns contra os outros, o rosto
contraído, davam-lhe aspecto terrível e ao mesmo tempo grotesco.
O frade se tinha voltado lívido como se ele fosse a
vitima da catástrofe; o terror decompôs um momento a sua fisionomia; porém logo
um sorriso sardônico fugiu-lhe dos lábios ainda descorados pelo choque violento
que sofrera.
Passado o primeiro momento de susto, os dois
chegaram-se para o ferido e quiseram prestar-lhe socorro; este fez um grande
esforço, e erguendo-se sobre um dos braços, soltou numa golfada de sangue estas
palavras:
—Castigo do céu!
Reconhecendo que não havia mais cura para o corpo,
o moribundo exigiu o remédio espiritual: com a voz fraca pediu a Fr. Ângelo que
o ouvisse de confissão.
Nunes fez recolher o seu companheiro a um aposento
cuja porta dava para o alpendre, e deitou-o sobre uma cama de couro.
Já havia anoitecido, o aposento estava na maior
escuridão; apenas por instantes o relâmpago brilhava lançando o clarão azulado
sobre o confessor meio reclinado para o moribundo a fim de escutar-lhe a voz
que ia gradualmente enfraquecendo.
—Ouvi-me sem me interromper, meu padre; sinto que
poucos momentos me restam; e embora não haja perdão para mim quero ao menos
reparar o meu crime.
—Falai, irmão; eu vos escuto.
—Em novembro passado cheguei ao Rio de Janeiro: fui
hospedado por um parente meu: tanto ele como sua mulher me fizeram o melhor
acolhimento.
"Ele, que havia muito viajado pelo sertão e se
dera à vida de aventureiro, falou-me um dia de tentarmos uma expedição, cujo
resultado seria grande riqueza para nós ambos.
"Por diversas vezes nos entretivemos sobre
esse objeto, até que abriu-se inteiramente comigo.
"O pai de um Robério Dias, colono da Bahia,
guiado por um índio, havia descoberto nos sertões daquela província minas de
prata tão abundantes que se poderiam calçar desse metal as ruas de Lisboa.
"Como atravessasse sertões ínvios e inóspitos,
Dias escrevera um roteiro com as indicações necessárias para em qualquer tempo
poder-se achar o lugar onde estão situadas as ditas minas.
"Este roteiro fora subtraído a seu dono sem
que ele o percebesse: e por uma longa sucessão de fatos, que faltam-me as
forças para contar-vos, viera cair nas mãos do meu parente.
"De quantos crimes já não tinha sido causa
esse papel, e de quantos não seria ainda, meu padre, se Deus não houvesse
finalmente punido em mim o último herdeiro desse legado de sangue!..."
O moribundo parou um momento extenuado; depois
continuou com a voz débil:
"Já então com a chegada do governador D.
Francisco de Sousa se sabia que Robério oferecera em Madri a Filipe 11 a
descoberta das minas, e que não o tendo el-rei premiado como esperou,
obstinava-se em guardar silêncio.
"A razão desse silêncio que se atribuía
geralmente ao despeito, só a sabia meu parente em cujas mãos parava o roteiro;
Robério chegado às Espanhas se apercebera do roubo que lhe haviam feito, e
quisera aos menos lograr o prêmio.
"O segredo das minas, a chave dessa riqueza
imensa que excedia todos os tesouros do Miramolim, estavam nas mãos do meu
parente que, necessitando de um homem dedicado que o auxiliasse na empresa,
julgou que a ninguém melhor do que a mim podia escolher para partilhar os seus
riscos e esperanças.
"Aceitei essa meação do crime, esse pacto de
roubo, meu padre... Foi o meu primeiro erro!..
"A voz do aventureiro tornou-se ainda mais
sumida. O frade inclinado sobre ele, parecia devorar com os lábios entreabertos
as palavras balbuciadas pelo moribundo.
—Coragem filho!
—Sim! Devo dizer tudo!... Fascinado pela descrição
desse tesouro fabuloso, tive uma lembrança iníqua... essa lembrança tornou-se
desejo... depois idéia, e... projeto... por fim realizou-se... foi um crime!
Assassinei meu parente; e sua mulher...
—E... exclamou o frade com a voz surda.
—E roubei o segredo!
O frade sorriu nas trevas.
—Agora só me resta a misericórdia de Deus, e a
reparação do mal que fiz... Robério é morto, sua mulher vive desgraçada na
Bahia... Quero que este papel lhe seja entregue... Prometeis Fr. Ângelo?...
—Prometo! O papel?...
—Está... oculto...
—Aonde?
—Nes... ta...
O moribundo agonizava.
Fr. Ângelo, debruçado inteiramente sobre ele, com o
ouvido colado à sua boca onde borbulhava uma espuma vermelha, com a mão sobre o
coração para ver se ainda palpitava, parecia querer reter o último sopro da
vida, a fim de tirar dele uma palavra ainda.
—Aonde?... murmurava de vez em quando o frade com a
voz cava.
O enfermo agonizava sempre; os soluços extremos da
vida que se apaga como a lâmpada que bruxuleia, agitavam apenas o corpo
enregelado.
Por fim o frade viu-o levantar o braço hirto,
apontando para a parede, e sentiu os seus lábios gelados e convulsos que
tremeram, lançando no seu ouvido uma palavra que o fez saltar sobre o leito.
—Cruz!...
Fr. Ângelo ergueu-se circulando o aposento com a
vista alucinada; na cabeceira da cama havia um Cristo de ferro sobre uma grande
cruz de pau tosca e mal lavrada.
Com um movimento de raiva o frade apoderou-se da
cruz, e quebrou-a de encontro ao joelho; a imagem rolou pelo chão; entre os
estilhaços de madeira apareceu um rolo de pergaminho achatado pela pressão em
que estivera.
Quebrou com os dentes o selo do papel; chegando à
janela leu à claridade vacilante do relâmpago as primeiras palavras de um
rotulo de letras vermelhas, que rezava nestes termos:
"Roteiro verídico e exato em que se trata da
rota que fez Robério Dias, o pai, em o ano da graça de 1587 às paragens de
Jacobina, onde descobriu com o favor de Deus as mais ricas minas de prataria
que existam no mundo; com a suma de todas as indicações de marcos, balizas e
linha equinocial onde demoram aquelas ditas minas; começado em 20 de janeiro,
dia do mártir São Sebastião, e terminado na primeira dominga de Páscoa em que
chegamos com a mercê da Providência nesta cidade do Salvador."
Enquanto o frade se esforçava para ler, o moribundo
agonizava na última aflição, esperando talvez a absolvição final e a
extrema-unção do penitente.
Mas o religioso não via nesse momento senão o papel
que tinha nas mãos; deixou-se cair em um banco, e com a cabeça pendida sobre o
braço, entregou-se a funda meditação.
Que pensava ele?...
Não pensava; delirava. Diante de seus olhos, a
imaginação exaltada lhe apresentava um mar argênteo, um oceano de metal
fundido, alvo e resplandecente, que ia se perder no infinito. As vagas desse
mar de prata, ora achamalotavam-se, ora rolavam formando frocos de espumas, que
pareciam flores de diamantes, de esmeraldas e rubins cintilando à luz do sol.
Às vezes também nessa face lisa e polida desenhavam-se
como em um espelho palácios encantados, mulheres belas como as huris do
profeta, virgens graciosas como os anjos de Nossa Senhora do Monte Carmelo.
Assim decorreu meia hora, em que o silêncio era
apenas interrompido pelo estertor do moribundo e pelo trovão que rugia; depois
houve uma calma sinistra; o pecador expirava impenitente.
Fr. Ângelo levantou-se, arrancou o hábito com um
gesto desesperado, e pisou-o aos pés; sobre o recosto do leito havia uma muda
de roupa com que trajou-se; tirou as armas do cadáver, apanhou o chapéu de
feltro, e apertando ao peito o manuscrito, dirigiu-se à porta.
Ouviam-se os passos de Nunes, que passeava fora no
alpendre.
O frade estacou; a presença inesperada desse homem
diante da porta deu-lhe uma inspiração. Tomou o hábito, vestiu-o sobre o seu
novo trajo, e escondendo na manga o chapéu do aventureiro, cobriu-se com o
largo capelo; então abriu a porta e dirigiu-se a Nunes.
—Consummatum est, irmão! disse ele com um tom
compungido.
—Deus tenha sua alma!
—Assim o espero, se não me faltarem as forças para
cumprir o seu último voto, que é uma reparação.
—De um grave pecado?
—De um crime, irmão. Dai-me luz; vou escrever a Fr.
Diogo do Rosário, nosso prior, porque de onde vou talvez não volte, nem tenhais
mais novas de mim.
O frade escreveu à claridade de uma acha de
pau-candeia algumas linhas ao prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro, e
despedindo-se de Nunes, partiu.
Quando dobrava o canto do pouso, o céu abriu-se e a
terra incendiou-se com a luz de um relâmpago tão forte que o deslumbrou. Dois
raios, descrevendo listras de fogo, tinham caído sobre a floresta e espalhado
em torno um cheiro de súlfur que asfixiava.
O carmelita teve uma vertigem; lembrou-se da cena
da tarde, do tremendo castigo que ele próprio havia evocado na sua hipocrisia,
e se realizara tão prontamente. Mas o deslumbramento passou; estremecendo ainda
e pálido de terror, o réprobo levantou o braço como desafiando a cólera do céu,
e soltou uma blasfêmia horrível:
—Podeis matar-me; mas se me deixardes a vida, hei
de ser rico e poderoso, contra a vontade do mundo inteiro!
Havia nestas palavras um quer que seja da sanha e
raiva impotente de Satanás precipitado no abismo pela sentença irrevogável do
Criador.
Continuando o seu caminho pelas trevas, costeou a
cerca e chegou a uma grande choça, que havia no fundo do pouso, e onde o
missionário conseguira aldear algumas famílias de índios; entrou e acordou um
dos selvagens, a quem ordenou se preparasse para acompanhá-lo apenas rompesse o
dia.
A chuva caia em torrentes; o vento açoitava as
paredes de sapé, esfuziando por entre a palha.
O frade passou a noite em claro, refletindo e
traçando no seu espírito um plano infernal, para cuja realização não trepidaria
diante de nenhum obstáculo; de vez em quando levantava-se para ver se o
horizonte já se iluminava.
Finalmente veio o dia; a tempestade se tinha
desfeito durante a noite; o tempo estava sereno.
O carmelita acompanhado pelo selvagem partiu: vagou
pela floresta e pelo campo em todas as direções; alguma coisa procurava. Ele
avistou depois de duas horas a touça de cardos junto da qual se passou a última
cena que narramos; examinou-a por todos os lados e sorriu de satisfeito.
Trepando à árvore, e escorregando pelo cipó, entraram ele e o selvagem na área
que já conhecemos; o sol tinha nascido há pouco.
No dia seguinte, por volta de duas horas da tarde,
saiu deste lagar um só homem; não era ele o frade nem o selvagem. Era um
aventureiro destemido e audaz, em cuja fisionomia se reconheciam ainda os
traços do carmelita Fr. Ângelo di Luca.
Este aventureiro chamou-se Loredano.
Deixava naquele lugar e sepultado no seio da terra
um terrível segredo; isto é, um rolo de pergaminho, um burel de frade e um
cadáver.
Cinco meses passados, o vigário da ordem
participava ao geral em Roma que o irmão Fr. Ângelo di Luca morrera como santo
e mártir no zelo de sua fé apostólica.
II
IARA!
Dois dias depois da cena do pouso, por uma bela
tarde de verão, a família de D. Antônio de Mariz estava reunida na margem do
Paquequer.
O lugar em que se achava era uma pequena baixa
cavada entre dois outeiros pedregosos que se elevavam naquelas paragens. A
relva que tapeçava essas fráguas, as árvores que haviam nascido nas fendas das
pedras, e reclinando sobre o vale, teciam um lindo dossel de verdura, tornavam
aquele retiro pitoresco.
Não podia haver sitio mais agradável para se passar
uma sesta de estio, do que esse caramanchão cheio de sombra e de frescura, onde
o canto das aves concertava com o trépido murmúrio das águas.
Por isso, apesar de ficar ele a alguma distancia da
casa, a família vinha às vezes quando o tempo estava sereno, gozar algumas
horas da frescura deliciosa que ali se respirava.
D. Antônio de Mariz, sentado junto de sua mulher,
contemplava por entre uma abertura das folhas o céu azul e aveludado de nossa
terra, que os filhos da Europa não se cansam de admirar. Isabel, encostada a
uma palmeira nova, olhava a correnteza do rio, murmurando baixinho uma trova de
Bernardim Ribeiro.
Cecília corria pelo vale perseguindo um lindo
colibri, que no vôo rápido iriava-se de mil cores, cintilando como o prisma de
um raio solar. A linda menina, com o rosto animado, rindo-se dos volteios que a
avezinha lhe fazia dar, como se brincasse com ela, achava nesse folguedo um
vivo prazer.
Mas afinal, sentindo-se fatigada, foi recostar-se
em um cômoro de relva, que elevando-se no sopé do rochedo formava uma espécie
de divã natural. Descansou a cabeça no declive, e assim ficou com os pezinhos
estendidos sobre a grama que os escondia como a lã de um rico tapete; e o seio
mimoso a arfar com o anélito da respiração.
Algum tempo se passou sem que o menor incidente
perturbasse o suave painel que formava esse grupo de família
De repente, entre o dossel de verdura que cobria
esta cena, ouviu-se um grito vibrante e uma palavra de língua estranha:
—Iara!
É um vocábulo guarani: significa a senhora.
D. Antônio levantou-se; volvendo olhos rápidos, viu
sobre a eminência que ficava sobranceira ao lagar em que estava Cecília, um
quadro original.
De pé, fortemente apoiado sobre a base estreita que
formava a rocha, um selvagem coberto com um ligeiro saio de algodão metia o
ombro a uma lasca de pedra que se desencravara do seu alvéolo e ia rolar pela
encosta.
O índio fazia um esforço supremo para suster o peso
da laje prestes a esmagá-lo; e com o braço estendido de encontro a um galho de
árvore mantinha por uma tensão violenta dos músculos o equilíbrio do corpo.
A árvore tremia; por momentos parecia que pedra e
homem se enrolavam numa mesma volta, e precipitavam sobre a menina sentada na
aba da colina.
Cecília ouvindo o grito erguera a cabeça, e olhava
seu pai com alguma surpresa, sem adivinhar o perigo que a ameaçava.
Ver, lançar-se para sua filha, tomá-la nos braços,
arrancá-la à morte, foi para D. Antônio de Mariz uma só idéia e um só
movimento, que realizou com a força e a impetuosidade do sublime amor de pai,
que era toda a sua vida.
No momento em que o fidalgo deitava Cecília quase
desmaiada sobre o regaço materno, o índio saltava no meio do vale; a pedra
girando sobre si, precipitada do alto da colina, enterrava-se profundamente no
chão.
Foi então que os outros espectadores desta cena,
paralisados pelo choque que haviam sofrido, lançaram um grito de terror,
pensando no perigo que já estava passado.
Uma larga esteira que descia da eminência até o
lugar onde Cecília estivera recostada, mostrava a linha que descrevera a pedra
na passagem, arrancando a relva e ferindo o chão. D. Antônio, ainda pálido e
trêmulo do perigo que correra Cecília, volvia os olhos daquela terra que se lhe
afigurava uma campa, para o selvagem que surgira, como um gênio benfazejo das
florestas do Brasil.
O fidalgo não sabia o que mais admirar, se a força
e heroísmo com que ele salvara sua filha, se o milagre de agilidade com que se
livrara a si próprio da morte.
Quanto ao sentimento que ditara esse proceder, D.
Antônio não se admirava; conhecia o caráter dos nossos selvagens, tão
injustamente caluniados pelos historiadores; sabia que fora da guerra e da
vingança eram generosos, capazes de uma ação grande, e de um estimulo nobre.
Por muito tempo reinou silêncio expressivo nesse
grupo, que se acabava de transformar de modo tão imprevisto.
D. Lauriana e Isabel de joelhos oravam a Deus,
rendendo-lhe graças; Cecília ainda assustada apoiava-se ao peito de seu pai e
beijava-lhe a mão com ternura; o índio humilde e submisso fitava um olhar
profundo de admiração sobre a moça que tinha salvado.
Por fim D. Antônio passando o braço esquerdo pela
cintura de sua filha, caminhou para o selvagem e estendeu-lhe a mão com gesto
nobre e afável; o índio curvou-se e beijou a mão do fidalgo.
—De que nação és? perguntou-lhe o cavalheiro em
guarani.
—Goitacá, respondeu o selvagem erguendo a cabeça
com altivez.
—Como te chamas?
—Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo.
—Eu, sou um fidalgo português, um branco inimigo de
tua raça, conquistador de tua terra; mas tu salvaste minha filha; ofereço-te a
minha amizade.
—Peri aceita; tu já eras amigo.
—Como assim? perguntou D. Antônio admirado.
—Ouve.
O índio começou, na sua linguagem tão rica e
poética, com a doce pronúncia que parecia ter aprendido das auras da sua terra
ou das aves das florestas virgens, esta simples narração:
"Era o tempo das árvores de ouro.
"A terra cobriu o corpo de Ararê, e as suas
armas; menos o seu arco de guerra.
"Peri chamou os guerreiros de sua nação e
disse: `Pai morreu; aquele que for o mais forte entre todos, terá o arco de
Ararê. Guerra!' "Assim falou Peri; os guerreiros responderam: `Guerra!'
"Enquanto o sol alumiou a terra, caminhamos;
quando a lua subiu ao céu, chegamos. Combatemos como Goitacás. Toda a noite foi
uma guerra. Houve sangue, houve fogo.
"Quando Peri abaixou o arco de Ararê, não
havia na taba dos brancos uma cabana em pé, um homem vivo; tudo era cinza.
"Veio o dia e alumiou o campo; veio o vento e
levou a cinza.
"Peri tinha vencido; era o primeiro de sua
tribo, e o mais forte de todos os guerreiros.
"Sua mãe chegou e disse:
`Peri, chefe dos Goitacás, filho de Ararê, tu és
grande, tu és forte como teu pai; tua mãe te ama'.
"Os guerreiros chegaram e disseram:
`Peri, chefe dos Goitacás, filho de Ararê, tu és o
mais valente da tribo e o mais temido do inimigo; os guerreiros te obedecem'.
"As mulheres chegaram e disseram:
`Peri, primeiro de todos, tu és belo como o sol, e
flexível como a cana selvagem que te deu o nome; as mulheres são tuas
escravas'.
"Peri ouviu e não respondeu; nem a voz de sua
mãe, nem o canto dos guerreiros, nem o amor das mulheres, o fez sorrir.
"Na casa da cruz, no meio do fogo, Peri tinha
visto a senhora dos brancos; era alva como a filha da lua; era bela como a
garça do rio.
"Tinha a cor do céu nos olhos; a cor do sol
nos cabelos; estava vestida de nuvens, com um cinto de estrelas e uma pluma de luz.
"O fogo passou; a casa da cruz caiu.
"De noite Peri teve um sonho; a senhora
apareceu; estava triste e falou assim:
`Peri, guerreiro livre, tu és meu escravo; tu me
seguirás por toda a parte, como a estrela grande acompanha o dia'.
"A lua tinha voltado o seu arco vermelho,
quando tornamos da guerra; todas as noites Peri via a senhora na sua nuvem; ela
não tocava a terra, e Peri não podia subir ao céu.
"O cajueiro quando perde a sua folha parece
morto; não tem flor, nem sombra; chora umas lágrimas doces como o mel dos seus
frutos.
"Assim Peri ficou triste.
"A senhora não apareceu mais; e Peri via
sempre a senhora nos seus olhos.
"As árvores ficaram verdes; os passarinhos
fizeram seus ninhos; o sabiá cantou; tudo ria: o filho de Ararê lembrou-se de
seu pai.
"Veio o tempo da guerra.
"Partimos; andamos; chegamos ao grande rio. Os
guerreiros armaram as redes; as mulheres fizeram fogo; Peri olhou o sol.
"Viu passar o gavião.
"Se Peri fosse o gavião, ia ver a senhora no
céu.
"Viu passar o vento.
"Se Peri fosse o vento, carregava a senhora no
ar.
"Viu passar a sombra.
"Se Peri fosse a sombra, acompanhava a senhora
de noite.
"Os passarinhos dormiram três vezes.
"Sua mãe veio e disse:
`Peri, filho de Ararê, guerreiro branco salvou tua
mãe; virgem branca também'.
"Peri tomou suas armas e partiu; ia ver o
guerreiro branco para ser amigo; e a filha da senhora para ser escravo.
"O sol chegava ao meio do céu e Peri chegava
também ao rio; avistou longe a tua casa grande.
"A virgem branca apareceu.
"Era a senhora que Peri tinha visto; não
estava triste como da primeira vez; estava alegre; tinha deixado lá a nuvem e
as estrelas.
"Peri disse:
`A senhora desceu do céu, porque a lua sua mãe
deixou; Peri, filho do sol, acompanhará a senhora na terra'.
"Os olhos estavam na senhora; e o ouvido no
coração de Peri. A pedra estalou e quis fazer mal à senhora.
"A senhora tinha salvado a mãe de Peri, Peri
não quis que a senhora ficasse triste, e voltasse ao céu.
"Guerreiro branco, Peri, primeiro de sua
tribo, filho de Ararê, da nação Goitacá, forte na guerra, te oferece o seu
arco; tu és amigo
"O índio terminou aqui a sua narração.
Enquanto falava, um assomo de orgulho selvagem da
força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto.
Embora ignorante, filho das florestas, era um rei; tinha a realeza da força.
Apenas concluiu, a altivez do guerreiro
desapareceu; ficou tímido e modesto; já não era mais do que um bárbaro em face
de criaturas civilizadas, cuja superioridade de educação o seu instinto
reconhecia.
D. Antônio o ouvia sorrindo-se do seu estilo ora
figurado, ora tão singelo como as primeiras frases que balbucia a criança no
seio materno. O fidalgo traduzia da melhor maneira que podia essa linguagem
poética a Cecília, a qual já livre do susto queria por força, apesar do medo
que lhe causava o selvagem, saber o que ele dizia.
Compreenderam da história de Peri, que uma índia
salva havia dois dias por D. Antônio das mãos dos aventureiros e a quem Cecília
enchera de presentes de velórios azuis e escarlates, era a mãe do selvagem.
—Peri, disse o fidalgo, quando dois homens se
encontram e ficam amigos, o que está na casa do outro recebe a hospitalidade.
—É o costume que os velhos transmitiram aos moços
da tribo, e os pais aos filhos.
—Tu cearás conosco.
—Peri te obedece.
A tarde declinava; as primeiras estrelas luziam. A
família, acompanhada por Peri, dirigiu-se a casa, e subiu a esplanada.
D. Antônio entrou um momento e voltou trazendo uma
linda clavina tauxiada com o brasão de armas do fidalgo, a mesma que já vimos
nas mãos do índio.
—É a minha companheira fiel, a minha arma de
guerra; nunca mentiu fogo, nunca errou o alvo: a sua bala é como a seta do teu
arco. Peri, tu me deste minha filha; minha filha te dá a arma de guerra de seu
pai.
O índio recebeu o presente com uma efusão de
profundo reconhecimento.
—Esta arma que vem da senhora, e Peri, farão um só
corpo.
A campa do terreiro tocou anunciando a ceia.
O índio vexado no meio dos usos estranhos, tomado
de um santo respeito, não sabia como se ater.
Apesar de todos os esforços do fidalgo, que sentia
um prazer indizível em mostrar-lhe quanto apreciava a sua ação e remoçara com a
alegria de ver sua filha viva, o selvagem não tocou em um só manjar.
Por fim D. Antônio de Mariz conhecendo que toda a
insistência era inútil, encheu duas taças de vinho das Canárias.
—Peri, disse o fidalgo, há um costume entre os
brancos, de um homem beber por aquele que é amigo. O vinho é o licor que dá a
força, a coragem, a alegria. Beber por um amigo é uma maneira de dizer que o
amigo é e será forte, corajoso e feliz. Eu bebo pelo filho de Ararê.
—E Peri bebe por ti, porque és pai da senhora; bebe
por ti, porque salvaste sua mãe; bebe por ti, porque és guerreiro.
A cada palavra o índio tocou a taça e bebeu um
trago de vinho, sem fazer o menor gesto de desgosto; ele beberia veneno à saúde
do pai de Cecília.
III
GÊNIO DO
MAL
Peri voltou por diferentes vezes à casa de D.
Antônio de Mariz.
O velho fidalgo o recebia cordialmente e o tratava
como amigo; seu caráter nobre simpatizava com aquela natureza inculta.
Cecília porém, apesar do reconhecimento que lhe
inspirava a sua dedicação por ela, não podia vencer o receio que sentia vendo
um desses selvagens de quem sua mãe lhe fazia tão feia descrição, e de cujo
nome se servia para meter-lhe medo quando criança.
Em Isabel o índio fizera a mesma impressão que lhe
causava sempre a presença de um homem daquela cor; lembrara-se de sua mãe
infeliz, da raça de que provinha, e da causa do desdém com que era geralmente
tratada.
Quanto a D. Lauriana, via em Peri um cão fiel que
tinha um momento prestado um serviço à família e a quem se pagava com um naco
de pão. Devemos porém dizer que não era por mau coração que ela pensava assim,
mas por prejuízos de educação.
Quinze dias depois que Cecília fora salva por Peri,
uma manhã Aires Gomes atravessou a esplanada e foi ter com D. Antônio que
estava no seu gabinete.
—Sr. D. Antônio, esse estrangeiro a quem destes
hospedagem há duas semanas, pede-vos audiência. —Manda-o vir.
Aires Gomes introduziu o estrangeiro. Era esse
mesmo Loredano que em se havia transformado o carmelita Fr. Ângelo di Luca.
—Que desejais, amigo, faltaram-vos em alguma coisa?
—Ao contrário, sr. cavalheiro; acho-me tão bem, que
o meu desejo seria ficar.
—E quem vos impede? A nossa hospitalidade assim
como não pergunta o nome do que chega, também não lhe inquire o tempo de
partida.
—A vossa hospitalidade é de um verdadeiro fidalgo,
sr. cavalheiro; mas não é dela que desejo falar.
—Explicai-vos então.
—Um homem da vossa banda vai ao Rio de Janeiro,
onde tem mulher e filhos que lhe chegaram do Reino.
—Sim; já ontem me falou disso.
—Falta-vos pois um homem; eu posso ser este homem,
se não achais nisso inconveniente.
—Nenhum absolutamente.
—Nesse caso posso considerar-me como admitido?
—Atendei; Aires Gomes vai dizer-vos as condições a
que vos sujeitais; se estiverdes por elas, é negócio decidido.
—Creio que já conheço essas condições, disse o
italiano sorrindo.
—Ide sempre.
O fidalgo chamou o seu escudeiro e incumbiu-o de
pôr o italiano ao fato das condições do bando de aventureiros que tinha ao seu
serviço. Era este um dos privilégios de Aires Gomes, que o desempenhava com
toda a gravidade de que era suscetível a sua personagem um pouco grotesca.
Chegados à esplanada, o escudeiro perfilou-se e
proferiu o seguinte intróito:
—Lei, estatuto, regimento, disciplina ou como
melhor nome haja, a que se sujeita todo aquele que entrar à soldada na banda do
Sr. cavalheiro D. Antônio de Mariz, fidalgo cota d'armas, do tronco dos Marizes
em linha reta.
Aqui o escudeiro molhou a palavra e prosseguiu:
—Primo: Obedecer sem replicar. Quem o contrário
fizer, pereça morte natural.
O italiano fez um gesto de aprovação.
—Isto quer dizer, misser italiano, que se um dia o
Sr. D. Antônio vos mandar saltar deste rochedo embaixo, fazei a vossa oração e
saltai; porque de uma ou outra maneira, pelos pés ou pela cabeça, fé de Aires
Gomes, lá ireis.
Loredano sorriu.
—Secundo: Contentar-se com o que há. Quem o
contrário...
—Com o vosso respeito, Sr. Aires Gomes, não vos
deis a um trabalho inútil; sei tudo o que ides rezar-me, e por isso
dispenso-vos de continuar.
—Que quereis dizer?
—Quero dizer que todos os camaradas, cada um por
sua vez, já me descreveram a cerimônia que ora pondes em prática.
—Não obstante...
—Escusado é. Sei tudo, aceito tudo, juro tudo que
quiserdes.
E dizendo isto o italiano fez uma viravolta, e
dirigiu-se para o gabinete de D. Antônio enquanto o escudeiro, zangado por não
ter levado ao fim a cena de iniciação a que dava tão grande valor, resmungava:
—Não pode ser boa casta de gente!
Loredano apresentou-se a D. Antônio.
—Então? disse o fidalgo.
—Aceito.
—Bem; agora só falta uma coisa, que Aires Gomes não
vos disse naturalmente.
—Qual, sr. cavalheiro?
—É que D. Antônio de Mariz, disse o fidalgo
pousando a mão sobre o ombro do italiano, é um chefe rigoroso para seus homens,
porém um amigo leal para seus companheiros. Sou aqui o senhor da casa e o pai
de toda a família a que atualmente pertenceis.
O italiano curvou-se para agradecer, mas sobretudo
para esconder a alteração da fisionomia.
Ouvindo as palavras nobres do fidalgo, sentiu-se
perturbado: porque já então lhe fermentava no cérebro o plano da trama que ia
urdir, e que vimos revelar-se um ano depois.
Saindo do lugar em que deixara oculto o seu
tesouro, o aventureiro caminhou direito à casa de D. Antônio de Mariz e pediu a
hospitalidade que a ninguém se recusava: sua intenção era passar-se ao Rio de
Janeiro, onde concertaria os meios de aproveitar a fortuna.
Duas idéias se tinham apresentado ao seu espírito
no momento em que se vira possuidor do roteiro de Robério Dias.
Iria à Europa vender o segredo a Filipe 11 ou a
qualquer outro soberano de uma nação poderosa e inimiga da Espanha?
Exploraria por sua conta com alguns aventureiros
que tomasse ao seu serviço esse tesouro fabuloso que devia elevá-lo ao fastígio
da grandeza?
Esta última idéia lhe sorria mais; entretanto não
tomou nenhuma resolução definitiva; posto o seu segredo em lugar seguro,
aliviado desse peso que o fazia estremecer a cada momento, o italiano resolveu,
como dissemos, ir pedir hospitalidade a D. Antônio de Mariz.
Aí formularia o seu plano, traçaria o caminho que
devia seguir, e então voltaria a procurar o papel que dormia no seio da terra,
e com ele marcharia à riqueza, à fortuna, ao poder.
Chegado à casa do fidalgo, o ex-carmelita com o seu
espírito de observação estudou o terreno e achou-o favorável à realização de
uma idéia que começou logo a germinar no seu espírito até que tomou as
proporções de um projeto.
Homens mercenários que vendem a sua liberdade,
consciência e vida por um salário, não têm dedicação verdadeira senão a um
objeto, o dinheiro; seu senhor, seu chefe e seu amigo é o que mais lhes paga.
Fr. Ângelo conhecia o coração humano, e por isso apenas iniciado no regimento
da banda, avaliou do caráter dos aventureiros.
—Esses homens me serviriam perfeitamente, disse ele
consigo.
No meio dessas reflexões um fato veio produzir
completa revolução nas suas idéias.
Viu Cecília.
A imagem dessa bela menina, casta e inocente,
produziu naquela organização ardente e por muito tempo comprimida o mesmo
efeito da faisca sobre a pólvora.
Toda a continência de sua vida monástica, todos os
desejos violentos que o hábito tinha selado como uma crosta de gelo, todo esse
sangue vigoroso e forte da mocidade, passada em vigílias e abstinências,
refluíram ao coração e o sufocaram um momento.
Depois um êxtase de voluptuosidade imensa embebeu
essa alma velha pela corrupção e pelo crime, mas virgem para o amor. O seu
coração revelava-se com toda a veemência da vontade audaz, que era o móvel de
sua vida.
Sentiu que essa mulher era tão necessária à sua
existência, como o tesouro que sonhava; ser rico para ela, possuí-la para gozar
a riqueza, foi desde então o seu único pensamento, a sua idéia dominante.
Um dos aventureiros deixava a casa; Loredano
solicitou o seu lagar e obteve-o como acabamos de ver; o seu plano estava traçado.
Qual era, já o sabemos pelas cenas passadas; o
italiano contava tornar-se senhor da banda, apoderar-se de Cecília, ir às minas
encantadas, carregar tanta prata quanta pudesse levar, dirigir-se à Bahia,
assaltar uma nau espanhola, tomá-la de abordagem, e fazer-se de vela para a
Europa.
Aí armava navios de corso, voltava ao Brasil,
explorava o seu tesouro, tirava dele riquezas imensas e... E o mundo abria-se
diante de seus olhos, cheio de esperança, de futuro e felicidade.
Durante um ano trabalhou nessa empresa com uma
sagacidade e inteligência superior; ganhara os dois homens influentes da banda,
Rui Soeiro e Bento Simões; por meio deles preparava o desenlace final.
Ignorado pelos outros ele dirigia essa conspiração
que lavrava surdamente; só havia em toda a banda duas pessoas que o podiam
perder. Ora, Loredano não era homem que deixasse de prever a eventualidade de
uma traição, e que entregasse aos seus dois cúmplices uma arma com que pudessem
feri-lo; daí a lembrança desse testamento que entregara a D. Antônio de Mariz.
Somente nesse papel, em vez de ter revelado o seu
plano, como o italiano dissera a Rui Soeiro ele havia apenas indicado a traição
dos dois aventureiros, declarando-se seduzido por eles; o frade mentia pois até
na hora extrema em que o papel devia falar.
A confiança que tinha, e com razão, no caráter de
D. Antônio, tranqüilizava-o completamente; sabia que em caso algum o fidalgo
abriria um testamento que lhe fora dado em depósito.
Eis como Fr. Ângelo di Luca achava-se sob o seu novo
nome de Loredano, pertencendo à casa de D. Antônio de Mariz e preparando-se
para realizar afinal o seu pensamento de todos os instantes.
Um ano havia que esperava, e como ele dizia, estava
cansado: resolvera dar enfim o golpe; e para isso, depois de haver esmagado os
dois cúmplices com a sua ameaça, depois de os haver reduzido a autômatos
obedecendo ao seu gesto, entendeu que seria conveniente ao mesmo tempo animar
esses manequins com algum sentimento, que lhes desse o atrevimento, a audácia e
a força necessária para se lançarem na voragem e não trepidarem diante de
nenhum obstáculo.
Este sentimento foi a ambição.
À vista do roteiro era impossível que não sentissem
a febre da riqueza, a auri sacra fames que se havia apoderado dele próprio, no
momento em que vira abrir-se diante de seus olhos um mar de prata fundida em
que os seus lábios podiam matar a sede ardente que o devorava.
O efeito não desmentiu a sua previsão; lendo o
rótulo, cada um dos aventureiros ficara eletrizado; para tocar aquele abismo insondável
de riquezas, nem um deles hesitaria em passar sobre o corpo de seu amigo, ou
mesmo sobre as cinzas de uma casa ou a ruína de uma família.
Infelizmente aquela voz inesperada, saída do seio
da terra, viera modificar a situação.
Mas não antecipemos; por ora ainda estamos em 1603,
um ano antes daquela cena, e ainda nos falta contar certas circunstâncias que
serviram para o seguimento desta verídica história.
IV
CECI
Poucas horas depois que Loredano fora admitido na
casa de D. Antônio de Mariz, Cecília chegando à janela do seu quarto viu do
lado oposto do rochedo Peri, que a olhava com uma admiração ardente.
O pobre índio tímido e esquivo, não se animava a
chegar-se à casa, senão quando via de longe a D. Antônio de Mariz passeando
sobre a esplanada; adivinhava que naquela habitação só o coração nobre do velho
fidalgo sentia por ele alguma estima.
Havia quatro dias que o selvagem não aparecia; D.
Antônio supunha já que ele tivesse voltado com sua tribo para os lugares onde
vivia, e que só deixara para fazer a guerra aos índios e portugueses.
A nação Goitacá dominava todo o território entre o
Cabo de São Tomé e o Cabo Frio; era um povo guerreiro, valente e destemido, que
por diversas vezes fizera sentir aos conquistadores a força de suas armas.
Tinha arrasado completamente a colônia da Paraíba
fundada por Pero de Góis; e depois de um assédio de seis meses conseguira
destruir igualmente a colônia de Vitória, fundada no espírito Santo por Vasco
Fernandes Coutinho. Voltemos dessa pequena digressão histórica ao nosso herói.
O primeiro movimento de Cecília, vendo o índio fora
de susto; fugira insensivelmente da janela. Mas o seu bom coração irritou-se
contra esse receio, e disse-lhe que ela não tinha que temer do homem que lhe
salvara a vida. Lembrou-se que era ser má e ingrata pagar a dedicação que o
índio lhe mostrava deixando-lhe ver a repugnância que lhe inspirava. Venceu
pois a timidez, e assentou de fazer um sacrifício ao reconhecimento e gratidão
que devia ao selvagem. Chegou à janela; fez com a mão alva e graciosa um gesto
dizendo a Peri que se aproximasse.
O índio não se contendo de alegria, correu para a
casa, enquanto Cecília ia ter com seu pai, e dizia-lhe:
— Vinde ver Peri, que chega, meu pai.
— Ah! inda bem, respondeu o fidalgo.
E acompanhando sua filha, D. Antônio foi ao
encontro do índio que já subia a esplanada.
Peri trazia um pequeno cofo, tecido com
extraordinária delicadeza, feito de palha muito alva, todo rendado; por entre o
crivo que formavam os fios, ouviam-se uns chilidos fracos e um rumor ligeiro
que faziam os pequenos habitantes desse ninho gracioso.
O índio ajoelhou aos pés de Cecília; sem animar-se
a levantar os olhos para ela, apresentou-lhe o cabaz de palha: abrindo a tampa,
a menina assustou-se, mas sorriu; um enxame de beija-flores esvoaçava dentro;
alguns conseguiram escapar-se.
Destes um veio aninhar-se no seu seio, o outro
começou a voltejar em torno de sua cabeça loura como se tomasse a sua boquinha
rosada por um fruto.
A menina admirava essas avezinhas brilhantes, umas
escarlates, outras azuis e verdes; mas todas de reflexos dourados, e formas
mimosas e delicadas!
Vendo-se esses íris animados acredita-se que a
natureza os criou com um sorriso, para viverem de pólen e de mel, e para
brilharem no ar como as flores na terra e as estrelas no céu.
Quando Cecília se cansou de admirá-los, tomou-os um
por um, beijou-os, aqueceu-os no seio, e sentiu não ser uma flor bela e
perfumada para que eles a beijassem também, e esvoaçassem constantemente em
torno dela.
Peri olhava e era feliz; pela primeira vez depois
que a salvara, tinha sabido fazer uma coisa, que trouxera um sorriso de prazer
aos lábios da senhora. Entretanto, apesar dessa felicidade que sentia
interiormente, era fácil de ver que o índio estava triste; ele chegou-se para
D. Antônio de Mariz e disse-lhe:
— Peri vai partir.
— Ah! disse o fidalgo, voltas aos teus campos?
— Sim: Peri volta à terra que cobre os ossos de
Ararê.
D. Antônio encheu o índio de presentes dados em seu
nome e em nome de sua filha.
— Perguntai a ele por que razão parte e nos deixa,
meu pai, disse Cecília.
O fidaldo traduziu a pergunta.
— Porque a senhora não precisa de Peri; e Peri deve
acompanhar sua mãe e seus irmãos.
— E se a pedra quiser fazer mal à senhora, quem a
defenderá? perguntou a menina sorrindo e fazendo alusão à narração do índio.
Ouvindo dos lábios de D. Antônio a pergunta, o
selvagem não soube o que responder, porque lhe lembrava um pensamento que já
tinha passado por seu espírito; temia que na sua ausência a menina corresse um
perigo e ele não estivesse junto dela para salvá-la.
— Se a senhora manda, disse enfim, Peri fica.
Cecília, apenas seu pai lhe traduziu a resposta do
índio, riu-se daquela cega obediência; mas era mulher; um átomo de vaidade
dormia no fundo do seu coração de moça.
Ver aquela alma selvagem, livre como as aves que
planavam no ar ou como os rios que corriam na várzea; aquela natureza forte e
vigorosa que fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como
a torrente que se precipita do alto da serra; prostrar-se a seus pés submissa,
vencida, escrava!...
Era preciso que não fosse mulher para não sentir o
orgulho de dominar essa organização e brincar com a força obrigando-a a
curvar-se diante do seu olhar.
As mulheres têm isso de particular; reconhecendo-se
fracas, a sua maior ambição é reinar pelo imã dessa
mesma fraqueza, sobre tudo o que é forte, grande e superior a elas: não amam a
inteligência, a coragem, o gênio, o poder, senão para vencê-los e subjugá-los.
Entretanto a mulher deixa-se bastantes vezes
dominar; mas e sempre pelo homem que, não lhe excitando a admiração, não irrita
a sua vaidade e não provoca por conseguinte essa luta da fraqueza contra a
força.
Cecília era uma menina ingênua e inocente, que nem
sequer tinha consciência do seu poder, e do encanto de sua casta beleza; mas
era filha de Eva, e não podia se eximir de um quase nada de vaidade.
— A senhora não quer que Peri parta, disse ela com
um arzinho de rainha, e fazendo um gesto com a cabeça.
O índio compreendeu perfeitamente o gesto.
— Peri fica.
— Vede, Cecília, replicou D. Antônio rindo: ele te
obedece!
Cecília sorriu.
— Minha filha te agradece o sacrifício, Peri,
continuou o fidalgo; mas nem ela nem eu queremos que abandones a tua tribo.
— A senhora mandou, respondeu o índio.
— Ela queria ver se tu lhe obedecias: conheceu a
tua dedicação, está satisfeita; consente que partas.
— Não!
— Mas os teus irmãos, tua mãe, tua vida livre?
— Peri é escravo da senhora.
— Mas Peri é um guerreiro e um chefe.
— A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como
Peri; mil arcos ligeiros como o vôo do gavião.
— Assim, decididamente queres ficar?
— Sim; e como tu não queres dar a Peri a tua
hospitalidade, uma árvore da floresta lhe servirá de abrigo.
— Tu me ofendes, Peri! exclamou o fidalgo; a minha
casa está aberta para todos, e sobretudo para ti que és amigo e salvaste minha
filha.
— Não, Peri não te ofende; mas sabe que tem a pele
cor de terra.
— E o coração de ouro.
Enquanto D. Antônio continuava a insistir com o
índio para que partisse, ouviu-se um canto monótono que saia da floresta.
Peri aplicou o ouvido; descendo à esplanada correu
na direção donde partia a voz, que cantava com a cadência triste e melancólica
particular aos índios, a seguinte endecha na língua dos Guaranis:
“A estrela brilhou; partimos com a tarde. A brisa
soprou; nos leva nas asas.
“A guerra nos trouxe; vencemos. A guerra acabou;
voltamos.
“Na guerra os guerreiros combatem; há sangue. Na
paz as mulheres trabalham; há vinho.
“A estrela brilhou; é hora de partir. A brisa
soprou; é tempo de andar.”
A pessoa que modulava esta canção selvagem era uma
índia já idosa; encostada a uma árvore da floresta ela vira por entre a
folhagem a cena que passava na esplanada.
Chegando-se a ela, Peri ficou triste e vexado.
— Mãe!... exclamou ele.
— Vem! disse a índia seguindo pela mata.
— Não!
— Nós partimos.
— Peri fica.
A índia fitou em seu filho um olhar de profunda
admiração.
— Teus irmãos partem!
O selvagem não respondeu.
— Tua mãe parte!
O mesmo silêncio.
— Teu campo te espera!
— Peri fica, mãe! disse ele com a voz comovida.
— Por quê?
— A senhora mandou.
A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença
irrevogável; sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de
Nossa Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado
em Cecília.
Sentiu que ia perder o filho, orgulho de sua
velhice, como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade. Uma lágrima deslizou
pela sua face cor de cobre.
— Mãe, toma o arco de Peri; enterra junto dos ossos
de seu pai: e queima a cabana de Ararê.
— Não; se algum dia Peri voltar, achará a cabana de
seu pai, e sua mãe para amá-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flores
leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu.
Peri abanou a cabeça com tristeza:
— Peri não voltará!
Sua mãe fez um gesto de espanto e desespero.
— O fruto que cai da árvore, não torna mais a ela;
a folha que se despega do ramo, murcha, seca e morre; o vento a leva. Peri é a
folha; tu és a árvore, mãe. Peri não voltará ao teu seio.
— A virgem branca salvou tua mãe; devia deixá-la
morrer, para não lhe roubar seu filho. Uma mãe sem seu filho é uma terra sem
água; queima e mata tudo que se chega a ela.
Estas palavras foram acompanhadas de um olhar de
ameaça, em que se revelava a ferocidade do tigre que defende os seus
cachorrinhos.
— Mãe, não ofende a senhora; Peri morreria, e na
última hora não se lembraria de ti.
Os dois ficaram algum tempo em silêncio.
— Tua mãe fica! disse a índia com um acento de
resolução.
— E quem será a mãe da tribo? Quem guardará a
cabana de Peri? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os
mais fortes? Quem dirá quantas vezes a nação Goitacá levou o fogo à taba dos brancos
e venceu os homens do raio? Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os
guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos?
Peri preferiu estas palavras com a exaltação, que
despertavam nele as reminiscências de sua vida selvagem; a índia ficou
pensativa e respondeu:
— Tua mãe volta; vai te esperar na porta da cabana,
à sombra do jambeiro; se a flor do jambo vier sem Peri, tua mãe não verá os
frutos da árvore.
A índia pousou as mãos sobre os ombros de seu
filho, e encostou a fronte na fronte dele; durante um momento as lágrimas que
saltavam dos olhos de ambos, se confundiram.
Depois ela afastou-se lentamente; Peri seguiu-a com
os olhos ate que desapareceu na floresta; esteve a correr, chamá-la e partir
com ela. Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecília que falava com seu
pai; ficou.
Nessa mesma noite construirá aquela pequena cabana
que se via na ponta do rochedo, e que ia ser o seu mundo.
Passaram três meses.
Cecília que um momento conseguira vencer a
repugnância que sentia pelo selvagem, quando lhe ordenara que ficasse, não se
lembrou da ingratidão que cometia e não disfarçou mais a sua antipatia.
Quando o índio chegava-se a ela, soltava um grito
de susto; ou fugia, ou ordenava-lhe que se retirasse; Peri que já falava e entendia
o português, afastava-se triste e humilde.
Entretanto a sua dedicação não se desmentia; ele
acompanhava a D. Antônio de Mariz nas suas excursões, ajudava-o com a sua
experiência, guiava-o aos lugares onde havia terrenos auríferos ou pedras
preciosas. De volta destas expedições corria todo o dia os campos para procurar
um perfume, uma flor, um pássaro, que entregava ao fidalgo e pedia-lhe desse a
Ceci, pois já não se animava a chegar-se para ela, com receio de desgostá-la.
Ceci era o nome que o índio dava à sua senhora,
depois que lhe tinham ensinado que ela se chamava Cecília.
Um dia a menina ouvindo chamar-se assim por ele e
achando um pretexto para zangar-se contra o escravo humilde que obedecia ao seu
menor gesto, repreendeu-o com aspereza:
— Por que me chamas tu Ceci?
O índio sorriu tristemente.
— Não sabes dizer Cecília?
Peri pronunciou claramente o nome da moça com todas
as sílabas; isto era tanto mais admirável quanto a sua língua não conhecia
quatro letras, das quais uma era o L.
— Mas então, disse a menina com alguma curiosidade,
se tu sabes o meu nome, por que não o dizes sempre?
— Porque Ceci é o nome que Peri tem dentro da alma.
— Ah! é um nome de tua língua?
— Sim.
— O que quer dizer?
— O que Peri sente.
— Mas em português?
— Senhora não deve saber.
A menina bateu com a ponta do pé no chão e fez um
gesto de impaciência.
D. Antônio passava; Cecília correu ao seu encontro:
— Meu pai, dizei-me o que significa Ceci nessa
língua selvagem que falais.
— Ceci?... disse o fidalgo procurando lembrar-se.
Sim! É um verbo que significa doer, magoar.
A menina sentiu um remorso; reconheceu a sua
ingratidão; e lembrando-se do que devia ao selvagem e da maneira por que o
tratava, achou-se má, egoísta e cruel.
— Que doce palavra! disse ela a seu pai; parece um
canto de pássaro.
Desde este dia foi boa para Peri; pouco a pouco
perdeu o susto; começou a compreender essa alma inculta; viu nele um escravo,
depois um amigo fiel e dedicado.
— Chama-me Ceci, dizia às vezes ao índio sorrindo-se;
este doce nome me lembrará que fui má para ti; e me ensinará a ser boa.
V
VILANIA
E tempo de continuar esta narração interrompida
pela necessidade de contar alguns fatos anteriores.
Voltemos pois ao lagar em que se achavam Loredano e
seus companheiros tomados de medo pela exclamação inesperada que soara no meio
deles.
Os dois cúmplices, supersticiosos, como eram as
pessoas de baixa classe naquele tempo, atribuíam o fato a uma causa
sobrenatural, e viam nele um aviso do céu. Loredano porém não era homem que
cedesse a semelhante fraqueza; tinha ouvido uma voz; e essa voz embora surda e
cava devia ser de um homem.
Quem ele era? Seria D. Antônio de Mariz? Seria
algum dos aventureiros? Não podia saber; o seu espírito perdia-se num caos de
dúvidas e incertezas.
Fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões para que
o seguissem; e apertando ao seio o fatal pergaminho, causa de tantos crimes,
lançou-se pelo campo. Teriam feito umas cinqüenta braças do caminho, quando
viram cortar pela vereda que eles seguiam um cavalheiro que o italiano
reconheceu imediatamente; era Álvaro.
O moço procurava a solidão para pensar em Cecília,
mas sobretudo para refletir num fato que se tinha dado essa manhã e que ele não
podia compreender.
Vira de longe a janela de Cecília abrir-se, as duas
moças aparecerem, trocarem um olhar; depois Isabel cair de joelhos aos pés de
sua prima. Se ele tivesse ouvido o que já sabemos, teria perfeitamente
compreendido; mas longe como estava, apenas podia ver, sem ser visto das duas moças.
Loredano, vendo o cavalheiro passar, voltou-se para
os seus companheiros.
— Ei-lo!... disse com um olhar que brilhou de
alegria. Imbecis! que atribuís ao céu aquilo que não sabeis explicar!...
E acompanhou estas palavras com um sorriso de
profundo desprezo.
— Esperai-me aqui.
— O que ides fazer? perguntou Rui Soeiro.
O italiano se voltou surpreso; depois levantou os
ombros, como se a pergunta do seu companheiro não merecesse resposta.
Rui Soeiro, que conhecia o caráter desse homem,
entendeu o gesto; um resquício de generosidade que ainda havia no seu coração
corrompido, o fez segurar o braço do seu companheiro para retê-lo.
— Quereis que fale?... disse Loredano.
— E mais um crime inútil! acudiu Bento Simões.
O italiano fitou nele os olhos, frios como o
contato do aço polido:
— Há um mais útil, amigo Simões; cuidaremos dele a
seu tempo.
E sem esperar a réplica, meteu-se pelas moitas que
cobriam o campo nesse lugar, e seguiu Álvaro que continuava lentamente o seu
caminho.
O moço, apesar de preocupado, tinha o hábito da
vida arriscada dos nossos caçadores do interior, obrigados a romper as matas
virgens
Aí o homem vê-se cercado de perigos por todos os
lados; da frente, das costas, à esquerda, à direita, do ar, da terra, pode
surgir de repente um inimigo oculto pela folhagem, que se aproxima sem ser
visto
A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe
distinguir entre os rumores vagos da floresta, aquele que é produzido por uma
ação mais forte do que a do vento; assim como a rapidez e certeza da vista que
vai perscrutar as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das árvores.
Álvaro tinha esse dom dos caçadores hábeis; apenas
o vento lhe trouxe um estalido de folhas secas pisadas, levantou a cabeça, e
circulou o campo com os olhos; depois por prudência encostou-se ao grosso
tronco de uma árvore isolada, e cruzando os braços sobre a clavina, esperou.
Nessa posição o inimigo, qualquer que ele fosse,
fera, réptil ou homem, não o podia atacar senão de face; ele o veria
aproximar-se e o receberia.
Loredano agachado entre as folhas tinha notado este
movimento e hesitara; mas o seu segredo estava comprometido, a suspeita que
concebera de que Álvaro fora quem há pouco o ameaçara com a palavra traidores,
acabava de confirmar-se no seu espírito, vendo a prudência com que o moço
evitava uma surpresa.
O cavalheiro era um inimigo terrível, e jogava
todas as armas com uma destreza admirável.
A lâmina de sua espada como uma cobra elástica,
flexível, rápida, volteava sibilando e atirava o bote com a velocidade e a
certeza da cascavel. O arremesso do seu punhal, vibrado pelo braço ligeiro e
auxiliado pela agilidade do corpo, era como raio; listrava no ar uma cruz de
fogo, e caia sobre o peito do inimigo e o fulminava.
A bala de sua clavina era uma mensageira fiel que
ia buscar a ave que pairava no ar, ou a folha que o vento agitava. Muitas vezes
na esplanada da casa, o italiano vira Álvaro, depois de ter feito milagres de
pontaria, quebrar no ar as setas que Peri atirava de propósito para lhe servirem
de alvo.
Cecília aplaudia batendo as mãos; Peri ficava
contente por ver a senhora alegre; e embora para ele que fazia muito mais,
aquilo fosse uma coisa vulgar, deixava que o moço conservasse a superioridade,
e fosse por todos admirado.
Mas Álvaro sabia que só um homem podia lutar com
ele, e levar-lhe vantagem em qualquer arma, e esse era Peri; porque juntava à
arte a superioridade do selvagem habituado desde o berço à guerra constante que
é a sua vida.
Loredano tinha pois razão de hesitar em atacar de
frente um inimigo desta força; mas a necessidade urgia, e o italiano era
corajoso e ágil também. Endireitou para o cavalheiro, resolvido a morrer ou a
salvar a sua vida e a sua fortuna.
Álvaro vendo-o aproximar-se rugou o sobrolho;
depois do que se tinha passado na véspera e nessa manhã, odiava aquele homem ou
antes, desprezava-o.
— Aposto que tivestes o mesmo pensamento que eu,
sr. cavalheiro? disse o aventureiro, quando chegou a três passos de distancia.
— Não sei o que pretendeis dizer, replicou o moço
secamente.
— Pretendo, sr. cavalheiro, que dois homens que se
odeiam acham-se melhor num lagar solitário, do que no meio dos companheiros.
— Não é ódio que me inspirais, é deprezo; é mais do
que desprezo, é asco. O réptil que se roja pelo chão causa-me menos repugnância
do que o vosso aspecto.
— Não disputemos sobre palavras, sr. cavalheiro;
tudo vem dar no mesmo; eu vos odeio, vós me desprezais; podia dizer-vos outro
tanto.
— Miserável!... exclamou o cavalheiro levando a mão
à guarda da espada.
O movimento foi tão rápido, que a palavra soou ao
mesmo tempo que a ponta da lamina de aço batendo na face do italiano.
Loredano quis evitar o insulto, mas não era tempo;
seus olhos injetaram-se de sangue:
— Sr. cavalheiro, deveis-me satisfação do insulto
que me acabais de fazer.
— É justo, respondeu Álvaro com dignidade; mas não
à espada que é a arma do cavalheiro; tirai o vosso punhal de bandido, e
defendei-vos.
Proferindo estas palavras, o moço embainhou a
espada com toda a calma, segurou-a à cinta para não embaraçar-lhe os movimentos
e sacou o seu punhal, excelente folha de Damasco.
Os dois inimigos marcharam um para o outro, e
lançaram-se; o italiano era ágil e forte, e defendia-se com suma destreza; por
duas vezes já, o punhal de Álvaro, roçando-lhe o pescoço, tinha cortado o talho
de seu gibão de belbute.
De repente Loredano, fincando os pés, deu um pulo
para trás, e ergueu a mão esquerda em sinal de trégua.
— Estais satisfeito? perguntou Álvaro.
— Não, sr. cavalheiro; mas penso que em vez de nos
estarmos aqui a fatigar inutilmente, melhor seria tomarmos um meio mais
expedito.
— Escolhei o que quiserdes, menos a espada; o mais
me é indiferente.
— Outra coisa ainda: se nos batermos aqui, podemos
incomodar-nos reciprocamente; porque pretendo matar-vos, e creio que o mesmo
desejo tendes a meu respeito. Ora é preciso que desapareça o que ficar e o
outro não leve um vestígio que o possa denunciar.
— Que quereis fazer neste caso?
— O rio está aqui perto, tendes a vossa clavina;
colocar-nos-emos cada um sobre uma ponta do rochedo; aquele que cair morto ou
simplesmente ferido, pertencerá ao rio e à cachoeira; não incomodará o outro.
— Tendes razão, é melhor assim; eu me envergonharia
se D. Antônio de Mariz soubesse que me bati com um homem da vossa qualidade.
— Sigamos, sr. cavalheiro; nós nos odiamos bastante
para não gastarmos tempo em palavras.
Ambos tomaram na direção do rio, cujo estrépito
ouvia-se distintamente.
Álvaro, valente e corajoso, desprezava muito o seu
inimigo para ter o menor receio dele; demais a sua alma nobre e leal, incapaz
da mais pequena vilania, não pensava na traição. Nunca podia lembrar-lhe que um
homem que o viera provocar e ia medir-se com ele num combate franco, levasse a
infâmia a ponto de querer feri-lo pelas costas.
Assim, continuou a caminhar, quando o italiano,
deixando cair de propósito a cinta da espada, parou um instante para apanhá-la
e prendê-la de novo.
O que passava então no seu espírito não estava de
acordo com as idéias nobres do cavalheiro; vendo o moço adiantar-se, disse
consigo:
— Preciso da vida desse homem, eu a tenho! Seria
uma loucura deixá-la escapar, e pôr a minha em risco. Um duelo neste deserto,
sem testemunhas, é um combate em que a vitória pertence ao mais esperto.
Dizendo isto o italiano ia armando a sua clavina
com toda a cautela, e seguia de longe a Álvaro, a fim de que o ranger do ferro
ou o silêncio de suas pisadas não excitassem a atenção do moço.
Álvaro caminhava tranqüilamente; seu pensamento
estava bem longe dele, e esvoaçava em torno da imagem de Cecília, junto da qual
via os grandes olhos negros e aveludados de Isabel embebidos numa languidez
melancólica; era a primeira vez que aquele rosto moreno e aquela beleza ardente
e voluptuosa se viera confundir em sonhos com o anjo louro dos seus amores.
Donde provinha isto? O moço não sabia explicar; mas
um quer que seja, como um pressentimento, lhe dizia que naquela cena da janela
havia entre as duas moças um segredo, uma confidência, uma revelação, e que
esse segredo era ele.
Assim, quando a morte se aproximava, quando já o
bafejava e ia tocá-lo, ele descuidoso e pensativo repassava no pensamento
idéias de amor, e alimentava-se de esperanças. Não se lembrava de morrer; tinha
consciência de si e fé em Deus; mas se por acaso uma fatalidade caísse sobre
ele, consolava-o a idéia de que Cecília, ofendida, lhe perdoaria um resto de
ressentimento que talvez conservasse.
Nisto meteu a mão no seio do gibão e tirou o jasmim
que a moça lhe dera, e que já tinha murchado ao contato dos seus lábios
ardentes; ia beijá-lo ainda uma vez, quando lembrou-se que o italiano podia
vê-lo.
Mas não ouviu os passos do aventureiro; a primeira
idéia que lhe veio foi que ele tinha fugido; e como a cobardia para as almas
grandes se associa à baixeza, lembrou-se de uma traição.
Quis voltar-se, e entretanto não o fez. Mostrar que
tinha medo daquele miserável revoltava os seus brios de cavalheiro; ergueu a
cabeça com altivez e seguiu.
Mal sabia ele que nesse momento o fecho da clavina
movido por um dedo seguro caia, e que a bala ia partir guiada pelo olhar
certeiro do italiano.
VI
NOBREZA
Álvaro ouviu um sibilo agudo.
A bala rogando pela aba rebatida de seu chapéu de
feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o ombro.
O moço voltou-se calmo, sereno, impassível; nem um
músculo de seu rosto agitou-se; apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava
o lábio superior, sombreado pelo bigode negro.
O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos
causou-lhe uma surpresa extraordinária: não esperava decerto ver o que se
passava a dez passos dele.
Peri mostrando nos movimentos toda a força muscular
de sua organização de aço, com a mão esquerda segura à nuca de Loredano,
curvava-o sob a pressão violenta, e obrigava-o a ajoelhar.
O italiano lívido, com o rosto contraído e os olhos
imensamente dilatados, tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante.
O índio arrancou-a, e sacando a longa faca,
levantou o braço para cravá-la no alto da cabeça do italiano.
Mas Álvaro tinha-se adiantado e aparou o golpe;
depois estendeu a mão ao índio
— Solta este miserável, Peri!
— Não!
— A vida deste homem me pertence; atirou sobre mim;
é a minha vez de atirar sobre ele.
Álvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras
armava a clavina, e apoiava a boca na fronte do italiano.
— Ides morrer. Fazei a vossa oração.
Peri abaixou a faca; recuou um passo, e esperou.
O italiano não respondeu; a sua oração foi uma
blasfêmia horrível e satânica; as palpitações violentas do coração batiam de
encontro ao pergaminho que tinha no seio, e lembravam-lhe o seu tesouro que ia
talvez cair nas mãos de Álvaro e dar-lhe a riqueza de que não pudera gozar.
Entretanto, na baixeza dessa alma havia ainda
alguma altivez, o orgulho do crime; não suplicou, não disse uma palavra;
sentindo o contato frio do ferro sobre a fronte, fechou os olhos e julgou-se
morto.
Álvaro olhou-o um instante, e abaixou a clavina:
— Tu és indigno de morrer à mão de um homem, e por
uma arma de guerra; pertences ao pelourinho e ao carrasco. Seria um roubo feito
à justiça de Deus.
Loredano abriu os olhos; seu rosto iluminou-se com
um raio de esperança.
— Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D.
Antônio de Mariz, e nunca mais porás o pé neste sertão; por tal preço tens a
vida salva.
— Juro! exclamou o italiano.
O moço tirou o colar que deva três voltas sobre os
ombros, e apresentou a Loredano a cruz vermelha do Cristo que lhe pendia do
peito; o aventureiro estendeu a mão, e repetiu o juramento.
— Ergue-te; e tira-te dos meus olhos.
E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza, o
cavalheiro desarmou a sua clavina; voltou-se para continuar o seu caminho
fazendo um sinal a Peri para que o acompanhasse.
O índio, enquanto se passava a rápida cena que
descrevemos, refletia profundamente.
Quando ouvira o que diziam há pouco Loredano e seus
dois companheiros, quando pelo resto da conversa compreendera que se tratava de
fazer mal à sua senhora e a D. Antônio de Mariz, a sua primeira idéia tinha
sido lançar-se aos três inimigos e matá-los.
Foi por isso que soltou aquela palavra que revelava
a sua indignação; mas imediatamente lembrou-se que ele podia morrer, e que
nesse caso Cecília não teria quem a defendesse. Pela primeira vez na sua vida
teve medo; teve medo por sua senhora, e sentiu não possuir mil vidas para
sacrificá-las todas à sua salvação.
Fugiu então com bastante rapidez para não ser visto
pelo italiano que subia à árvore; afastou-se deles; chegando à beira do rio,
lavou a sua túnica de algodão, que ficara manchada de sangue; não queria que
soubessem que estava ferido.
Enquanto se entregava a este trabalho, combinava um
plano de ação.
Resolveu não dizer nada a quem quer que fosse, nem
mesmo a D. Antônio de Mariz: duas razões o levavam a proceder assim; a primeira
era o receio de não ser acreditado, pois não tinha provas com que pudesse
justificar a acusação, que ele, índio ia fazer contra homens brancos; a segunda
era a confiança que tinha de que ele só bastava para desfazer todas as tramas
dos aventureiros, e lutar contra o italiano.
Assentado este primeiro ponto, passou à execução do
plano; esta reduzia-se para ele em uma punição; aqueles três homens queriam
matar, portanto deviam morrer, mas deviam morrer ao mesmo tempo, do mesmo
golpe. Peri receava que, combinados como estavam, se um escapasse vendo
sucumbir seus companheiros, se deixaria levar pelo desespero e anteciparia a
realização do crime antes que ele o pudesse prevenir.
A sua inteligência sem cultura, mas brilhante como
o sol de nossa terra, vigorosa como a vegetação deste solo, guiava-o nesse
raciocínio com uma lógica e uma prudência, dignas do homem civilizado; previa
todas as hipóteses, combinava todas as probabilidades, e preparava-se para
realizar o seu plano com a certeza e a energia de ação que ninguém possuía em
grau tão elevado.
Assim dirigindo-se para a casa onde o chamava um
outro dever, o de avisar a D. Antônio da eventualidade de um ataque dos
Aimorés, ele tinha passado junto de Bento Simões e Rui Soeiro, e guiado pelos
olhares destes viu ao longe Loredano no momento em que apontava sobre o
cavalheiro.
Correr, cair sobre o italiano, desviar a pontaria,
e dobrá-lo sobre os joelhos, foi um movimento tão rápido que os dois
aventureiros apenas o viram passar, viram ao mesmo tempo o seu companheiro
subjugado.
A realização do projeto de Peri apresentava-se
naturalmente, sem ser procurada. Tinha o italiano na sua mão; depois dele
caminhava aos dois aventureiros para os quais bastava a sua faca; e quando tudo
estivesse consumado, iria ter com D. Antônio de Mariz e lhe diria: — Esses três
homens vos traiam, matei-os; se fiz mal, puni-me.
A intervenção de Álvaro, cuja generosidade salvou a
vida de Loredano, transtornou completamente esse plano; ignorando o motivo por
que Peri ameaçava o aventureiro, julgando que era unicamente para puni-lo da
tentativa que acabava de cometer perfidamente contra ele, o cavalheiro a quem
repugnava tirar a vida a um homem sem necessidade, satisfez-se com o juramento
e a certeza de que deixaria a casa.
Enquanto isto se dava, Peri refletia na possibilidade
de fazer as coisas voltarem à mesma posição; mas conheceu que não o
conseguiria.
Álvaro tinha recebido de D. Antônio de Mariz todos
os princípios daquela antiga lealdade cavalheiresca do século XV, os quais o
velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós; o moço moldava
todas as suas ações, todas as suas idéias, por aquele tipo de barões
portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis, o
rei cavalheiro.
Peri conhecia o caráter do moço; e sabia que depois
de ter dado a vida a Loredano, embora o desprezasse, não consentiria que em
presença dele lhe tocasse num cabelo; e se preciso fosse tiraria a sua espada
para defender este homem, que acabava de tentar contra sua existência.
E o índio respeitava a Álvaro, não por sua causa,
mas por Cecília a quem ele amava; qualquer desgraça que sucedesse ao cavalheiro
tornaria a senhora triste; e isto bastava para que a pessoa do moço fosse
sagrada, como tudo o que pertencia à menina, ou que era necessário ao seu
descanso, ao seu sossego e felicidade.
O resultado dessa reflexão foi Peri meter a sua
faca à cinta; e sem importar-se mais com o italiano, acompanhar o cavalheiro.
Ambos seguiram em direção da casa, caminhando ao
longo da margem do rio.
— Obrigado ainda uma vez, Peri; não pela vida que
me salvaste, mas pela estima que me tens.
E o moço apertou a mão do selvagem.
— Não agradece; Peri nada te fez; quem te salvou
foi a senhora.
Álvaro sorriu-se da franqueza do índio e corou da
alusão que havia em suas palavras.
— Se tu morresses, a senhora havia de chorar; e
Peri quer ver a senhora contente.
— Tu te enganas; Cecília é boa, e sentiria da mesma
maneira o mal que sucedesse a mim, como a ti, ou a qualquer dos que está
acostumada a ver
— Peri sabe por que fala assim; tem olhos que vêem,
e ouvidos que ouvem; tu és para a senhora o sol que faz o jambo corado, e o
sereno que abre a flor da noite.
— Peri!... exclamou Álvaro.
— Não te zanga, disse o índio com doçura; Peri te
ama, porque tu fazes a senhora sorrir. A cana quando está à beira d’água, fica
verde e alegre; quando o vento passa, as folhas dizem Ce-ci. Tu és o rio; Peri
é o vento que passa docemente, para não abafar o murmúrio da corrente; é o
vento que curva as folhas até tocarem na água.
Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que
este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera
a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto
pelo atrito da sociedade?
A cena que se desenrolava a seus olhos
respondeu-lhe; a natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que
produzia aquele espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do
céu.
Quem conhece a vegetação de nossa terra desde a
parasita mimosa até o cedro gigante; quem no reino animal desce do tigre e do
tapir, símbolos da ferocidade e da força, até o lindo beija-flor e o inseto
dourado; quem olha este céu que passa do mais puro anil aos reflexos bronzeados
que anunciam as grandes borrascas; quem viu, sob a verde pelúcia da relva
esmaltada de flores que cobre as nossas várzeas deslizar mil répteis que levam
a morte num átomo de veneno, compreende o que Álvaro sentiu.
Com efeito, o que exprime essa cadeia que liga os
dois extremos de tudo o que constitui a vida? Que quer dizer a força no ápice
do poder aliada à fraqueza em todo o seu mimo; a beleza e a graça sucedendo aos
dramas terríveis e aos monstros repulsivos; a morte horrível a par da vida
brilhante?
Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se
e cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno
contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno,
não é um poeta?
Poeta primitivo, canta a natureza na mesma
linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens
que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e confuso que lhe
agita a alma.
Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que
formam o livro da criação; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes
coisas que a natureza fez sorrindo.
A sua frase corre como o regato que serpeja, ou
salta como o rio que se despenha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da
montanha, outras desce e rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa.
Eis o que a decoração da cena majestosa, no meio da
qual se achava, à beira do Paquequer, disse a Álvaro, mas rapidamente, por uma
dessas impressões que se projetam no espírito como a luz no espaço.
O moço recebeu a confissão ingênua do índio sem o
mínimo sentimento hostil; ao contrário apreciava a dedicação que o selvagem
tinha por Cecília, e ia ao ponto de amar a tudo quanto sua senhora estimava.
— Assim, disse Álvaro sorrindo, tu só me amas por
que pensas que Cecília me quer? disse o moço.
— Peri só ama o que a senhora ama; porque só ama a
senhora neste mundo: por ela deixou sua mãe, seus irmãos e a terra onde nasceu.
— Mas se Cecília não me quisesse como julgas?
— Peri faria o mesmo que o dia com a noite;
passaria sem te ver.
— E se eu não amasse a Cecília?
— Impossível!
— Quem sabe? disse o moço sorrindo.
— Se a senhora ficasse triste por ti!... exclamou o
índio cuja pupila irradiou.
— Sim? o que farias?
— Peri te mataria.
A firmeza com que eram ditas estas palavras não
deixava a menor duvida sobre a sua realidade; entretanto Álvaro apertou a mão
do índio com efusão.
Peri temeu ofender o moço; para desculpar a sua
franqueza, disse-lhe com um tom comovido:
— Escuta, Peri é filho do sol; e renegava o sol se
ele queimasse a pele alva de Ceci. Peri ama o vento; e odiava o vento se ele
arrancasse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o céu; e não levantava
a vista, se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci.
— Compreendo-te, amigo; votaste a tua vida inteira
à felicidade dessa menina. Não receies que te ofenda nunca na pessoa dela.
Sabes se eu a amo; e não te zangues, Peri, se disser que a tua dedicação não é
maior do que a minha. Antes que me matasses, creio que me mataria a mim mesmo
se tivera a desgraça de fazer Cecília infeliz.
— Tu és bom; Peri quer que a senhora te ame.
O índio contou então a Álvaro o que se tinha
passado na noite antecedente; o moço empalideceu de cólera, e quis voltar em
busca do italiano; desta vez não lhe perdoara.
— Deixa! disse o índio Ceci teria medo; Peri vai
endireitar isto.
Os dois tinham chegado perto da casa e iam entrar a
cerca do vale, quando Peri segurou o braço de Álvaro:
— O inimigo da casa quer fazer mal; defende a
senhora; se Peri morrer, manda dizer à sua mãe, e veras todos os guerreiros da
tribo chegarem para combaterem contigo, e salvarem Ceci.
— Mas quem é o inimigo da casa?
— Queres saber?
— Decerto; como hei de combatê-lo?
— Tu saberás.
Álvaro quis insistir; mas o índio não lhe deu
tempo; meteu-se de novo pelo mato; enquanto o moço subia a escada, ele fazia
uma volta ao redor da casa e ganhava o lado para onde dava o quarto de Cecília.
Já tinha avistado ao longe a janela, quando debaixo
de uma ramagem surdiu a figura magra e esguia de Aires Gomes, coberta de
urtigas e ervas-de-passarinho, e deitando os bofes pela boca.
O digno escudeiro, tendo encontrado em cima de sua
cabeça um maldito galho desajeitado, foi de narizes ao chão, e estendeu-se
maciamente sobre a relva.
Apesar disto ergueu-se um pouco sobre os cotovelos,
e gritou com toda a força dos pulmões:
— Olá! mestre bugre!... D. Cacique!... Caçador de
onça viva!... Ouve cá!
Peri não se voltou.
VII
NO
PRECIPÍCIO
Peri tinha parado para ver Cecília de longe.
Aires Gomes ergueu-se, correu para o índio e
deitou-lhe a mão ao braço.
— Afinal pilhei-o, dom caboclo! Safa!... Deu-me
água pela barba!... disse o escudeiro resfolgando.
— Deixa! respondeu o índio sem se mover.
— Deixar-te! Uma figa! Depois de ter batido esta
mataria toda à tua procura! Tinha que ver!
Com efeito, D. Lauriana desejando ver o índio fora
de casa quanto antes, havia expedido o escudeiro em busca de Peri, para
trazê-lo à presença de D. Antônio de Matiz.
Aires Gomes, fiel executor das ordens de seus amos,
corria o mato havia boas duas horas; todos os incidentes cômicos, possíveis ou
imagináveis, tinham-se como que de propósito colocado em seu caminho.
Aqui era uma casa de marimbondos, que ele assanhava
com o chapéu, e o faziam bater em retirada honrosa, correndo a todo o estirão
das pernas; ali era um desses lagartos de longa cauda que pilhado de improviso
se enrolara pelas pernas do escudeiro com uma formidável chicotada.
Isto sem falar das urtigas, e das unhas-de-gato,
cabeçadas e quedas, que faziam o digno escudeiro arrenegar-se, e maldizer da
selvajaria de semelhante terra! Ah! quem o dera nos tojos e charnecas de sua
pátria!
Tinha pois Aires Gomes razão de sobra para não
querer largar o índio causa de todas as tribulações por que passara;
infelizmente Peri não estava de acordo.
— Larga, já te disse! exclamou o índio começando a
irritar-se.
— Tem santa paciência, caboclinho de minha alma! Fé
de Aires Gomes, não é possível; e tu sabes! Quando eu digo que não é possível,
é como se a nossa madre igreja... Que diabo ia rezar-lhe? Ai! que chamei sem
querer a madre igreja de diabo! Forte heresia! Quem se mete a tagarelar dos
santos com esta casta de pagão... Tagarelar dos santos!... Virgem Santíssima!
Estou incapaz! Cala-te, boca! não me pies mais!
Enquanto o escudeiro desfiava esse discurso, meio
solilóquio, no qual havia ao menos o mérito da franqueza, Peri não o ouvia,
embebido como estava em olhar para a janela; depois, desprendendo-se da mão que
segurava-lhe o braço, continuou o seu caminho.
Aires acompanhou-o pisada sobre pisada, com a
impassibilidade de um autômato.
— Que vens fazer? perguntou-lhe o índio.
— E esta! Seguir-te e levar-te à casa; é a ordem.
— Peri vai longe!
— Ainda que vás ao fim do mundo, é o mesmo, filho.
O índio voltou-se para ele com um gesto decidido.
— Peri não quer que tu o sigas.
— Lá quanto a isto, mestre bugre, perdes o teu
tempo; por força ainda ninguém levou o filho de meu pai, que bom é que saibas,
foi homem de faca e calhau.
— Peri não manda duas vezes!
— Nem Aires Gomes olha atrás quando executa uma
ordem.
Peri, o homem da cega dedicação, reconheceu no
escudeiro o homem da obediência passiva; sentiu que não havia meio de convencer
este executor fiel: assim, resolveu livrar-se dele por meio decisivo.
— Quem te deu a ordem?
— D. Lauriana.
— Para quê?
— Para te levar à casa.
— Peri vai só.
— Veremos!
O índio tirou a sua faca.
— Hein!... gritou o escudeiro. A conversa vai agora
nesse tom? Se o Sr. D. Antônio não me tivesse proibido expressamente, eu te
mostraria! Mas... Podes matar-me, que eu não arredo pé.
— Peri só mata o seu inimigo, e tu não és; tu
teimas, Peri te amarra.
— Como?... Como é lá isso?
O índio começou a cortar com a maior calma um longo
cipó que se engranzava pelos galhos das árvores; o escudeiro meio espantado
sentia a mostarda subir-lhe ao nariz, esteve quase não quase, atirando-se ao
selvagem.
Mas a ordem de D. Antônio era formal; via-se pois
obrigado a respeitar o índio; o mais que o digno escudeiro podia fazer era
defender-se valentemente.
Quando Peri cortou umas dez braças do cipó que ia
enrolando ao pescoço, embainhou a faca, e voltou-se para o escudeiro sorrindo.
Aires Gomes sem trepidar puxou a espada e pôs-se em guarda, segundo as regras
da nobre e liberal arte do jogo de espadão, que professava desde a mais tenra idade.
Era um duelo original e curioso, como talvez não
tenha havido segundo, combate em que as armas lutavam contra a agilidade, e o
ferro contra um vime delgado.
— Mestre Cacique, disse o escudeiro rugando o
sobrolho; deixa-te de partes: porque, palavra de Aires Gomes, se te encostas,
espeto-te na durindana!
Peri estendeu o lábio inferior, em sinal de pouco
caso; e começou a voltear rapidamente em torno do escudeiro, num círculo de
seis passos de diâmetro que o punha fora do alcance da espada; a sua tenção era
assaltar o adversário pelas costas.
Aires Gomes apoiado a um tronco, e obrigado a girar
sobre si mesmo para defender as costas, sentiu a cabeça tontear e vacilou. O
índio aproveitou o momento, atirou-se a ele, pilhou-o de costas, agarrou-o
pelos dois braços, e passou a amarrá-lo ao mesmo tronco da árvore em que estava
encostado.
Quando o escudeiro voltou a si da vertigem, uma
rodilha de cipós ligava-o ao tronco desde o joelho até os ombros; o índio
seguira seu caminho placidamente.
— Bugre de um demo! Perro infernal! gritava o digno
escudeiro, tu me pagarás com língua de palmo!... Sem prestar a menor atenção à
ladainha de nomes injuriosos com que o mimoseava Aires Gomes, Peri aproximou-se
da casa.
Via Cecília, com a face apoiada na mão, a olhar tristemente
o fosso profundo que passava embaixo de sua janela.
A menina, depois do primeiro momento de surpresa em
que adivinhou o ciúme de Isabel e o seu amor por Álvaro, conseguiu dominar-se.
Tinha a nobre altivez da castidade; não quis deixar ver à sua prima o que
sentia nesse momento; era boa também, amava Isabel, e não desejava magoá-la.
Não lhe disse pois uma só palavra de exprobração
nem de queixa: ao contrário ergueu-a, beijou-a com carinho, e pediu-lhe que a
deixasse só.
— Pobre Isabel! murmurou ela; como deve ter
sofrido!
Esquecia-se de si para pensar em sua prima; mas as
lágrimas que saltaram de seus olhos, e o soluço que fez arfar os seios mimosos
a chamaram ao seu próprio sofrimento.
Ela, a menina alegre e feiticeira que só aprendera
a sorrir, ela, o anjinho do prazer que bafejava tudo quanto a rodeava, achou um
gozo inefável em chorar. Quando enxugou as lágrimas, sofria menos; sentiu-se
aliviada; pôde então refletir sobre o que havia passado.
O amor revelava-se para ela sob uma nova forma; até
aquele dia a afeição que sentia por Álvaro era apenas um enleio que a fazia
corar, e um prazer que a fazia sorrir.
Nunca se lembrara que esta afeição pudesse passar
daquilo que era, e produzir outras emoções que não fossem o rubor e o sorriso;
o exclusivismo do amor, a ambição de tornar seu e unicamente seu o objeto da
paixão, acabava de ser-lhe revelado por sua prima.
Ficou por muito tempo pensativa; consultou o seu
coração e conheceu que não amava assim; nunca a afeição que tinha a Álvaro
podia obrigá-la a odiar sua prima, a quem queria como irmã.
Cecília não compreendia essa lata do amor com os
outros sentimentos do coração, luta terrível em que quase sempre a paixão
vitoriosa subjuga o dever, e a razão. Na sua ingênua simplicidade acreditava
que podia ligar perfeitamente a veneração que tinha por seu pai, o respeito que
votava à sua mãe, o afeto que sentia por Álvaro, o amor fraternal que
consagrava a seu irmão e a Isabel, e a amizade que tinha a Peri.
Estes sentimentos eram toda a sua vida; no meio
deles sentia-se feliz; nada lhe faltava: também nada mais ambicionava. Enquanto
pudesse beijar a mão de seu pai e de sua mãe, receber uma carícia de seu irmão
e de sua prima, sorrir a seu cavalheiro e brincar com o seu escravo, a
existência para ela seria de flores.
Assustou-se pois com a necessidade de quebrar um
dos fios de ouro que teciam os seus dias inocentes e felizes; sofreu com a
idéia de ver em luta duas das afeições calmas e serenas de sua vida.
Teria menos um encanto na sua vida, menos uma
imagem nos seus sonhos, menos uma flor na sua alma; porém não faria a ninguém
desgraçado, e sobretudo à sua prima Isabel, que às vezes se mostrava tão
melancólica.
Restavam-lhe suas outras afeições; com elas pensava
Cecília que a existência ainda podia sorrir-lhe; não devia tornar-se egoísta.
Para assim pensar era preciso ser uma menina pura e
isenta como ela; era preciso ter o coração como recente botão, que ainda não
começou a desatar-se com o primeiro raio do sol.
Estes pensamentos adejavam ainda na mente de
Cecília enquanto ela olhava pensativa o fosso, onde tinha caldo o objeto que
viera modificar a sua existência.
— Se eu pudesse obter essa prenda? dizia consigo.
Mostraria a Isabel como eu a amo e quanto a desejo feliz.
Vendo sua senhora olhar tristemente o fundo do
precipício, Peri compreendeu parte do que passava no seu espírito; sem poder
adivinhar como Cecília soubera que o objeto tinha caldo ali, percebeu que a
moça sentia por isso um pesar.
Nem tanto bastava para que o índio fizesse tudo a
fim de trazer a alegria ao rostinho de Cecília; além de que já tinha prometido
a Álvaro endireitar isto, como ele dizia na sua linguagem simples.
Chegou-se ao fosso.
Uma cortina de musgos e trepadeiras lastrando pelas
bordas do profundo precipício cobria as fendas da pedra; por cima era um tapete
de verde risonho sobre o qual adejavam as borboletas de cores vivas; embaixo
uma cava cheia de limo onde a luz não penetrava.
Às vezes ouviam-se partir do fundo do balseiro os
silvos das serpentes, os pios tristes de algum pássaro, que magnetizado ia
entregar-se à morte; ou o tanger de um pequeno chocalho sobre a pedra.
Quando o sol estava a pino, como então, via-se
entre a relva, sobre o cálice das campânulas roxas, os olhos verdes de alguma
serpente, ou uma linda fita de escamas pretas e vermelhas enlaçando a haste de
um arbusto.
Peri pouco se importava com estes habitantes do
fosso e com o acolhimento que lhe fariam na sua morada; o que o inquietava era
o receio de que não tivesse luz bastante no fundo para descobrir o objeto que
ia procurar.
Cortou o galho de uma árvore, que pela sua
propriedade, os colonizadores chamaram candeia; tirou o fogo, e começou a
descer com o facho aceso. Foi só nessa ocasião que Cecília embebida nos seus
pensamentos, viu defronte de sua janela o índio a descer pela encosta.
A menina assustou-se; porque a presença de Peri
lembrou-lhe de repente o que se passara pela manhã; era mais uma afeição
perdida.
Dois laços quebrados ao mesmo tempo, dois hábitos
rompidos um sobre o outro, era muito; duas lágrimas correram pelas suas faces,
como se cada uma fosse vertida pelas cordas do coração que acabavam de ser
vibradas.
— Peri!
O índio levantou os olhos para ela.
— Tu choras, senhora? disse ele estremecendo.
A menina sorriu-lhe; mas com um sorriso tão triste
que partia a alma.
— Não chora, senhora, disse o índio suplicante;
Peri vai te dar o que desejas.
— O que eu desejo?
— Sim; Peri sabe.
A moça abanou a cabeça.
— Está ali; e apontou para o fundo do precipício.
— Quem te disse? perguntou a menina admirada.
— Os olhos de Peri.
— Tu viste?
— Sim.
O índio continuou a descer.
— Que vais fazer? exclamou Cecília assustada.
— Buscar o que é teu.
— Meu!... murmurou melancolicamente.
— Ele te deu.
— Ele quem?
— Álvaro.
A moça corou; mas o susto reprimiu o pejo;
abaixando os olhos sobre o precipício, tinha visto um réptil deslizando pela
folhagem e ouvido o murmúrio confuso e sinistro que vinha do fundo do abismo.
— Peri, disse empalidecendo, não desças; volta!
— Não; Peri não volta sem trazer o que te fez
chorar.
— Mas tu vais morrer!
— Não tem medo.
— Peri, disse Cecília com severidade, tua senhora
manda que não desças.
O índio parou indeciso; uma ordem de sua senhora
era uma fatalidade para ele; cumpria-se irremissivelmente.
Fitou na moça um olhar tímido; nesse momento
Cecília, vendo Álvaro na ponta da esplanada junto da cabana do selvagem,
retirava-se para dentro da janela corando.
O índio sorriu.
— Peri desobedecer à tua voz, senhora, para obedecer
ao teu coração. E o índio desapareceu sob as trepadeiras que cobriam o
precipício. Cecília soltou um grito, e debruçou-se no parapeito à janela.
VIII
O
BRACELETE
O que Cecília viu, debruçando-se à janela, gelou-a de espanto e horror.
De todos os lados surgiam répteis enormes que,
fugindo pelos alcantis, lançavam-se na floresta; as víboras escapavam das
fendas dos rochedos, e aranhas venenosas suspendiam-se aos ramos das árvores
pelos fios da teia.
No meio do concerto horrível que formava o sibilar
das cobras e o estrídulo dos grilos, ouvia-se o canto monótono e tristonho da
cauã no fundo do abismo.
O índio tinha desaparecido; apenas se via o reflexo
da luz do facho.
Cecília, pálida e trêmula julgava impossível que
Peri não estivesse morto e já quase devorado por esses monstros de mil formas;
chorava o seu amigo perdido, e balbuciava preces pedindo a Deus um milagre para
salvá-lo.
Às vezes fechava os olhos para não ver o quadro
terrível que se desenrolava diante dela, e abria-os logo para perscrutar o
abismo e descobrir o índio
Em um desses momentos um dos insetos que pululavam
no meio da folhagem agitada esvoaçou, e veio pousar no seu ombro; era uma
esperança, um desses lindos coleópteros verdes que a poesia popular chama
lavandeira-de-deus.
A alma nos momentos supremos de aflição suspende-se
ao fio o mais tênue da esperança; Cecília sorriu-se entre as lágrimas, tomou a
lavandeira entre os seus dedos rosados e acariciou-a.
Precisava esperar; esperou, reanimou-se, e pôde
preferir uma palavra ainda com a voz trêmula e fraca:
— Peri!
No curto instante que sucedeu a este chamado,
sofreu uma ansiedade cruel; se o índio não respondesse, estava morto; mas Peri
falou:
— Espera, senhora!
Entretanto, apesar da alegria que lhe causaram
estas palavras, pareceu à menina que eram pronunciadas por um homem que sofria:
a voz chegou-lhe ao ouvido surda e rouca.
— Estás ferido? perguntou inquieta.
Não houve resposta; um grito agudo partiu do fundo
do abismo, e ecoou pelas fráguas; depois a cauã cantou de novo, e uma cascavel
silvando bravia passou seguida por uma ninhada de filhos.
Cecília vacilou; soltando um gemido plangente caiu
desmaiada de encontro à almofada da janela.
Quando, passado um quarto de hora, a menina abriu
os olhos, viu diante dela Peri que chegava naquele momento, e lhe apresentava
sorrindo uma bolsa de malha de retrós, dentro da qual havia uma caixinha de
velado escarlate.
Sem se importar com a jóia, Cecília ainda
impressionada pelo quadro horrível que presenciara, tomou as mãos do índio e
perguntou-lhe com sofreguidão:
— Não estás mordido, Peri?... Não sofres?... Dize!
O índio olhou-a admirado do susto que via no seu
semblante.
— Tiveste medo, senhora?
— Muito! exclamou a menina.
O índio sorriu.
— Peri é um selvagem, filho das florestas; nasceu
no deserto, no meio das cobras; elas conhecem Peri e o respeitam.
O índio dizia a verdade; o que acabava de fazer era
a sua vida de todos os dias no meio dos campos: não havia nisto o menor perigo.
Tinha-lhe bastado a luz do seu facho e o canto da
cauã que ele imitava perfeitamente para evitar os répteis venenosos que são
devorados por essa ave. Com este simples expediente de que os selvagens
ordinariamente se serviam quando atravessavam as matas de noite, Peri descera e
tivera a felicidade de encontrar presa aos ramos de uma trepadeira a bolsa de
seda, que adivinhou ser o objeto dado por Álvaro.
Soltou então um grito de prazer que Cecília tomou
por grito de dor: assim como antes tinha tomado o eco do precipício por uma voz
cava e surda.
Entretanto Cecília que não podia compreender como
um homem passava assim no meio de tantos animais venenosos sem ser ofendido por
eles, atribuía a salvação do índio a um milagre, e considerava a ação simples e
natural que acabava de praticar como um heroísmo admirável. A sua alegria por
ver Peri livre de perigo, e por ter nas suas mãos a prenda de Álvaro foi tal,
que esqueceu tudo o que se tinha passado.
A caixinha continha um simples bracelete de
pérolas; mas estas eram do mais paro esmalte e lindas como pérolas que eram;
bem mostravam que tinham sido escolhidas pelos olhos de Álvaro, e destinadas ao
braço de Cecília.
A menina admirou-as um momento com o sentimento de
faceirice que é inato na mulher, e lhe serve de sétimo sentido; pensou que devia
ir-lhe bem esse bracelete; levada por esta idéia cingiu-o ao braço, e mostrou a
Peri que a contemplava satisfeito de si mesmo.
— Peri sente uma coisa.
— O quê?
— Não ter contas mais bonitas do que estas para
dar-te.
— E por que sentes isso?
— Porque te acompanhariam sempre.
Cecília sorriu; ia fazer uma travessura.
— Assim, tu ficarias contente se tua senhora em vez
de trazer este bracelete, trouxesse um presente dado por ti?
— Muito.
— E o que me dás tu para que eu me faça bonita?
perguntou a menina gracejando.
O índio correu os olhos ao redor de si e ficou
triste; podia dar a sua vida, que de nada valia; mas onde iria ele, pobre
selvagem, buscar um adorno digno de sua senhora!
Cecília teve pena do seu embaraço.
— Vai buscar uma flor que tua senhora deitará nos
seus cabelos, em vez deste bracelete que ela nunca deitará no seu braço.
Estas últimas palavras foram ditas com um tom de
energia, que revelava a firmeza do caráter desta menina; ela fechou outra vez o
bracelete na caixa e ficou um momento melancólica e pensativa.
Peri voltou trazendo uma linda flor silvestre que
encontrara no jardim; era uma parasita aveludada, de lindo escarlate. A menina
prendeu a flor nos cabelos, satisfeita por ter cumprido um inocente desejo de
Peri, que só vivia para cumprir os seus; e dirigiu-se ao quarto de sua prima,
ocultando no seio a caixinha de veludo.
Isabel pretextara uma indisposição; não saíra do
seu quarto depois que voltara do aposento de Cecília, tendo traído o segredo de
seu amor.
As lágrimas que derramou não foram como as de sua
prima, de alivio e consolo; foram lágrimas ardentes, que em vez de refrescarem
o coração, o queimam como o rescaldo da paixão.
Às vezes, ainda umedecidos de pranto, seus olhos
negros brilhavam com um fulgor extraordinário; parecia que um pensamento
delirante passava rapidamente no seu espírito desvairado. Então ajoelhava-se, e
fazia uma oração, no meio da qual suas lágrimas vinham de novo orvalhar-lhe as
faces.
Quando Cecília entrou, ela estava sentada à beira
do leito, com os olhos fitos na janela, por entre a qual se via uma nesga do
céu.
Estava bela da melancolia e languidez que prostrava
o seu corpo num enlevo sedutor, fazendo realçar as linhas harmoniosas de seu
talhe gracioso.
Cecília aproximou-se sem ser vista, e estalou um
beijo na face morena de sua prima.
— Já te disse que não te quero ver triste.
— Cecília!... exclamou Isabel sobressaltando-se.
— Que é isto? Faço-te medo?
— Não... mas...
— Mas, o quê?
— Nada...
— Sei o que queres dizer, Isabel, julgaste que
conservava uma queixa de ti. Confessa!
— Julguei, disse a moca balbuciando, que me tinha
tornado indigna de tua amizade.
— E por quê? Fizeste-me tu algum mal? Não somos nós
duas irmãs, que nos devemos amar sempre?
— Cecília, o que tu dizes não é o que tu sentes!
exclamou Isabel admirada.
— Algum dia te enganei? replicou Cecília magoada.
— Não; perdoa; porém é que...
A moça não continuou; o olhar terminou o seu
pensamento, e exprimiu o espanto que lhe causava o procedimento de Cecília. Mas
de repente uma idéia assaltou-lhe o espírito.
Cuidou que Cecília não tinha ciúmes dela, porque a
julgava indigna de merecer um só olhar de Álvaro; esta lembrança a fez sorrir
amargamente.
— Assim, está entendido, disse Cecília com
volubilidade, nada se passou entre nós; não é verdade?
— Tu o queres!
— Quero, sim; nada se passou; somos as mesmas, com
uma diferença, acrescentou Cecília corando, que de hoje em diante tu não deves
ter segredos para comigo.
— Segredos! Tinha um que já te pertence! murmurou
Isabel.
— Porque o adivinhei! Não é assim que desejo;
prefiro ouvir de tua boca; quero consolar-te quando estiveres toda tristezinha
como agora, e rir-me contigo quando ficares contente. Sim?
— Ah! nunca! Não me peças uma coisa impossível,
Cecília! Já sabes demais; não me obrigues a morrer a teus pés de vergonha.
— E por que te causaria isto vergonha? Assim como
tu me amas, não podes amar uma outra pessoa?
Isabel escondeu o rosto nas mãos para disfarçar o
rubor que subia-lhe às faces; Cecília um pouco comovida olhava sua prima e
compreendia nesse momento a causa por que ela própria corava quando sentia os
olhos de Álvaro fitos nos seus.
— Cecília, disse Isabel fazendo um esforço supremo,
não me iludas, minha prima; tu és boa, tu me amas, e não queres magoar-me; mas
não zombes da minha fraqueza. Se soubesses como sofro!
— Não te iludo, já te disse; não desejo que sofras,
e menos que sofras por minha causa; entendes?
— Entendo, e juro-te que saberei fazer calar meu
coração; se for preciso ele morrerá antes do que dar-te uma sombra de tristeza.
— Não, exclamou Cecília, tu não me compreendes: não
é isto que eu te peço, bem ao contrário quero que... sejas feliz!
— Que eu seja feliz? perguntou Isabel
arrebatadamente.
— Sim, respondeu a menina abraçando-a e falando-lhe
baixinho ao ouvido; que o ames a ele e a mim também.
Isabel ergueu-se pálida, e duvidando do que ouvia;
Cecília teve bastante força para sorrir-lhe com um dos seus divinos sorrisos.
— Não, é impossível Tu me queres tornar louca,
Cecília?
— Quero tornar-te alegre, respondeu a menina
acariciando-a; quero que deixes esse rostinho melancólico, e me abraces como
tua irmã. Não o mereço?
— Oh! sim, minha irmã; tu és um anjo de bondade,
mas o teu sacrifício é perdido; eu não posso ser feliz, Cecília.
— Por quê?
— Porque ele te ama! murmurou Isabel.
A menina corou.
— Não digas isto, é falso.
— E bem verdade.
— Ele te disse?
— Não, mas adivinhei-o antes de ti mesma.
— Pois te enganaste; e sabes que mais, não me fales
nisto. Que me importa o que ele sente a meu respeito?
E a menina conhecendo que a emoção se apoderava
dela, fugiu mas voltou da porta.
— Ah! esqueci-me de dar-te uma coisa que trouxe
para ti. Tirou a caixinha de veludo, e abrindo-a, atou o bracelete de pérolas
ao braço de Isabel.
— Como te vão bem! Como assentam no teu moreno tão
lindo! Ele te achará bonita!
— Este bracelete!...
Isabel teve de repente uma suspeita.
A menina percebeu; ia mentir pela primeira vez na
sua vida.
— Foi meu pai que mo deu ontem; mandou vir dois
irmãos: um para mim, e outro que eu lhe pedi para ti. Assim, não tens que
recusar senão agasto-me contigo.
Isabel abaixou a cabeça.
— Não o tires; eu vou deitar o meu e ficaremos
irmãs. Adeus, até logo.
E apinhando os dedos atirou um beijo à prima e saiu
correndo.
A travessura e jovialidade do seu gênio já tinham
dissipado as impressões tristes da manhã.
IX
TESTAMENTO
No momento em que Cecília deixou Isabel, D. Antônio de Mariz subia a esplanada,
preocupado por algum objeto importante, que dava à sua fisionomia expressão
ainda mais grave que a habitual.
O velho fidalgo avistou de longe seu filho D. Diogo
e Álvaro passeando ao longo da cerca que passava no fundo da casa; fez-lhes
sinal de que se aproximassem.
Os moços obedeceram prontamente, e acompanharam D.
Antônio de Mariz até o seu gabinete d’armas, pequena saleta que ficava ao lado
do oratório, e que nada tinha de notável, a não ser a portinha de uma escada
que descia para uma espécie de cava ou adega servindo de paiol.
Na ocasião em que se abriram os alicerces da casa,
os obreiros descobriram um socavão profundo talhado na pedra; D. Antônio como
homem previdente, lembrando-se da necessidade que teria para o futuro de não
contar senão com os seus próprios recursos, mandou aproveitar essa abóbada
natural, e fazer dela um depósito que pudesse conter algumas arrobas de
pólvora.
O fidalgo achara ainda uma outra grande vantagem na
sua lembrança; era a tranqüilidade de sua família, cuja vida não estaria
sujeita a um descuido de qualquer doméstico ou aventureiro; porque no seu
gabinete d’armas ninguém entrava, senão estando ele presente.
D. Antônio sentou-se junto da mesa coberta com um
couro de moscóvia e fez sinal aos dois moços para que se sentassem a seu lado.
— Tenho que falar-vos de objeto muito sério, de
objeto de família, disse o fidalgo. Chamei-vos para me ouvirdes como em uma
coisa que vos interessa e a mim antes do que a todos.
D. Diogo inclinou-se diante de seu pai; Álvaro
imitou-o, sentindo um sobressalto ao ouvir aquelas palavras graves e pausadas
do velho fidalgo.
— Tenho sessenta anos, continuou D. Antônio; estou
velho. O contato deste solo virgem do Brasil, o ar paro destes desertos,
remoçou-me durante os últimos anos; mas a natureza reassume os seus direitos; e
sinto que o antigo vigor cede a lei da criação que manda voltar à terra aquilo
que veio da terra.
Os dois moços iam dizer alguma doce palavra como
quando procuramos iludir a verdade àqueles a quem prezamos, esforçando por nos
iludirmos a nós próprios.
D. Antônio conteve-os com um gesto nobre:
— Não me interrompais. Não é uma queixa que vos
faço; é sim uma declaração que deveis receber, pois é necessária para que
possais compreender o que tenho de dizer-vos ainda. Quando durante quarenta
anos jogamos nossa vida quase todos os dias, quando vimos a morte cem vezes
sobre nossa cabeça, ou debaixo de nossos pés, podemos olhar tranqüilos o termo
da viagem que fazemos neste vale de lágrimas.
— Oh! nunca duvidamos de vós, meu pai! exclamou D.
Diogo; mas é a segunda vez em dois dias que me falais da possibilidade de uma
tal desgraça; e esta só idéia me assusta! Estais forte e vigoroso ainda!
— Decerto, retrucou Álvaro; dizíeis há pouco que o
Brasil vos tinha remoçado; e eu afirmo-vos que ainda estais na juventude da
segunda vida que vos deu o novo mundo.
— Obrigado, Álvaro, obrigado, meu filho, disse D.
Antônio sorrindo; quero acreditar nas vossas palavras. Contudo julgareis que é
prudente da parte de um homem que chega ao último quartel da vida, dispor a sua
última vontade, e fazer o seu testamento.
— O vosso testamento, meu pai! disse D. Diogo
pálido.
— Sim: a vida pertence a Deus, e o homem que pensa
no futuro, deve preveni-lo. E costume encarregar-se isto a um escriba; nem o
tenho aqui, nem o julgo necessário. Um fidalgo não pode confiar melhor a sua
última vontade do que a duas almas nobres e leais como as vossas. Perde-se um
papel, rompe-se, queima-se; o coração de um cavalheiro que tem sua espada para
defendê-lo, e seu dever para guiá-lo, é um documento vivo e um executor fiel.
Este será pois o meu testamento. Ouvi-me.
Os dois cavalheiros conheceram pela firmeza com que
falava D. Antônio, que sua resolução era inabalável; se dispuseram a ouvi-lo
com uma emoção de tristeza e respeito.
— Não trato de vós, D. Diogo; a minha fortuna
pertence-vos como chefe da família que sereis; não trato de vossa mãe, porque
perdendo um esposo restar-lhe-á um filho devotado: amo-vos a ambos, e vos
bendirei na última hora. Há porém duas coisas que mais prezo neste mundo, duas
coisas sagradas que devo zelar como um tesouro ainda mesmo depois que me partir
desta vida. É a felicidade de minha filha, e a nobreza do meu nome; uma foi
presente que recebi do céu, o outro legado que me deixou meu pai.
O fidalgo fez pausa, e volveu um olhar do rosto
triste de D. Diogo para G semblante de Álvaro, que estava em extraordinária
agitação.
— A vós, D. Diogo, transmito o legado de meu pai;
estou convencido que conservareis o seu nome tão puro como a vossa alma, e os esforçareis
por elevá-lo, servindo uma causa santa e justa. A vós, Álvaro, confio a
felicidade de minha Cecília; e creio que Deus enviando-vos a mim, fazem já dez
anos, não quis senão completar o dom que me havia concedido.
Os dois moços tinham deitado um joelho em terra, e
beijavam cada uma das mãos do velho fidalgo, que colocado no meio deles
envolvia-os num mesmo olhar de amor paternal.
— Erguei-vos, meus filhos, abraçai-vos como irmãos,
e ouvide-me ainda.
D. Diogo abriu os braços, e apertou Álvaro ao
peito; um instante os dois corações nobres bateram um de encontro ao outro.
— O que me resta a dizer-vos é difícil; custa
sempre confessar uma falta, ainda mesmo quando se fala a almas generosas. Tenho
uma filha natural: a estima que voto a minha mulher e o receio de fazer essa
pobre menina corar de seu nascimento, obrigaram-me a dar-lhe em vida o titulo
de sobrinha.
— Isabel?... exclamou D. Diogo.
— Sim, Isabel é minha filha. Peço-vos a ambos que a
trateis sempre como tal; que a ameis como irmã, e a rodeeis de tanto afeto e
carinho, que ela possa ser feliz, e perdoar-me a indiferença que lhe mostrei e
a infelicidade involuntária que causei à sua mãe.
A voz do velho fidalgo tornou-se um tanto trêmula e
comovida; sentia-se que uma recordação dolorosa, adormecida no fundo do
coração, havia despertado.
— Pobre mulher!... murmurou ele.
Levantou-se, passeou pelo aposento, e conseguindo
dominar a sua emoção, voltou ao dois moços.
— Eis a minha última disposição; sei que a
cumprireis; não vos peço um juramento; basta-me a vossa palavra.
D. Diogo estendeu a mão, Álvaro levou a sua ao
coração: D. Antônio, que compreendeu tudo quanto dizia essa muda promessa,
abraçou-os.
— Agora deixai a tristeza; quero-vos risonhos; eu o
estou, vede! A tranqüilidade sobre o futuro vai remoçar-me de novo; e
esperareis muito tempo talvez, antes que tenhais de executar a minha vontade,
que até lá fica sepultada no vosso coração, como testamento que é.
— Assim o tinha entendido, disse Álvaro.
— Pois então, replicou o fidalgo sorrindo, deveis
ficar entendendo também um ponto; é que talvez me incumba eu mesmo de realizar
uma das partes do meu testamento. Sabeis qual?
— A da minha felicidade!... respondeu o moço
corando.
D. Antônio apertou-lhe a mão.
— Estou contente e satisfeito, disse o fidalgo;
pena é que tenha um triste dever a cumprir. Sabeis de Peri, Álvaro?
— Vi-o há pouco. — Ide e mandai-o a mim.
O moço retirou-se.
— Fazei chamar vossa mãe e vossa irmã, meu filho.
D. Diogo obedeceu.
O fidalgo sentou-se à mesa e escreveu numa tira de
pergaminho, que fechou com um retrós e selou com as suas armas.
D. Lauriana e Cecília entraram acompanhadas por D.
Diogo.
— Sentai-vos, minha mulher.
D. Antônio reunia sua família para dar uma certa
solenidade ao ato que ia praticar.
Quando Cecília entrou, ele perguntou-lhe ao ouvido:
— Que queres tu dar-lhe?
A menina compreendeu imediatamente; a afeição pouco
comum que tinham a Peri, a gratidão que lhe votavam, era uma espécie de segredo
entre esses dois corações; era uma planta delicada que não queriam expor ao
reparo que causaria aos outros amizade tão sincera por um selvagem.
Ouvindo a pergunta de seu pai, Cecília, que neste
dia tinha sofrido tantas emoções diversas, lembrou-se do que se tratava.
— Como! sempre pretendeis mandá-lo embora! exclamou
ela.
— É necessário; eu te disse.
— Sim; mas pensei que depois houvésseis resolvido o
contrário.
— Impossível!
— Que mal faz ele aqui?
— Sabes quanto eu o estimo; quando digo que é
impossível, deves crer-me.
— Não vos agasteis!...
— Assim não te opões?
Cecília calou-se.
— Se não queres absolutamente, não se fará; mas tua
mãe sofrerá, e eu, porque lhe prometi.
— Não; a vossa palavra antes de tudo, meu pai.
Peri apareceu na porta da sala; uma vaga inquietação
ressumbrava no seu rosto, quando viu-se no meio da família reunida.
A atitude era respeitosa, mas o seu porte tinha a
altivez inata das organizações superiores; seus olhos grandes, negros e
límpidos, percorreram o aposento e fixaram-se na fisionomia venerável do
cavalheiro.
Cecília prevendo o que se ia passar tinha-se
escondido por detrás de seu irmão D. Diogo.
— Peri, acreditas que D. Antônio de Mariz é teu
amigo? perguntou o fidalgo.
— Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem
de outra cor.
— Acreditas que D. Antônio de Mariz te estima?
— Sim; porque o disse e mostrou.
— Acreditas que D. Antônio de Mariz deseja poder
pagar-te o que fizeste por ele, salvando sua filha?
— Se fosse preciso, sim.
— Pois bem, Peri; D. Antônio de Mariz, teu amigo,
te pede que voltes à tua tribo.
O índio estremeceu.
— Por que pedes isto?
— Porque assim é preciso, amigo.
— Peri entende; estás cansado de dar-lhe
hospitalidade!
— Não!
— Quando Peri te disse que ficava não te pediu
nada; sua casa é feita de palha em cima de uma pedra; as árvores do mato lhe
dão o sustento; sua roupa foi tecida por sua mãe que veio trazê-la na outra
lua. Peri não te custa nada.
Cecília chorava; D. Antônio e seu filho estavam
comovidos; D. Lauriana mesma parecia enternecida.
— Não digas isto, Peri! Nunca na minha casa te
faltaria a menor coisa, se tu não recusasses tudo e não quisesses viver isolado
na tua cabana. Mesmo agora dize o que desejas, o que te agrada, e é teu.
— Por que então mandas Peri embora?
D. Antônio não sabia o que responder; e foi
obrigado a procurar um pretexto para explicar ao índio o seu procedimento: a
idéia da religião, que todos os povos compreendem, pareceu-lhe a mais própria.
— Tu sabes que nós os brancos temos um Deus, que
mora lá em cima, a quem amamos, respeitamos e obedecemos.
— Sim
— Esse Deus não quer que viva no meio de nós um
homem que não o adora, e não o conhece; até hoje lhe desobedecemos; agora ele
manda.
— O Deus de Peri também mandava que ele ficasse com
sua mãe, na sua tribo, junto dos ossos de seu pai; e Peri abandonou tudo para
seguir-te.
Houve um momento de silêncio; D. Antônio não sabia
o que replicar.
— Peri não te quer aborrecer; só espera a ordem da
senhora. Tu mandas que Peri vá, senhora?
D. Lauriana que apenas se tinha falado em religião,
voltara às suas prevenções contra o índio, fez um gesto imperioso à sua filha.
— Sim! balbuciou Cecília.
O índio abaixou a cabeça; uma lágrima deslizou-lhe
pela face.
O que ele sofria é impossível dizer: a palavra não
sabe o segredo das tormentas profundas de uma alma forte e vigorosa, que pela
primeira vez sente-se vencida pela dor.
X
DESPEDIDA
D Antônio aproximou-se de Peri e apertou-lhe a mão:
— O que eu te devo, Peri, não se paga; mas sei o
que devo a mim mesmo. Tu voltas à tua tribo: apesar da tua coragem e esforço,
pode a sorte da guerra não te ser favorável, e caíres em poder de algum dos
nossos. Este papel te salvará a vida e a liberdade; aceita-o em nome de tua
senhora e no meu.
O fidalgo entregou ao índio o pergaminho que há
pouco tinha escrito e voltou-se para seu filho:
— Este papel, D. Diogo, assegura a qualquer
português de quem Peri possa ser prisioneiro, que D. Antônio de Mariz e seus
herdeiros respondem por ele e pelo seu resgate, qualquer que for. É mais um
legado que vos deixo a cumprir, meu filho.
— Ficai certo, meu pai, replicou o moço, que
saberei responder a essa divida de honra, não só em respeito à vossa memória,
como em satisfação dos meus próprios sentimentos.
— Toda a minha família aqui presente, disse o
fidalgo dirigindo-se ao índio, te agradece ainda uma vez o que fizestes por
ela; reunimo-nos todos para te desejarmos a boa volta ao seio dos teus irmãos e
ao campo onde nasceste.
Peri fitou o olhar brilhante no rosto de cada uma
das pessoas presentes, como para dizer-lhes o adeus que seus lábios naquela
ocasião não podiam exprimir.
Apenas seus olhos se fitaram em Cecília, impelido
por uma força invencível atravessou o aposento e foi ajoelhar-se aos pés de sua
senhora.
A menina tirou do peito uma pequena cruz de ouro
presa a uma fita preta, e deitou-a no pescoço do índio:
— Quando tu souberes o que diz esta cruz, volta,
Peri. — Não, senhora; de onde Peri vai, ninguém voltou.
Cecília estremeceu.
O selvagem ergueu-se, e caminhou para D. Antônio de
Mariz, que não podia dominar a sua emoção.
— Peri vai partir; tu mandas, ele obedece; antes
que o sol deixe a terra, Peri deixará tua casa; o sol voltará amanhã, Peri não
voltará nunca. Leva a morte no seio porque parte hoje; levaria a alegria se
partisse no fim da lua.
— Por que razão? perguntou D. Antônio; desde que é
necessário que nos separemos, tanto deves sentir hoje como daqui a três dias.
— Não, replicou o índio; tu vais ser atacado amanhã
talvez, e Peri estaria contigo para defender-te.
— Vou ser atacado? exclamou D. Antônio pensativo.
— Sim: podes contar.
— E por quem?
— Pelo Aimoré.
— E como sabes isto? perguntou D. Antônio fitando
nele um olhar desconfiado.
O índio hesitou durante um momento; estudava a
resposta.
— Peri sabe porque viu o pai e o irmão da índia,
que teu filho matou sem querer, olharem tua casa de longe, soltarem o grito da
vingança, e caminharem para sua tribo.
— E tu o que fizeste?
— Peri viu-os passar; e vem te avisar para que te prepares.
O fidalgo fez com a cabeça um movimento de
incredulidade.
— É preciso não te conhecer, Peri, para acreditar
no que dizes; tu não podias olhar com indiferença para os inimigos de tua
senhora e meus.
O índio sorriu tristemente.
— Eram mais fortes; Peri deixou que passassem.
D. Antônio começou a refletir; parecia evocar as
suas reminiscências, e combinar certas circunstâncias que tinha impressas na
memória.
Seu olhar abaixando-se do rosto de Peri, caíra
sobre os ombros; a princípio vago e distraído como o de um homem que medita,
começou a fixar-se e a distinguir um ponto vermelho quase imperceptível, que
aparecia no saio de algodão do índio.
À proporção que a vista se firmava, e que o objeto
se desenhava mais distinto, o semblante do fidalgo se esclarecia, como se
tivesse achado a solução de um difícil problema.
— Estás ferido? exclamou o fidalgo de repente.
Peri recuou um passo; mas D. Antônio lançando-se
para ele entreabriu o talho de sua camisa: e tirou-lhe as duas pistolas da
cinta, examinou-as, e viu que estavam descarregadas.
O cavalheiro depois deste exame cruzou os braços e
contemplou o índio com admiração profunda.
— Peri, disse ele, o que fizeste é digno de ti; o
que fazes agora é de um fidalgo. Teu nobre coração pode bater sem envergonhar-se
sobre o coração de um cavalheiro português. Tomo-vos a todos por testemunhas,
que vistes um dia D. Antônio de Mariz apertar ao seu peito um inimigo de sua
raça e de sua religião, como a seu igual em nobreza e sentimentos.
O fidalgo abriu os braços e deu em Peri o abraço
fraternal consagrado pelos estilos da antiga cavalaria, da qual já naquele
tempo apenas restavam vagas tradições. O índio, de olhos baixos, comovido e
confuso, parecia um criminoso em face do juiz.
— Vamos, Peri, disse D. Antônio, um homem não deve
mentir, nem mesmo para esconder as suas boas ações. Responde-me a verdade.
— Fala.
— Quem disparou dois tiros junto ao rio, quando tua
senhora estava no banho?
— Foi Peri.
— Quem atirou uma flecha que caiu junto de Cecília?
— Um Aimoré, respondeu o índio estremecendo.
— Por que a outra flecha ficou sobre o lugar onde
estão os corpos dos selvagens?
Peri não respondeu.
— É escusado negares; tua ferida o diz. Para salvar
tua senhora, te ofereceste aos tiros dos inimigos; depois os mataste.
— Tu sabes tudo; Peri não é mais preciso; volta à
sua tribo.
O índio lançou um último olhar à sua senhora, e
caminhou para a porta
— Peri! exclamou Cecília, fica; tua senhora manda.
Depois correndo para seu pai, e sorrindo-lhe entre
as lágrimas, disse com um tom suplicante:
— Não é verdade? Ele não deve partir mais. Vós não
podeis mandá-lo embora, depois do que fez por mim?
— Sim! A casa onde habita um amigo dedicado como
este, tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos. Ele ficará
conosco, e para sempre.
Peri, trêmulo e palpitando de alegria e esperança,
estava suspenso dos lábios de D. Antônio.
— Minha mulher, disse o fidalgo dirigindo-se a D.
Lauriana com uma expressão solene, julgais que um homem que acaba de salvar
pela segunda vez vossa filha pondo em risco a sua vida; que, despedido por nós,
apesar da nossa ingratidão, a sua última palavra é uma dedicação por aqueles
que o desconhecem; julgais que este homem deva sair da casa onde tantas vezes a
desgraça teria entrado, se ele ai não estivera?
D. Lauriana, tirados os seus prejuízos, era uma boa
senhora: e quando o seu coração se comovia, sabia compreender os sentimentos
generosos. As palavras de seu marido acharam eco em sua alma.
— Não, disse ela levantando-se e dando alguns
passos; Peri deve ficar, sou eu que vos peço agora esta graça, Sr. D. Antônio
de Mariz; tenho também a minha dívida a pagar.
O índio beijou com respeito a mão que a mulher do
fidalgo lhe estendera.
Cecília batia as mãos de contente; os dois
cavalheiros sorriam, um para o outro, e compreendiam-se. O filho sentia um
certo orgulho, vendo seu pai nobre, grande e generoso. O pai conhecia que seu
filho o aprovava, e seguiria o exemplo que lhe dava.
Neste momento Aires Gomes apareceu no vão da porta
e ficou estupefato.
O que passava era para ele uma coisa
incompreensível, um enigma indecifrável para quem ignorava o que sucedera
anteriormente.
Pela manhã, depois do almoço, D. Antônio de Mariz,
chegando a uma janela da sala, vira uma grande nuvem negra abater-se sobre a
margem do Paquequer. A quantidade dos abutres que formavam essa nuvem, indicava
que o pasto era abundante; devia ser um ou muitos animais de grande
corpulência.
Levado pela curiosidade natural em uma existência
sempre igual e monótona, o fidalgo desceu ao rio; encontrou junto da latada de
jasmineiros que servia de casa de banho a Cecília, uma pequena canoa em que
atravessou para a margem oposta.
Aí descobriu os corpos dos dois selvagens que
imediatamente reconheceu pertencerem à raça dos Aimorés; viu que tinham sido
mortos com arma de fogo. Nesse momento não se lembrou de coisa alguma senão de
que os selvagens iam talvez atacar a sua casa, e um terrível pressentimento
cerrou-lhe o coração.
D. Antônio não era supersticioso; mas não pudera
eximir-se de um receio vago quando soube da morte que D. Diogo tinha feito
involuntariamente e por falta de prudência; fora este o motivo por que se tinha
mostrado tão severo com seu filho.
Vendo agora o começo da realização de suas sinistras
previsões, aquele receio vago que a princípio sentira, redobrou; auxiliado pela
disposição de espírito em que se achava, tornou-se em forte pressentimento.
Uma voz interior parecia dizer-lhe que uma grande
desgraça pesava sobre sua casa, e a existência tranqüila e feliz que até então
vivera naquele ermo, ia transformar-se numa aflição que ele não sabia definir.
Sob a influência desse movimento involuntário da alma, que às vezes sem motivo
nos mostra a esperança ou a dor, o fidalgo voltou à casa.
Perto viu dois aventureiros a quem ordenou que
fossem imediatamente enterrar os selvagens, e guardassem o maior silêncio sobre
isto: não queria assustar sua mulher.
O mais já sabemos.
Pensou que podia a desgraça, que ele temia, recair
sobre sua pessoa, e quis dispor a sua última vontade, assegurando o sossego de
sua família.
Depois, o aviso de Peri lembrou-lhe de repente o
que tinha visto; recordou-se das menores circunstâncias, combinou-as com o que
Isabel havia contado a sua tia, e conheceu o que se tinha passado como se o
houvesse presenciado.
A ferida do índio que se abrira com as emoções por
que passou durante o momento cruel em que sua senhora o mandava partir, tinha
manchado o saio de algodão com um ponto quase imperceptível; este ponto foi um
raio de luz para D. Antônio.
O escudeiro, o digno Aires Comes, que depois de
esforços inauditos conseguira arrastar com o pé a sua espada, levantá-la e com
ela cortar os laços que o prendiam, tinha pois razão de ficar pasmado diante do
que se passava.
Peri, beijando a mão de D. Lauriana, Cecília
contente e risonha, D. Antônio de Mariz e D. Diogo contemplando o índio com um
olhar de gratidão; tudo isto ao mesmo tempo, era para fazer enlouquecer ao
escudeiro.
Sobretudo para quem souber que apenas livre correra
à casa unicamente com o fim de contar o ocorrido e pedir a D. Antônio de Mariz
licença para esquartejar o índio; resolvido se o fidalgo lha negasse, a
despedir-se do seu serviço, no qual se conservava havia trinta anos; mas tinha
uma injúria a vingar, e bem que lhe custasse deixar a casa, Aires Gomes não
hesitava.
D. Antônio vendo a figura espantada do escudeiro,
riu-se; sabia que ele não gostava do índio, e quis neste dia reconciliar todos
com Peri.
— Vem cá, meu velho Aires, meu companheiro de
trinta anos. Estou certo que tu, a fidelidade em pessoa, estimarás apertar a
mão de um amigo dedicado de toda a minha família.
Aires Gomes não ficou pasmado só; ficou uma
estátua. Como desobedecer a D. Antônio que lhe falava com tanta amizade? Mas
como apertar a mão que o havia injuriado?
Se já se tivesse despedido do serviço, seria livre;
mas a ordem o pilhara de surpresa; não podia sofismá-la.
— Vamos, Aires!
O escudeiro estendeu o braço hirto; o índio
apertou-lhe a mão sorrindo.
— Tu és amigo; Peri não te amarrará outra vez.
Por estas palavras todos adivinharam confusamente o
que se tinha passado, e ninguém pôde deixar de rir-se.
— Maldito bugre! murmurava o escudeiro entredentes;
hás de sempre mostrar o que és.
Era hora do jantar: o toque soou.
XI
TRAVESSURA
Na tarde desse mesmo domingo em que tantos acontecimentos se tinham passado,
Cecília e Isabel saiam do jardim com o braço na cintura uma da outra.
Estavam vestidas branco; lindas ambas, mas tinha
cada uma diversa beleza; Cecília era a graça; Isabel era a paixão; os olhos
azuis de uma brincavam; os olhos negros da outra brilhavam.
O sorriso de Cecília, parecia uma gota de mel e
perfume que destilavam os seus lábios mimosos; o sorriso de Isabel era como um
beijo ideal, que fugia-lhe da boca e ia rogar com as suas asas a alma daqueles
que a contemplavam.
Vendo aquela menina loura, tão graciosa e gentil, o
pensamento elevava-se naturalmente ao céu, despia-se do invólucro material e
lembrava-se dos anjinhos de Deus.
Admirando aquela moça morena, lânguida e
voluptuosa, o espírito apegava-se à terra; esquecia o anjo pela mulher; em vez
do paraíso, lembrava-lhe algum retiro encantador, onde a vida fosse um breve
sonho.
No momento em que saiam do jardim, Cecília, olhava
sua prima com um certo arzinho malicioso, que fazia prever alguma travessura
das que costumava praticar.
Isabel, ainda impressionada pela cena da manhã,
tinha os olhos baixos; parecia-lhe, depois do que se havia passado, que todos,
e principalmente Álvaro, iam ler o seu segredo guardado por tanto tempo no
fundo de sua alma.
Entretanto sentia-se feliz; uma esperança vaga e
indefinida dilatava-lhe o coração e dava à sua fisionomia a expressão de
júbilo, expansão da criatura quando acredita ser amada, auréola brilhante que
bem se podia chamar a alma do amor.
O que esperava ela? Não sabia; mas o ar lhe parecia
mais perfumado, a luz mais brilhante, o olhar via os objetos cor-de-rosa, e o
leve roçar da espiguilha do vestido no seu colo aveludado causava-lhe sensações
voluptuosas.
Cecília com o misterioso instinto da mulher
adivinhava, sem compreender, que alguma coisa de extraordinário se passava em
sua prima; e admirava a irradiação de beleza que brilhava no seu moreno
semblante.
— Como estás bonita! disse a menina de repente.
E conchegando a face de Isabel aos lábios, imprimiu
nela um beijo suave; a moça respondeu afetuosamente à carícia de sua prima.
— Não trouxeste o teu bracelete? exclamou ela
reparando no braço de Cecília.
— É verdade! replicou a menina com um gesto de
enfado.
Isabel julgou que este gesto era produzido pelo
esquecimento; mas a verdadeira causa foi o receio que teve Cecília de se trair.
— Vamos buscá-lo?
— Oh! não! ficaria tarde, e perderíamos o nosso
passeio.
— Então devo tirar o meu; já não estamos irmãs.
— Não importa; quando voltarmos prometo-te que
ficaremos bem irmãs.
Dizendo isto Cecília sorria maliciosamente.
Tinham chegado à frente da casa. D. Lauriana
conversava com seu filho D. Diogo, enquanto D. Antônio de Mariz e Álvaro
passeavam pela esplanada conversando.
Cecília se dirigiu ao pai, levando Isabel, que ao
aproximar-se do jovem cavalheiro sentiu fugir-lhe a vida.
— Meu pai, disse a menina, nós queremos dar um
passeio.
A tarde está tão linda! Se eu vos pedisse e ao Sr.
Álvaro para que nos acompanhassem?
— Nós faríamos como sempre que tu pedes, respondeu
o fidalgo galanteando; cumpriríamos a tua ordem.
— Oh! ordem não, meu pai! Desejo apenas!
— E o que são os desejos de um lindo anjinho como
tu?
— Assim, nos acompanhais?
— Decerto.
— E vós, Sr. Álvaro?
— Eu... obedeço.
Cecília falando ao moço não pôde deixar de corar;
mas venceu a perturbação e seguiu com sua prima para a escada que descia ao
vale.
Álvaro estava triste; depois da conversa que tivera
com Cecília, vira-a durante o jantar; a menina evitava os seus olhares, e nem
uma só vez lhe dirigira a palavra. O moço supunha que tudo isto era resultado
de sua imprudência da véspera; mas Cecília mostrava-se tão alegre e satisfeita
que parecia impossível ter conservado a lembrança da ofensa de que ele se
acusava.
A maneira por que a menina o tratava tinha mais de
indiferença do que de ressentimento: dir-se-ia que esquecera tudo que havia
passado; nem guardava já a mínima lembrança da manhã. Era isto o que tornara
Álvaro triste, apesar da felicidade que sentira quando D. Antônio o chamara seu
filho; felicidade que às vezes parecia-lhe um sonho encantador que ia
esvaecer-se.
As duas moças haviam chegado ao vale, e seguiam por
entre as moitas de arvoredo que bordavam o campo formando um gracioso
labirinto. Às vezes Cecília desprendia-se do braço de sua prima, e correndo
pela vereda sinuosa que recortava as moitas de arbustos, escondia-se por detrás
da folhagem e fazia com que Isabel a procurasse debalde por algum tempo. Quando
sua prima por fim conseguia descobri-la, riam-se ambas, abraçavam-se e
continuavam o inocente folguedo.
Uma ocasião porém Cecília, deixou que D. Antônio e
Álvaro se aproximassem; a menina tinha um olhar tão travesso e um sorriso tão
brejeiro, que Isabel ficou inquieta.
— Esqueci-me dizer-vos uma coisa, meu pai.
— Sim! E o que é?
— Um segredo.
— Pois vem contar-mo.
Cecília separou-se de Isabel; chegando-se para o
fidalgo, tomou-lhe o braço.
— Tende paciência por um instante, Sr. Álvaro,
disse ela voltando-se; conversai com Isabel; dizei-lhe vossa opinião sobre
aquele lindo bracelete... Ainda não o vistes?
E sorrindo afastou-se ligeiramente com seu pai; o
segredo que ela tinha, era a travessura que acabava de praticar, deixando
Álvaro e Isabel sós, depois de lhes ter lançado uma palavra, que devia produzir
o seu efeito.
A emoção que sentiram os dois moços ouvindo o que
dissera Cecília é impossível de descrever.
Isabel suspeitou o que se tinha passado; conheceu
que Cecília, a enganara para obrigá-la a aceitar o presente de Álvaro; o olhar
que sua prima lhe lançara afastando-se com seu pai, lho tinha revelado.
Quanto a Álvaro, não compreendia coisa alguma,
senão que Cecília tinha-lhe dado a maior prova de seu desprezo e indiferença;
mas não podia adivinhar a razão por que ela associara Isabel a esse ato que
devia ser um segredo entre ambos.
Ficando sós em face um do outro, não ousavam
levantar os olhos; a vista de Álvaro estava cravada no bracelete; Isabel,
trêmula, sentia o olhar do moço, e sofria como se um anel de ferro cingisse o
seu braço mimoso.
Assim estiveram tempo esquecido; por fim Álvaro
desejoso de ter uma explicação, animou-se a romper o silêncio:
— Que significa tudo isto, D. Isabel? perguntou ele
suplicante.
— Não sei!... Fui escarnecida! respondeu Isabel
balbuciando.
— Como?
— Cecília fez-me acreditar que este bracelete vinha
de seu pai para me fazer aceitá-lo; pois se eu soubesse...
— Que vinha de minha mão? Não aceitaríeis?
— Nunca!... exclamou a moça com fogo.
Álvaro admirou-se do tom com que Isabel proferiu
aquela palavra; parecia dar um juramento.
— Qual o motivo? perguntou depois de um momento.
A moça fitou nele os seus grandes olhos negros;
havia tanto amor e tanto sentimento nesse olhar profundo, que se Álvaro o
compreendesse, teria a resposta à sua pergunta. Mas o cavalheiro não
compreendeu nem o olhar nem o silêncio de Isabel: adivinhava que havia nisto um
mistério, e desejava esclarecê-lo.
Aproximou-se da moça e disse-lhe com a vez doce e
triste:
— Perdoai-me. D. Isabel; sei que vou cometer uma
indiscrição; mas o que se passa exige uma explicação entre nós. Dizeis que
fostes escarnecida; também eu o fui. Não achais que o melhor meio de acabar com
isso, seja o falarmos francamente um ao outro?
Isabel estremeceu.
— Falai: eu vos escuto, Sr. Álvaro.
— Escuso confessar-vos o que já adivinhastes;
sabeis a historia deste bracelete, não é verdade?
— Sim! balbuciou a moça.
— Dizei-me pois como ele passou do lugar onde
estava, ao vosso braço. Não penseis que vos censuro por isso, não; desejo
apenas conhecer até que ponto zombam de mim.
— Já vos confessei o que sabia. Cecília enganou-me.
— E a razão que teve ela para enganar-vos não
atinais?
— Oh! se atino... exclamou Isabel reprimindo as
palpitações do coração.
— Dizei-ma então. Eu vo-lo peço e suplico!
Álvaro tinha deitado um joelho em terra, e tomando
a mão da moça implorava dela a palavra que devia explicar-lhe o ato de Cecília,
e revelar-lhe a razão que tivera a menina para rejeitar a prenda que ele havia
dado.
Conhecendo esta razão talvez pudesse desculpar-se,
talvez pudesse merecer o perdão da menina; e por isso pedia com instância a
Isabel que lhe declarasse o motivo por que Cecília a havia enganado.
A moça vendo Álvaro a seus pés, suplicante, tinha-se
tornado lívida; seu coração batia com tanta violência que via-se o peito de seu
vestido elevar-se com as palpitações fortes e apressadas: o seu olhar ardente
caia sobre o moço e o fascinava.
— Falai! dizia Álvaro; falai! Sois boa; e não me
deixeis sofrer assim, quando uma palavra vossa pode dar-me a calma e o sossego.
— E se essa palavra vos fizesse odiar-me? balbuciou
a moça.
— Não tenhais esse receio; qualquer que seja a
desgraça que me anunciardes, será bem-vinda pelos vossos lábios; é sempre um consolo
receber-se a má nova da voz amiga!
Isabel ia falar, mas parou estremecendo:
— Ah! não posso! seria preciso confessar-vos tudo!
— E por que não confessais? Não vos mereço
confiança? Tendes em mim um amigo.
— Se fôsseis!...
E os olhos de Isabel cintilaram.
— Acabai!
— Se me fôsseis amigo, me havíeis de perdoar.
— Perdoar-vos, D. Isabel! Que me fizeste vós para
que vos eu perdoe? disse Álvaro admirado.
A moca teve medo do que havia dito; cobriu o rosto
com as mãos.
Todo este diálogo, vivo, animado, cheio de
reticências e hesitações da parte de Isabel, tinha excitado a curiosidade do
cavalheiro; seu espírito perdia-se num dédalo de dúvidas e incertezas.
Cada vez o mistério se obscurecia mais; a princípio
Isabel dizia que tinham escarnecido dela; agora dava a entender que era
culpada: o cavalheiro resolveu a todo transe penetrar o que para ele era um
enigma.
— D. Isabel!
A moça tirou as mãos do rosto; tinha as faces
inundadas de lágrimas.
— Por que chorais? perguntou Álvaro surpreso.
— Não mo pergunteis!...
— Escondeis-me tudo! Deixais-me na mesma dúvida! O
que me fizestes vós? Dizei!
— Quereis saber? perguntou a moça com exaltação.
— Tanto tempo há que suplico-vos!
Álvaro tomara as duas mãos da moça, e com os olhos
fitos nos dela esperava enfim uma resposta.
Isabel estava branca como a cambraia do seu
vestido; sentia a pressão das mãos do moço nas suas e o seu hálito que vinha
bafejar-lhe as faces.
— Me perdoareis?
— Sim! Mas por quê?
— Porque...
Isabel pronunciou esta palavra numa espécie de
delírio; uma revolução súbita se tinha operado em toda a sua organização.
O amor profundo, veemente, que dormia no intimo de
sua alma, a paixão abafada e reprimida, por tanto tempo, acordara, e quebrando
as cadeias que a retinham, erguia-se impetuosa e indomável.
O simples contato das mãos do moço tinha causado
essa revolução; a menina tímida ia transformar-se na mulher apaixonada: o amor
ia transbordar do coração como a torrente caudalosa do leito profundo.
As faces se abrasaram; o seio dilatou-se: o olhar
envolveu o moço, ajoelhado a seus pés, em fluidos luminosos; a boca entreaberta
parecia esperar, para pronunciá-la, a palavra que sua alma devia trazer aos
lábios.
Álvaro fascinado a admirava; nunca a vira tão bela;
o moreno suave do rosto e do colo da moça iluminava-se de reflexos doces e
tinha ondulações tão suaves, que o pensamento ia, sem querer, enlear-se nas
curvas graciosas como para sentir-lhe o contato, espreguiçar-se pelas formas
palpitantes.
Tudo isto passara rapidamente enquanto Isabel
hesitava ao preferir -a primeira palavra.
Por fim vacilou: reclinando sobre o ombro de
Álvaro, como uma flor desfalecida sobre a haste, murmurou:
— Porque... vos amo!
XII
PELO AR
Álvaro ergueu-se como se os lábios da moça tivessem lançado nas suas veias uma
gota do veneno sutil dos selvagens que matava com um átomo.
Pálido, atônito, fitava na menina um olhar frio e
severo; seu coração leal exagerava a afeição pura que votava a Cecília a tal
ponto, que o amor de Isabel lhe parecia quase uma injúria; era ao menos uma
profanação.
A moça com as lágrimas nos olhos, sorria
amargamente; o movimento rápido de Álvaro tinha trocado as posições; agora era
ela que estava ajoelhada aos pés do cavalheiro.
Sofria horrivelmente; mas a paixão a dominava; o
silêncio de tanto tempo queimava-lhe os lábios; seu amor precisava respirar,
expandir-se, embora depois o desprezo e mesmo o ódio o viessem recalcar no
coração.
— Prometestes perdoar-me!... disse ela suplicante.
— Não tenho que perdoar-vos, D. Isabel, respondeu o
moço erguendo-a; peço-vos unicamente que não falemos mais de semelhante coisa.
— Pois bem! Escutai-me um momento, um instante só,
e juro-vos por minha mãe, que não ouvireis nunca mais uma palavra minha! Se
quereis, nem mesmo vos olharei! Não preciso olhar para ver-vos!
E acompanhou estas palavras com um gesto sublime de
resignação.
— Que desejais de mim? perguntou o moço.
— Desejo que sejais meu juiz. Condenai-me depois; a
pena vindo de vos será para mim um consolo. Mo negareis?
Álvaro sentiu-se comovido por essas palavras soltas
com o grito de um desespero surdo e concentrado.
— Não cometestes um crime, nem precisais de juiz;
mas se quereis um irmão para consolar-vos, tendes em mim um dedicado e sincero.
— Um irmão!... exclamou a moça. Seria ao menos uma
afeição.
— E uma afeição calma e serena que vale bem outras,
D. Isabel.
A moca não respondeu; sentiu a doce exprobração que
havia naquelas palavras; mas sentia também o amor ardente que enchia sua alma e
a sufocava.
Álvaro tinha-se lembrado da recomendação de D.
Antônio de Mariz; o que a princípio fora uma simples compaixão tornou-se
simpatia. Isabel era desgraçada desde a infância; devia pois consolá-la e desde
já cumprir a última vontade do velho fidalgo, a quem amava e respeitava como
pai.
— Não recuseis o que vos peço, disse ele
afetuosamente, aceitai-me por vosso irmão.
— Assim deve ser, respondeu Isabel tristemente.
Cecília me chama sua irmã; vós deveis ser meu irmão. Aceito! Sereis bom para
mim?
— Sim, D. Isabel.
— Um irmão não deve tratar sua irmã pelo seu nome
simplesmente? perguntou ela com timidez.
Álvaro hesitou.
— Sim, Isabel.
A moça recebeu essa palavra como um gozo supremo;
parecia-lhe que os lábios do cavalheiro, pronunciando assim familiarmente o seu
nome, a acariciavam.
— Obrigada! Não sabeis que bem me faz ouvir-vos
chamar-me assim. É preciso ter sofrido muito para que a felicidade esteja em
tão pouco.
— Contai-me as vossas mágoas.
— Não; deixai-as comigo; talvez depois as conte; agora
só quero mostrar-vos que não sou tão culpada como pensais.
— Culpada! Em quê?
— Em querer-vos, disse Isabel corando.
Álvaro tornou-se frio e reservado.
— Sei que vos incomodo; mas é a primeira e a última
vez; ouvi-me, depois ralhareis comigo, como um irmão com sua irmã.
A voz de Isabel era tão doce, seu olhar tão
suplicante, que Álvaro não pôde resistir.
— Falai, minha irmã.
— Sabeis o que eu sou; uma pobre órfã que perdeu
sua mãe muito cedo, e não conheceu seu pai. Tenho vivido da compaixão alheia;
não me queixo, mas sofro. Filha de duas raças inimigas devia amar a ambas;
entretanto minha mãe desgraçada fez-me odiar a uma, o desdém com que me tratam
fez-me desprezar a outra.
— Pobre moça! murmurou Álvaro lembrando-se segunda
vez das palavras de D. Antônio de Mariz.
— Assim isolada no meio de todos, alimentando
apenas o sentimento amargo que minha mãe deixara no meu coração, sentia a
necessidade de amar alguma coisa. Não se pode viver somente de ódio e
desprezo!...
— Tendes razão, Isabel.
— Inda bem que me aprovais. Precisava amar;
precisava de uma afeição que me prendesse à vida. Não sei como, não sei quando,
comecei a amar-vos; mas em silêncio, no fundo de minha alma.
A moça embebeu um olhar nos olhos de Álvaro.
— Isto me bastava. Quando vos tinha olhado horas e
horas, sem que o percebêsseis, julgava-me feliz; recolhia-me com a minha doce
imagem, e conversava com ela, ou adormecia sonhando bem lindos sonhos.
O cavalheiro sentia-se perturbado; mas não ousava
interromper a Isabel.
— Não sabeis que segredos tem esse amor que vive só
de suas ilusões, sem que um olhar, uma palavra o alimente. A mais pequenina
coisa é um prazer, uma ventura suprema. Quantas vezes não acompanhava o raio de
lua que entrava pela minha janela e que vinha a pouco e pouco se aproximando de
mim; julgava ver naquela doce claridade o vosso semblante, e esperava trêmula
de prazer como se vos esperasse. Quando o raio se chegava, quando a sua luz
acetinada cala sobre mim, sentia um gozo imenso; acreditava que me sorríeis,
que vossas mãos apertavam as minhas, que vosso rosto se reclinava para mim, e
vossos lábios me falavam...
Isabel pendeu a cabeça lânguida sobre o ombro de
Álvaro; o cavalheiro palpitando de emoção passou o braço pela cintura da moça e
apertou-a ao coração; mas de repente afastou-se com um movimento brusco.
— Não vos arreceeis de mim, disse ela com
melancolia, sei que não me deveis amar. Sois nobre e generoso; o vosso primeiro
amor será o último. Podeis-me ouvir sem temor.
— Que vos resta dizer-me ainda? perguntou Álvaro.
— Resta a explicação que há pouco me pedíeis.
— Ah! enfim!
Isabel contou então como apesar de toda a força de
vontade com que guardava o seu segredo, se havia traído; contou a conversa de
Cecília e o modo por que a menina lhe fizera aceitar o bracelete.
— Agora sabeis tudo; o meu afeto vai de novo entrar
no meu coração, donde nunca sairia se não fosse a fatalidade que fez com que
vos aproximásseis de mim, e me dirigisse algumas palavras doces. A esperança
para as almas que não a conheceram ainda, ilude tanto e fascina, que devo
merecer-vos desculpa. Esquecei-me, meu irmão, antes que lembrar-vos de mim para
odiar-me!
— Fazei-me uma injustiça, Isabel; não posso é
verdade ser para vós senão um irmão, mas esse titulo sinto que o mereço pela
estima e pela afeição que me inspirais. Adeus, minha boa irmã.
O moço pronunciou estas últimas palavras com uma
terna efusão, e apertando a mão de Isabel, desapareceu: precisava estar só para
refletir sobre o que lhe acontecia.
Estava agora convencido que Cecília não o amava, e
nunca o havia amado; e esta descoberta tinha lugar no mesmo dia em que D.
Antônio de Mariz lhe dava a mão de sua filha!
Sob o peso da mágoa dolorosa, como é sempre a
primeira mágoa do coração, o cavalheiro afastou-se distraído, com a cabeça
baixa; caminhou sem direção, seguindo a linha que lhe traçavam os grupos de
árvores, destacados aqui e ali sobre a campina.
Estava quase a anoitecer: a sombra pálida e
descorada do crepúsculo estendia-se como um manto de gaza sobre a natureza; os
objetos iam perdendo a forma, a cor, e ondulavam no espaço vagos e indecisos.
A primeira estrela engolfada no azul do céu luzia a
furto como os olhos de uma menina que se abrem ao acordar, e cerram-se outra
vez temendo a claridade do dia: um grilo escondido no toco de uma árvore
começava a sua canção; era o trovador inseto saudando a aproximação da noite.
Álvaro continuava o seu passeio, sempre pensativo,
quando de repente sentiu um sopro vivo bafejar-lhe o rosto; erguendo os olhos
viu diante de si uma longa flecha fincada no chão, e que ainda oscilava com o
movimento que lhe tinha imprimido o arco.
O moço recuou um passo e levou a mão à cinta; logo
refletindo aproximou-se da seta e examinou a plumagem de que estava ornada;
eram de um lado penas de azulão e do outro penas de garça.
Azul e branco eram as cores de Peri; eram as cores
dos olhos e do rosto de Cecília.
Um dia a menina, semelhante a uma gentil castelã da
idade Média, tinha se divertido em explicar ao índio, como os guerreiros que
serviam uma dama, costumavam usar nas armas de suas cores.
— Tu dás a Peri as tuas cores, senhora? disse o
índio.
— Não tenho, respondeu a menina; mas vou tomar umas
para te dar; queres?
— Peri te pede.
— Quais achas mais bonitas?
— A de teu rosto, e a de teus olhos.
Cecília sorriu.
— Toma-as eu tas dou.
Desde este dia, Peri enramou todas as suas setas de
penas azuis e brancas; seus ornatos, além de uma faixa de plumas escarlates que
fora tecida por sua mãe, eram ordinariamente das mesmas cores.
Foi por esta razão que Álvaro, vendo a plumagem da
seta, tranqüilizou-se; conheceu
que era de Peri, e compreendeu o sentido da frase
simbólica que o índio lhe mandava pelos ares.
Com efeito aquela flecha na linguagem de Peri não
era mais do que um aviso dado em silêncio e de uma grande distancia; uma carta
ou mensageira muda, uma simples interjeição: Alto!
O moço esqueceu os seus pensamentos e lembrou-se do
que Peri lhe havia dito pela manhã; naturalmente o que acabava de fazer tinha
relação com esse mistério que apenas deixara entrever.
Correu os olhos pelo espaço que se estendia diante
dele, e sondou com o olhar as moitas que o cercavam, não viu nada que merecesse
atenção, não percebeu um sinal que lhe indicasse a presença do índio.
Álvaro resolveu pois esperar; e parando junto da
flecha, cruzou os braços, e com os olhos fitos na linha escura da mata que se
recortava no fundo azul do horizonte, esperou.
Um instante depois uma pequena seta açoitando o ar
veio cravar-se no tope da primeira, e abalou-a com tal força que a haste
inclinou-se; Álvaro compreendeu que o índio queria arrancar a flecha, e
obedeceu à ordem.
Imediatamente terceira seta caiu dois passos à
direita do cavalheiro, e outras foram-se sucedendo na mesma direção de duas em
duas braças até que uma mergulhou-se num arvoredo basto que ficava a trinta
passos do lugar onde parara a princípio.
Não era difícil desta vez compreender a vontade de
Peri; Álvaro, que acompanhava as setas a proporção que caiam, e que sabia
indicarem elas o lugar onde devia parar, apenas viu a última sumir-se no
arvoredo, escondeu-se por entre a folhagem.
Daí, com pequeno intervalo, viu três vultos que
passavam pouco mais ou menos pelo lagar que há pouco havia deixado; Álvaro não
os pôde conhecer por causa da ramagem das árvores, mas viu que caminhavam
cautelosamente, e pareceu-lhe que tinham as pistolas em punho.
Os vultos afastaram-se dirigindo-se à casa; o
cavalheiro ia segui-los, quando as folhas se abriram, e Peri resvalando como
uma sombra, sem fazer o menor rumor, aproximou-se dele, e disse-lhe ao ouvido
uma palavra:
— São eles.
— Eles quem?
— Os inimigos brancos.
— Não te entendo.
— Espera: Peri volta.
E o índio despareceu de novo nas sombras da noite
que avançava rapidamente.
XIII
TRAMA
Tornemos ao lugar onde deixamos Loredano e seus dois companheiros.
O italiano depois que Álvaro e Peri se afastaram,
levantou-se; passada a primeira emoção, sentira um acesso de raiva e desespero
por lhe escaparem os seus inimigos.
Um instante lembrou-se de chamar os cúmplices para
atacar o cavalheiro e o índio; mas essa idéia desvaneceu-se logo; o aventureiro
conhecia os homens que o seguiam; sabia que podia fazer deles assassinos, mas
nunca homens de energia e resolução.
Ora, os dois inimigos que tinha a combater, eram
respeitáveis; e Loredano temeu comprometer ainda mais a sua causa, já muito mal
parada. Devorou pois em silêncio a sua raiva, e começou a refletir nos meios de
sair da posição difícil em que se achava.
Neste meio tempo Rui Soeiro e Bento Simões
vinham-se aproximando receosos do que tinham visto, e temendo o menor incidente
que complicasse a situação.
Loredano e seus companheiros olharam-se em silêncio
um momento; havia nos olhos destes últimos uma interrogação muda e inquieta, a
que respondia perfeitamente o rosto pálido e contraído do italiano.
— Não era ele!... murmurou o aventureiro com a voz
surda.
— Como sabeis?
— Se fosse, acreditais que me deixasse a vida?
— É verdade; mas quem foi então?
— Não sei; porém agora pouco importa. Quem quer que
fosse, é um homem que sabe o nosso segredo e pode denunciá-lo, se já não o fez.
— Um homem?... murmurou Bento Simões que até então
se conservava silencioso.
— Sim; um homem. Quereis que fosse uma sombra?
— Uma sombra não, mas um espírito! acudiu o
aventureiro.
O italiano sorriu de escárnio.
— Os espíritos têm mais que fazer para se ocuparem
com o que vai por este mundo; guardai as vossas abusões, e pensemos seriamente
no partido que devemos tomar.
— Lá quanto a isso, Loredano, é escusado; ninguém
me tira que anda em tudo isto uma coisa sobrenatural.
— Quereis calar-vos, estúpido carola! replicou o
italiano com impaciência.
— Estúpido!... Estúpido sois vós que não vistes que
não há ouvido de criatura que pudesse ouvir as nossas palavras, nem voz humana
que saia da terra. Vinde! E vou mostrar-vos se o que digo é ou não é verdade.
Os dois acompanharam Bento Simões e voltaram à
touça de cardos, onde tivera lugar a sua entrevista.
— Ide, Rui e falai à goela despregada para ver se
Loredano ouve uma palavra sequer.
Com efeito a experiência mostrou-lhes o que Peri
tinha conhecido; que o som da voz entaipado dentro daquela espécie de tubo, se
elevava e perdia no ar, sem que dos lados se pudesse perceber a menor frase. Se
porém o italiano se tivesse colocado sobre o formigueiro que penetrava até ao
chão onde há pouco estavam sentados, teria tido a explicação da cena anterior.
— Agora, disse Bento Simões, entrai; eu gritarei e
vereis que a palavra vos passará pela cabeça e não sairá da terra.
— Quanto a isso pouco se me dá, respondeu o
italiano. A outra observação, sim, tranqüiliza-me. O homem que nos ameaçou não
ouviu; desconfia apenas.
— Ainda insistis em que fosse um homem?
— Escutai, amigo Bento Simões; há uma coisa de que
tenho mais medo do que de uma cobra; é de um homem visionário.
— Visionário! dizei crente!
— Um vale outro. Visionário ou crente, se me falais
outra vez em espíritos e milagres, prometo-vos que ficareis neste lugar onde
servireis de carniça aos urubus.
O aventureiro tornou-se esverdinhado; não era a
idéia da morte e sim da pena eterna que segundo uma crença religiosa, sofrem as
almas cujos corpos ficam insepultos, o que mais o horrorizava.
— Pensastes?
— Sim.
— Admitis que fosse um homem?
— Admito tudo.
— Jurais.
— Juro.
— Sobre...
— Sobre a minha salvação.
O italiano soltou o braço do miserável, que caiu de
joelhos pedindo ao Deus que ofendia perdão para o perjúrio que acabava de
cometer.
Rui Soeiro voltou: os três seguiram calados o
caminho que tinham feito, Loredano pensativo, seus companheiros cabisbaixos.
Sentaram-se à sombra de uma árvore; ai permaneceram
quase uma hora, sem saber o que deviam fazer, nem o que podiam esperar. A
posição era critica, reconheciam que se achavam num desses lances da vida, em
que um passo, um movimento, precipita o homem no fundo do abismo, ou o salva da
morte que vai cair sobre ele.
Loredano media a situação com a audácia e energia
que nunca o abandonava nas ocasiões extremas; uma lata violenta se travara
neste homem; só tinha agora um sentimento, uma fibra; era a sede ardente do
gozo, sensualidade exacerbada pelo ascetismo do claustro e o isolamento do
deserto. Comprimida desde a infância, a sua organização se expandira com
veemência no meio deste pais vigoroso, aos raios do sol ardente que fazia
borbulhar o sangue.
Então, no delírio dos instintos materiais, surgiram
duas paixões violentas.
Uma era a paixão do ouro; a esperança de poder um
dia deleitar-se na contemplação do tesouro fabuloso que como Tântalo ele ia
tocar e fugia-lhe.
A outra era paixão do amor; a febre que lhe
requeimava o sangue quando via aquela menina inocente e cândida, que parecia
não dever inspirar senão afeições castas.
A lata que naquele momento o agitava, dava-se entre
essas duas paixões. Devia fugir e salvar o seu tesouro, perdendo Cecília? Devia
ficar e arriscar a vida para saciar o seu desejo infrene?
As vezes dizia consigo que bastava-lhe a riqueza
para poder escolher no mundo uma mulher que amasse; outras parecia-lhe que o
universo inteiro sem Cecília ficaria deserto, e inútil lhe seria todo o ouro
que ia conquistar.
Por fim ergueu a cabeça. Seus companheiros
esperavam uma palavra sua como o oráculo do seu destino; prepararam-se para
ouvi-lo.
— Só há duas coisas a fazer, ou entrarmos na casa,
ou fugirmos daqui mesmo; é preciso resolver. Que pensais vós?
— Eu penso, disse Bento Simões trêmulo ainda, que
devemos fugir quanto antes, e andar dia e noite sem parar.
— E vós, Rui, sois do mesmo aviso?
— Não; fugir é nos denunciar e perder. Três homens
sós neste sertão, obrigados a evitar o povoado, não podem viver; temos inimigos
por toda a parte.
— Que propondes então?
— Que entremos em casa como se nada tivesse
passado; ou estamos descobertos, e neste caso ainda faltam as provas para nos
condenarem; ou ignoram tudo e não corremos o menor risco.
— Tendes razão, disse o italiano, devemos voltar;
nessa casa está a nossa fortuna, ou a nossa ruína. Achamo-nos numa posição em
que devemos ganhar tudo ou perder tudo.
Houve longa pausa durante que o italiano refletia.
— Com quantos homens contais, Rui? perguntou ele.
— Com oito.
— E vós, Bento?
— Sete.
— Decididos?
— Prontos ao menor sinal.
— Bem, disse o italiano com o desempeno de um chefe
dispondo o plano da batalha; trazei cada um os vossos homens amanhã a esta
hora; é preciso que à noite tudo esteja concluído.
— E agora o que vamos fazer? perguntou Bento
Simões.
— Vamos esperar que escureça; à boca da noite nos
achegaremos da casa. Um de nós à sorte entrará primeiro; se nada houver, dará
sinal aos outros. Assim, quando um se perca, dois ao menos terão ainda
esperança de salvar-se.
Os aventureiros resolveram passar o dia no mato;
uma caça, algumas frutas silvestres deram-lhes simples mas abundante refeição.
Por volta de cinco horas da tarde se encaminharam à
casa, a fim de sondarem o que passava, e realizarem o seu projeto.
Antes de partirem, Loredano carregou a clavina,
mandou seus companheiros carregar as suas, e disse-lhes:
— Assentai bem nisto. Na posição difícil em que
estamos, quem não é nosso amigo é nosso inimigo. Pode ser um espião, um
denunciante; em todo o caso será depois menos um que teremos contra nós.
Os dois compreenderam a justeza dessa observação, e
seguiram com as armas engatilhadas, olho vivo e ouvido alerta.
Apesar porém da sua atenção, não viram agitar-se as
folhas a dois passos deles e estender-se pelos arbustos uma ondulação que
parecia produzida pela correnteza do vento.
Era Peri; havia um quarto de hora que ele acompanhava
os aventureiros como a sua sombra; o índio deixando D. Antônio dera pela sua
ausência e conjeturando que eles tramavam alguma coisa, lançou-se em sua
procura.
O italiano e seus companheiros caminhavam já havia
pedaço, quando Bento Simões parou:
— Quem entrará primeiro?
— A sorte decidirá, respondeu Rui.
— Como?
— Desta maneira, disse o italiano. Vedes aquela
árvore? O que primeiro chegar a ela será o último a entrar; o último será o
primeiro.
— Está dito!
Os três meteram as armas à cinta e prepararam-se
para a corrida.
Peri ouvindo-os teve uma inspiração: os
aventureiros iam separar-se; como Loredano, ele também disse consigo:
— O último será o primeiro.
E tomando três flechas, esticou a corda do arco;
mataria os aventureiros sem que um percebesse a morte dos outros.
Os três partiram; mas não tinham feito uma braça de
caminho quando Bento Simões tropeçando, foi de encontro a Loredano, e
estendeu-se no chão, ao fio comprido do lombo.
Loredano soltou uma blasfêmia, Bento gritou
misericórdia; Rui que já ia adiante, voltou julgando que alguma coisa sucedia.
O plano de Peri tinha gorado.
— Sabeis, disse Loredano, que no páreo perde aquele
que se deixou cair. Sereis o primeiro, amigo Bento.
O aventureiro não tugiu.
Peri não perdera a esperança de lhe deparar a
fortuna outra ocasião favorável para realizar o seu projeto; seguiu-os. Foi
então que de longe por baixo das árvores avistou Álvaro na mesma direção em que
iam os aventureiros; despedindo uma seta por elevação dera ao cavalheiro o primeiro
sinal, e os outros que o fizeram afastar-se.
Deixando Álvaro, a intenção do índio era atalhar os
aventureiros, esperá-los junto à cerca; e quando eles se separassem para entrar
um a um, matá-los.
Mas uma fatalidade parecia perseguir o índio, e proteger
seus inimigos.
Quando Bento Simões, destacando-se dos
companheiros, entrou a cerca, Peri ouviu naquela direção a voz de Cecília que
voltava do passeio com seu pai e sua prima.
A mão do índio, que nunca tremera no meio do
combate, caiu inerte; escapou-lhe o arco, só com a idéia de que a seta que ia
atirar pudesse assustar a menina, quanto mais ofendê-la.
Bento Simões passou incólume.
XIV
A XÁCARA
Peri viu passar pouco depois Loredano e Rui Soeiro.
Era a terceira vez que os aventureiros depois de
estarem na sua mão lhe escapavam por uma espécie de fatalidade.
O índio refletiu alguns momentos e tomou uma
resolução definitiva; modificou inteiramente o seu plano. A princípio decidira
não atacar os três inimigos de frente, não porque os temesse, mas sim porque
receava que morrendo pudessem realizar a salvo o projeto, cujo segredo só ele
sabia.
Conheceu porém que não havia remédio senão recorrer
a este expediente; o tempo corria; de um momento para outro podia o italiano
executar a sua trama.
O que precisava era achar um meio para, no caso de
sucumbir, prevenir a D. Antônio de Mariz do perigo que o ameaçava; este meio
havia já acudido ao pensamento do índio.
Foi ter com Álvaro que o esperava.
O moço já o tinha esquecido; pensava em Cecília, na
sua afeição quebrada, na sua mais doce esperança marcha, e talvez perdida para
sempre.
Às vezes também apresentava-se ao seu espírito a
imagem melancólica de Isabel; lembrava-se que ela também amava, e não era
amada. Esta lembrança criava certo laço entre ele e a moca; ambos sofriam pela
mesma causa, ambos sentiam o mesmo pesar, e curtiam igual desengano.
Depois vinha a idéia de que era a ele que Isabel
amava; sem querer repassava na memória as ternas palavras; revia o sorriso
triste e os olhares de fogo que se aveludavam com a languidez do amor.
Parecia-lhe que sentia ainda o hálito perfumado da moça, a pressão da cabeça
desfalecida em seu ombro, o contato das mãos trêmulas, e o eco das queixas
murmuradas pela voz maviosa.
O coração lhe palpitava com violência; esquecia-se
revendo a bela imagem, de um moreno suave, a que o amor dava reflexos e uma
auréola esplêndida.
Mas de repente estremecia, como se a moça ainda
estivesse perto dele; passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscências
que o incomodavam; e tornava à indiferença de Cecília e ao desengano de suas
esperanças.
Quando Peri se aproximou, Álvaro estava num dos
momentos de tédio e desapego da vida, que sucedem às dores profundas.
— Dize-me, Peri. Falaste de inimigos?
— Sim; respondeu o índio.
— Quero conhecê-los.
— Para quê?
— Para atacá-los.
— Mas são três.
— Melhor.
O índio hesitou:
— Não; Peri quer combater só os inimigos de sua
senhora; se ele morrer, tu saberás tudo; acaba então o que Peri tiver começado.
— Para que este mistério? Não podes dizer já quem
são esses inimigos?
— Peri pode; mas não quer dizer.
— Por quê?
— Porque tu és bom e pensas que os outros também
são; tu defenderás os maus.
— Oh! que não. Fala!
— Ouve. Se Peri não aparecer amanhã, tu não
tornarás a vê-lo; mas a alma de Peri voltará para te dizer os nomes deles.
— Como?
— Tu verás. São três; querem ofender a senhora,
matar seu pai, a ti, a todos da casa. Têm outros que os seguem.
— Uma revolta!... exclamou Álvaro.
— O primeiro deles quer fugir e levar Ceci, que tu
amas; mas Peri não deixará.
— É impossível! disse o moço surpreendido.
— Peri te diz a verdade.
— Não creio!...
Com efeito o cavalheiro atribuindo as desconfianças
do índio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D.
Antônio, não podia acreditar no horrível atentado: sua direitura de sentimentos
repelia a possibilidade de um crime tal!
O fidalgo era amado e respeitado por todos os
aventureiros; nunca durante dez anos que o moço o acompanhava, se tinha dado na
banda um só ato de insubordinação contra a pessoa do chefe; havia faltas de
disciplina, rixas entres os companheiros, tentativas de deserção; mas não
passava disto.
O índio sabia que Álvaro duvidaria do que se
passava; e por isso se obstinava em guardar parte do segredo, receando que o
moço com seu cavalheirismo não tomasse o partido dos três aventureiros.
— Tu duvidas de Peri?
— Quem faz uma acusação tal, precisa prová-la. Tu
és um amigo, Peri; mas os outros também o são, e têm o direito de se
defenderem.
— Quando um homem vai morrer, tu julgas que ele
mente? perguntou o índio com firmeza.
— Que queres dizer com isso?
— Peri vai vingar sua senhora; vai se separar de
tudo quanto ama; se ele perder a vida, dirás ainda que se engana?
Álvaro foi abalado pelas palavras do índio.
— Melhor é que fales a D. Antônio de Mariz.
— Não; ele e tu servem para combater homens que
atacam pela frente; Peri sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que
vai lançar o bote.
— Mas então o que queres de mim?
— Que se Peri morrer, acredites no que ele te diz e
faças o que ele fez; que salves a senhora!
— Assassinar?... Nunca, Peri; nunca o meu braço
brandirá o ferro senão contra o ferro!
O índio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas.
— Tu não amas Ceci!
Álvaro estremeceu.
— Se tu a amasses, matarias teu irmão para livrá-la
de um perigo.
— Peri, talvez não compreendas o que vou dizer-te.
Daria a minha vida sem hesitar por Cecília; mas a minha honra pertence a Deus e
à memória de meu pai.
Os dois homens olharam-se um momento em silêncio;
ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos;
entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste.
Em Álvaro, a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca
dominavam todas as suas ações; não havia afeição ou interesse que pudesse
quebrar a linha invariável, que ele havia traçado, e era a linha do dever.
Em Peri a dedicação sobrepujava tudo; viver para
sua senhora, criar em torno dela uma espécie de providência humana, era a sua
vida; sacrificaria o mundo se possível fosse, contanto que pudesse, como o Noé
dos índios, salvar uma palmeira onde abrigar Cecília.
Entretanto essas duas naturezas, uma filha da
civilização, a outra filha da liberdade selvagem, embora separadas por
distancia imensa, compreendiam-se: a sorte lhes traçara um caminho diferente;
mas Deus vazara em suas almas o mesmo germe do heroísmo que nutre os grandes
sentimentos.
Peri conheceu que Álvaro não cederia; Álvaro sabia
que Peri apesar de sua recusa, cumpriria exatamente o que tinha resolvido.
O índio a princípio parecia impressionado pela
obstinação do cavalheiro; porém ergueu a cabeça com um gesto altivo, e batendo
com a mão no peito largo e vitorioso, disse em tom de energia:
— Peri só, defenderá sua senhora: não precisa de
ninguém. É forte; tem como a andorinha as asas de suas flechas; como a cascavel
o veneno das setas; como o tigre a força do seu braço; como a ema a velocidade
de sua carreira. Só pode morrer uma vez; mas uma vida lhe basta.
— Pois bem, amigo, respondeu o cavalheiro com
nobreza, vais realizar o teu sacrifício; eu cumprirei o meu dever. Tenho uma
vida também, e a minha espada. Farei de uma a sombra de Cecília; com a outra
traçarei em torno dela um circulo de ferro. Podes ficar certo que os inimigos
que passarem por cima de teu corpo, acharão o meu antes de chegarem à tua
senhora.
— Tu és grande; podias ter nascido no deserto, e
ser o rei das florestas; Peri te chamaria irmão.
Apertaram as mãos e dirigiram-se a casa; em caminho
Álvaro lembrou-se que ainda não conhecia os homens contra os quais tinha de
defender Cecília: perguntou seus nomes; Peri recusou formalmente e prometeu que
o cavalheiro saberia, quando fosse tempo.
O índio tinha a sua idéia.
Chegando à casa os dois separaram-se; Álvaro ganhou
o aposento que ocupava; Peri encaminhou-se para o jardim de Cecília.
Eram então oito horas da noite; toda a família se
achava reunida na ceia; o quarto da menina estava às escuras. Peri examinou os
arredores para ver se tudo estava tranqüilo e em sossego; e sentou-se num banco
do jardim.
Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do
quarto, e a porta abrindo-se deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que
destacava no vão esclarecido.
A menina avistando o índio correu para ele.
— Meu pobre Peri, disse ela; tu sofreste hoje
muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te
mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás conosco para sempre. — Tu és
boa, senhora: tu choravas quando Peri ia partir; pediste para ele ficar.
— Então não tens queixa de Ceci? disse a menina
sorrindo.
— O escravo pode ter queixa de sua senhora? tornou
o índio simplesmente.
— Mas tu não és escravo!... respondeu Cecília com
um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me
salvaste a vida; fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita; todos
os dias te arriscas a morrer por minha causa.
O índio sorriu.
— Que queres que Peri faça de sua vida, senhora?
— Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e
aprenda o que ela lhe ensinar, para ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e
o Sr. Álvaro.
Peri abanou a cabeça.
— Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a
conhecer o Senhor do Céu, e a rezar também e ler bonitas historias. Quando
souberes tudo isto, ela bordará um manto de seda para ti; terá uma espada, e
uma cruz no peito. Sim?
— A planta precisa de sol para crescer; a flor
precisa de água para abrir; Peri precisa de liberdade para viver.
— Mas tu serás livres; e nobre como meu pai!
— Não!... O pássaro que voa nos ares cai, se lhe
quebram as asas; o peixe que nada no rio morre, se o deitam em terra; Peri será
como o pássaro e como o peixe, se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em
que nasceu.
Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência.
— Não te zanga, senhora.
— Não fazes o que Ceci pede?... Pois Ceci não te
quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flor que me
deste.
E a linda menina, machucando a flor que arrancou
dos cabelos, correu para o seu quarto e bateu a porta com violência.
O índio voltou pesaroso à sua cabana.
De repente cortou o silêncio da noite voz
argentina, que cantava uma antiga xácara portuguesa, com sentimento e expressão
arrebatadora. Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento
da música.
A xácara dizia assim:
“Foi um dia. — Infanção mouro
Deixou
Alcáçar de prata e ouro.
Montado no seu corcel.
Partiu
Sem pajem, sem anadel.
Do castelo à barbacã
Chegou;
Viu formosa castelã.
Aos pés daquela a quem ama
Jurou
Ser fiel à sua dama.
A gentil dona e senhora
Sorriu;
Ai! que isenta ela não fora!
‘Tu és mouro; eu sou cristã’:
Falou
A formosa castelã.
‘Mouro, tens o meu amor;
Cristão,
Serás meu nobre senhor.’
Sua voz era um encanto,
O olhar
Quebrado, pedia tanto!
‘Antes de ver-te, senhora,
Fui rei;
Serei teu escravo agora.
Por ti deixo meu alcáçar
Fiel;
Meus paços d’ouro e de nácar.
Por ti deixo o paraíso,
Meu céu
É teu mimoso sorriso.’
A dona em um doce enleio
Tirou
Seu lindo colar do seio.
As duas almas cristãs,
Na cruz
Um beijo tornou irmãs.”
A voz suave e meiga perdeu-se no silêncio do ermo;
o eco repetiu um momento as suas doces modulações.
TERCEIRA
PARTE
OS
AIMORÉS
I
PARTIDA
Na segunda-feira, eram seis horas da manhã, quando D. Antônio de Mariz chamou
seu filho.
O velho fidalgo velara uma boa parte da noite; ou
escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaçavam sua família.
Peri lhe havia contado todas as particularidades de
seu encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e o
espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada momento ser atacado.
Por isso, de acordo com Álvaro, D. Diogo e seu
escudeiro Aires Gomes, tinha tomado todas as medidas de precaução que as
circunstâncias e sua longa experiência lhe aconselhavam.
Quando seu filho entrou, o velho fidalgo acabava de
selar duas cartas que escrevera na véspera.
— Meu filho, disse ele com uma ligeira emoção,
refleti esta noite sobre o que nos pode acontecer, e assentei que deveis partir
hoje mesmo para São Sebastião.
— Não é possível, senhor!... Afastais-me de vós
justamente quando correis um perigo?
— Sim! É justamente quando um grande perigo nos
ameaça, que eu, chefe da casa, entendo ser do meu dever salvar o representante
do meu nome e meu herdeiro legitimo, o protetor de minha família órfã.
— Confio em Deus, meu pai, que vossos receios serão
infundados; mas se ele nos quiser submeter a tal provança, o único lagar que
compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é nesta casa ameaçada, ao vosso
lado, para defender-vos e partilhar a vossa sorte, qualquer que ela seja.
D. Antônio apertou seu filho ao peito.
— Eu te reconheço; tu és meu filho; é o meu sangue
juvenil que gira em tuas veias, e o meu coração de moço que fala pelos teus
lábios. Deixa porém que os cinqüenta anos de experiência que desde então
passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade à
velhice, o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma família.
— Eu vos escuto, senhor; mas pelo amor que vos
consagro poupai-me a dor e a vergonha de deixar-vos no momento em que mais
precisais de um servidor fiel e dedicado.
O fidalgo prosseguiu já calmo:
— Não é uma espada, D. Diogo, que nos dará a
vitória, fosse ela valente e forte como a vossa: entre quarenta combatentes que
vão se medir talvez contra centenas e centenas de inimigos, um de mais ou de
menos não importa ao resultado.
— Que assim seja, respondeu o cavalheiro com
energia; reclamo o meu posto de honra e a minha parte do perigo; não vos
ajudarei a vencer, porém morrerei junto dos meus.
— E é por esse nobre mas estéril orgulho que
quereis sacrificar o único meio de salvação que talvez nos reste, se, como
temo, as minhas previsões se realizarem?
— Que dizeis, senhor?
— Qualquer que seja a força e o número dos
inimigos, conto que o valor português e a posição desta casa me ajudarão a
resistir-lhe por algum tempo, por vinte dias, mesmo por um mês; mas por fim
teremos de sucumbir.
— Então?... exclamou D. Diogo pálido.
— Então se meu filho D. Diogo, em vez de ficar
nesta casa por uma obstinação imprudente, tiver ido ao Rio de Janeiro, e pedido
o auxilio que fidalgos portugueses não lhe recusarão decerto, poderá voar em
socorro de seu pai, e chegar com tempo para defender sua família. Então verá
que esta glória de ser o salvador de sua casa vale bem a honra de um perigo
inútil.
D. Diogo deitou o joelho em terra, e beijou com
ternura a mão do fidalgo:
— Perdão, meu pai, por não vos ter compreendido. Eu
devia adivinhar que D. Antônio de Mariz não pode querer para o filho senão o
que é digno do pai.
— Vamos, D. Diogo, não há tempo a perder.
Lembrai-vos que uma hora, um minuto de tardança talvez tenha de ser contado
ansiosamente por aqueles que vão esperar-vos.
— Parto neste instante, disse o cavalheiro
dirigindo-se à porta.
— Tomai; esta carta é para Martim de Sá, governador
desta capitania; esta outra é para meu cunhado e vosso tio Crispim Tenreiro,
valente fidalgo que vos poupará o trabalho de procurardes defensores para vossa
família. Ide despedir-vos de vossa mãe, e vossas irmãs; eu farei tudo preparar
para a partida.
O fidalgo, reprimindo a sua emoção, saiu do
gabinete onde se passava esta cena, e foi ter com Álvaro que o procurava.
— Álvaro, escolhei quatro homens que acompanhem D.
Diogo ao Rio de Janeiro.
— D.
Diogo parte?... perguntou o moço admirado.
— Sim, depois vos direi as razões. Por agora
dai-vos pressa em que tudo esteja pronto dentro de uma hora.
Álvaro dirigiu-se imediatamente ao fundo da casa
onde habitavam os aventureiros.
Havia ai grande agitação; uns falavam em tom de
queixa, outros murmuravam apenas palavras entrecortadas; e alguns finalmente
riam e motejavam do descontentamento de seus companheiros.
Aires Gomes com todo o seu arreganho militar
passeava no meio do terreiro, a mão no punho da espada, a cabeça alta e o
bigode retorcido. Quando o escudeiro passava, a voz dos aventureiros descia
dois tons; mas à medida que ele se afastava, cada um dava livre desabafo ao seu
mau humor.
Entre os mais inquietos e turbulentos
distinguiam-se três grupos presididos por personagens de nosso conhecimento:
Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões.
A causa desse descontentamento quase geral era a
seguinte:
Por volta de seis horas da manhã, Rui, em virtude
do emprazamento da véspera, dirigiu-se o primeiro à escada para ganhar o mato.
Chegando ao fim da esplanada admirou-se de ver aí
Vasco Afonso e Martim Vaz de vigia, o que era extraordinário, pois só à noite
se usava de uma tal precaução, e esta cessava apenas amanhecia.
Ainda mais admirado porém ficou quando os dois
aventureiros cruzando as espadas, proferiram quase ao mesmo tempo estas
palavras:
— Não se passa.
— E por que razão?
— É a ordem, respondeu Martim Vaz.
Rui empalideceu, e voltou apressadamente; a
primeira idéia que lhe acudiu foi que os tinham denunciado, e cuidou em
prevenir a Loredano.
Aires Gomes porém embargou-lhe o passo, e
dirigiu-se com ele para o terreiro: ai o digno escudeiro desempenando o corpo,
e levando a mão à boca em forma de buzina, gritou.
— Olá! À frente toda a banda!
Os aventureiros chegaram-se formando um círculo ao
redor de Aires Gomes; Rui já tinha tido ocasião de lançar uma palavra ao ouvido
do italiano; e ambos, um pouco pálidos mas resolutos, esperavam o desfecho
daquela cena.
— O Sr. D. Antônio de Mariz, disse o escudeiro, por
meu intermédio vos faz saber a sua vontade: e manda que ninguém se afaste um
passo da casa sem sua ordem. Quem o contrário fizer, pereça morte natural.
Um silêncio morno acolheu a enunciação desta ordem.
Loredano trocou uma vista rápida com os seus dois cúmplices.
— Estais entendidos? disse Aires Gomes.
— O que nem eu, nem meus companheiros entendemos e
a razão disto, retrucou o italiano avançando um passo.
— Sim; a razão? exclamou em coro a maioria dos
aventureiros.
— As ordens cumprem-se, e não se discutem,
respondeu o escudeiro com uma certa solenidade.
— Contudo nós... ia dizendo Loredano.
— Toca a debandar! gritou Aires Gomes. Aquele que
não estiver contente, que o diga ao Sr. D. Antônio de Mariz.
E o escudeiro com uma fleuma imperturbável rompeu o
circulo e começou a passear pelo terreiro olhando de traves os aventureiros e
rindo à sorrelfa do seu desapontamento.
Quase todos estavam contrariados; sem falar dos
conspiradores que se haviam emprazado para concertarem seu plano de campanha,
os outros, cujo divertimento era caçar e bater os matos, não recebiam a ordem
com prazer. Apenas alguns de gênio mais bonachão e jovial tinham tomado a coisa
à boa parte, e zombavam da contrariedade que sofriam seus companheiros.
Quando Álvaro se aproximou todos os olhos se
voltaram para ele, esperando a explicação do que se passava.
— Sr. cavalheiro, disse Aires Gomes, acabo de
transmitir a ordem para que ninguém arrede pé da casa.
— Bem, respondeu o moço, e continuou dirigindo-se
aos aventureiros: assim é preciso, meus amigos, estamos ameaçados de um ataque
dos selvagens, e toda a prudência é pouca nestas ocasiões. Não é só a nossa
vida que temos a defender, e essa pouco vale para cada um de nós; é sim a
pessoa daquele que confia em nosso zelo e coragem, e mais ainda o sossego de
uma família honrada que todos prezamos.
As nobres palavras do cavalheiro, e a afabilidade
do gesto que suavizava a firmeza de sua voz, serenaram completamente os ânimos;
todos os descontentes mostraram-se satisfeitos.
Apenas Loredano estava desesperado por ser obrigado
a retardar a combinação do seu plano; pois era arriscado tentá-lo em casa, onde
o menor gesto o podia trair.
Álvaro trocou poucas palavras com Aires Gomes, e
voltou-se para os aventureiros:
— D. Antônio de Mariz precisa de quatro homens
dedicados para acompanharem seu filho D. Diogo à cidade de São Sebastião. É uma
missão perigosa; quatro homens nestes desertos marcham de perigo em perigo.
Quem de vós se oferece para desempenhá-la?
Vinte homens se adiantaram; o cavalheiro escolheu
três entre eles.
— Vós sereis o quarto, Loredano.
O italiano que se tinha escondido entre os seus
companheiros, ficou como fulminado por estas palavras; sair naquela ocasião da
casa era perder para sempre a sua mais ardente esperança; durante a ausência
tudo podia se descobrir.
— Pesa-me ser obrigado a negar-me ao serviço que
exigis de mim; mas sinto-me doente, e sem forças para uma viagem.
O cavalheiro sorriu.
— Não há enfermidade que prive um homem de cumprir
o seu dever; sobretudo quando é um homem valente e leal como vós, Loredano.
Depois abaixou a voz para não ser ouvido pelos
outros aventureiros:
— Se não partis, sereis arcabuzado em uma hora.
Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão e vos faço esmola mandando-vos
sair desta casa?
O italiano compreendeu que não tinha remédio senão
partir; bastava que o moço o acusasse de ter atirado sobre ele, bastava a
palavra de Álvaro para fazê-lo condenar pelo chefe e pelos seus próprios
companheiros.
— Aviai-vos, disse o cavalheiro aos quatro
aventureiros escolhidos por ele; partis em meia hora.
Álvaro retirou-se.
Loredano ficou um momento abatido pela fatalidade
que pesava sobre ele; mas a pouco e pouco foi recobrando a calma, animando-se;
por fim sorriu. Para que sorrisse era necessário que alguma inspiração infernal
tivesse subido do centro da terra a essa inteligência votada ao crime. Fez um
aceno a Rui Soeiro, e os dois encaminharam-se para um cubículo que o italiano
ocupava no fim da esplanada. Aí conversaram algum tempo, rapidamente e em voz
baixa.
Foram interrompidos por Aires Gomes, que bateu com
a espada na porta:
— Eh! lá! Loredano. A cavalo, homem; e boa viagem.
O italiano abriu a porta, e ia sair; mas voltou-se
para dizer a Rui Soeiro:
— Olhai os homens da guarda; é o principal.
— Ide tranqüilo.
Alguns minutos depois, D. Diogo com o coração
cerrado e as lágrimas nos olhos, apertava nos braços sua mãe querida, Cecília
que ele adorava, e Isabel que já amava também como irmã.
Depois desprendendo-se com um esforço,
encaminhou-se apressadamente para a escada e desceu ao vale; ai recebeu a
bênção de seu pai e abraçando a Álvaro saltou na sela do cavalo, que Aires
Gomes tinha pela rédea.
A pequena cavalgata partiu; com pouco sumia-se na
volta do caminho.
II
PREPARATIVOS
Ao tempo que D. Antônio de Mariz e seu filho conversaram no gabinete, Peri
examinava as suas armas, carregava as pistolas que sua senhora lhe havia dado
na véspera, e saia da cabana.
A fisionomia do selvagem tinha uma expressão de
energia e ardimento, que revelava resolução violenta, talvez desesperada.
O que ia fazer, nem ele mesmo sabia. Certo de que o
italiano e seus companheiros se reuniriam naquela manhã, contava, antes que a
reunião se efetuasse, ter mudado inteiramente a face das coisas.
Só tinha uma vida, como dissera; mas essa com a sua
agilidade e a sua força e coragem valia por muitas; tranqüilo sobre o futuro
pela promessa de Álvaro, não lhe importava o número dos inimigos: podia morrer,
mas esperava deixar pouco ou talvez nada que fazer ao cavalheiro.
Saindo de sua cabana, Peri entrou no jardim:
Cecília estava sentada num tapete de peles sobre a relva, e amimava ao seio a
sua rolinha predileta, oferecendo os lábios de carmim às carícias que a ave lhe
fazia com o bico delicado.
A menina estava pensativa; doce melancolia
desvanecia a vivacidade natural de seu semblante.
— Tu estás agastada com Peri, senhora?
— Não, respondeu a menina fitando nele os grandes
olhos azuis. Não quiseste fazer o que eu pedi; tua senhora ficou triste.
Ela dizia a verdade com a ingênua franqueza da
inocência. Na véspera, quando se tinha recolhido enfadada pela recusa de Peri,
ficara contrariada.
Educada no fervor religioso de sua mãe, embora sem
os prejuízos que a razão de D. Antônio corrigira no espírito de sua filha,
Cecília tinha a fé cristã em toda a pureza e santidade. Por isso se afligia com
a idéia de que Peri, a quem votava uma amizade profunda, não salvasse a sua
alma, e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia suas preces.
Conhecia que a razão, por que sua mãe e os outros
desprezavam o índio, era o seu gentilismo; e a menina no seu reconhecimento
queria elevar o amigo e torná-lo digno da estima de todos.
Eis a razão por que ficara triste; era a gratidão
por Peri, que defendera sua vida de tantos perigos, e a quem ela queria
retribuir salvando a sua alma.
Nesta disposição de espírito, seus olhos caíram
sobre a guitarra espanhola que estava em cima da cômoda e veio-lhe vontade de
cantar. É coisa singular como a melancolia inspira! Seja por uma necessidade de
expansão, seja porque a música e a poesia suavizem a dor, toda a criatura
triste acha no canto um supremo consolo.
A menina tirou ligeiros prelúdios do instrumento
enquanto repassava na memória as letras de alguns solaus e cantigas que sua mãe
lhe havia ensinado. A que lhe acudiu mais naturalmente foi a xácara que
ouvimos: havia nessa composição uns longes, um quer que seja que ela não sabia
explicar, mas ia com seus pensamentos.
Quando acabou de cantar levantou-se, apanhou a flor
de Peri que tinha atirado ao chão, deitou-a nos cabelos, e fazendo a sua oração
da noite, adormeceu tranqüilamente. O último pensamento que rogou a sua fronte
alva foi um voto de gratidão pelo amigo que lhe salvara a vida naquela manhã.
Depois um sorriso adejou sobre seu rosto gracioso, como se a alma durante o
sono dos olhos viesse brincar nos lábios entreabertos.
O índio, ouvindo as palavras que acabava de
proferir Cecília, sentiu que pela primeira vez tinha causado uma mágoa real a
sua senhora.
— Tu não entendeste Peri, senhora; Peri te pediu
que o deixasses na vida em que nasceu, porque precisa desta vida para
servir-te.
— Como?... Não te entendo!
— Peri, selvagem, é o primeiro dos seus; só tem uma
lei, uma religião, é sua senhora; Peri, cristão, será o último dos teus; será
um escravo, e não poderá defender-te.
— Um escravo!... Não! Serás um amigo. Eu te juro!
exclamou a menina com vivacidade.
O índio sorriu:
— Se Peri fosse cristão, e um homem quisesse te
ofender, ele não poderia matá-lo, porque o teu Deus manda que um homem não mate
outro. Peri selvagem não respeita ninguém; quem ofende sua senhora é seu
inimigo, e, morre!
Cecília, pálida de emoção, olhou o índio, admirada
não tanto da sublime dedicação, como do raciocínio; ela ignorava a conversa que
o índio tivera na véspera com o cavalheiro.
— Peri te desobedeceu por ti somente; quando já não
correres perigo, ele virá ajoelhar a teus pés, e beijar a cruz que tu lhe
deste. Não fica zangada!
— Meu Deus!... murmurou Cecília pondo os olhos no
céu. É possível que uma dedicação tamanha não seja inspirada por vossa santa
religião!...
A alegria serena e doce de sua alma irradiava na
fisionomia encantadora:
— Eu sabia que tu não me negarias o que te pedi;
assim não exijo mais; espero. Lembra-te somente que no dia em que tu fores
cristão, tua senhora te estimará ainda mais.
— Não ficas triste?
— Não; agora estou satisfeita, contente, muito
contente! — Peri quer pedir-te uma coisa.
— Dize, o que é?
— Peri quer que tu risques um papel para ele.
— Riscar um papel?...
— Como este que teu pai deu hoje a Peri.
— Ah! queres que eu escreva?
— Sim.
— O quê?
— Peri vai dizer.
— Espera.
Ligeira e graciosa, a menina correu à banquinha, e
tomando uma folha de papel e uma pena fez sinal a Peri que se aproximasse.
Não devia ela satisfazer os desejos do índio, como
este satisfazia às suas menores fantasias?
— Vamos: fala que eu escrevo.
— Peri a Álvaro, disse o índio.
— É uma carta ao Sr. Álvaro? perguntou a menina
corando.
— Sim; é para ele.
— Que vais tu dizer-lhe?
— Escreve.
A menina traçou a primeira linha, e depois por
pedido de Peri, o nome de Loredano e dos seus dois cúmplices.
— Agora, disse o índio, fecha.
Cecília selou a carta.
— Entrega à tarde; antes não.
— Mas que quer isto dizer? perguntou Cecília sem
compreender.
— Ele te dirá.
— Não, que eu...
A menina balbuciou, corando, estas palavras; ia
dizer que não falaria ao cavalheiro e arrependeu-se; não queria revelar a Peri
o que se tinha passado. Sabia que se o índio suspeitasse a cena da véspera,
odiaria Isabel e Álvaro, só por lhe terem causado um pesar involuntário.
Enquanto Cecília confusa procurava disfarçar o
enleio, Peri fitava nela o seu olhar brilhante; mal pensava a menina que aquele
olhar era o adeus extremo que o índio lhe dizia.
Mas para isto fora preciso que adivinhasse o plano
desesperado que ele havia concebido de exterminar naquele dia todos os inimigos
da casa.
D. Diogo entrou nesse momento no quarto de sua
irmã: vinha despedir-se dela.
Quanto a Peri, deixando Cecília, dirigiu-se à
escada e achou os mesmos vigias, que depois embargaram a passagem de Rui
Soeiro.
— Não se passa, disseram os aventureiros cruzando
as espadas.
O índio levantou os ombros desdenhosamente; e antes
que as sentinelas voltassem a si da surpresa, tinha mergulhado sob as espadas e
descido a escada. Então ganhou a mata, examinou de novo as suas armas e
esperou; já estava cansado quando viu passar a pequena cavalgata.
Peri não compreendeu o que sucedia; mas conheceu
que o seu plano tinha abortado.
Foi ter com Álvaro.
O cavalheiro explicou-lhe como se aproveitara da
ida de D. Diogo ao Rio de Janeiro para expulsar o italiano sem rumor e sem
escândalo. Então o índio por sua vez contou ao moço o que tinha ouvido na touça
de cardos; o projeto que formara de matar os três aventureiros naquela manhã; e
finalmente a carta que lhe escrevera por intermédio de Cecília, para, no caso
de sucumbir ele, saber o cavalheiro quem eram os inimigos.
Álvaro duvidava ainda acreditar em tanta perfídia
do italiano.
— Agora, concluiu Peri, é preciso que os dois
também saiam; se ficarem, o outro pode voltar.
— Não se animará! disse o cavalheiro.
— Peri não se engana! Manda sair os dois.
— Fica descansado. Falarei com D. Antônio de Mariz.
O resto do dia passou tranqüilamente; mas a
tristeza tinha entrado nessa casa ainda na véspera tão alegre e feliz; a
partida de D. Diogo, o temor vago que produz o perigo quando se aproxima, e o
receio de um ataque dos selvagens, preocupavam os moradores do Paquequer.
Os aventureiros dirigidos por D. Antônio,
executavam trabalhos de defesa tornando ainda mais inacessível o rochedo em que
estava situada a casa.
Uns construíam paliçadas em roda da esplanada:
outros arrastavam para a frente da casa uma colubrina que o fidalgo por excesso
de cautela mandara vir de São Sebastião havia dois anos. Toda a casa enfim
apresentava um aspecto marcial, que indicava as vésperas de um combate; D.
Antônio preparava-se para receber dignamente o inimigo.
Apenas em toda esta casa uma pessoa se conservava
alheia ao que passava: era Isabel, que só pensava no seu amor.
Depois de sua confissão, arrancada violentamente ao
seu coração por uma força irresistível, por um impulso que ela não sabia
explicar, a pobre menina quando se vira só, no seu quarto, à noite, quase
morreu de vergonha.
Lembrava-se de suas palavras, e perguntava a si
mesma como tivera a coragem de dizer aquilo, que antes nem mesmo os seus olhos
se animavam a exprimir silenciosamente. Parecia-lhe que era impossível tornar a
ver Álvaro sem que cada um dos olhares do moço queimasse as suas faces e a
obrigasse a esconder o rosto de pejo.
Entretanto nem por isso seu amor era menos ardente;
ao contrário agora é que a paixão, por muito tempo reprimida, se exacerbava com
as lutas e contrariedades.
As poucas palavras doces que o moço lhe dirigia, a
pressão das mãos, e o aperto rápido sobre o coração de Álvaro num momento de
alucinação, passavam e repassavam na sua memória a todo o momento.
Seu espírito, como uma borboleta em torno da flor,
esvoaçava constantemente em torno das reminiscências ainda vivas, como para
libar todo o mel que encerravam aquelas sensações, as primeiras de seu infeliz
amor.
Nesse mesmo dia de segunda-feira, à tarde, Álvaro
encontrou-se um momento com Isabel na esplanada. Ambos ficaram mudos, e
coraram. Álvaro ia retirar-se.
— Sr. Álvaro... balbuciou a moça trêmula.
— Que quereis de mim, D. Isabel? perguntou o moço
perturbado.
— Esqueci-me o restituir-vos ontem o que não me
pertence.
— E ainda esse malfadado bracelete?
— Sim, respondeu a moça docemente, é este malfadado
bracelete: Cecília teima que
é ele vosso.
— Se meu é, vos peço que o aceiteis.
— Não, Sr. Álvaro, não tenho direito.
— Uma irmã não tem direito de aceitar a prenda que
lhe oferece seu irmão?
— Tendes razão, respondeu a moça suspirando, eu o
guardarei como lembrança vossa; não será adorno para mim, senão relíquia.
O moço não respondeu; retirou-se para cortar a
conversa.
Desde a véspera Álvaro não podia eximir-se à
impressão poderosa que causara nele a paixão de Isabel; era preciso que não
fosse homem para não se sentir profundamente comovido pelo amor ardente de uma
mulher bela, e pelas palavras de fogo que corriam dos lábios de Isabel
impregnadas de perfume e sentimento.
Mas a razão direita do cavalheiro recalcava essa
impressão no fundo do coração; ele não se pertencia; tinha aceitado o legado de
D. Antônio de Mariz e jurado dar a sua mão a Cecília.
Embora não esperasse mais realizar o seu sonho
dourado, entendia que estava vigorosamente obrigado a sujeitar-se a vontade do
fidalgo, a proteger sua filha, a dedicar-lhe sua existência. Quando Cecília o
repelisse abertamente, e D. Antônio o desobrigasse de sua promessa, então seu
coração seria livre, se não estivesse morto pelo desengano.
O único fato notável que se deu nesse dia foi a
chegada de seis aventureiros das vizinhanças, que prevenidos por D. Diogo
vinham oferecer seus serviços a D. Antônio.
Chegaram ao lusco-fusco; à frente deles vinha o
nosso conhecido mestre Nunes, que um ano antes dera hospitalidade no seu pouso
a Frei Ângelo di Luca.
III
VERME E
FLOR
Eram onze horas da noite.
O silêncio reinava na habitação e seus arredores;
tudo estava tranqüilo e sereno. Algumas estrelas brilhavam no céu; os sopros
escassos da viração sussurravam na folhagem.
Os dois homens de vigia, apoiados ao arcabuz e
reclinados sobre o alcantil, sondavam a sombra espessa que se estendia pela aba
do rochedo.
O vulto majestoso de D. Antônio de Mariz passou
lentamente pela esplanada, e desapareceu no canto da casa. O fidalgo fazia sua
ronda noturna, como um general na véspera de uma batalha.
Passados alguns momentos ouviu-se cantar uma coruja
no vale, junto da escada de pedra; um dos vigias abaixou-se, e tomando dois
pequenos seixos deixou-os cair um depois do outro.
O som fraco que produziu a queda das pedras sobre o
arvoredo da várzea foi quase imperceptível; seria difícil distingui-lo do rumor
do vento nas folhas.
Um instante depois um vulto subiu ligeiramente a
escada, e reuniu-se aos dois homens que faziam a guarda noturna::
— Tudo está pronto?
— Só esperamos por vós.
— Vamos! Não há tempo a perder.
Trocadas estas palavras rapidamente entre o que
chegava e um dos vigias, os três encaminharam-se com todas as precauções para a
alpendrada em que habitava a banda dos aventureiros.
Aí, como no resto da casa, tudo estava calmo e
tranqüilo; apenas via-se luzir na soleira da porta do aposento de Aires Gomes a
claridade de uma luz.
Um dos três chegou-se à entrada do alpendre, e
esgueirando-se pela parede perdeu-se na escuridão que havia no interior.
Os outros dois se dirigiam ao fim da casa, e ai ocultos
pela sombra e pelo ângulo que formava um largo pilar do edifício, começaram um
diálogo breve e rápido.
— Quantos são? perguntou o homem que chegara.
— Vinte ao todo.
— Restam-nos?
— Dezenove.
— Bem. A senha?.
— Prata.
— E o fogo?
— Pronto.
— Aonde?
— Nos quatro cantos.
— Quantos sobram?
— Dois apenas.
— Seremos nós.
— Precisais de mim?
— Sim.
Houve uma pequena pausa, em que um dos aventureiros
parecia refletir profundamente enquanto o outro esperava; por fim o primeiro ergueu
a cabeça:
— Rui, vós me sois dedicado?
— Dei-vos a prova.
— Preciso de um amigo fiel.
— Contai comigo.
— Obrigado.
O desconhecido apertou a mão de seu companheiro.
— Sabeis que amo uma mulher?
— Vós mo dissestes.
— Sabeis que é mais por essa mulher do que por este
tesouro fabuloso que concebi esse plano horrível?
— Não; não o sabia.
— Pois é a verdade; pouco me importa a riqueza;
sede meu amigo;
servi-me lealmente, e tereis a maior parte do meu
tesouro.
— Falei; que quereis que eu faça?
— Um juramento; mas um juramento sagrado, terrível.
— Qual? Dizei!
— Hoje essa mulher me pertencerá; entretanto se por
qualquer acaso
eu vier a morrer, quero que
O desconhecido hesitou.
— Quero que nenhum homem possa amá-la, que nenhum homem
possa gozar a felicidade suprema que ela pode dar.
— Mas como?
— Matando-a!
Rui sentiu um calafrio.
— Matando-a, para que a mesma cova receba nossos
dois corpos; não sei por quê, mas parece-me que ainda cadáver, o contato dessa
mulher deve ser para mim um gozo imenso.
— Loredano!... exclamou seu companheiro
horrorizado.
— Sois meu amigo e sereis meu herdeiro! disse o
italiano agarrando-lhe convulsivamente no braço. É a minha condição; se
recusais, outro aceitará o tesouro que rejeitais!
O aventureiro estava em lata com dois sentimentos
opostos; mas a ambição violenta, cega, esvairada, abafou o grito fraco da
consciência.
— Jurais? perguntou Loredano.
— Juro!... respondeu Rui com a voz estrangulada.
— Avante então!
Loredano abriu a porta do seu cubículo, e voltou
algum tempo depois trazendo uma tábua longa e estreita que colocou sobre o
despenhadeiro como uma espécie de ponte suspensa.
— Ides segurar esta tábua, Rui. Entrego em vossas
mãos a minha vida, e nisto dou-vos a maior prova de confiança. Basta que
deixeis esta prancha mover-se para que eu me precipite sobre os rochedos.
O italiano achava-se então no mesmo lugar que na
noite da chegada, algumas braças distante da janela de Cecília, onde não podia
chegar por causa do ângulo que formavam o rochedo e o edifício.
A tábua foi colocada na direção da janela; a
primeira vez tinha-lhe bastado o seu punhal; agora também necessitava de um
apoio seguro, e do livre movimento de seus braços. Rui colocou-se sobre a ponta
da tábua, e segurando-se a um frechal do alpendre manteve imóvel sobre o
precipício essa ponte pênsil em que o italiano ia arriscar-se.
Quanto a este, sem hesitar, tirou as suas armas
para ficar mais leve, descalçou-se, segurou a longa faca entre os dentes, e pôs
o pé sobre a prancha.
— Esperar-me-eis do outro lado, disse o italiano.
— Sim, respondeu Rui com voz trêmula.
A razão por que a voz de Rui tremia, era um
pensamento diabólico que começava a fermentar no seu espírito. Lembrou-lhe que
tinha na mão Loredano e o seu segredo; que para ver-se livre de um e senhor do
outro, bastava afastar o pé e deixar a tábua inclinar sobre o abismo.
Entretanto hesitava; não que o remorso antecipado
lhe exprobrasse o crime que ia cometer; já tinha-se afundado muito no vício e
na depravação para recuar. Mas o italiano exercia sobre os seus cúmplices tal
prestigio e influência tão poderosa, que Rui não podia mesmo nesse momento
esquivar-se a ela.
Loredano estava suspenso sobre o abismo pela sua
mão; podia salvá-lo ou precipitá-lo no despenhadeiro; e contudo dessa posição
ainda ele impunha respeito ao aventureiro.
Rui tinha medo: não compreendia o motivo desse
terror irresistível; mas o sentia como uma obsessão e um pesadelo.
No entanto a imagem da riqueza esplêndida,
brilhante, radiando galas e luzimentos, passava diante de seus olhos e o
deslumbrada; um pouco de coragem, e seria o único senhor do tesouro fabuloso,
cujo era o italiano depositário do segredo.
Mas coragem é o que lhe faltava; por duas ou três
vezes o aventureiro teve um ímpeto de suspender-se ao frechal, e deixar a tábua
rolar no abismo; não passou de um desejo.
Venceu afinal a tentação.
Teve um momento de desvario: os joelhos
acurvaram-se; a tábua sofreu uma oscilação tão forte, que Rui admirou-se de
como o italiano se tinha podia suster.
Então o medo desapareceu; foi substituído por uma
espécie de raiva e frenesi que se apoderou do aventureiro; o primeiro esforço
lhe dera a ousadia, como a vista do sangue excita a fera.
Um segundo abalo mais forte agitou a tábua, que
oscilou à borda do rochedo; porém não se ouviu o baque de um corpo; não se
ouviu mais que o choque da madeira sobre a pedra. Rui, desesperado, ia soltar a
prancha, quando chegou-lhe ao ouvido, abafada e sumida, a voz do italiano, que
apenas se percebia no silêncio profundo da noite.
— Estais cansado, Rui?... Podeis tirar a tábua; não
preciso mais dela.
O aventureiro ficou espavorido; decididamente esse
homem era um espírito infernal que planava sobre o abismo, e escarnecia do
perigo; um ente superior a quem a morte não podia tocar.
Ele ignorava que Loredano, com a sua previdência
ordinária, quando entrara no seu cubículo para tirar a prancha, tivera o
cuidado de passar por um caibro do alpendre, que era de telha-vã, a ponta de
uma longa corda, que caiu sobre a parte de fora da parede uma braça distante da
janela de Cecília.
Assim, apenas deu o primeiro passo sobre a ponte
improvisada, o italiano não se descuidou de estender o braço e agarrar a ponta
da corda, que logo atou à cintura; então se o apoio lhe faltasse, ficaria
suspenso no ar, e, embora com mais dificuldade, realizaria o seu intento.
Foi por isso que os dois abalos produzidos pelo seu
cúmplice não tiveram o resultado que ele esperava; logo do primeiro, Loredano
adivinhou o que se passava na alma de Rui; mas não querendo dar-lhe a perceber
que conhecia a sua traição, serviu-se de um meio indireto para dizer-lhe que
estava em segurança, e que era inútil a tentativa de precipitá-lo.
A tábua não fez mais um só movimento; conservou-se
imóvel como se estivera solidamente pregada ao rochedo.
Loredano adiantou-se, tocou a janela da moça, e com
a ponta da faca conseguiu levantar a aldraba; as gelosias abrindo-se afastaram
as cortinas de cassa que vendavam o asilo do pudor e da inocência.
Cecília dormia envolta nas alvas roupas do seu
leito; sua cabecinha loura aparecia entre as rendas finíssimas sobre as quais
se desenrolavam os lindos anéis dourados de seus cabelos. O doce amortecimento
de um sono calmo e sereno vendava seu rosto gracioso, como a sombra esvaecida
que desmaia o semblante das virgens de Murilo; seu sorriso era apenas enlevo.
O talho de sua anágua abrindo-se deixava entrever
um colo de linhas puras, mais alvo do que a cambraia; e com a ondulação que a
respiração branda imprimia ao seu peito, desenhavam-se sob a lençaria diáfana
os seios mimosos.
Tudo isto ressaltava como um quadro dentre as ondas
de uma colcha de damasco azul que nas suas largas dobras moldava sobre a alvura
transparente do linho os contornos harmoniosos e puros.
Havia porém nessa beleza adormecida uma expressão
indefinível, um quer que seja de tão casto e inocente, que envolvia essa menina
no seu sono tranqüilo e parecia afugentar dela um pensamento profano.
Chegando-se à beira daquele leito, um homem
ajoelharia antes como ao pé de uma santa, do que se animaria a tocar na ponta
dessas roupagens brancas que protegiam a inocência.
Loredano aproximou-se, tremendo, pálido e ofegante;
toda a força de sua vigorosa organização, toda a sua vontade poderosa e
irresistível, estava ai vencida, subjugada, diante de uma menina adormecida. O
que sentiu quando seu olhar ardente caiu sobre o leito, é difícil dizer, é
talvez mesmo difícil de compreender. Foi a um tempo suprema ventura e horrível
suplício.
A paixão brutal o devorava escaldando-lhe o sangue
nas veias e fazendo saltar-lhe o coração; entretanto o aspecto dessa menina que
não tinha para sua defesa senão a sua castidade, o encadeava.
Sentia que o fogo queimava-lhe o seio; sentia que
seus lábios tinham sede de prazer; e a mão gelada e inerte, não se podia
erguer, e o corpo estava paralisado; apenas o olhar
cintilava e as narinas dilatadas aspiravam as
emanações voluptuosas de que estava impregnada a sua atmosfera.
E a menina sorria no seu plácido sono enleando-se
talvez nalgum sonho gracioso, nalgum dos sonhos azuis que Deus esparge como
folhas de rosas sobre o leito das virgens.
Era o anjo em face do demônio; era a mulher em face
da serpente; a virtude em face do vício.
O italiano fez um esforço supremo, e passando a mão
pelos olhos como para arrancar uma visão importuna, encaminhou-se a um bufete e
acendeu uma vela de cera cor-de-rosa.
O aposento, até então esclarecido apenas por uma
lamparina colocada sobre uma cantoneira, iluminou-se; e a imagem graciosa de
Cecília apareceu cercada de uma auréola.
Sentindo a impressão da luz sobre os olhos, a
menina fez um movimento, e voltando um pouco o rosto para o lado oposto
continuou o sono, que nem fora interrompido.
Loredano passou entre o leito e a parede, e pôde
então admirá-la em toda a sua beleza; não se lembrava de nada mais, esquecera o
mundo e seu tesouro: nem pensava no rapto que ia praticar.
A rolinha que dormia sobre a cômoda no seu ninho de
algodão ergueu-se e agitou as asas; o italiano, despertado por este rumor,
conheceu que já era tarde e que não tinha tempo a perder.
IV
NA TREVA
Alguns esclarecimentos são necessários aos acontecimentos que acabavam de
passar.
Quando Loredano viu-se obrigado pela ameaça de
Álvaro a partir para o Rio de Janeiro, ficou sucumbido; mas, depois de alguns
momentos, um sorriso diabólico tinha enrugado os seus lábios.
Este sorriso era uma idéia infame que luzira no seu
espírito como a flama desses fogos perdidos que brilham no seio das trevas em
noites de grande calma.
O italiano lembrou-se que no momento em que todos o
supunham em viagem, podia preparar a execução do seu plano que ele realizaria
naquela mesma noite.
Na conversa que tivera com Rui Soeiro
transmitiu-lhe as suas instruções, breves, simples e concisas; consistiam em
livrarem-se dos homens que podiam pôr embaraços à sua empresa.
Para isso os seus cúmplices receberam ordem de
quando se recolhessem para dormir, colocarem-se ao lado de cada um dos homens
da banda fiéis a D. Antônio de Mariz.
Naquele tempo e naqueles lugares não era possível
que os aventureiros tivessem cada um o seu cubículo; poucos gozavam desse
privilégio, e assim mesmo eram obrigados a partilhar o seu aposento com um
companheiro: os outros dormiam na vasta alpendrada que ocupava quase toda essa parte
do edifício.
Rui Soeiro tinha, conforme as instruções de
Loredano, arranjado as coisas de tal modo que naquele momento cada um dos
aventureiros dedicados a D. Antônio de Mariz tinha a seu lado um homem que
parecia adormecido, e que só esperava ouvir pronunciar a senha convencionada
para enterrar o seu punhal na garganta do seu companheiro.
Ao mesmo tempo havia pelos cantos da casa grandes
molhos de palha seca colocados junto das portas ou metidos pela beirada do
telhado, e que só esperavam uma faisca para atear o incêndio em todo o
edifício.
Rui Soeiro, com uma sagacidade e uma prudência
dignas de seu chefe, dispusera tudo isto; parte durante o dia, e parte nas
horas mortas da noite em que tudo estava recolhido.
Não se esqueceu da recomendação especial de
Loredano, e ofereceu-se voluntariamente a Aires Gomes para fazer a guarda
noturna com um dos seus companheiros, visto recear-se ataque do inimigo; o
digno escudeiro que o conhecia como um dos mais valentes da banda, caiu no laço
e aceitou o oferecimento.
Senhor do campo, o aventureiro pôde então acabar
livremente seus preparativos, e para mais segurança arranjou traça de ver-se
livre do escudeiro, que podia de um momento para outro vir incomodá-lo.
Aires Gomes em companhia de seu velho amigo mestre Nunes
esvaziava uma botelha de vinho de Valverde, que eles bebiam lentamente, trago a
trago, para assim disfarçarem a módica porção do liquido destinado a umedecer
as goelas de dois formidáveis bebedores.
Mestre Nunes aplicou voluptuosamente os lábios à borda
do canjirão, tomou uma vez de vinho, e dando um ligeiro estalinho com a língua
no céu da boca, repimpou-se na tripeça em que estava sentado, cruzando as mãos
sobre o seu ventre proeminente com uma beatitude celeste.
— Ora estou desde que cheguei para perguntar-vos
uma coisa, amigo Aires; e sempre a passar.
— Não a deixeis passar agora, Nunes. Aqui me tendes
para responder-vos
— Dizei-me cá, quem é um tal que acompanhava D.
Diogo, e a quem dais um diabo de nome que não é português?
— Ah! quereis falar de Loredano? Um tunante?
— Conheceis esse homem, Aires?
— Por Deus! se ele é dos nossos!
— Quando pergunto se o conheceis, quero dizer se
sabeis donde veio, quem era e o que fazia?
— À fé que não! Apareceu-nos aqui um dia a pedir
hospitalidade; e depois como saísse um homem, ficou em lagar dele.
— E quando isso, se vos lembra?
— Esperai! Estou com os meus cinqüenta e nove...
O escudeiro contou pelos dedos consultando o seu
calendário, que era a sua idade.
— Foi por este tempo, há um ano; princípios de
março.
— Estais bem certo? exclamou mestre Nunes.
— Certíssimo; é conta que não engana. Mas que
tendes?
Com efeito mestre Nunes se erguera espantado.
— Nada! Não é possível!
— Não acreditais?
— É outra coisa, Aires! É um sacrilégio! uma obra
de Satã! uma simonia horrenda!
— Que dizeis, homem, explicai-vos lá de uma vez.
Mestre Nunes conseguiu restabelecer-se da sua
perturbação e contou ao escudeiro as suas desconfianças a respeito de Frei
Ângelo di Luca e da sua morte, que nunca fora possível explicar: notou-lhe a
coincidência do desaparecimento do carmelita com o aparecimento do aventureiro,
e o fato de serem da mesma nação.
— Depois, concluiu Nunes, aquela voz, aquele
olhar!... quando o vi hoje, estremeci, e recuei espavorido julgando que o frade
tinha saído de baixo da terra.
Aires Gomes levantou-se furioso, e saltando sobre o
seu catre, agarrou o espadão que tinha à cabeceira.
— Que ides fazer? gritou mestre Nunes.
— Matá-lo e desta vez às direitas; que não torne.
— Esqueceis que vai longe?
— É verdade, murmurou o escudeiro rangendo os
dentes de raiva.
Ouviu-se um ligeiro rumor na porta; os dois amigos
o atribuíram ao vento e não se voltaram; sentados em face um do outro,
continuaram em voz baixa a sua conversa interrompida pela brusca revelação de
Nunes.
Entretanto fora passavam-se coisas que deviam
excitar a atenção do digno escudeiro. O rumor que ouvira fora produzido pela
volta que Rui dera à chave, fechando a porta.
O aventureiro tinha ouvido toda a conversa; a
princípio aterrado, cobrou animo, e lembrou-se que em todo o caso era bom estar
senhor do segredo do italiano para qualquer emergência futura. Confiado nessa
excelente idéia, Rui meteu a chave no peito do gibão e foi reunir-se a seu
companheiro que estava de vigia junto da escada.
Esperava por Loredano, que devia entrar na casa
alta noite, para dirigir toda essa trama que havia urdido com uma inteligência
superior.
O italiano tinha facilmente iludido a D. Diogo de
Mariz; sabia que o ardente cavalheiro ia de rota batida, e que não se demoraria
em caminho por motivo algum.
As três léguas do Paquequer, inventou um pretexto
de ter-se quebrado a cilha de sua cavalgadura e parou para arranjá-la; enquanto
D. Diogo e seus companheiros pensavam que os seguia de perto, ele tinha voltado
sobre os passos, e escondido nas vizinhanças, esperava que a noite se
adiantasse.
Quando percebeu que tudo estava em silêncio,
aproximou-se; trocou o sinal convencionado, que era o canto de coruja; e
introduziu-se furtivamente na habitação.
O mais já vimos. Sabendo que tudo estava preparado
e pronto ao primeiro sinal, Loredano deu começo à execução de seu projeto e
conseguiu penetrar no quarto de Cecília.
Tomar a menina nos braços, raptá-la, atravessar a
esplanada, chegar à porta da alpendrada, e pronunciar a senha convencionada,
era coisa que ele contava realizar num momento.
Quando Cecília arrancada do seu leito lançasse um
grito que ele não pudesse abafar, isto pouco lhe importava; antes que alguém
despertasse, teria chegado ao outro lado, e então a uma palavra sua o fogo e o
ferro viriam em seu socorro.
Rui lançaria a chama à palha preparada para esse
fim; e a faca de cada um dos seus cúmplices se enterraria na gorja dos homens
adormecidos.
Depois, no meio desse horror e confusão, os vinte
demônios acabariam a sua obra, e fugiriam como os maus espíritos das lendas
antigas, quando a primeira luz da alvorada terminava o sabbat infernal.
Iam ao Rio de Janeiro; ai, ligados todos por um
mesmo laço do crime, por um mesmo perigo e uma só ambição, Loredano contava ter
neles agentes fiéis e dedicados para levar a cabo a sua empresa.
Enquanto a traição solapava assim o sossego, a
felicidade, a vida e a honra dessa família, todos dormiam tranqüilos e
descuidados; nem um pressentimento os vinha advertir da desgraça que os
ameaçava.
Loredano, graças à sua agilidade e à sua força,
tinha conseguido chegar até ao leito da menina, sem que o menor rumor traísse a
sua presença, sem que na habitação alguém tivesse podido perceber o que se passava.
Certo pois do resultado, o italiano advertido pela
inocente avezinha, que não sabia o mal que fazia, cuidou em consumar a sua
obra. Abriu a cômoda de Cecília, tirou roupas de seda e linho e fez de tudo
isso um embrulho tão pequeno quanto era possível; depois envolveu-o em uma das
peles que serviam de tapete, e colocou numa cadeira, a jeito de o poder apanhar
com facilidade.
Era coisa original o pensamento deste homem. Ao
passo que cometia um crime, tinha a lembrança delicada de querer suavizar a desgraça
da menina fazendo que nada lhe faltasse na viagem incômoda que tinha de fazer.
Quando tudo estava preparado, abriu a portinha que
dava para o jardim, e estudou o caminho que tinha de seguir. Era preciso;
porque apenas tomasse Cecília nos braços devia partir e chegar de uma só
corrida, direita, rápida e cega.
A porta ficava num canto do aposento, defronte do
vão que havia entre o leito e a parede; colocado nesse lagar não tinha senão um
movimento a fazer, agarrar a menina e lançar-se fora do aposento.
Na ocasião em que ele se aproximava, ouviu-se um
gemido, quase um suspiro,- abafado e cheio de angústia.
Os cabelos eriçaram-se sobre a fronte do italiano;
gotas de suor frio e gelado sulcaram as suas faces pálidas e contraídas.
A pouco e pouco foi saindo do estupor que o
paralisara, e volvendo lentamente ao redor de si uns esgares de olhos
alucinados.
Nada! Nem um inseto parecia acordado na solidão
profunda da noite em que tudo dormia exceto o crime, o verdadeiro duende da
terra, o mau gênio das crenças de nossos pais.
Tudo estava em sossego; até o vento parecia se ter
abrigado no cálice das flores e adormecido nesse berço perfumado, como num
regaço de amante.
O italiano restabeleceu-se do violento abalo que
sofrera, deu um passo, e inclinou-se sobre o leito.
Cecília sonhava nesse momento.
Seu rosto esclareceu-se com uma expressão de
alegria angélica; sua mãozinha, que repousava aninhada entre os seios, moveu-se
com a indolência e a moleza do sono e recaiu sobre a face.
A pequena cruz de esmalte que tinha ao colo e que
estava agora presa entre os dedos da mão, roçou-lhe os lábios; e uma música
celeste escapou-se, como se Deus tivesse vibrado uma das cordas de sua harpa
eólia.
Foi a princípio um sorriso que adejou-lhe nos
lábios; depois o sorriso colheu as asas e formou um beijo, por fim o beijo
entreabriu-se como uma flor e exalou um suspiro perfumado.
— Peri!
O colo arfou docemente, e a mão descaindo foi de
novo aninhar-se entre o talho da sua anágua de cambraia.
O italiano ergueu-se pálido.
Não se animava a tocar naquele corpo tão casto, tão
puro; não podia fitar aquela fisionomia radiante de inocência e de candura.
Mas o tempo urgia.
Fez um esforço supremo sobre si mesmo; firmou o
joelho à borda do leito, fechou os olhos e estendeu as mãos.
V
DEUS
DISPÕE
O braço de Loredano estendeu-se sobre o leito; porém a mão que se adiantava e
ia tocar o corpo de Cecília estacou no meio do movimento, e subitamente
impelida foi bater de encontro à parede.
Uma seta, que não se podia saber de onde vinha,
atravessara o espaço com a rapidez de um raio, e antes que se ouvisse o sibilo
forte e agudo pregara a mão do italiano ao muro do aposento.
O aventureiro vacilou e abateu-se por detrás da
cama; era tempo, porque uma segunda seta, despedida com a mesma força e a mesma
rapidez, cravava-se no lugar onde há pouco se projetava a sombra de sua cabeça.
Passou se então, ao redor da inocente menina
adormecida na isenção de sua alma pura, uma cena horrível, porem silenciosa.
Loredano nos transes da dor por que passava, compreendera o que sucedia; tinha
adivinhado naquela seta que o ferira a mão de Peri; e sem ver, sentia o índio
aproximar se terrível de ódio, de vingança, de cólera e desespero pela ofensa
que acabava de sofrer sua senhora.
Então o réprobo teve medo; erguendo-se sobre os
joelhos arrancou convulsivamente com os dentes a seta que pregava sua mão à
parede, e precipitou-se para o jardim, cego, louco e delirante.
Nesse mesmo instante, dois segundos talvez depois
que a última flecha caíra no aposento, a folhagem do óleo que ficava fronteiro
à janela de Cecília agitou-se e um vulto embalançando-se sobre o abismo,
suspenso por um frágil galho da árvore, veio cair sobre o peitoril.
Aí agarrando-se à ombreira saltou dentro do
aposento com uma agilidade extraordinária; a luz dando em cheio sobre ele
desenhou o seu corpo flexível e as suas formas esbeltas.
Era Peri.
O índio avançou-se para o leito, e vendo sua
senhora salva respirou; com efeito a menina, a meio despertada pelo rumor da
fugida de Loredano, voltara-se do outro lado e continuara o sono forte e
reparador como é sempre o sono da juventude e da inocência.
Peri quis seguir o italiano e matá-lo, como já
tinha feito aos seus dois cúmplices; mas resolveu não deixar a menina exposta a
um novo insulto, como o que acabava de sofrer, e tratou antes de velar sobre
sua segurança e sossego.
O primeiro cuidado do índio foi apagar a vela,
depois fechando os olhos aproximou-se do leito e com uma delicadeza extrema
puxou a colcha de damasco azul até ao colo da menina.
Parecia-lhe uma profanação que seus olhos
admirassem as graças e os encantos que o pudor de Cecília trazia sempre
vendados; pensava que o homem que uma vez tivesse visto tanta beleza, nunca
mais devia ver a luz do dia.
Depois desse primeiro desvelo, o índio restabeleceu
a ordem no aposento; deitou a roupa na cômoda, fechou a gelosia e as abas da
janela, lavou as nódoas de sangue que ficaram impressas na parede e no soalho;
e tudo isto com tanta solicitude, tão sutilmente, que não perturbou o sono da
menina.
Quando acabou o seu trabalho, aproximou-se de novo
do leito, e à luz frouxa da lamparina contemplou as feições mimosas e
encantadoras de Cecília.
Estava tão alegre, tão satisfeito de ter chegado a
tempo de salvá-la de uma ofensa e talvez de um crime; era tão feliz de vê-la
tranqüila e risonha sem ter sofrido o menor susto, o mais leve abalo, que
sentiu a necessidade de exprimir-lhe por algum modo a sua ventura.
Nisto seus olhos abaixando-se descobriram sobre o
tapete da cama dois pantufos mimosos forrados de cetim e tão pequeninos que
pareciam feitos para os pés de uma criança; ajoelhou e beijou-os com respeito,
como se foram relíquia sagrada.
Eram então perto de quatro horas; pouco tardava
para amanhecer; as estrelas já iam se apagando a uma e uma; e a noite começava
a perder o silêncio profundo da natureza quando dorme.
O índio fechou por fora a porta do quarto que dava
para o jardim, e metendo a chave na cintura, sentou-se na soleira como cão fiel
que guarda a casa de seu senhor, resolvido a não deixar ninguém aproximar-se.
Aí refletiu sobre o que acabava de passar; e
acusava-se a si mesmo de ter deixado o italiano penetrar no aposento de sua
senhora: Peri porem caluniava-se, porque só a Providência podia ter feito nessa
noite mais do que ele; porque tudo quanto era possível à inteligência, à
coragem, à sagacidade e à força do homem, o índio havia realizado.
Depois da partida de Loredano e da conversa que
teve com Álvaro, certo de que sua senhora já não corria perigo, e de que os
dois cúmplices do italiano iam ser expulsos como ele, o índio não pensando mais
senão no ataque dos Aimorés, partiu imediatamente.
O seu pensamento era ver se descobria pelas
vizinhanças do Paquequer indícios da passagem de alguma tribo da grande raça
Guarani a que ele pertencia; seria um amigo e um aliado para D. Antônio de
Mariz.
O ódio inveterado que havia entre as tribos da
grande raça e a nação degenerada dos Aimorés, justificava a esperança de Peri;
mas infelizmente, tendo percorrido todo o dia a floresta, não encontrou o menor
vestígio do que procurava.
O fidalgo estava pois reduzido às suas próprias
forças: mas embora fossem estas pequenas, o índio não desanimou; tinha
consciência de si; e sabia que na última extremidade a sua dedicação por
Cecília lhe inspiraria meios de salvar a ela e a tudo que ela amava.
Voltou à casa já noite fechada; foi ter com Álvaro;
perguntou-lhe o que era feito dos dois aventureiros; o cavalheiro disse-lhe que
D. Antônio de Mariz recusara crer na acusação.
De fato, o fidalgo leal, habituado ao respeito e à
fidelidade de seus homens, não admitia que se concebesse uma suspeita sem
provas; entretanto como a palavra de Peri tinha para ele toda a valia, ficara
de ouvir de sua boca a narração do que presenciara, para conhecer o peso que
devia dar a semelhante acusação.
Peri retirou-se inquieto e arrependido de não ter
persistido no seu primeiro projeto; enquanto esses dois homens que ele supunha
já expulsos estivessem ali, sabia que um perigo pairava sobre a casa.
Assim resolveu não dormir; tomou o seu arco e
sentou-se na porta de sua cabana; apesar de possuir a clavina que lhe dera D.
Antônio, o arco era a arma favorita de Peri; não demandava tempo para carregar;
não fazia o menor estrépito; lançava quase instantaneamente dois, três tiros: e
a sua flecha era tão terrível e tão certeira como a bala.
Passado muito tempo o índio ouviu cantar uma coruja
do lado da escada; esse canto causou-lhe estranheza por duas razões: a
primeira, porque era mais sonoro do que é o cacarejar daquela ave agoureira; a
segunda porque em vez de partir do cimo de uma árvore saia do chão.
Esta reflexão o fez levantar; desconfiou da coruja
que tinha hábitos diferentes de suas companheiras; quis conhecer a razão desta
singularidade.
Viu do outro lado da esplanada três vultos que
atravessavam ligeiramente; isto aumentou a sua desconfiança; os homens de vigia
eram ordinariamente dois e não três.
Seguiu-os de longe; mas quando chegou ao pátio, não
viu senão um dos homens que entrava na alpendrada; os outros tinham
desaparecido.
Peri procurou-os por toda a parte e não os viu;
estavam ocultos pelo pilar que se elevava na ponta do rochedo, e não lhe era
possível descobri-los.
Supondo que tivessem também entrado no alpendre, o
índio agachou-se e penetrou no interior; de repente a sua mão tocou uma lamina
fria que conheceu imediatamente ser a folha de um punhal.
— És tu, Rui? perguntou uma voz sumida.
Peri emudeceu; mas de chofre aquele nome de Rui
lembrou-lhe Loredano e o seu projeto; percebeu que se tramava alguma coisa: e
tomou um partido.
— Sim! respondeu com a voz quase imperceptível.
— Já é hora?
— Não.
— Todos dormem.
Enquanto trocavam estas duas perguntas, a mão de
Peri correndo pela lâmina de aço tinha conhecido que outra mão segurava o cabo
do punhal.
O índio saiu do alpendre e dirigiu-se ao quarto de
Aires Gomes; a porta estava fechada, e junto dela tinham colocado um grande
montão de palha.
Tudo isto denunciava um plano prestes a
realizar-se; Peri compreendia, e tinha medo de já não ser tempo para destruir a
obra dos inimigos.
Que fazia aquele homem deitado que fingia dormir, e
que tinha o punhal desembainhado na mão como se estivesse pronto a ferir? Que
significava aquela pergunta da hora e aquele aviso de que todos dormiam? Que
queria dizer a palha encostada à porta do escudeiro?
Não restava dúvida; havia ali homens que esperavam
um sinal para matarem seus companheiros adormecidos, e deitarem fogo à casa;
tudo estava perdido se o plano não fosse imediatamente destruído.
Cumpria acordar os que dormiam, preveni-los do
perigo que corriam, ou ao menos prepará-los para se defenderem e escaparem de
uma morte certa e inevitável.
O índio agarrou convulsivamente a cabeça com as
duas mãos como se quisesse arrancar à força de seu espírito agitado e em
desordem um pensamento salvador. Seu largo peito dilatou-se; uma idéia feliz
luzira de repente na confusão de tantos pensamentos desencontrados que
fermentavam no cérebro, e reanimara sua coragem e força.
Era uma idéia original.
Peri lembrara-se que o alpendre estava cheio de
grandes talhas e vasos enormes contendo água potável, vinhos fermentados,
licores selvagens, de que os aventureiros faziam sempre uma ampla provisão.
Correu de novo ao saguão, e encontrando a primeira
talha tirou a torneira; o liquido começou a derramar-se pelo chão; ia passar à
segunda quando a voz, que já lhe tinha falado, soou de novo, baixa mas
ameaçadora.
— Quem vai lá?
Peri compreendeu que a sua idéia ia ficar sem
efeito, e talvez não servisse senão de apressar o que ele queria evitar.
Não hesitou pois; e quando o aventureiro que falava
erguia-se, sentiu duas tenazes vivas que caiam sobre o seu pescoço e o
estrangulavam como uma golilha de ferro, antes que pudesse soltar um grito.
O índio deitou o corpo hirto sobre o chão sem fazer
o menor rumor, e consumou a sua obra; todas as talhas do alpendre esvaziaram se
a pouco e pouco e inundavam o chão.
Dentro de um segundo a frialdade acordaria todos os
homens adormecidos, e os obrigaria a sair do alpendre; era o que Peri esperava.
Livre do maior perigo, o índio rodeou a casa para
ver se tudo estava em sossego; e teve então ocasião de notar que por todo o
edifício tinham disposto feixes de palha para atear um incêndio.
Peri inutilizando estes preparativos, chegou ao
canto da casa que ficava defronte de sua cabana; parecia procurar alguém. Aí
ouviu a respiração ofegante de um homem cosido com a parede junto do jardim de
Cecília.
O índio tirou a sua faca; a noite estava tão escura
que era impossível descobrir a menor sombra, o menor vulto entre as trevas.
Mas ele conheceu Rui Soeiro.
Peri tinha o ouvido sutil e delicado, e o faro do
selvagem que dispensa a vista; o som da respiração servia-lhe de alvo; escutou
um momento, ergueu o braço, e a faca enterrando-se na boca da vitima cortou-lhe
a garganta.
Nem um gemido escapou da massa inerte que se
estorceu um momento e quedou de encontro ao muro.
Peri apanhou o arco que encostara à parede, e
voltando-se para lançar um olhar sobre o quarto de Cecília, estremeceu.
Acabava de ver pela soleira da porta o reflexo vivo
de uma luz; e logo depois sobre a folhagem do óleo um clarão que indicava estar
a janela aberta.
Ergueu os braços com um desespero e uma angústia
inexprimível; estava a dois passos de sua senhora e entretanto um muro e uma
porta o separavam dela, que talvez àquela hora corria um perigo iminente.
Que ia fazer? Precipitar-se de encontro a essa
porta, quebrá-la, espedaçá-la? Mas podia aquela luz não significar coisa
alguma, e a janela ter sido aberta por Cecília.
Este último pensamento tranqüilizou-o, tanto mais
quando nada revelava a existência de um perigo, quando tudo estava em sossego
no jardim e no quarto da menina.
Lançou-se para a cabana, e segurando-se às folhas
da palmeira galgou o ramo do óleo, e aproximou-se para ver por que sua senhora
estava acordada àquela hora.
O espetáculo que se apresentou diante de seus olhos
fez correr-lhe um calafrio pelo corpo; a gelosia aberta deixou-lhe ver a menina
adormecida, e o italiano que tendo aberto a porta do jardim dirigia-se ao
leito.
Um grito de desespero e de agonia ia romper-lhe do
seio; mas o índio mordendo os lábios com força, reprimiu a voz, que se escapou
apenas num som rouco e plangente. Então prendendo-se à árvore com as pernas, o
índio estendeu-se ao longo do galho e esticou a corda do arco.
O coração batia-lhe violentamente; e por um momento
o seu braço tremeu só com a idéia de que a sua flecha tinha de passar perto de
Cecília.
Quando porém a mão do italiano se adiantou e ia
tocar o corpo da menina, não pensou, não viu mais nada senão esses dedos
prestes a mancharem com o seu contato o corpo de sua senhora, não se lembrou
senão dessa horrível profanação.
A flecha partiu rápida, pronta e veloz como o seu
pensamento; a mão do italiano estava pregada ao muro.
Foi só então que Peri refletiu que teria sido mais
acertado ferir essa mão na fonte da vida que a animava; fulminar o corpo a que
pertencia esse braço; a segunda seta partiu sobre a primeira, e o italiano
teria deixado de existir se a dor não o obrigara a curvar-se.
VI
REVOLTA
Quando Peri acabou de refletir sobre o que passara, ergueu-se, abriu de novo a
porta, fechou-a por dentro e seguiu pelo corredor que ia do quarto de Cecília
ao interior da casa.
Estava tranqüilo sobre o futuro; sabia que Bento Simões
e Rui Soeiro não o incomodariam mais, que o italiano não lhe podia escapar, e
que àquela hora todos os aventureiros deviam estar acordados; mas julgou
prudente prevenir D. Antônio de Mariz do que ocorria.
A esse tempo Loredano já tinha chegado à alpendrada,
onde o esperava uma nova e terrível surpresa, uma última decepção.
Lançando-se do quarto de Cecília, sua intenção era
ganhar o fundo da casa, pronunciar a senha convencionada, e senhor do campo
voltar com seus cúmplices, raptar a menina, e vingar-se de Peri.
Mal sabia porém que o índio tinha destruído toda a
sua maquinação; chegando ao pátio viu o alpendre iluminado por fachos, e todos
os aventureiros de pé cercando um objeto que não pôde distinguir.
Aproximou-se e descobriu o corpo de seu cúmplice
Bento Simões, que jazia no chão alagado do pavimento: o aventureiro tinha os
olhos saltados das órbitas, a língua saída da boca, o pescoço cheio de
contusões; todos os sinais enfim de uma estrangulação violenta.
De lívido que estava o italiano tornou-se verde;
procurou com os olhos a Rui Soeiro e não o viu; decididamente o castigo da
Providência caia sobre as suas cabeças; conheceu que estava irremediavelmente
perdido, e que só a audácia e o desespero o podiam salvar.
A extremidade em que se achava inspirou-lhe uma
idéia digna dele: ia tirar partido para seus fins daquele mesmo fato que
parecia destruí-los; ia fazer do castigo uma arma de vingança.
Os aventureiros espantados sem compreenderem o que
viam, olhavam-se e murmuravam em voz baixa fazendo suposições sobre a morte do
seu companheiro. Uns, despertados de sobressalto pela água que corria das
talhas, outros que não dormiam, apenas admirados, se haviam erguido, e no meio
de um coro de imprecações e blasfêmias acenderam fachos para ver a causa daquela
inundação.
Foi então que descobriram o corpo de Bento Simões e
ficaram ainda mais surpreendidos: os cúmplices, temendo que aquilo não fosse um
começo de punição, os outros indignados pelo assassinato de seu companheiro.
Loredano percebeu o que passava no espírito dos
aventureiros:
— Não sabeis o que significa isto? disse ele.
— Oh! não! explicai-nos! exclamaram os
aventureiros.
— Isto significa, continuou o italiano, que há
nesta casa uma víbora, uma serpente que nós alimentamos no nosso seio, e que
nos morderá a todos com o seu dente envenenado.
— Como?... Que quereis dizer?... Falai!...
— Olhai, disse o frade apontando para o cadáver e
mostrando a sua mão ferida; eis a primeira vítima, e a segunda que escapou por
um milagre; a terceira... Quem sabe o que é feito de Rui Soeiro?
— É verdade!... onde está Rui? disse Martim Vaz.
— Talvez morto também?
— Depois dele virá outro e outro até que sejamos
exterminados um por um; até que todos os cristãos tenham sido sacrificados.
— Mas por quem?... Dizei o nome do vil assassino. É
preciso um exemplo! O nome!...
— E não adivinhais? respondeu o italiano. Não
adivinhais? quem nesta casa pode desejar a morte dos brancos, e a destruição da
nossa religião? Quem senão o herege, o gentio, o selvagem traidor e infame?
— Peri?... exclamaram os aventureiros.
— Sim, esse índio que conta assassinar-nos a todos
para saciar a sua vingança!
— Não há de ser assim como dizeis, eu vos juro,
Loredano! exclamou Vasco Afonso.
— Bofé! gritou outro, deixai isto por minha conta.
Não vos dê cuidado!
— E não passa desta noite. O corpo de Bento Simões
pede justiça.
— E justiça será feita.
— Neste mesmo instante.
— Sim, agora mesmo. Eia! Segui-me.
Loredano ouvia estas exclamações rápidas que
denunciavam como a exacerbação ia lavrando com intensidade; quando porém os
aventureiros quiseram lançar-se em procura do índio, ele os conteve com um
gesto.
Não lhe convinha isto; a morte de Peri era coisa
acidental para ele; o seu fim principal era outro, e esperava consegui-lo
facilmente.
— O que ides fazer? perguntou imperativamente aos
seus companheiros.
Os aventureiros ficaram pasmados com semelhante
pergunta.
— Ides matá-lo?...
— Mas decerto!
— E não sabeis que não podereis fazê-lo? Que ele é
protegido, amado, estimado por aqueles que pouco se importam se morremos ou
vivemos?
— Seja embora protegido, quando é criminoso...
— Como vos iludis! Quem o julgará criminoso? Vós?
Pois bem; outros julgarão inocente e o defenderão; e não tereis remédio senão
curvar a cabeça e calar-vos.
— Oh! isso é demais!
— Julgais que somos alimárias que se podem matar
impunemente? retrucou Martim Vaz.
— Sois piores que alimárias; sois escravos!
— Por São Brás, tendes razão, Loredano.
— Vereis morrer vossos companheiros assassinados
infamemente, e não podereis vingá-los; e sereis obrigado a tragar até as vossas
queixas, porque o assassino é sagrado! Sim, não o podereis tocar, repito.
— Pois bem; eu vo-lo mostrarei!
— E eu! gritou toda a banda.
— Qual é vossa tenção? perguntou o italiano.
— A nossa tenção é pedirmos a D. Antônio de Mariz
que nos entregue o assassino de Bento.
— Justo! E se ele recusar, estamos desligados do
nosso juramento e faremos justiça pelas nossas mãos.
— Procedeis como homens de brio e pundonor;
liguemo-nos todos e vereis que obteremos reparação; mas para isto é preciso
firmeza e vontade. Não percamos tempo. Quem de vós se incumbe de ir como
parlamentário a D. Antônio?
Um aventureiro dos mais audazes e turbulentos da
banda ofereceu-se; chamava-se João Feio.
— Serei eu!
— Sabeis o que lhe deveis dizer?
— Oh! ficai descansado. Ouvirá boas.
— Ides já?
— Neste instante.
Uma voz calma, sonora e de grave entonação, uma voz
que fez estremecer todos os aventureiros, soou na entrada do alpendre:
— Não é preciso irdes, pois que vim Aqui me tendes.
D. Antônio de Mariz, calmo e impassível,
adiantou-se até o meio do grupo, e cruzando os braços sobre o peito, volveu
lentamente pelos aventureiros o seu olhar severo.
O fidalgo não tinha uma só arma; e entretanto o
aspecto de sua fisionomia venerável, a firmeza de sua voz e altivez de seu
gesto nobre bastaram para fazer curvar a cabeça de todos esses homens que
ameaçavam.
Advertido por Peri dos acontecimentos que tinham
tido lagar naquela noite, D. Antônio de Mariz ia sair, quando apareceram Álvaro
e Aires Gomes.
O escudeiro, que depois de sua conversa com mestre
Nunes tinha adormecido, fora despertado de repente pelas imprecações e gritos
que soltavam os aventureiros quando a água começou a invadir as esteiras em que
estavam deitados.
Admirado desse rumor extraordinário, Aires bateu o
fuzil, acendeu a vela, e dirigiu-se para a porta para conhecer o que perturbava
o seu sono: a porta, como sabemos, estava fechada e sem chave.
O escudeiro esfregou os olhos para certificar-se do
que via, e acordando Nunes, perguntou-lhe quem tomara aquela medida de
precaução; seu amigo ignorava como ele.
Nesse momento ouvia-se a voz do italiano que
excitava os aventureiros à revolta; Aires Gomes percebeu então do que se
tratava.
Agarrou mestre Nunes, encostou-o à parede como se
fosse uma escada, e sem dizer palavra trepou do catre sobre seus ombros, e
levantando as telhas com a cabeça enfiou por entre as ripas dos caibros.
Apenas ganhou o telhado, o escudeiro pensou no que
devia fazer; e assentou que o verdadeiro era dar parte a Álvaro e ao fidalgo, a
quem cabia tomar as providências que o acaso pedia.
D. Antônio de Mariz sem se perturbar ouviu a
narração do escudeiro, como tinha ouvido a do índio.
— Bem, meus amigos! sei o que me cumpre fazer. Nada
de rumor; não perturbemos o sossego da casa; estou certo que isto passará.
Esperai-me aqui.
— Não posso deixar que vos arrisqueis só, disse
Álvaro dando um passo para segui-lo.
— Ficai: vós e estes dois amigos dedicados velareis
sobre minha mulher, Cecília e Isabel. Nas circunstâncias em que nos achamos,
assim é preciso.
— Consenti ao menos que um de nós vos acompanhe.
— Não, basta a minha presença; enquanto que aqui
todo o vosso valor e fidelidade não bastam para o tesouro que confio à vossa
guarda.
O fidalgo tomou o seu chapéu, e poucos momentos
depois aparecia imprevistamente no meio dos aventureiros, que trêmulos,
cabisbaixos, corridos de vergonha, não ousavam proferir uma palavra.
— Aqui me tendes! repetiu o cavalheiro. Dizei o que
quereis de D. Antônio de Mariz, e dizei-o claro e breve. Se for de justiça,
sereis satisfeitos; se for uma falta, tereis a punição que merecerdes.
Nem um dos aventureiros ousou levantar os olhos;
todos emudeceram.
— Calai-vos?... Passa-se então aqui alguma coisa
que não vos atreveis a revelar? Acaso ver-me-ei obrigado a castigar severamente
um primeiro exemplo de revolta e desobediência? Falai! Quero saber o nome dos
culpados!
O mesmo silêncio respondeu às palavras firmes e
graves do velho fidalgo.
Loredano hesitava desde o princípio desta cena; não
tinha a coragem necessária para apresentar-se em face de D. Antônio; mas também
sentia que se ele deixasse as coisas marcharem pela maneira por que iam, estava
infalivelmente perdido.
Adiantou-se:
— Não há aqui culpados, Sr. D. Antônio de Mariz,
disse o italiano animando-se progressivamente; há homens que são tratados como
cães; que são sacrificados a um capricho vosso, e que estão resolvidos a
reivindicarem os seus foros de homens e de cristãos!
— Sim! gritaram os aventureiros reanimando-se.
Queremos que se respeite a nossa vida!
— Não somos escravos!
— Obedecemos, mas não nos cativamos!
— Valemos mais que um herege!
— Temos arriscado a nossa existência para defender-vos!
D. Antônio ouviu impassível todas estas exclamações
que iam subindo gradualmente ao tom da ameaça.
— Silêncio, vilões! Esqueceis que D. Antônio de
Mariz ainda tem bastante força para arrancar a língua que o pretendesse
insultar? Miseráveis, que lembrais o dever como um beneficio! Arriscastes a
vossa vida para defender-me?... E qual era a vossa obrigação, homens que
vendeis o vosso braço e sangue ao que melhor paga? Sim! Sois menos que
escravos, menos que cães, menos que feras! Sois traidores infames e refeces!...
Mereceis mais do que a morte; mereceis o desprezo.
Os aventureiros, cuja raiva fermentava surdamente,
não se contiveram mais; das palavras de ameaça passaram ao gesto.
— Amigos! gritou Loredano aproveitando habilmente o
ensejo. Deixareis que vos insultem atrozmente, que vos cuspam o desprezo na
cara? E por que motivo!...
— Não! Nunca! vociferaram os aventureiros furiosos.
Desembainhando as adagas estreitaram o círculo ao
redor de D. Antônio de Mariz; era uma confusão de gritos, injúrias, ameaças,
que corriam por todas as bocas, enquanto os braços suspensos hesitavam ainda em
lançar o golpe.
D. Antônio de Mariz, sereno, majestoso, calmo,
olhava todas essas fisionomias decompostas com um sorriso de escárnio; e sempre
altivo e sobranceiro, parecia sob os punhais que o ameaçavam, não a vítima que
ia ser imolada, mas o senhor que mandava.
VII
OS
SELVAGENS
Os aventureiros com o punhal erguido ameaçavam; mas não se animavam a romper o
estreito círculo que os separava de D. Antônio de Mariz.
O respeito, essa força moral tão poderosa, dominava
ainda a alma daqueles homens cegos pela cólera e pela exaltação; todos
esperavam que o primeiro ferisse; e nenhum tinha a coragem de ser o primeiro.
Loredano conheceu que era necessário um exemplo; o
desespero de sua posição, as paixões ardentes que tumultuavam em seu coração,
deram-lhe o delírio que supre o valor nas circunstâncias extremas.
O aventureiro apertou convulsivamente o cabo de sua
faca, e fechando os olhos e dando um passo às cegas, ergueu a mão para
desfechar o golpe.
O fidalgo com um gesto nobre afastou o seio do
gibão, e descobriu o peito; nem um tremor imperceptível agitou os músculos de
seu rosto; sua fronte alta conservou a mesma serenidade; o seu olhar límpido e
brilhante não se turvou.
Tal era a influência magnética que exercia essa
coragem nobre e altiva, que o braço do italiano tremeu, e a ponta do ferro
tocando a véstia do fidalgo paralisou os dedos hirtos do assassino.
D. Antônio sorriu com desdém; e abaixando a sua mão
fechada sobre o alto da cabeça de Loredano, abateu-o a suas plantas como uma
massa bruta e inerte: então erguendo a ponta do pé à fronte do italiano, o
estendeu de costas sobre o pavimento.
O baque do corpo no chão ecoou no meio de um
silêncio profundo; todos os aventureiros, mudos e estáticos, pareciam querer
sumir-se pelo seio da terra.
— Abaixai as armas, miseráveis! O ferro que há de
ferir o peito de D. Antônio de Mariz não será manchado pela mão cobarde e
traiçoeira de vis assassinos! Deus reserva uma morte justa e gloriosa àqueles
que viveram uma vida honrada!
Os aventureiros artudidos embainharam maquinalmente
os punhais; aquela palavra sonora, calma e firme, tinha um acento tão
imperativo, uma tal força de vontade, que era impossível resistir.
— O castigo que vos espera há de ser rigoroso; não
deveis contar com a clemência nem com o perdão: quatro dentre vós à sorte,
sofrerão a pena de homizio; os outros farão o oficio dos executores da alta
justiça. Bem vedes que tanto a pena como o ofício são dignos de vós!
O fidalgo pronunciou estas palavras com um soberano
desprezo, e encarou os aventureiros como para ver se dentre eles partia alguma
reclamação, algum murmúrio de desobediência; mas todos esses homens, há pouco
furiosos, estavam agora humildes e cabisbaixos.
— Dentro de uma hora, continuou o cavalheiro
apontando para o corpo de Loredano, este homem será justiçado à frente da
banda; para ele não há julgamento; eu o condeno como pai, como chefe, como um
homem que mata o cão ingrato que o morde. É ignóbil demais para que o toque com
as minhas armas; entrego-o ao baraço e ao cutelo.
Com a mesma impassibilidade e o mesmo sossego que
conservava desde o momento em que aparecera imprevistamente, o velho fidalgo
atravessou por entre os aventureiros imóveis e respeitosos, e caminhou para a
saída.
Aí voltou-se; e levando a mão ao chapéu descobriu a
sua bela cabeça encanecida, que destacava sobre o fundo negro da noite e no
meio do clarão avermelhado das tochas com um vigor de colorido admirável.
— Se algum de vós der o menor sinal de
desobediência; se uma das minhas ordens não for cumprida pronta e fielmente;
eu, D. Antônio de Mariz, vos juro por Deus e pela minha honra que desta casa
não sairá um homem vivo. Sois trinta; mas a vossa vida, de todos vós, tenho-a
na minha mão; basta-me um movimento para exterminar-vos, e livrar a terra de
trinta assassinos.
No momento em que o fidalgo ia retirar-se apareceu
Álvaro pálido de emoção, mas brilhante de coragem e indignação.
— Quem se animou aqui a erguer a voz para D.
Antônio de Mariz? exclamou o moço.
O velho fidalgo sorrindo com orgulho pôs a mão no
braço do cavalheiro.
— Não vos ocupeis disto, Álvaro; sois bastante
nobre para vingar uma afronta desta natureza, e eu, bastante superior para não ser
ofendido por ela.
— Mas, senhor, cumpre que se dê um exemplo!
— O exemplo vai ser dado, e como cumpre. Aqui não
há senão culpados e executores da pena. O lugar não vos compete. Vinde!
O moço não resistiu e acompanhou D. Antônio de
Mariz, que se dirigiu lentamente a sala, onde achou Aires Comes.
Quanto a Peri, voltara ao jardim de Cecília,
decidido a defender sua senhora contra o mundo inteiro.
O dia vinha rompendo.
O fidalgo chamou Aires Gomes e entrou com ele no
seu gabinete de armas, onde tiveram uma longa conferência de meia hora.
O que aí se passou ficou em segredo entre Deus e
estes dois homens; apenas Álvaro notou, quando a porta do gabinete se abriu,
que D. Antônio estava pensativo, e o escudeiro lívido como um morto.
Neste momento ouviu-se um pequeno rumor na entrada
da sala; quatro aventureiros parados, imóveis, esperavam uma ordem do fidalgo
para se aproximarem.
D. Antônio fez-lhes um sinal; e eles vieram
ajoelhar-se a seus pés; -as lágrimas rolavam por essas faces queimadas pelo
sol; e a palavra tremia balbuciante nesses lábios pálidos que há instantes
vomitavam ameaças:
— Que significa isto? perguntou o cavalheiro com
severidade.
Um dos aventureiros respondeu:
— Viemo-nos entregar em vossas mãos; preferimos
apelar para o vosso coração do que recorrer às armas para escaparmos à punição
de nossa falta.
— E vossos companheiros? replicou o fidalgo.
— Deus lhes perdoe, senhor, a enormidade do crime
que vão cometer. Depois que vos retirastes tudo mudou; preparam-se para
atacar-vos!
— Que venham, disse D. Antônio, eu os receberei.
Mas vós por que não os acompanhais? Não sabeis que D. Antônio de Mariz perdoa
uma falta, mas nunca uma desobediência?
— Embora, disse o aventureiro que falava em nome de
seus camaradas; aceitaremos de bom grado o castigo que nos impuserdes. Mandai,
que obedeceremos. Somos quatro contra vinte e tantos; dai-nos essa punição de
morrer defendendo-vos, de reparar pela nossa morte um momento de alucinação!...
É a graça que vos pedimos!
D. Antônio olhou admirado os homens que estavam
ajoelhados a seus pés; e reconheceu neles os restos dos seus antigos
companheiros de armas do tempo em que o velho fidalgo combatia os inimigos de
Portugal.
Sentiu-se comovido; sua alma grande, e inabalável
no meio do perigo, orgulhosa em face da ameaça, deixava-se facilmente dominar
pelos sentimentos nobres e generosos.
Essa prova de fidelidade que davam aqueles quatro
homens na ocasião da revolta geral dos seus companheiros; a ação que acabavam
de praticar, e o sacrifício com que desejavam expiar a sua falta, elevou-os no
espírito do fidalgo.
— Erguei-vos. Reconheço-vos!... Já não sois os
traidores que há pouco repreendi; sois os bravos companheiros que pelejastes a
meu lado; o que fazeis agora, esquece o que fizestes há uma hora. Sim!...
Mereceis que morramos juntos, combatendo ainda uma vez na mesma fileira. D.
Antônio de Mariz vos perdoa. Podeis levantar a cabeça e trazê-la alta!
Os aventureiros ergueram-se radiantes do perdão que
o nobre fidalgo tinha lançado sobre suas cabeças; todos eles estavam prontos a
dar sua vida para salvarem o seu chefe.
O que tinha ocorrido depois da saída de D. Antônio
do alpendre, seria longo de escrever.
Loredano tornando a si da vertigem que lhe causara
o atordoamento e a violência da queda, soube da ordem que havia a seu respeito.
Não era preciso tanto para que o audaz aventureiro recorresse à sua eloqüência
a fim de excitar de novo à revolta. Pintou a posição de todos como desesperada,
atribuiu o seu castigo e as desgraças que iam suceder ao fanatismo que havia
por Peri; esgotou enfim os recursos da sua inteligência. D. Antônio não estava
mais ai para conter com a sua presença a cólera que ia fermentando, a excitação
que começava a lavrar, a princípio surdamente, as queixas e os murmúrios que
afinal fizeram coro.
Um incidente veio atear a chama que lastrava; Peri,
apenas começou a romper o dia, viu a alguma distancia do jardim o cadáver de
Rui Soeiro; e temendo que sua senhora acordando presenciasse esse triste
espetáculo tomou o corpo, e atravessando a esplanada, veio atirá-lo no meio do
pátio.
Os aventureiros empalideceram e ficaram
estupefatos; depois rompeu a indignação feroz, raivosa, delirante; estavam como
possessos de furor e vingança. Não houve mais hesitação; a revolta
pronunciou-se; apenas o pequeno grupo de quatro homens que desde a saída de D.
Antônio se conservava em distancia, não tomou parte na insubordinação.
Ao contrário, quando viram que seus companheiros,
com Loredano à frente se preparavam para atacar o fidalgo, foram, como vimos,
oferecer-se voluntariamente ao castigo, e reunir-se ao seu chefe para
partilharem a sua sorte.
Pouco tardou para que João Feio não se apresentasse
como parlamentário da parte dos revoltosos; o fidalgo não o deixou falar.
— Dize a teus companheiros, rebelde, que D. Antônio
de Mariz manda e não discute condições: que eles estão condenados; e verão se
sei ou não cumprir o meu juramento.
O fidalgo tratou então de dispor os seus meios de
defesa; apenas podia contar com quatorze combatentes: ele, Álvaro, Peri, Aires
Comes, mestre Nunes com os seus companheiros, e os quatro homens que se haviam
conservado fiéis; os inimigos eram em número de vinte e tantos.
Toda a sua família já então despertada recebeu a
triste noticia de tantos acontecimentos passados durante aquela noite fatal; D.
Lauriana, Cecília e Isabel recolheram-se ao oratório, e rezavam enquanto se
preparava tudo para uma resistência desesperada.
Os aventureiros comandados por Loredano
arregimentaram-se e marcharam para a casa dispostos a dar um assalto terrível;
o seu furor redobrava tanto mais, quanto o remorso no fundo da consciência
começava a mostrar-lhes toda a hediondez de sua ação.
No momento em que dobravam o canto, ouviu-se um som
rouco que se prolongou pelo espaço, como o eco surdo de um trovão em distancia.
Peri estremeceu, e lançando-se para a beira da
esplanada estendeu os olhos pelo campo que costeava a floresta. Quase ao mesmo
tempo um dos aventureiros que estava ao lado de Loredano caiu traspassado por
uma flecha.
— Os Aimorés!...
Apenas soltou Peri esta exclamação, uma linha
movediça, longo arco de cores vivas e brilhantes, agitou-se ao longe da
planície irradiando à luz do sol nascente.
Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto
feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de
grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos.
A inúbia retroava; o som dos instrumentos de guerra
misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível, harmonia
sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade
das feras.
— Os Aimorés!... repetiram os aventureiros
empalidecendo.
VIII
DESÂNIMO
Dois dias passaram depois da chegada dos Aimorés; a posição de D. Antônio de
Mariz e de sua família era desesperada.
Os selvagens tinham atacado a casa com uma força
extraordinária; diante deles a índia, terrível de ódio, os excitava à vingança
As setas escurecendo o ar abatiam-se como uma nuvem
sobre a esplanada, e crivavam as portas e as paredes do edifício.
À vista do perigo iminente que corriam todos, os
aventureiros revoltados retiraram-se e trataram de defender-se do ataque dos
selvagens.
Houve como que um armistício entre os rebeldes e o
fidalgo; sem se reunirem, os aventureiros conheceram que deviam combater o
inimigo comum, embora depois levassem ao cabo a sua revolta.
D. Antônio de Mariz, encastelado na parte da casa
que habitavam, rodeado de sua família e de seus amigos fiéis, resolvera
defender até à última extremidade esses penhores confiados ao seu amor de
esposo e de pai.
Se a Providência não permitisse que um milagre os
viesse salvar, morreriam todos; mas ele contava ser o último, a fim de velar
que mesmo sobre os seus despojos não atirassem um insulto.
Era o seu dever de pai, e o seu dever de chefe;
como o capitão, que é o último a abandonar o seu navio, ele seria o último a
abandonar a vida, depois de ter assegurado às cinzas dos seus o respeito que se
deve aos mortos.
Bem mudada estava essa casa que vimos tão alegre e
tão animada! Parte do edifício que tocava com o fundo onde habitavam os
aventureiros tinha sido abandonada por prudência; D. Antônio concentrara sua
família no interior da habitação para evitar algum acidente.
Cecília deixara o seu quartinho tão lindo e tão
mimoso, e nele estabelecera Peri o seu quartel-general e o seu centro de
operações; porque, é preciso dizer, o índio não partilhava o desanimo geral, e
tinha uma confiança inabalável nos seus recursos.
Seriam dez horas da noite: a lâmpada de prata
suspensa no teto da grande sala iluminava uma cena triste e silenciosa.
Todas as janelas e portas estavam fechadas; de vez
em quando ouvia-se o estrépito que fazia uma seta cravando-se na madeira, ou
enfiando-se por entre as telhas.
Nas duas extremidades da sala e na frente tinham-se
praticado no alto da parede algumas seteiras, junto das quais os aventureiros
faziam à noite uma sentinela constante, a fim de prevenir uma surpresa.
D. Antônio de Mariz, sentado numa cadeira de
espaldar, sob o dossel, repousava um instante; o dia fora rude; os índios
tinham investido por diferentes vezes a escada de pedra da esplanada; e o
fidalgo com o pequeno número de combatentes de que dispunha e com o auxilio da
colubrina conseguira repeli-los.
A sua clavina carregada descansava de encontro ao
espaldar da cadeira; e as suas pistolas estavam colocadas em cima de um bufete
ao alcance do braço.
Sua bela cabeça encanecida, pendida ao seio,
ressaltava sobre o veludo preto de seu gibão, coberto por uma rede finíssima de
malhas de aço que lhe guarnecia o peito.
Parecia adormecido; mas de vez em quando erguia os
olhos e corria o vasto aposento, contemplando com uma melancolia extrema a cena
que se desenhava no fundo meio esclarecido da sala.
Depois voltava à mesma posição, e continuava suas dolorosas
reflexões; o fidalgo conservava toda a firmeza e coragem, mas interiormente
tinha perdido a esperança.
Do lado oposto Cecília recostada em um sofá parecia
desfalecida; seu rosto perdera a habitual vivacidade: seu corpo ligeiro e
gracioso, alquebrado por tantas emoções prostrava-se com indolência sobre uma
colcha de damasco. A mãozinha caia imóvel como uma flor a que tivessem quebrado
a haste delicada; e os lábios descorados agitavam-se às vezes murmurando uma
prece.
De joelhos à beira do sofá, Peri não tirava os
olhos de sua senhora; dir-se-ia que aquela respiração branda que fazia ondular
os seios da menina, e que se exalava de sua boca entreaberta, era o sopro que
alimentava a vida do índio.
Desde o momento da revolta não deixou mais Cecília;
seguia-a como uma sombra; sua dedicação, já tão admirável, tinha tocado o
sublime com a iminência do perigo. Durante estes dois dias ele havia feito
coisas incríveis, verdadeiras loucuras do heroísmo e abnegação.
Sucedia que um selvagem aproximando-se da casa
soltava um grito que vinha causar um ligeiro susto à menina?
Peri lançava-se como um raio, e antes que tivesse
tempo de contê-lo, passava entre uma nuvem de flechas, chegava à beira da
esplanada, e com um tiro de sua clavina abatia o Aimoré que assustara sua
senhora, antes que ele tivesse tempo de soltar um segundo grito.
Cecília, aflita e doente, recusava tomar o alimento
que sua mãe ou sua prima lhe traziam?
Peri correndo mil perigos, arriscando-se a
despedaçar-se nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos
selvagens, ganhava a floresta, e daí a uma hora voltava trazendo um fruto
delicado, um favo de mel envolto de flores, uma caça esquisita, que sua senhora
tocava com os lábios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação.
As loucuras do índio chegaram a ponto que Cecília
foi obrigada a proibir-lhe que saísse de junto dela, e a guardá-lo à vista com
receio de que não se fizesse matar a todo o momento.
Além da amizade que lhe tinha, um quer que seja,
uma esperança vaga lhe dizia que na posição extrema em que se achavam, se
alguma salvação podia haver para sua família seria à coragem, à inteligência, e
à sublime abnegação de Peri que a deveriam.
Se ele morresse quem velaria sobre ela com a
solicitude e o ardente zelo que tinha ao mesmo tempo o carinho de uma mãe, a
proteção de um pai, a meiguice de um irmão? Quem seria seu anjo da guarda para
livrá-la de um pesar, e ao mesmo tempo seu escravo para satisfazer o seu menor
desejo?
Não; Cecília não podia de modo algum admitir nem a
possibilidade de que seu amigo viesse a morrer; por isso mandou, pediu, e até
suplicou-lhe que não saísse de junto dela; queria por sua vez ser para Peri o
bom anjo de Deus, o seu gênio protetor.
Do mesmo lado em que estava Cecília, mas num outro
canto da sala, via-se Isabel sentada de encontro à ombreira da janela; enfiava
um olhar ardente, cheio de ansiedade e de susto, por uma pequena fresta, que
ela entreabrira a furto.
O raio de luz que filtrava por esta aberta da
janela servia de mira aos índios, que faziam chover setas sobre setas naquela
direção; mas Isabel, alheia de si, nem se importava com o perigo que corria.
Ela olhava Álvaro, que no alto da escada com a
maior parte dos aventureiros fiéis, fazia a guarda noturna; o moço passeava
pela esplanada ao abrigo de uma ligeira paliçada. Cada seta que passava por sua
cabeça, cada movimento que fazia, causava em Isabel uma aflição imensa; sentia
não poder estar junto dele para ampará-lo, e receber a morte que lhe fosse
destinada.
D. Lauriana, sentada em um dos degraus do oratório,
rezava; a boa senhora era uma das pessoas que mais coragem e mais calma
mostravam no transe horrível em que se achava a família animada pela sua fé
religiosa e pelo sangue nobre que girava nas suas veias, ela se tinha conservado
digna de seu marido.
Fazia tudo quanto era possível; pensava os feridos,
encorajava as meninas, auxiliava os preparativos de defesa, e ainda em cima
dirigia sua casa como se nada se passasse.
Aires Gomes encostado à porta do gabinete, com os
braços cruzados e imóvel, dormia; o escudeiro guardava o posto que lhe fora
confiado pelo fidalgo. Desde a conferência que os dois tinham tido, Aires se
postara naquele lagar, donde não saia senão quando D. Antônio vinha sentar-se
na cadeira que havia junto da porta.
Dormia de pé; porém mal um passo, por mais sutil
que fosse, soava no pavimento, acordava sobressaltado com a pistola em punho e
a mão sobre o fecho da porta.
D. Antônio de Mariz levantou-se, e passando à cinta
as suas pistolas e tomando a sua clavina, dirigiu-se ao sofá onde repousava sua
filha, e beijou-a na fronte; fez o mesmo a Isabel, abraçou sua mulher e saiu. O
fidalgo ia render a Álvaro, que fazia o seu quarto desde o anoitecer; poucos
momentos depois de sua saída, a porta abriu-se de novo, e o cavalheiro entrou.
Álvaro trajava um gibão de lã forrado de escarlate;
quando ele apareceu no vão da porta, Isabel soltou um grito fraco e correu para
ele.
— Estais ferido? perguntou a moça com ansiedade, e
tomando-lhe as mãos.
— Não; respondeu o moço admirado.
— Ah!... exclamou Isabel respirando.
Tinha-se iludido; o rasgão que uma flecha fizera
sobre o ombro mostrando o forro escarlate do gibão, tinha de repente lhe
parecido uma ferida.
Álvaro procurou desprender suas mãos das mãos de
Isabel, mas a moca suplicando-o com o olhar e arrastando-o docemente, levou-o
até o lugar onde estava há pouco, e obrigou o cavalheiro a sentar-se junto
dela.
Muitos acontecimentos se tinham passado entre eles
nestes dois dias; há circunstâncias em que os sentimentos marcham com uma
rapidez extraordinária, e devoram meses e anos num só minuto.
Reunidos nesta sala pela necessidade extrema do
perigo, vendo-se a cada momento, trocando ora uma palavra, ora um olhar,
sentindo-se enfim perto um do outro, esses dois corações, se não se amavam,
compreendiam-se ao menos.
Álvaro fugia e evitava Isabel; tinha medo desse
amor ardente que o envolvia num olhar, dessa paixão profunda e resignada que se
curvava a seus pés sorrindo melancolicamente. Sentia-se fraco para resistir, e
entretanto o seu dever mandava que resistisse.
Ele amava, ou cuidava amar ainda Cecília; prometera
a seu pai ser seu marido; e na situação em que se achavam, aquela promessa era
mais do que um juramento, era uma necessidade imperiosa, uma fatalidade que se
devia cumprir.
Como podia ele pois alimentar uma esperança de
Isabel? Não seria infame, indigno, aceitar o amor que ela lhe oferecera
suplicando? Não era seu dever destruir naquele coração esse sentimento
impossível?
Álvaro pensava assim, e evitava todas as ocasiões
de estar só com a moça, porque conhecia a impressão veemente, a atração
poderosa que exercia essa beleza fascinadora quando a paixão, animando-a,
cercava-a de um brilho deslumbrante.
Dizia a si mesmo que não amava, que nunca amaria
Isabel! Entretanto, sabia que se ele a visse outra vez como no momento em que
lhe confessara seu amor, cairia de joelhos a seus pés, e esqueceria o dever, a
honra, tudo por ela.
A luta era terrível; mas a alma nobre do cavalheiro
não cedia e combatia heroicamente: podia ser vencida, mas depois de ter feito o
que fosse possível ao homem para conservar-se fiel à sua promessa.
O que tornava a lata ainda mais violenta era que
Isabel não o perseguia com o seu amor; depois daquela primeira alucinação
concentrava-se, e resignada amava sem esperança de nunca ser amada.
IX
ESPERANÇA
Sentando-se junto da moça, Álvaro sentiu a sua coragem vacilar.
— Que me quereis, Isabel? perguntou ele com a voz
um pouco trêmula.
A menina não respondeu; estava embebida a contemplar
o moço; saciava-se de olhá-lo, de senti-lo junto de si, depois de ter sofrido a
angústia de ver a morte rogando a sua cabeça e ameaçando a sua vida.
É preciso amar para compreender essa voluptuosidade
do olhar que se repousa sobre o objeto amado, que não se cansa de ver aquilo
que está impresso na imaginação, mas que tem sempre um novo encanto.
— Deixai-me olhar-vos! respondeu Isabel suplicando.
Quem sabe! Talvez seja pela última vez!
— Por que essas idéias tristes? disse Álvaro com
brandura. A esperança ainda não está de todo perdida.
— Que importa?... exclamou a moça. Ainda há pouco
vos vi de longe que passeáveis sobre a esplanada, e a cada momento me parecia
que uma seta vos tocava, vos feria e...
— Como?... Tivestes a imprudência de abrir a janela?
O moço voltou-se; e estremeceu vendo a janela
entreaberta, crivada da parte exterior pelas setas dos selvagens.
— Meu Deus!... exclamou ele; por que expondes assim
a vossa vida, Isabel?...
— Que vale a minha vida, para que a conserve? disse
a moça animando-se. Tem ela algum prazer, alguma ventura, que me prenda? De que
serviria a existência se não fosse para satisfazer um impulso de nossa alma? A
minha felicidade é acompanhar-vos com os olhos e com o pensamento. Se esta
felicidade me deve custar a vida, embora!...
— Não faleis assim, Isabel, que me partis a alma.
— E como quereis que fale? Mentir-vos é impossível;
depois daquele dia, em que trai o meu segredo, de escravo que ele era tornou-se
senhor, senhor despótico e absoluto. Sei que vos faço sofrer...
— Nunca disse semelhante coisa!
— Sois bastante generoso para dizê-lo, mas sentis.
Eu conheço, eu leio nos vossos menores movimentos. Vós me estimais talvez como
irmão, mas fugis de mim, e tendes receio que Cecília pense que me amais; não é
verdade?
— Não, exclamou Álvaro insensivelmente; tenho
receio, tenho medo... mas é de amar-vos!
Isabel sentiu uma comoção tão violenta ouvindo as
palavras rápidas do moço, que ficou como estática sem fazer um movimento; as
palpitações fortes do seu coração a sufocavam.
Álvaro não estava menos comovido; subjugado por
aquele amor ardente, impressionado pela abnegação da menina que expunha sua
vida só para acompanhá-lo de longe com um olhar e protegê-lo com a sua
solicitude, tinha deixado escapar o segredo da luta que se passava em sua alma.
Mas apenas pronunciara aquelas palavras
imprudentes, conseguiu dominar-se, e tornando-se frio e reservado, falou a
Isabel em um tom grave.
— Sabeis que amo Cecília; mas ignorais que prometi
a seu pai ser seu marido. Enquanto ele por sua livre vontade não me desligar de
minha promessa, estou obrigado a cumpri-la. Quanto ao meu amor, este me
pertence, e só a morte me pode desligar dele. No dia em que eu amasse outra
mulher que não ela, me condenaria a mim mesmo como um homem desleal.
O moço voltou-se para Isabel com um triste sorriso:
— E compreendeis o que faz um homem desleal que tem
ainda a consciência precisa para se julgar a si?
Os olhos da moça brilharam com um fogo sinistro:
— Oh! compreendo!... É o mesmo que faz a mulher que
ama sem esperança, e cujo amor é um insulto ou um sofrimento para aquele a quem
ama!
— Isabel!... exclamou Álvaro estremecendo.
— Tendes razão! Só a morte pode desligar de um
primeiro e santo amor aos corações como os nossos!
— Deixai-vos dessas idéias, Isabel! Crede-me; uma
única razão pode justificar semelhante loucura.
— Qual? perguntou Isabel.
— A desonra.
— Há ainda outra, respondeu a moça com exaltação:
outra menos egoísta, mas tão nobre como esta; a felicidade daqueles que se
amam.
— Não vos compreendo.
— Quando se sabe que se pode ser uma causa de
desgraça para aqueles que se estima, melhor é desatar o único laço que nos
prende à vida do que vê-lo despedaçar-se. Não dizíeis que tendes medo de
amar-me? Pois bem, agora sou eu que tenho medo de ser amada.
Álvaro não soube o que responder: estava numa
terrível agitação: conhecia Isabel, e sabia que força tinham aquelas palavras
ardentes que soltavam os lábios da moça.
— Isabel! disse ele tomando-lhe as mãos. Se me
tendes alguma afeição, não me recuseis a graça que vou pedir-vos. Repeli esses
pensamentos! Eu vos suplico!
A moça sorriu-se melancolicamente:
— Vós me suplicais?... Me pedis que conserve esta
vida que recusastes!... Não é ela vossa? Aceitai-a; e já não tereis que
suplicar!
O olhar ardente de Isabel fascinava; Álvaro não se
pôde mais conter; ergueu-se, e reclinando-se ao ouvido da moça balbuciou:
— Aceito!
Enquanto Isabel, pálida de emoção e felicidade,
duvidava ainda da voz que ressoava no seu ouvido, o moço tinha saído da sala.
Durante que Álvaro e Isabel conversavam a meia voz,
Peri continuava a contemplar a sua senhora.
O índio estava pensativo: e via-se que uma idéia o
preocupava, e absorvia toda a sua atenção.
Por fim levantou-se, e lançando um último olhar
repassado de tristeza a Cecília, encaminhou-se lentamente para a porta da sala.
A menina fez um ligeiro movimento e levantou a
cabeça:
— Peri!...
Ele estremeceu, e voltando foi de novo ajoelhar-se
junto do sofá.
— Tu me prometeste não deixar tua senhora! disse
Cecília com uma doce exprobração.
— Peri quer te salvar.
— Como?
— Tu saberás. Deixa Peri fazer o que tem no
pensamento.
— Mas não correrás nem um perigo?
— Por que perguntas isso, senhora? disse o índio
timidamente.
— Por quê?... exclamou Cecília levantando-se com
vivacidade. Porque se para nos salvar é preciso que tu morras, eu rejeito o teu
sacrifício, rejeito-o em meu nome e no de meu pai.
— Sossega, senhora; Peri não teme o inimigo; sabe o
modo de vencê-lo.
A menina abanou a cabeça com ar incrédulo.
— Eles são tantos!...
O índio sorriu com orgulho.
— Sejam mil; Peri vencerá a todos, aos índios e aos
brancos.
Ele pronunciou estas palavras com a expressão de
naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciência da força e do
poder.
Contudo Cecília não podia acreditar o que ouvia;
parecia-lhe inconcebível que um homem só, embora tivesse a dedicação e o
heroísmo do índio, pudesse vencer não só os aventureiros revoltados, como os
duzentos guerreiros Aimorés que assaltavam a casa.
Mas ela não contava com os recursos imensos de que
dispunha essa inteligência vigorosa, que tinha ao seu serviço um braço forte,
um corpo ágil, e uma destreza admirável; não sabia que o pensamento é a arma
mais poderosa que Deus deu ao homem, e que com ela se abatem os inimigos, se
quebra o ferro, se doma o fogo, e se vence por essa força irresistível e
providencial que manda ao espírito dominar a matéria.
— Não te iludas; vais fazer um sacrifício inútil.
Não é possível que um homem só vença tantos inimigos, ainda mesmo que esse
homem seja Peri.
— Tu verás! respondeu o índio com segurança.
— E quem te dará força para lutar contra um poder
tão grande?...
— Quem?... Tu, senhora, tu só, respondeu o índio
fitando nela o seu olhar brilhante.
Cecília sorriu como devem sorrir os anjos.
— Vai, disse ela, vai salvar-nos. Mas lembra-te que
se tu morreres, Cecília não aceitará a vida que lhe deres.
Peri ergueu-se.
— O sol que se levantar amanhã será o último para
todos os teus inimigos; Ceci poderá sorrir como dantes, e ficar alegre e
contente.
A voz do índio tornou-se trêmula; sentindo que não
podia vencer a emoção atravessou rapidamente a sala e saiu.
Chegando à esplanada Peri olhou as estrelas que
começavam a apagar-se, e viu que o dia pouco tardaria a raiar: não tinha tempo
a perder.
Qual era o projeto que havia concebido, e que lhe
dava uma certeza e uma convicção profunda a respeito do seu resultado? Que meio
ousado tinha ele para contar com a destruição dos inimigos e a salvação de sua
senhora?
Fora difícil adivinhar; Peri guardava no fundo do
coração esse segredo impenetrável, e nem a si mesmo o dizia com receio de
trair-se, e de anular efeito, que esperava com uma confiança inabalável.
Tinha todos os inimigos na sua mão; e bastava-lhe
um pouco de prudência para fulminá-los a todos como a cólera celeste, como o
fogo de raio.
Peri dirigiu-se ao jardim e entrou no quarto de
Cecília então abandonado por sua senhora, por causa da proximidade em que
ficava do fundo da casa ocupada pelos aventureiros revoltados.
O quarto estava às escuras: mas a tênue claridade
que entrava pela janela bastava ao índio para distinguir os objetos
perfeitamente; a perfeição dos sentidos era um dom que os selvagens possuíam no
mais alto grau.
Ele tomou suas armas uma a uma, beijou as pistolas
que Cecília lhe havia dado e deitou-as no chão no meio do aposento, tirou os
seus ornatos de penas, sua faixa de guerreiro, a pluma brilhante do seu cocar e
lançou-os como um troféu sobre as suas armas.
Depois agarrou o seu grande arco de guerra,
apertou-o ao seio e curvando-o de encontro ao joelho quebrou-o em duas metades,
que foram juntar-se às armas e aos ornatos.
Por algum tempo Peri contemplou com um sentimento
de dor profunda esses despojos de sua vida selvagem; esses emblemas de sua
dedicação sublime por Cecília, e de seu heroísmo admirável.
Em luta com essa emoção poderosa, insensivelmente
murmurou na sua língua algumas dessas palavras que a alma manda aos lábios nos
momentos supremos:
— Arma de Peri, companheira e amiga, adeus! Teu
senhor te abandona e te deixa: contigo ele venceria; contigo ninguém poderia
vencê-lo. E ele quer ser vencido...
O índio levou a mão ao coração:
— Sim!... Peri, filho de Ararê, primeiro de sua
tribo, forte entre os fortes, guerreiro goitacá, nunca vencido, vai sucumbir na
guerra. A arma de Peri não pode ver seu senhor pedir a vida ao inimigo; o arco
de Ararê, já quebrado, não salvará o filho.
Sua cabeça altiva e sobranceira enquanto
pronunciava estas palavras caiu-lhe sobre o seio; por fim venceu a sua emoção,
e cingindo nos seus braços esses troféus de suas armas e de suas insígnias de
guerra, estreitou-as ao peito em um último abraço de despedida.
Um aroma agreste das plantas que começavam a se
abrir com a aproximação do dia, avisou-lhe que a noite estava a acabar.
Quebrou a axorca de frutos que trazia na perna
sobre o artelho, como todos os selvagens: este ornato era feito de pequenos
cocos ligados por um fio e tingidos de amarelo.
Peri tomou dois destes frutos e partiu-os com a
faca, sem contudo separar as cascas; fechando-os então na sua mão, levantou o
braço como fazendo um desafio ou uma ameaça terrível e lançou-se fora do
aposento.
X
NA
BRECHA
Quando Peri entrou no quarto de Cecília, Loredano passeava do outro lado da
esplanada, em frente do alpendre.
O italiano refletia sobre os acontecimentos que
haviam passado nos últimos dias, sobre as vicissitudes que correra a sua vida e
a sua fortuna.
Por diferentes vezes tinha posto o pé sobre o
túmulo; tinha tocado a sua última hora; e a morte fugira dele, e o respeitara.
Também por diferentes vezes havia encarado a felicidade, o poder, a fortuna; e
tudo se esvaecera como um sonho.
Quando à frente dos aventureiros revoltados ia
atacar a D. Antônio de Mariz que não lhe podia resistir, os Aimorés tinham
aparecido de repente e mudado a face das coisas.
A necessidade da defesa contra o inimigo comum
trouxe uma suspensão de hostilidades; acima da ambição estava o instinto da
vida e da conservação. A luta de interesses e de ódios cedeu à grande luta das
raças inimigas.
Por isso no primeiro ataque dos selvagens, todos
por um movimento espontâneo trataram de repelir o inimigo, e de salvar a casa
da ruína que a ameaçava. Depois separaram-se de novo, e sempre observando-se,
sempre prontos a defenderem-se um do outro, os dois grupos continuaram a
repelir os índios com a maior coragem.
No meio disto porém Loredano que se constituíra o
chefe da revolta, não abandonava o seu projeto de apoderar-se de Cecília e
vingar-se de D. Antônio de Mariz e de Álvaro.
Seu espírito tenaz trabalhava incessantemente
procurando o meio de chegar àquele resultado; atacar abertamente o fidalgo era
uma loucura que não podia cometer. A menor luta que houvesse entre eles,
entregava-os todos aos selvagens, que excitados pela vingança e pelos seus
instintos sanguinários e ferozes, atacavam o edifício sem repouso e sem
descanso.
A única barreira que continha os Aimorés era a
posição inexpugnável da casa, assentada sobre um rochedo, apenas acessível por
um ponto, pela escada de pedra que descrevemos no primeiro capitulo desta
história.
Esta escada era defendida por D. Antônio de Mariz e
pelos seus homens; a ponte de madeira tinha sido destruída; mas apesar disso os
selvagens a substituiriam facilmente se não fosse a resistência desesperada que
o fidalgo opunha aos seus ataques.
Desde o momento pois, que impelido pelo seu amor,
D. Antônio corresse em defesa de sua família e abandonasse a escada, os
duzentos guerreiros Aimorés se precipitariam sobre a casa, e não havia coragem
que lhes pudesse resistir.
O italiano que compreendia isto, estava bem longe
de tentar o menor ataque a peito descoberto; a prudência o aconselhava então
como o tinha aconselhado no dia do primeiro assalto.
O que ele procurava era um meio de, sem estrépito,
sem luta, imprevistamente, fazer morrer D. Antônio de Mariz, Peri, Álvaro e
Aires Gomes; feito isto os outros se reuniriam a ele pela necessidade da defesa
e pelo instinto da conservação.
Tornar-se-ia então senhor da casa; ou repelia os
índios, salvava Cecília e realizava todos os seus sonhos de amor e de
felicidade; ou morria tendo ao menos esgotado até ao meio a taça do prazer que
seus lábios nem sequer haviam tocado.
Era impossível que esse espírito satânico, fixando-se
em uma idéia durante três dias, não tivesse conseguido achar um meio para a
consumação desse novo crime que planejara.
Não só o tinha achado, mas já havia começado a
pô-lo em prática; tudo o protegia, até mesmo o inimigo que o deixava em
repouso, atacando unicamente o lado da casa protegido por D. Antônio de Mariz.
Passeava pois embalando-se de novo nas suas
esperanças, quando Martim Vaz, saindo do alpendre, chegou-se a ele.
— Uma com que não contávamos!... disse o
aventureiro.
— O quê? perguntou o italiano com vivacidade.
— Uma porta fechada.
— Abre-se!
— Não com essa facilidade.
— Veremos.
— Está pregada por dentro.
— Terão pressentido?...
— Foi a idéia que já tive.
Loredano fez um gesto de desespero.
— Vem!
Os dois encaminharam-se para o alpendre, onde
dormiam os aventureiros armados, prontos ao menor sinal de ataque.
O italiano acordou João Feio, e por precaução
mandou-o fazer a guarda na esplanada, apesar de não haver receio que os
selvagens atacassem do seu lado. O aventureiro, ainda tonto de sono, ergueu-se
e saiu.
Loredano e seu companheiro caminharam para uma sala
interior que servia de cozinha e despensa a esta parte da casa. Quando iam
entrar, a luz que o aventureiro levava na mão para esclarecer o caminho,
apagou-se de repente.
— Sois um desazado! disse Loredano contrariado.
— E tenho eu culpa! Queixai-vos do vento.
— Bom! não gasteis o tempo em palavras! Tirai fogo.
O aventureiro voltou a procurar o seu fuzil.
Loredano ficou em pé na porta à espera que o seu
companheiro voltasse; e pareceu-lhe ouvir perto dele a respiração de um homem.
Aplicou o ouvido para certificar-se; e por segurança tirou o seu punhal e
colocou-se no centro da porta, para impedir a saída de quem quer que fosse.
Não ouviu mais nada; porém sentiu de repente um
corpo frio e gelado que tocou-lhe a fronte; o italiano recuou, e brandindo a
sua faca deu um golpe às escuras.
Pareceu-lhe que tinha tocado alguma coisa;
entretanto tudo conservou-se no mais profundo silêncio.
O aventureiro voltou trazendo a luz.
— É singular, disse ele; o vento pode apagar uma
candeia, mas não lhe tira o pavio.
— O vento, dizeis. Acaso o vento tem sangue?
— Que quereis dizer?
— Que o vento que apagou a vela é o mesmo que
deixou o seu sinal neste ferro.
E Loredano mostrou ao aventureiro a sua faca, cuja
ponta estava tinta de sangue ainda liquido.
— Há aqui então um inimigo?...
— Decerto; os amigos não precisam ocultar-se.
Nisto ouviram um rumor no telhado, e um morcego
passou agitando lentamente as grandes asas: estava ferido.
— Eis o inimigo!... exclamou Martim rindo-se.
— É verdade, respondeu Loredano no mesmo tom;
confesso que já tive medo de um morcego.
Tranqüilos a respeito do incidente que os havia
demorado, os dois entraram na cozinha, e daí por uma brecha estreita praticada
na parede penetraram no interior da casa há pouco habitada por D. Antônio de
Mariz e sua família.
Atravessaram parte do edifício e chegaram a uma
varanda que tocava de um lado com o quarto de Cecília e do outro com o oratório
e o gabinete de armas do fidalgo.
Aí o aventureiro parou; e mostrando a Loredano a
porta adufada de jacarandá, que dava entrada para o gabinete, disse-lhe:
— Não é com duas razões que a deitaremos dentro!
Loredano aproximou-se e reconheceu que a solidez e
fortaleza da porta não lhe permitia a menor violência: todo o seu plano estava
destruído.
Contava durante a noite se introduzir furtivamente
na sala, e assassinar a D. Antônio de Mariz, Aires Gomes e Álvaro antes que
eles pudessem ser socorridos por seus companheiros, consumado o crime, estava
senhor da casa.
Como remover o obstáculo que lhe aparecia? A menor
violência contra a porta despertaria a atenção de D. Antônio de Mariz e
inutilizaria todo o seu projeto.
Enquanto refletia nisso, os seus olhos caíram sobre
uma estreita fresta que havia no alto da parede do oratório, e que servia mais
para dar ar do que luz.
Por esta abertura o italiano conheceu que aquela
parte da parede era singela, e feita de um só tijolo; com efeito o oratório
tinha sido outrora um corredor largo que ia da varanda à sala, e que fora
separado por uma ligeira divisão.
Loredano mediu a parede de alto a baixo, e acenou
ao seu companheiro.
— É por aqui que havemos de entrar, disse ele
apontando para a parede.
— Como? A menos de não ser um mosquito para passar
por aquela fresta!
— Esta parede assenta sobre uma viga; tirada ela,
está aberto o caminho!
— Entendo.
— Antes que possam tomar a si do susto, teremos
acabado.
O aventureiro quebrou com a ponta da faca o reboco
da parede e descobriu a viga que lhe servia de alicerce.
— Então?
— Não há dúvida. Daqui a duas horas dou-vos isto
pronto.
Martim Vaz, depois da morte de Rui Soeiro e Bento
Simões, tinha-se tornado o braço direito de Loredano; era o único a quem o italiano
confiara o seu segredo, oculto para os outros em quem receava ainda a
influência de D. Antônio de Mariz.
O italiano deixou o aventureiro no seu trabalho e
voltou pelo mesmo caminho; chegando à cozinha, sentiu-se sufocado por uma
fumaça espessa que enchia todo o alpendre. Os aventureiros acordados de repente
blasfemavam conta o autor de semelhante lembrança.
Quando Loredano no meio deles procurava indagar a
causa do que sucedia, João Feio apareceu na entrada do alpendre.
Havia na sua fisionomia uma expressão terrível de
cólera e ao mesmo tempo de espanto; de um salto aproximou-se do italiano e
chegando-lhe a boca ao ouvido disse:
— Renegado e sacrílego, dou-te uma hora para ires
entregar-te a D. Antônio de Mariz, e obter dele o nosso perdão e o teu castigo.
Se o não fizeres dentro desse tempo, é comigo que te hás de avir.
O italiano fez um movimento de raiva; mas
conteve-se:
— Amigo, o sereno transtornou-vos o juízo; ide
deitar-vos. Boa noite, ou antes bom dia!
A alvorada despontava no horizonte.
XI
O FRADE
Saindo do quarto de Cecília Peri tomara pelo corredor que comunicava com o
interior do edifício.
O índio, a cuja perspicácia nada escapava do que se
passava no interior da casa, por mais insignificante que fosse, havia percebido
o plano de Loredano desde a primeira pancada dada para a abertura da brecha.
Na véspera o som do ferro na parede tinha ido
despertar a sua atenção na sala onde ele repousava um momento, deitado aos pés
do leito de sua senhora; seu ouvido fino e delicado auscultara o seio da terra.
Levantou-se de salto, e atravessando todo o edifício chegou, guiado pelas
pancadas, ao lugar onde Loredano e o aventureiro começavam a abrir uma fenda no
muro.
Em vez de atemorizar-se com esta nova audácia do
italiano, o índio sorriu-se; a brecha que praticava seria a sua perdição, por
que ia dar fácil passagem a ele, Peri.
Contentou-se pois em examinar todas as portas que
comunicavam com a sala e pregá-las por dentro; seria um novo obstáculo que
demoraria os aventureiros, e lhe daria tempo de sobra para exterminá-los.
Foi por isso que do quarto de Cecília cuja porta
fechou sobre, caminhou direito à brecha e por ela penetrou na despensa dos
aventureiros.
Era uma sala bastante espaçosa, onde havia uma
mesa, algumas talhas e uma grande quartola de vinho; o índio mesmo às escuras
chegou-se a cada um desses vasos; e por alguns instantes ouviu-se o fraco
vascolejar do liquido que eles continham.
Então Peri viu uma luz que se aproximava; era
Loredano e o seu companheiro.
A vista do italiano lhe gelou o sangue no coração.
Tal ódio votava a esse homem abjeto e vil, que teve medo de si, medo de o
matar. Isso fora agora uma imprudência; pois inutilizaria todo o seu plano.
Muita vez depois da noite em que Loredano penetrara
na alcova de Cecília, Peri tivera ímpetos de ir vingar a injúria feita a sua
senhora no sangue do italiano, para quem pensava que uma morte não era bastante
punição.
Mas lembrava-se que não se pertencia; que precisava
da vida para consumar sua obra salvando Cecília de tantos inimigos que a
cercavam. E recalcava a vingança no fundo do coração.
Fez o mesmo então: cosido com a parede conseguiu
apagar a vela. Ia sair, quando sentiu que o italiano tomava a porta.
Hesitou.
Podia lançar-se sobre Loredano e subjugá-lo; mas
isso produziria uma luta e denunciaria a sua presença; era preciso que fugisse
sem que restasse um só vestígio de sua passagem; a mais leve suspeita faria
abortar o seu plano.
Teve uma idéia feliz: ergueu a mão molhada e tocou
o rosto do italiano; enquanto este recuava para atirar a punhalada às escuras,
o índio resvalou entre ele e a porta.
A faca de Loredano tinha-lhe ferido o braço
esquerdo; não soltou porém nem um gemido, não fez um movimento que o traísse;
ganhou o fundo do alpendre antes que o aventureiro voltasse com a luz.
Mas Peri não estava contente; o seu sangue ia
denunciá-lo; não lhe convinha de modo algum que o italiano suspeitasse que ele
ali tinha estado.
Os morcegos que esvoaçavam espantados pelo teto do
alpendre lembraram-lhe um excelente expediente; agarrou o primeiro que lhe
passou ao alcance do braço, e abrindo-lhe uma cesura com a faca, soltou-o.
Ele sabia que o vampiro procuraria a luz, e iria
esvoaçar em torno dos dois aventureiros; contava que as gotas de sangue que
caiam de sua asa ferida os enganaria; a realidade correspondeu às suas
previsões.
Apenas Loredano desapareceu, Peri continuou a
execução do seu plano; chegou-se a um canto do alpendre onde havia um resto de
fogo encoberto pela cinza, e atirou sobre ele alguma roupa dos aventureiros que
ai estava a enxugar.
Este incidente, por insignificante que pareça,
entrava nos planos de Peri; a roupa queimando-se devia encher a casa de fumaça,
acordar os aventureiros e excitar-lhes a sede. Era justamente o que desejava o
índio.
Satisfeito do resultado que obtivera, Peri
atravessou a esplanada; ai porém foi obrigado a recuar, surpreendido do que
via.
Um homem do lado de D. Antônio de Mariz e um
aventureiro revoltado conversavam através da estacada que dividia esses dois
campos inimigos; havia realmente motivo para que o índio se admirasse.
Não só isso era contra a ordem expressa de D.
Antônio de Mariz, que proibira qualquer relação entre os seus homens e os
revoltados, como contrariava o plano de Loredano, que temia ainda o respeito e
o hábito de obediência que os aventureiros tinham para com o fidalgo.
O que se tinha passado antes, explicava esse
acontecimento extraordinário.
O aventureiro a quem Loredano mandara rondar a
esplanada, enquanto ele entrava, tinha começado o seu giro de uma ponta à outra
do pátio.
Sempre que chegava junto da estacada, notava que do
outro lado um homem se aproximava como ele, voltava, e se alongava pela beira
da esplanada; adivinhou facilmente que era também uma sentinela.
João Feio era um franco e jovial companheiro, e não
podia suportar o tédio de um passeio alta noite, no meio de um sono
interrompido, sem uma pinga para beber, sem um camarada para conversar, sem uma
distração enfim.
Para maior desprazer, uma das vezes que se
aproximava da estacada, sentiu uma baforada de tabaco, e viu que o seu
companheiro de guarda fumava.
Levou a mão ao bolso das bragas, e achou algumas
folhas de fumo, mas não trazia o seu cachimbo; ficou desesperado, e decidiu
dirigir-se ao outro.
— Olá, amigo! também fazeis a vossa guarda?
O homem voltou-se, e continuou o seu caminho sem
dar resposta.
No segundo giro o aventureiro atirou segunda isca.
— Felizmente o dia não tarda a raiar; não vos
parece?
O mesmo silêncio que a primeira vez; o aventureiro
contudo não desanimou, e na terceira volta retrucou:
— Somos inimigos, camarada; mas isso não impede a
um homem cortês de responder quando outro lhe fala.
Desta vez o silencioso sentinela voltou-se de todo:
— Antes da cortesia está a nossa santa religião,
que manda a todo cristão não falar a um herege, a um réprobo, a um fariseu.
— Que é lá isso? Falais sério, ou quereis fazer-me
enraivar por nonadas?
— Falo-vos sério, como se estivesse diante do nosso
Santo Redentor confessando as minhas culpas.
— Pois então, digo-vos que mentis! Porque tão bom
podeis ser, porém melhor crente que eu não o é outrem.
— Tendes a língua um pouco longa, amigo. Mas
Belzebu vos fará as contas, que não eu: perderia a minha alma se tocasse o
corpo de endemoninhados!
— Por São João Batista, meu patrão, não me façais
saltar esta estacada para perguntar-vos a razão por que tratais em ar de mofa a
devoção dos mais. Chamai-nos rebeldes, mas hereges não.
— E como quereis então que chame os companheiros de
um frade sacrílego, maldito, que abjurou dos seus votos, e atirou o seu hábito
as urtigas?
— Um frade! Dissestes vós?
— Sim, um frade. Não o sabíeis?
— O quê? De que frade falais vós?
— Do italiano, bofé!
— Ele!...
O homem, que não era outro senão o nosso antigo
conhecido mestre Nunes, contou então, exagerando com o fervor de seus
sentimentos religiosos, aquilo que sabia da história de Loredano.
O aventureiro horrorizado, tremendo de raiva, não
deixou mestre Nunes acabar a sua história e lançou-se para o alpendre, onde
viu-se a ameaça que fez ao italiano.
Quando eles se separaram, Peri saltou por cima da
estacada, e dirigiu-se para o quarto que há pouco tinha deixado.
O dia vinha então rompendo; os primeiros raios do
sol iluminavam já o campo dos Aimorés, assentado sobre a várzea à margem do
rio. Os selvagens irritados olhavam de longe a casa, fazendo gestos de raiva
por não poderem vencer a barreira de pedra que defendia o inimigo.
Peri olhou um momento aqueles homens de estatura
gigantesca, de aspecto horrível, aqueles duzentos guerreiros de força
prodigiosa, ferozes como tigres.
O índio murmurou:
— Hoje cairão todos como a árvore da floresta, para
não se erguerem mais.
Sentou-se no vão da janela, e encostando a cabeça
sobre a curva do braço, começou a refletir.
A obra gigantesca que empreendera, obra que parecia
exceder todo o poder do homem, estava prestes a realizar-se; já tinha levado ao
cabo metade dela, faltava a conclusão, a parte a mais difícil e a mais
delicada.
Antes de lançar-se, Peri queria prever tudo; fixar
bem no seu espírito as menores circunstâncias; traçar a sua linha invariável a
fim de marchar firme, direito, infalível ao alvo a que visava; a fim de que a
menor hesitação não pusesse em risco o efeito do seu plano.
Seu espírito percorreu em alguns segundos um mundo
de pensamentos; guiado pelo seu instinto maravilhoso e pelo seu nobre coração,
formulou num rápido instante um grande e terrível drama, do qual devia ser o
herói; drama sublime de heroísmo e dedicação, que para ele era apenas o
cumprimento de um dever e a satisfação de um desejo.
As almas grandes têm esse privilégio; suas ações,
que nos outros inspiram a admiração, se aniquilam em face dessa nobreza inata
do coração superior, para o qual tudo é natural e possível
Quando Peri ergueu a cabeça, estava radiante de
felicidade e orgulho; felicidade por salvar sua senhora; orgulho pela
consciência de que ele só bastava para fazer o que cinqüenta homens não fariam;
o que o próprio pai, o amante, não conseguiriam nunca.
Não duvidava mais do resultado: via nos
acontecimentos futuros como no espaço que se estendia diante dele, e no qual
nem um objeto escapava ao seu olhar límpido; tanto quanto é possível ao homem,
ele tinha a certeza e a convicção de que Cecília estava salva.
Cobriu o peito e as costas com uma pele de cobra
que ligou estreitamente ao corpo; vestiu por cima o seu saiote de algodão;
experimentou os músculos dos braços e das pernas; e sentindo-se forte, ágil e
flexível, saiu inerme.
XII
DESOBEDIÊNCIA
Álvaro, recostado da parte de fora a uma das janelas da casa, pensava em
Isabel.
Sua alma lutava ainda, mas já sem força, contra o
amor ardente e profundo que o dominava; procurava iludir-se, mas a sua razão
não o permitia.
Conhecia que amava Isabel, e que a amava como nunca
tinha amado Cecília; a afeição calma e serena de outrora fora substituída pela
paixão abrasadora.
Seu nobre coração revoltava-se contra essa verdade;
mas a vontade era impotente contra o amor; não podia mais arrancá-lo do seu
seio; não o desejava mesmo.
Álvaro sofria; o que dissera na véspera a Isabel
era realmente o que sentia; não se exagerara; no dia em que deixasse de amar
Cecília e fosse infiel à promessa feita a D. Antônio, se condenaria como um
homem sem honra e sem lealdade.
Consolava-o a idéia de que a situação em que se
achavam não podia durar muito; pouco tardava que exaustos, enfraquecidos,
sucumbissem à força dos inimigos que os atacavam.
Então nos momentos extremos, à borda do túmulo,
quando a morte o tivesse já desligado da terra, poderia com o último suspiro
balbuciar a primeira palavra do seu amor: poderia confessar a Isabel que a
amava.
Até então lutaria.
Nisto Peri chegou-se e tocou-lhe no ombro:
— Peri parte.
— Para onde?
— Para longe.
— Que vais fazer?
O índio hesitou:
— Procurar socorro.
Álvaro sorriu-se com incredulidade.
— Tu duvidas?
— De ti não, mas do socorro.
— Escuta; se Peri não voltar, tu farás enterrar as
suas armas.
— Podes ir tranqüilo: eu te prometo.
— Outra coisa.
— O que é?
O índio hesitou de novo:
— Se tu vires a cabeça de Peri desligada do corpo,
enterra-a com as suas armas.
— Por que este pedido? A que vem semelhante
lembrança?
— Peri vai passar pelo meio dos selvagens, e pode
morrer. Tu és guerreiro; e sabes que a vida é como a palmeira: murcha quando
tudo reverdece.
— Tens razão. Farei tudo quanto pedes; mas espero
ver-te ainda.
O índio sorriu.
— Ama a senhora, disse ele estendendo a mão ao
moço.
O seu adeus era uma última prece pela felicidade de
Cecília.
Peri entrou na sala onde se achava reunida a
família.
Todos dormiam; só D. Antônio de Mariz velava sempre
apesar da velhice; sua vontade poderosa cobrava novas forças e reanimava o
corpo gasto pelos anos. Não lhe restava senão uma esperança; a de morrer
rodeado dos entes que amava, cercado de sua família, como um fidalgo português
devia morrer; com honra e coragem.
O índio atravessou a sala e colocando-se junto do
sofá em que Cecília adormecida repousava, contemplou-a um instante com um
sentimento de profunda melancolia.
Dir-se-ia que nesse olhar ardente fazia uma última
e solene despedida; que partindo-se, o escravo fiel e dedicado queria deixar a
sua alma enleada naquela imagem, que representava a sua divindade na terra.
Que sublime linguagem não falavam aqueles olhos
inteligentes, animados por um brilhante reflexo de amor e de fidelidade? Que
epopéia de sentimento e de abnegação não havia naquela muda e respeitosa
contemplação?
Por fim Peri fez um esforço supremo, e a custo
conseguiu quebrar o encanto que o prendia, e o conservava imóvel, como uma
estátua, diante da linda menina adormecida. Reclinou sobre o sofá e beijou
respeitosamente a fimbria do vestido de Cecília; quando ergueu-se, uma lágrima
triste e silenciosa que deslizava pela sua face, caiu sobre a mão da menina.
Cecília, sentindo aquela gota ardente, entreabriu
os olhos; mas Peri não viu esse movimento, porque já se tinha voltado e
aproximava-se de D. Antônio de Mariz.
O fidalgo sentado na sua poltrona recebeu-o com um
sorriso pungente.
— Tu sofres? perguntou o índio.
— Por eles, por ela especialmente, por minha
Cecília.
— Por ti não? disse Peri com intenção.
— Por mim? Daria a minha vida para salvá-la; e
morreria feliz!
— Ainda que ela te pedisse que vivesses?
— Embora me suplicasse de joelhos.
O índio sentiu-se aliviado como de um remorso.
— Peri te pede uma coisa.
— Fala!
— Peri quer beijar a tua mão.
D. Antônio de Mariz tirou o seu guante, e sem
compreender a razão do pedido do índio, estendeu-lhe a mão.
— Tu dirás a Cecília que Peri partiu; que foi longe;
não deves contar-lhe a verdade: ela sofrerá. Adeus; Peri sente te deixar; mas é
preciso.
Enquanto o índio proferia estas palavras em voz
baixa e inclinado ao ouvido do fidalgo, este surpreendido procurava ligar-lhes
um sentido que lhe parecia vago e confuso:
— Que pretendes tu fazer, Peri? perguntou D.
Antônio.
— O mesmo que tu querias fazer para salvar a
senhora.
— Morrer!... exclamou o fidalgo.
Peri levou o dedo aos lábios recomendando silêncio;
mas era tarde; um grito partido do canto da sala fê-lo estremecer.
Voltando-se viu Cecília, que ao ouvir a última
palavra de seu pai quisera correr para ele, e caíra de joelhos, sem força para
dar um passo. A menina com as mãos estendidas e suplicantes parecia pedir a seu
pai que evitasse aquele sacrifício heróico, e salvasse a Peri de uma morte
voluntária.
O fidalgo a compreendeu:
— Não, Peri; eu, D. Antônio de Mariz, não
consentirei nunca em semelhante coisa. Se a morte de alguém pudesse trazer a
salvação de minha Cecília e de minha família, era a mim que competia o
sacrifício. E por Deus e pela minha honra o juro, que a ninguém o cederia; quem
quisesse roubar-me esse direito me faria um insulto cruel.
Peri volvia os olhos de sua senhora aflita e
suplicante para o fidalgo severo e rígido no cumprimento de seu dever; temia
aquelas duas oposições diferentes, mas que tinham ambas um grande poder sobre a
sua alma.
Podia o escravo resistir a uma súplica de sua
senhora e causar-lhe uma mágoa, quando toda a sua vida fora destinada a fazê-la
alegre e feliz? Podia o amigo ofender a D. Antônio de Mariz, a quem respeitava,
praticando uma ação que o fidalgo considerava como uma injúria feita à sua
honra?
Peri teve um momento de alucinação, em que
pareceu-lhe que o coração lhe estacava no peito, e a vida lhe fugia, e a cabeça
se despedaçava com a pressão violenta das idéias que tumultuavam no cérebro.
No rápido instante que durou a vertigem, ele viu
girarem rapidamente em torno de si as figuras sinistras dos Aimorés que
ameaçavam a vida preciosa daqueles a quem mais amava no mundo. Viu Cecília
suplicando, não a ele, mas ao inimigo feroz e sanguinário, prestes a manchá-la
com as mãos impuras; viu a bela e nobre cabeça do velho fidalgo rojar mutilada
com os alvos cabelos tintos de sangue.
O índio horrorizado com estas imagens lúgubres que
lhe desenhava a sua imaginação em delírio, apertou a cabeça entre as mãos, como
para arrancá-la daquela febre.
— Peri!... balbuciava Cecília; tua senhora te
pede!...
— Morreremos todos juntos, amigo, quando chegar o
momento, dizia D. Antônio de Mariz.
Peri levantou a cabeça, e lançou sobre a menina e o
fidalgo um olhar alucinado:
— Não!... exclamou ele.
Cecília ergueu-se com um movimento instantâneo; de
pé e pálida; soberba de cólera e indignação, a gentil e graciosa menina de
outrora se tinha de repente transformado numa rainha imperiosa.
Sua bela fronte alva resplandecia com um assomo de
orgulho; seus olhos azuis tinham desses reflexos fulvos que iluminam as nuvens
no meio da tormenta; seus lábios trêmulos e ligeiramente arqueados pareciam
reter a palavra para deixá-la cair com toda a sua força. Atirando a cabecinha
loura sobre o ombro esquerdo com um gesto de energia, ela estendeu a mão para
Peri:
— Proíbo-te que saias desta casa!...
O índio julgou que ia enlouquecer; quis lançar-se
aos pés de sua senhora, mas recuou anelante, opresso e sufocado. Um canto, ou
antes uma celeuma dos selvagens soava ao longe.
Peri deu um passo para a porta; D. Antônio o
reteve:
— Tua senhora, disse o fidalgo friamente, acaba de
te dar uma ordem; tu a cumprirás. Tranqüiliza-te, minha filha; Peri é meu
prisioneiro.
Ouvindo esta palavra que destruía todas as suas
esperanças, que o impossibilitava de salvar sua senhora, o índio retraindo-se
deu um salto, e caiu no meio da sala.
— Peri é livre!... gritou ele fora de si; Peri não
obedece a ninguém mais; fará o que lhe manda o coração.
Enquanto D. Antônio de Mariz e Cecília, admirados
desse primeiro ato de desobediência, olhavam espantados o índio de pé no meio
do vasto aposento, ele lançou-se a um cabide de armas, e empunhando um pesado
montante como se fora uma ligeira espada, correu à janela e saltou.
— Perdoa a Peri, senhora!
Cecília soltou um grito e precipitou-se para a
janela. Não viu mais Peri.
Álvaro e os aventureiros, de pé sobre a esplanada,
tinham os olhos fitos sobre a árvore que se elevava a um lado da casa, na
encosta oposta, e cuja folhagem ainda se agitava.
Longe descortinava-se o campo dos Aimorés; a brisa
que passava trazia o rumor confuso das vozes e gritos dos selvagens.
XIII
COMBATE
Eram seis horas da manhã.
O sol elevando-se no horizonte derramava cascatas
de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas.
O tempo estava soberbo; o céu azul, esmaltado de
pequenas nuvens brancas que se achamalotavam como as dobras de uma lençaria.
Os Aimorés, grupados em torno de alguns troncos já
meio reduzidos a cinza, faziam preparativos para dar um ataque decisivo.
O instinto selvagem supria a indústria do homem
civilizado; a primeira das artes foi incontestavelmente a arte da guerra, — a
arte da defesa e da vingança, os dois mais fortes estímulos do coração humano.
Nesse momento os Aimorés preparavam setas
inflamáveis para incendiar a casa de D. Antônio de Mariz; não podendo vencer o
inimigo pelas armas, contavam destruí-lo pelo fogo.
A maneira por que arranjavam esses terríveis
projéteis, que lembravam os pelouros e bombardas dos povos civilizados, era
muito simples: envolviam a ponta da flecha com flocos de algodão embebidos na
resina da almécega.
Essas setas assim inflamadas, despedidas dos seus
arcos voavam pelos ares e iam cravar-se nas vigas e portas das casas; o fogo
que o vento incitava, lambia a madeira, estendia a sua língua vermelha, e
lastrava pelo edifício.
Enquanto se ocupavam com esse trabalho, um prazer
feroz animava todas essas fisionomias sinistras, nas quais a braveza, a
ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da
raça humana.
Os cabelos arruivados caiam-lhe sobre a fronte e
ocultavam inteiramente a parte mais nobre do rosto, criada por Deus para a sede
da inteligência, e para o trono donde o pensamento deve reinar sobre a matéria.
Os lábios decompostos, arregaçados por uma
contração dos músculos faciais, tinham perdido a expressão suave e doce que
imprimem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam transformado em
mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido.
Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não
tinham o esmalte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo que instrumento
da alimentação, o sangue os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos
animais carniceiros.
As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam
nos dedos, a pele áspera e calosa, faziam de suas mãos, antes garras temíveis,
do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto.
Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado
desses filhos das brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça
de quadrúmanos indígenas do novo mundo.
Alguns se ornavam de penas, e colares de ossos;
outros completamente nus tinham o corpo untado de óleo por causa dos insetos.
Entre todos distinguia-se um velho que parecia ser
o chefe da tribo. Sua alta estatura, direita apesar da idade avançada, dominava
a cabeça dos seus companheiros sentados ou agrupados em torno do fogo.
Não trabalhava; presidia apenas aos trabalhos dos
selvagens, e de vez em quando lançava um olhar de ameaça para a casa que se
elevava ao longe sobre o rochedo inexpugnável.
Ao lado dele, uma bela índia, na flor da idade,
queimava sobre uma pedra cova algumas folhas de tabaco, cuja fumaça se elevava
em grossas espirais e cingia a cabeça do velho de uma espécie de brama ou
névoa.
Ele aspirava esse aroma embriagador que fazia
dilatar o seu vasto peito, e dava a sua fisionomia terrível um quer que seja de
sensual, que se poderia chamar a voluptuosidade dos seus instintos de canibal.
Envolta pelo fumo espesso que se enovelava em torno dela, aquela figura
fantástica parecia algum ídolo selvagem, divindade criada pelo fanatismo desses
povos ignorantes e bárbaros.
De repente a pequena índia que soprava o brasido
queimando as folhas de pitima estremeceu, levantou a cabeça, e fitou os olhos
no velho, como para interrogar a sua fisionomia. Vendo-o calmo e impassível, a
menina debruçou-se sobre o ombro do selvagem, e tocando-lhe de leve na cabeça,
disse-lhe uma palavra ao ouvido. Ele voltou-se tranqüilamente, um riso
sardônico mostrou os seus dentes; sem responder obrigou a índia a sentar-se de
novo, e a voltar à sua ocupação.
Pouco tempo havia passado depois deste pequeno
incidente, quando a menina tornou a estremecer; tinha ouvido perto o mesmo
rumor que já ouvira ao longe. Ao passo que ela espantada procurava
confirmar-se, um dos selvagens sentados em roda do fogo a trabalhar fez o mesmo
movimento que a índia, e levantou a cabeça.
Como se um fio elétrico se comunicasse entre esses
homens e imprimisse a todos sucessivamente o mesmo movimento, um após outro
interrompeu o seu trabalho de chofre, e inclinando o ouvido pôs-se à escuta.
A menina não escutava só; colocando-se longe do
fumo e de encontro à brisa que soprava, de vez em quando aspirava o ar com a
finura de olfato com que os cães farejam a caça.
Tudo isto passou rapidamente, sem que os atores
desta cena tivessem nem sequer o tempo de trocar uma observação e dizer o seu
pensamento.
De repente a índia soltou um grito; todos
voltaram-se para ela e a viram trêmula, ofegante, apoiando-se com uma mão sobre
o ombro do velho cacique, e a outra estendida na direção da floresta que
passava a duas braças servindo de fundo a esse quadro.
O velho ergueu-se então sempre com a mesma calma
feroz e sinistra; e empunhando a sua pesada tangapema, que parecia uma clava de
ciclope, fê-la girar sobre a sua cabeça como um junco; depois fincando-a no chão,
e apoiando-se sobre ela, esperou.
Os outros selvagens armados de arcos e tacapes,
espécie de longas espadas de pau que cortavam como ferro, colocaram-se a par do
velho, e prontos para o ataque, esperavam como ele. As mulheres misturaram-se
com os guerreiros; as crianças e meninos, defendidos pela barreira que opunham
os combatentes, conservaram-se no centro do campo.
Todos com os olhos fitos, os sentidos aplicados,
contavam ver o inimigo aparecer a cada momento e se preparavam para cair sobre
ele com a audácia e ímpeto de ataque que distinguia a raça dos Aimorés.
Um segundo se passou nesta expectativa inquieta.
O estalido que a princípio tinham ouvido cessou
completamente; e os selvagens cobrando-se do susto, voltaram aos seus
trabalhos, convencidos de que tinham sido iludidos por algum vago rumor na
floresta.
Mas o inimigo caiu no meio deles, subitamente, sem
que pudessem saber se tinha surgido do seio da terra, ou se tinha descido das
nuvens.
Era Peri.
Altivo, nobre, radiante da coragem invencível e do
sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos, o índio se apresentava só em
face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingança.
Caindo do alto de uma árvore sobre eles, tinha
abatido dois; e volvendo o seu montante como um raio em torno de sua cabeça
abriu um círculo no meio dos selvagens.
Então encostou-se a uma lasca de pedra que
descansava sobre uma ondulação do terreno, e preparou-se para o combate
monstruoso de um só homem contra duzentos.
A posição em que se achava o favorecia, se isso é
possível à vista de uma tal disparidade de número: apenas dois inimigos podiam
atacá-lo de frente.
Passado o primeiro espanto, os selvagens bramindo
atiraram-se todos como uma só mole, como uma tromba do oceano, contra o índio
que ousava atacá-los a peito descoberto.
Houve uma confusão, um turbilhão horrível de homens
que se repeliam, tombavam e se estorciam; de cabeças que se levantavam e outras
que desapareciam; de braços e dorsos que se agitavam e se contraiam, como se
tudo isto fosse partes de um só corpo, membros de algum monstro desconhecido
debatendo-se em convulsões.
No meio desse caos via-se brilhar aos raios do sol
com reflexos rápidos e luzentes a lamina do montante de Peri, que passava e
repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre as nuvens e atravessa o
espaço.
Um coro de gritos, imprecações e gemidos roucos e
abafados, confundindo-se com o choque das armas, se elevava desse pandemônio, e
ia perder-se ao longe nos rumores da cascata.
Houve uma calma aterradora; os selvagens imóveis de
espanto e de raiva suspenderam o ataque; os corpos dos mortos faziam uma
barreira entre eles e o inimigo.
Peri abaixou o seu montante e esperou; seu braço
direito fatigado desse enorme esforço não podia mais servir-lhe e caía inerte;
passou a arma para a mão esquerda.
Era tempo.
O velho cacique dos Aimorés se avançava para ele
sopesando a sua imensa clava crivada de escamas de peixe e dentes de fera;
alavanca terrível que o seu braço possante fazia jogar com a ligeireza da
flecha.
Os olhos de Peri brilharam; endireitando o seu
talhe, fitou no selvagem esse olhar seguro e certeiro, que não o enganava
nunca.
O velho aproximando-se levantou a sua clava e
imprimindo-lhe o movimento de rotação, ia descarregá-la sobre Peri e abatê-lo;
não havia espada nem montante que pudesse resistir àquele choque.
O que passou-se então foi tão rápido, que não é
possível descrevê-lo; quando o braço do velho volvendo a clava ia atirá-la, o
montante de Peri lampejou no ar e decepou o punho do selvagem; mão e clava foram
rojar pelo chão.
O velho selvagem soltou um bramido, que repercutiu
ao longe pelos ecos da floresta, e levantando ao céu o seu punho decepado
atirou as gotas de sangue que vertiam, sobre os Aimorés, como conjurando-os à
vingança.
Os guerreiros lançaram-se para vingar o seu chefe;
mas um novo espetáculo se apresentava aos seus olhos.
Peri, vencedor do cacique, volveu um olhar em torno
dele, e vendo O estrago que tinha feito, os cadáveres dos Aimóres amontoados
uns sobre os outros, fincou a ponta do montante no chão e quebrou a lamina.
Tomou depois os dois fragmentos e atirou-os ao rio.
Então passou-se nele uma luta silenciosa, mas
terrível para quem pudesse compreendê-la. Tinha quebrado a sua espada, porque
não queria mais combater; e decidira que era tempo de suplicar a vida ao
inimigo.
Mas quando chegou o momento de realizar essa
súplica, conheceu que exigia de si mesmo uma coisa sobre-humana, uma coisa
superior às suas forças.
Ele, Peri, o guerreiro invencível, ele, o selvagem
livre, o senhor das florestas, o rei dessa terra virgem, o chefe da mais
valente nação dos Guaranis, suplicar a vida ao inimigo! Era impossível.
Três vezes quis ajoelhar, e três vezes as curvas de
suas pernas distendendo-se como duas molas de aço o obrigaram a erguer-se.
Finalmente a lembrança de Cecília foi mais forte do
que a sua vontade.
Ajoelhou.
XIV
O
PRISIONEIRO
Quando os selvagens se precipitavam sobre o inimigo, que já não se defendia e
se confessava vencido, o velho cacique adiantou-se; e deixando cair a mão sobre
o ombro de Peri, fez um movimento enérgico com o braço direito decepado.
Esse movimento exprimia que Peri era seu
prisioneiro, que lhe pertencia como o primeiro que tinha posto a mão sobre ele,
como seu vencedor; e que todos deviam respeitar o seu direito de propriedade, o
seu direito de guerra.
Os selvagens abaixaram as armas e não deram um
passo; esse povo bárbaro tinha seus costumes e suas leis; e uma delas era esse
direito exclusivo do vencedor sobre o seu prisioneiro de guerra, essa conquista
do fraco pelo forte.
Tinham em tanta conta a glória de trazerem um
cativo do combate e sacrificá-lo no meio das festas e cerimônias que costumavam
celebrar, que nenhum selvagem matava o inimigo que se rendia; fazia-o
prisioneiro.
Quanto a Peri, vendo o gesto do cacique e o efeito
que produzia, a sua fisionomia expandiu-se; a humildade fingida, a posição
suplicante que por um esforço supremo conseguira tomar, desapareceu
imediatamente.
Ergueu-se, e com um soberbo desdém estendeu os
punhos aos selvagens que por mandado do velho se dispunham a ligar-lhe os
braços; parecia antes um rei que dava uma ordem aos seus vassalos, do que um
cativo que se sujeitava aos vencedores; tal era a altivez do seu porte e o
desprezo com que encarava o inimigo.
Os Aimorés, depois de ligarem os punhos do
prisioneiro, o conduziram a alguma distancia à sombra de uma árvore, e ai o
prenderam com uma corda de algodão matizada de várias cores a que os Guaranis
chamavam muçurana.
Depois, ao passo que as mulheres enterravam os
mortos, reuniram-se em conselho, presididos pelo velho cacique, a quem todos
ouviam com respeito e respondiam cada um por sua vez.
Durante o tempo que os guerreiros falavam, a
pequena índia escolhia os melhores frutos, as bebidas mais bem preparadas, e
oferecia ao prisioneiro, a quem estava encarregada de servir.
Peri, sentado sobre a raiz da árvore e apoiado
contra o tronco, não percebia o que se passava em torno dele; tinha os olhos
fitos na esplanada da casa que se elevava a alguma distancia.
Via o vulto de D. Antônio de Mariz que assomava por
cima da paliçada; e suspensa ao seu braço, reclinada sobre o abismo, Cecília,
sua linda senhora, que lhe fazia de longe um gesto de desespero; ao lado Álvaro
e a família.
Tudo o que ele havia amado neste mundo ali estava
diante
de seus olhos; sentia um prazer intenso por ver
ainda uma vez esses objetos de sua dedicação extrema, de seu amor profundo.
Adivinhava e compreendia o que sentia então o
coração de seus bons amigos; sabia que sofriam vendo-o prisioneiro, próximo a
morrer, sem terem o poder e a força para salvá-lo das mãos do inimigo.
Consolava-o porém essa esperança que estava prestes
a realizar-se; esse gozo inefável de salvar sua senhora, e de deixá-la feliz no
seio de sua família, protegida pelo amor de Álvaro.
Enquanto Peri, preocupado por essas idéias,
enlevava-se ainda uma vez em contemplar mesmo de longe a figura de Cecília, a
índia de pé, defronte dele, olhava-o com um sentimento de prazer misturado de
surpresa e curiosidade.
Comparava suas formas esbeltas e delicadas com o
corpo selvagem de seus companheiros; a expressão inteligente de sua fisionomia
com o aspecto embrutecido dos Aimorés; para ela, Peri era um homem superior e
excitava-lhe profunda admiração.
Foi só quando Cecília e D. Antônio de Mariz
desapareceram da esplanada, que Peri, lançando ao redor um olhar para ver se a
sua morte ainda se demoraria muito, descobriu a índia perto dele.
Voltou o rosto e continuou a pensar em sua senhora
e a rever a sua imagem; debalde a menina selvagem lhe apresentava um lindo
fruto, um alimento, um vinho saboroso; ele não lhe dava atenção.
A índia tornou-se triste por causa dessa obstinação
com que o prisioneiro recusava o que lhe oferecia e achegando-se levantou a
cabeça pensativa de Peri.
Havia nos olhos da menina tanto fogo, tanta
lubricidade no seu sorriso; as ondulações mórbidas do seu corpo traiam tantos
desejos e tanta voluptuosidade, que o prisioneiro compreendeu imediatamente
qual era a missão dessa enviada da morte, dessa esposa do túmulo, destinada a
embelezar os últimos momentos da vida!
O índio voltou o rosto com desdém; recusava as
flores como tinha recusado os frutos; repelia a embriaguez do prazer como havia
repelido a embriaguez do vinho.
A menina enlaçou-o com os braços, murmurando palavras
entrecortadas de uma língua desconhecida, da língua dos Aimorés, que Peri não
entendia; era talvez uma súplica, ou um consolo com que procurava mitigar a dor
do vencido.
Mal sabia que o índio ia morrer feliz e esperava o
suplício como a realização de um sonho doce, como a satisfação de um desejo
querido e por muito tempo afagado com amor.
Mas podia ela, pobre selvagem, pressentir e mesmo
compreender semelhante coisa? O que sabia era que Peri ia ser morto; que ela
devia suavizar-lhe a última hora; e cumpria esse dever com um certo
contentamento.
Peri sentindo os braços da menina cingirem seu
colo, repeliu-a vivamente para longe de si; e voltando procurou ver por entre
as folhas se descobria os preparativos que os Aimorés faziam para o sacrifício.
Tardava-lhe o momento supremo em que devia ser
imolado à cólera e à vingança dos inimigos; sua altivez revoltava-se contra
essa humilhação do cativeiro.
A índia continuava a olhá-lo tristemente, e sem
compreender por que a repelia; ela era linda e desejada por todos os jovens
guerreiros de sua tribo; seu pai, o velho cacique, tinha-a destinado para o
mais valente prisioneiro, ou para o mais forte dos vencedores.
Depois de conservar-se muito tempo nesta posição, a
menina adiantou-se de novo, tomou um vaso cheio de cauim, e apresentou-o a Peri
sorrindo e quase suplicante.
Ao gesto de recusa que fez o índio, ela deitou o
vaso no rio, e escolhendo sobre as folhas um cardo vermelho e doce como um favo
de mel, estendeu a mão e tocou com o fruto a boca do prisioneiro.
Peri enjeitou o fruto como tinha enjeitado o vinho,
e a virgem selvagem atirando-o por sua vez ao rio, aproximou-se e ofereceu ao
prisioneiro seus lábios encarnados, ligeiramente distendidos como para
receberem o beijo que pediam.
O índio fechou os olhos e pensou em sua senhora.
Elevando-se até Cecília, seu pensamento desprendia-se do invólucro terrestre e
adejava numa atmosfera pura e isenta da fascinação dos sentidos que escraviza o
homem.
Contudo Peri sentia o hálito ardente da menina que
lhe requeimava as faces: entreabriu os olhos, e viu-a na mesma posição,
esperando uma carícia, um afago daquele a quem a sua tribo mandara que amasse,
e a quem ela já amava espontaneamente.
Na vida selvagem, tão próxima da natureza, onde a
conveniência e os costumes não reprimem os movimentos do coração, o sentimento
é uma flor que nasce como a flor do campo, e cresce em algumas horas com uma
gota de orvalho e um raio de sol.
Nos tempos de civilização, ao contrário, o
sentimento torna-se planta exótica; que só vinga e floresce nas estufas, isto
é, nos corações onde o sangue é vigoroso, e o fogo da paixão ardente e intenso.
Vendo Peri no meio do combate, só contra toda a sua
tribo, a índia o admirara: contemplando-o depois quando prisioneiro, o achara
mais belo do que todos os guerreiros.
Seu pai a destinara para esposa do inimigo que ia
ser sacrificado; e portanto ela que começara por admirá-lo, acabava por
desejá-lo, por amá-lo, algumas horas apenas depois que o tinha visto.
Mas Peri, frio e indiferente, não se comovia, nem
aceitava essa afeição passageira e efêmera que tinha começado com o dia e devia
acabar com ele; sua idéia fixa, a lembrança de seus amigos, o protegia contra a
tentação.
Voltando as costas, levantou os olhos ao céu para
evitar o rosto da selvagem que acompanhava a sua vista, como certas flores
acompanham a rotação aparente do sol.
Entre a folhagem das árvores passava-se uma das
cenas graciosas e singelas, que a cada momento no campo se oferecem à atenção
daqueles que estudam a natureza nas suas pequenas criaturas.
Um casal de corrixos, que tinha feito o seu ninho
num ramo, sentindo a habitação do homem e o fogo embaixo da árvore, mudava a
sua pequena casa de palha e algodão.
Um desfazia com o bico o ninho, e o outro conduzia
a palha para longe, para o lugar onde iam novamente fabricá-lo; quando acabaram
este trabalho, acariciaram-se, e batendo as asas foram esconder o seu amor
nalgum lindo retiro.
Peri se divertia em ver esse inocente idílio,
quando a índia levantando-se de repente soltou um pequeno grito de alegria e de
prazer, e sorrindo mostrou ao prisioneiro os dois passarinhos que voavam um a
par do outro sobre a cúpula da floresta.
Enquanto ele procurava compreender o que queria
dizer este aceno, a virgem desapareceu, e voltou quase imediatamente trazendo
um instrumento de pedra que cortava como faca e um arco de guerra.
Aproximou-se do índio, soltou-lhe os laços que lhe
ligavam os punhos, e partiu a muçurana que o prendia à árvore. Executou isto
com uma extrema rapidez; e entregando a Peri o arco e as flechas, estendeu a
mão na direção da floresta, mostrando-lhe o espaço que se abria diante deles.
Seus olhos e seu gesto falavam melhor do que a sua
linguagem inculta, e exprimiam claramente o seu pensamento:
— Tu és livre. Partamos!
QUARTA
PARTE
A
CATÁSTROFE
I
ARREPENDIMENTO
Quando Loredano afastou-se de João Feio que o acabava de ameaçar, chamou quatro
companheiros em que mais confiava, e retirou-se com eles para a despensa.
Fechou a porta a fim de interceptar a comunicação
com os aventureiros e poder tranqüilamente tratar o negocio que tinha em mente.
Nesse curto instante havia feito uma modificação no
seu plano da véspera: as palavras de ameaça há pouco proferidas lhe revelaram
que o descontentamento começava a lavrar. Ora, o italiano não era homem que
recuasse diante de um obstáculo e deixasse roubarem-lhe a esperança, que nutria
desde tanto tempo.
Resolveu fazer as coisas rapidamente e executar
naquele mesmo dia o seu intento: seis homens fortes e destemidos bastavam para
levar ao cabo a empresa que projetara.
Tendo fechado a porta, guiou os quatro aventureiros
à sala que tocava com o oratório e onde Martim Vaz continuava a sua obra de
demolição, minando a parede que os separava da família.
— Amigos, disse o italiano, estamos numa posição
desesperada; não temos força para resistir aos selvagens, e mais dia menos dia
havemos de sucumbir.
Os aventureiros abaixaram a cabeça e não
responderam; sabiam que aquela era a triste verdade.
— A morte que nos espera é horrível; serviremos de
pasto a esses bárbaros que se alimentam de carne humana; nossos corpos sem
sepultura cevarão os instintos ferozes dessa horda de canibais!...
A expressão do horror se pintou na fisionomia
daqueles homens, que sentiram um calafrio percorrer-lhes os membros e penetrar
até à medula dos ossos.
Loredano demorou um instante o seu olhar perspicaz
sobre esses rostos decompostos:
— Tenho porém um meio de salvar-vos.
— Qual? perguntaram todos a uma voz.
— Esperai. Posso salvar-vos; mas isto não quer
dizer que esteja disposto a fazê-lo.
— Por que razão?
— Por quê?... Porque todo o serviço tem o seu
preço.
— Que exigis então? disse Martim Vaz.
— Exijo que me acompanheis, que me obedeçais
cegamente, suceda o que suceder.
— Podeis ficar descansado, disse um dos
aventureiros; eu respondo pelos meus companheiros.
— Sim! exclamaram os outros.
— Bem! Sabeis o que vamos fazer, já, neste momento?
— Não; mas vós nos direis.
— Escutai! Vamos acabar de demolir esta parede e
atirá-la dentro; entrar nesta sala, e matar tudo quanto encontrarmos, menos uma
pessoa.
— E essa pessoa...
— É a filha de D. Antônio de Mariz, Cecília. Se
algum de vós deseja a outra, pode tomá-la; eu vo-la dou.
— E depois disso feito?
— Tomamos conta da casa; reunimos os nossos
companheiros e atacamos os Aimorés.
— Mas isto não nos salvará, retrucou um dos
aventureiros; há pouco dissestes que não temos força para resistir-lhes.
— Decerto! acudiu Loredano; não lhes resistiremos,
mas nos salvaremos.
— Como? disseram os aventureiros desconfiados.
O italiano sorriu.
— Quando disse que atacaremos o inimigo, não falei
claro; queria dizer que os outros o atacarão.
— Não vos entendo ainda; falai mais claro.
— Ai vai pois. Dividiremos os nossos homens em duas
bandas; nós e mais alguns pertenceremos a uma que ficará sob a minha
obediência.
— Até aqui vamos bem.
— Isto feito uma das bandas sairá da casa para
fazer uma sortida enquanto os outros atacarão os selvagens do alto do rochedo,
é um estratagema já velho e que deveis conhecer: meter o inimigo entre dois
fogos.
— Adiante; continuai.
— Como a expedição de sair é a mais perigosa e
arriscada, tomo-a sobre mim; vós me acompanhais e marchamos. Somente em lugar
de marchar sobre o inimigo, marchamos sobre o mais próximo povoado.
— Oh! exclamaram os aventureiros.
— Sob pretexto de que os selvagens podem cortar-nos
a entrada da casa por alguns dias, levamos provisão de viveres. Caminhamos sem
parar, sem olhar atrás; e prometo-vos que nos salvaremos.
— Uma traição! gritou um dos aventureiros.
Entregarmos nossos companheiros nas mãos dos inimigos!
— Que quereis? A morte de uns é necessária para a
vida dos outros; este mundo é assim e não seremos nós que o havemos de emendar;
andemos com ele.
— Nunca! Não faremos isso! É uma vilania!
— Bom, respondeu Loredano friamente, fazei o o que
vos aprouver. Ficai; quando vos arrependerdes será tarde.
— Mas ouvi...
— Não; não conteis já comigo. Julguei que falava a
homens a quem valesse salvar a vida; vejo que me enganei. Adeus.
— Se não fora uma traição...
— Que falais em traição!... replicou o italiano com
arrogância. Dizei-me, credes vós que algum escapará daqui na posição em que nos
achamos? Morreremos todos. Pois se assim é, mais vale que se salvem alguns.
Os aventureiros pareceram abalados por este
argumento.
— Eles mesmos, continuou Loredano, a menos de serem
egoístas, não terão o direito de se queixarem; e morrerão com a satisfação de
que sua morte foi útil aos seus companheiros, e não estéril como deve ser se
ficarmos todos de braços cruzados.
— Vá feito; tendes razões a que não se resiste.
Contai conosco, acudiu um aventureiro.
— Contudo levarei sempre um remorso, disse outro.
— Faremos dizer uma missa por sua alma.
— Bem lembrado! respondeu o italiano.
Os aventureiros foram ajudar o seu companheiro na
demolição surda da parede, e Loredano ficou só, retirado a um canto.
Por algum tempo acompanhou com a vista o trabalho
dos cincos homens; depois tirou um largo cinto de escamas de aço que apertava o
seu gibão.
Na parte interior desse cinto havia uma estreita
abertura pela qual ele sacou um pergaminho dobrado ao comprido: era o famoso
roteiro das minas de prata.
Revendo esse papel, todo o seu passado debuxou-se
na sua memória, não para deixar-lhe o remorso, mas para excitá-lo a prosseguir
em busca desse tesouro que lhe pertencia, e do qual não podia gozar.
Foi tirado da sua distração por um dos
aventureiros, que se achegara para ele despercebido, e depois de olhar por
muito tempo o papel, dirigiu-lhe a palavra:
— Não podemos derrubar a parede.
— Por quê? perguntou Loredano erguendo-se. Está
segura?
— Não é isso, basta um empurrão; mas o oratório?
— Que tem o oratório?
— Que tem? Os santos, as sagradas imagens bentas
não são coisas que se atire ao chão! Se tão danada tentação nos tomasse,
pediríamos a Deus que nos livrasse dela.
Loredano desesperado dessa nova resistência, cuja
força ele conhecia, passeava pela sala de uma ponta à outra.
— Estúpidos! murmurava ele. Basta um fragmento de
madeira um pouco de argila para fazê-los recuar! E dizem que são homens!
Animais sem inteligência, que nem sequer têm o instinto da conservação!...
Alguns momentos decorreram; os aventureiros parados
esperavam a resolução do seu chefe.
— Tendes medo de tocar nos santos, disse Loredano
avançando para eles; pois bem, serei eu que deitarei a parede abaixo.
Continuai, e avisai-me quando for tempo. Enquanto isto se passava, o resto dos
aventureiros que ficara no alpendre ouvia a narração de João Feio, que lhes
comunicava as revelações de mestre Nunes.
Quando eles souberam que Loredano era um frade que
abjurara dos seus votos, ergueram-se furiosos, e quiseram procurá-lo e
espedaçá-lo.
— Que ides fazer? gritou o aventureiro. Não é assim
que ele deve acabar; a sua morte há de ser uma punição, uma terrível punição.
Deixai-me arranjar isto.
— Para que mais demora? respondeu Vasco Afonso.
— Prometo-vos que não haverá demora; hoje mesmo
será condenado; amanhã receberá o castigo de seus crimes.
— E por que não hoje?
— Deixemos-lhe o tempo de arrepender-se: é preciso
que antes de morrer sinta o remorso do que praticou.
Os aventureiros decidiram por fim seguir este
conselho, e esperaram que Loredano aparecesse para se apoderarem dele e o
condenarem sumariamente.
Passou-se um bom espaço de tempo, e nada do
italiano sair; era quase meio-dia.
Os aventureiros estavam desesperados de sede; a sua
provisão de água e de vinho, já bastante diminuída depois do sitio dos
selvagens, achava-se na despensa, cuja porta Loredano fechara por dentro.
Felizmente descobriram no quarto do italiano
algumas garrafas de vinho, que beberam no meio de risadas e chacotas, fazendo
brindes ao frade que iam dentro em
pouco condenar à pena de morte.
No meio da hilaridade algumas palavras revelavam o
arrependimento que começava a se apoderar deles; falavam de ir pedir perdão ao
fidalgo, de se reunir de novo a ele, e ajudá-lo a bater o inimigo.
Se não fosse a vergonha da má ação que tinham
praticado, correriam a lançar-se aos joelhos de D. Antônio de Mariz
imediatamente; mas resolveram fazê-lo quando o principal autor da revolta
tivesse recebido o castigo do seu crime.
Seria esse o seu primeiro titulo ao perdão que iam
suplicar; seria mais a prova da sinceridade do seu arrependimento.
II
O
SACRIFÍCIO
Peri compreendera o gesto da índia; não fez porém o menor movimento para
segui-la.
Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu.
Por sua vez a menina também compreendeu a expressão
daquele sorriso e a resolução firme e inabalável que se lia na fronte serena do
prisioneiro.
Insistiu por algum tempo, mas debalde. Peri tinha
atirado para longe o arco e as flechas, e recostando-se ao tronco da árvore,
conservava-se calmo e impassível.
De repente o índio estremeceu.
Cecília aparecera no alto da esplanada e lhe
acenara; sua mãozinha alva e delicada agitando-se no ar parecia dizer-lhe que
esperasse; Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil de sua senhora apesar da
distancia, brilhar um raio de felicidade.
Quando com os olhos fitos naquela graciosa visão
ele esforçava-se por adivinhar a causa de tão súbita alegria, a índia soltou um
segundo grito selvagem, um grito terrível.
Tinha pela direção do olhar do prisioneiro visto
Cecília sobre a esplanada; tinha percebido o gesto da menina, e compreendera
vagamente a razão por que Peri recusara a liberdade e o seu amor. Precipitou-se
sobre o arco que estava atirado ao chão; mas apesar da rapidez desse movimento,
quando ela estendia a mão, já Peri tinha posto o pé sobre a arma.
A selvagem, com os olhos ardentes, os lábios
entreabertos, trêmula de ciúme e de vingança, leventou sobre o peito do índio a
faca de pedra com que lhe cortara os laços há pouco; mas a arma caiu-lhe da
mão, e vacilando apoiou-se no seio que ameaçara.
Peri tomou-a nos braços, deitou-a sobre a relva e
sentou-se de novo junto ao tronco da árvore, tranqüilo a respeito de Cecília,
que desapareceu da esplanada e estava fora de perigo.
Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às
encostas e o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol.
O ar estrugiu com os sons roucos da inúbia e do
maracá; ao mesmo tempo um canto selvagem, o canto guerreiro dos Aimorés,
misturou-se com a harmonia sinistra daqueles instrumentos ásperos e
retumbantes.
A índia deitada junto da árvore sobressaltou-se, e
erguendo-se rapidamente, acenou ao prisioneiro mostrando-lhe a floresta e
suplicando-lhe que fugisse. Peri sorriu como da primeira vez; tomando a mão da
menina a fez sentar perto dele, e tirou do pescoço a cruz de ouro que Cecília lhe
havia dado.
Então começou entre ele e a selvagem uma conversa
por acenos de que seria difícil dar uma idéia.
Peri dizia à menina que lhe dava aquela cruz como
lembrança, mas que só depois que ele morresse é que devia tirá-la do pescoço. A
selvagem entendeu ou julgou entender o que Peri procurava exprimir
simbolicamente, e beijou-lhe as mãos em sinal de reconhecimento.
O prisioneiro obrigou-a a atar de novo os laços que
o ligavam, e que ela no seu generoso impulso de dar-lhe a liberdade havia
desfeito.
Nesse momento quatro guerreiros Aimorés dirigiam-se
à árvore em que se achava Peri; e segurando as pontas da corda o conduziram ao
campo, onde tudo estava já preparado para o sacrifício.
O índio ergueu-se e caminhou com o passo firme e a
fronte alta diante dos quatro inimigos, que não perceberam o olhar rápido que
nessa ocasião ele lançou às pontas de sua túnica de algodão, torcidas em dois
nós pequenos.
O campo cortado em elipse no meio das árvores
estava cercado por cento e tantos guerreiros armados em guerra e cobertos de
ornatos de penas.
No fundo as velhas pintadas de listras negras e
amarelas, de aspecto hórrido, preparavam um grande brasido, lavavam a laje que
devia servir de mesa, e afiavam as suas facas de ossos e lascas de pedra.
As moças grupadas de um lado guardavam os vasos
cheios de vinho e bebidas fermentadas, que ofereciam aos guerreiros quando
estes passavam diante delas entoando o canto de guerra dos Aimorés.
A menina que fora incumbida de servir ao
prisioneiro, e o acompanhara ao lugar do sacrifício, conservava-se a alguma
distancia e olhava tristemente todos esses preparativos; pela primeira vez seu
instinto natural parecia revelar-lhe a atrocidade desse costume tradicional de
seus pais, a que ela tantas vezes assistira com prazer.
Agora que ia representar como heroína no drama
terrível, e como esposa do prisioneiro devia acompanhá-lo até o momento
supremo, insultando-lhe a dor e a desgraça, o seu coração confrangia-se porque
realmente amava Peri, tanto quanto era possível a uma natureza como a sua amar.
Chegados ao campo, os selvagens que conduziam o
prisioneiro passaram as pontas da corda ao tronco de duas árvores, e esticando
o laço o obrigaram a ficar imóvel no meio do terreiro. Os guerreiros desfilaram
em roda entoando o canto da vingança; as inúbias retroaram de novo; os gritos
confundiram-se com o som dos maracás, e tudo isso formou um concerto horrível.
À medida que se animavam, a cadência apressava-se:
de modo que a marcha triunfal dos guerreiros se tornava uma dança macabra, uma
corrida veloz, uma valsa fantástica, em que todos esses vultos horrendos,
cobertos de penas que brilhavam à luz do sol, passavam como espíritos satânicos
envoltos na chama eterna.
A cada volta que fazia esse sabbat um dos
guerreiros destacava-se do circulo, e adiantando-se para o prisioneiro o
desafiava ao combate, e conjurava-o a que desse provas de sua coragem, de sua
força e de seu valor.
Peri, sereno e altivo, recebia com um soberbo
desdém a ameaça e o insulto, e sentia um certo orgulho pensando que no meio de
todos aqueles guerreiros fortes e armados, ele, o prisioneiro, o inimigo que ia
ser sacrificado, era o verdadeiro, o único vencedor. Talvez pareça isso
incompreensível; mas o fato é que Peri o pensava, e que só o segredo que ele
guardava no fundo de sua alma podia explicar a razão desse pensamento e a
tranqüilidade com que esperava o suplício.
A dança continuava no meio dos cantos, dos alaridos
e das constantes libações, quando de repente tudo emudeceu, e o mais profundo
silêncio reinou no campo dos Aimorés.
Todos os olhos se voltaram para uma cortina de
folhas que ocultava uma espécie de cabana selvagem, construída a um lado do
campo em face do prisioneiro.
Os guerreiros se afastaram, as folhas se abriram, e
entre aquelas franjas de verdura assomou o vulto gigantesco do velho cacique.
Duas peles de tapir ligadas sobre os ombros cobriam seu corpo como uma túnica;
um grande cocar de penas escarlates ondeava sobre a sua cabeça e realçava-lhe a
grande estatura.
Tinha o rosto pintado de uma cor esverdeada e
oleosa, e o pescoço cingido de uma coleira feita com as penas brilhantes do
tucano; no meio desse aspecto horrendo os seus olhos brilhavam como dois fogos
vulcânicos no seio das trevas. Trazia na mão esquerda a tangapema coberta de
plumas resplandecentes, e amarrada ao punho direito uma espécie de buzina
formada de um osso enorme da canela de algum inimigo morto em combate.
Chegando à entrada do campo o velho selvagem levou
à boca o seu instrumento bárbaro, e tirou dele um som estrondoso: os Aimorés
saudaram com gritos de alegria e de entusiasmo o aparecimento do vencedor.
Ao cacique cabia a honra de ser o algoz da vitima,
o matador do prisioneiro; seu braço devia consumar a grande obra da vingança,
esse sentimento que constituía para aqueles povos fanáticos a verdadeira
glória.
Apenas cessaram as aclamações com que foi acolhida
a entrada do vencedor, um dos guerreiros que o acompanhavam adiantou-se e
fincou na extrema do campo uma estaca destinada a receber a cabeça do inimigo,
logo que ela fosse decepada do corpo.
Ao mesmo tempo a jovem índia que servia de esposa
ao prisioneiro, tirou o tacape que pendia do ombro de seu pai, e caminhando
para Peri desligou-lhe os braços e ofereceu-lhe a arma, fitando nele um olhar
triste, ardente e cheio de amarga exprobração.
Nesse olhar dizia-lhe que se tivesse aceitado o
amor que lhe oferecera, e com o amor a vida e a liberdade, ela não seria
obrigada pelo costume tradicional de sua nação a escarnecer assim da sua morte.
Com efeito esse oferecimento que os selvagens
faziam ao prisioneiro, de uma arma para se defender, era uma ironia cruel:
ligado pelo laço que o prendia, imóvel pela tensão da corda, de que lhe servia
vibrar o tacape no ar, se não podia atingir os inimigos?
Peri aceitou a arma que a menina lhe trazia;
calcando-a aos pés cruzou os braços e esperou o cacique que avançava
lentamente, terrível e ameaçador.
Chegando em face do prisioneiro, a fisionomia do
velho esclareceu-se com um sorriso feroz, reflexo dessa embriaguez do sangue,
que dilata as narinas do jaguar prestes a saltar sobre a presa.
— Sou teu matador! disse em guarani.
Peri não se admirou ouvindo a sua bela língua
adulterada pelos sons roucos e guturais que saiam dos lábios do selvagem.
— Peri não te teme!
— És goitacá?
— Sou teu inimigo!
— Defende-te!
O índio sorriu:
— Tu não mereces.
Os olhos do velho fuzilaram de raiva: a mão cerrou
o punho da tangapema; mas ele reprimiu logo o assomo da cólera.
A esposa do prisioneiro atravessou o campo e
ofereceu ao vencedor um grande vaso de barro vidrado cheio de vinho de ananás
ainda espumante.
O selvagem virou de um trago a bebida aromática, e
endireitando o seu alto talhe, lançou ao prisioneiro um olhar soberbo:
— Guerreiro goitacá, tu és forte e valente; tua
nação é temida na guerra. A nação Aimoré é forte entre as mais fortes, valente
entre as mais valentes. Tu vais morrer.
O coro dos selvagens respondeu a esta espécie de
canto guerreiro, que preludiava o tremendo sacrifício.
O velho continuou:
— Guerreiro goitacá, tu és prisioneiro; tua cabeça
pertence ao guerreiro Aimoré; teu corpo aos filhos de sua tribo; tuas entranhas
servirão ao banquete da vingança Tu vais morrer.
Os gritos dos selvagens responderam de novo: e o
canto se prolongou por muito tempo lembrando os feitos gloriosos da nação
Aimoré e as ações de valor de seu chefe.
Enquanto o velho falava, Peri o escutava com a
mesma calma e impassibilidade; nem um dos músculos do seu rosto traia a menor
emoção; seu olhar límpido e sereno ora fitava-se no rosto do cacique, ora
volvia-se pelo campo examinando os preparativos do sacrifício.
Apenas quem o observasse veria que de braços
cruzados como estava, uma das mãos desfazia imperceptivelmente um dos nós que
havia na ponta de seu saio de algodão.
Quando o velho acabou de falar, encarou o
prisioneiro, e recuando dois passos elevou lentamente a pesada clava que
empunhava na mão esquerda. Os Aimorés ansiosos esperavam; as velhas com as suas
navalhas de pedra estremeciam de impaciência; as jovens índias sorriam, enquanto
a noiva do prisioneiro voltava o rosto para não ver o espetáculo horrível que
ia apresentar-se.
Nesse momento Peri levando as duas mãos aos olhos
cobriu o rosto, e curvando a cabeça ficou algum tempo nessa posição sem fazer
um movimento que revelasse a menor perturbação.
O velho sorriu.
— Tens medo!
Ouvindo estas palavras, Peri ergueu a cabeça com ar
senhoril. Uma expressão de júbilo e serenidade irradiava no seu rosto;
dir-se-ia o êxtase dos mártires da religião que na última hora, através do
túmulo, entrevêem a felicidade suprema.
A alma nobre do índio prestes a deixar a terra
parecia exalar já do seu invólucro; e pousando nos seus lábios, nos seus olhos,
na sua fronte, esperava o momento de lançar-se no espaço para ir se abrigar no
seio do Criador.
Erguendo a cabeça, fitou os olhos no céu, como se a
morte que ia cair sobre ele fosse uma visão encantadora que descesse das nuvens
sorrindo-lhe. Era que nesse último sonho da existência via a linda imagem de
Cecília, feliz, alegre e contente; via sua senhora salva.
— Fere!... disse Peri ao velho cacique.
Os instrumentos retumbaram de novo; os gritos e os
cantos se confundiram com aqueles sons roucos, e reboaram pela floresta como o
trovão rolando pelas nuvens.
A tangapema coberta de plumas girou no ar
cintilando aos raios do sol que feriam as cores brilhantes.
No meio desse turbilhão ouviu-se um estrondo, uma
ânsia de agonizante e o baque de um corpo: tudo isto confusamente, sem que no
primeiro instante se pudesse perceber o que havia passado.
III
SORTIDA
O estrondo que se ouviu, fora causado por um tiro que partiu dentre as árvores.
O velho Aimoré vacilou; seu braço que vibrava o
tacape com uma força hercúlea, caiu inerte; o corpo abateu-se como o ipê da
floresta cortada pelo raio.
A morte tinha sido quase instantânea; apenas um
estertor de agonia ressoou no seu peito largo e ainda há pouco vigoroso; caíra
já cadáver.
Enquanto os selvagens permaneciam estáticos diante
do que se passava, Álvaro com a espada na mão e a clavina ainda fumegante
precipitava-se no meio do campo. De dois talhos rápidos cortou os laços de
Peri; e com as evoluções de sua espada conteve os selvagens, que voltando a si
calam sobre ele bramindo de furor.
Imediatamente ouviu-se uma descarga de arcabuzes;
dez homens destemidos tendo à sua frente Aires Gomes saltaram por sua vez com a
arma em punho, e começaram a talhar de alto a baixo a grandes golpes de espada.
Não pareciam homens, e sim dez demônios, dez
máquinas de guerra vomitando a morte de todos os lados; enquanto a sua mão
direita imprimia à lamina da espada mil voltas, que eram outros tantos golpes
terríveis, a esquerda jogava a adaga com destreza e segurança admiráveis.
O escudeiro e seus homens tinham feito um
semicírculo em roda de Álvaro e de Peri e apresentavam uma barreira de ferro e
fogo às ondas de inimigos que bramiam, recuavam, e lançavam-se de novo
quebrando-se de encontro a esse dique.
No curto instante que mediou entre a morte do
cacique e o ataque dos aventureiros, Peri de braços cruzados olhava impassível
para tudo o que se passava em torno dele. Compreendia então o gesto que sua
senhora há pouco lhe fizera do alto da esplanada, e o raio de esperança e de
alegria que ele julgara ver brilhar no seu semblante.
Com efeito no primeiro momento de aflição Cecília
se lançara para ver o índio, chamá-lo ainda, e suplicar-lhe mesmo que não
expusesse a sua vida inutilmente.
Não tendo mais visto Peri, a menina sentiu um
desespero cruel; voltou-se para seu pai e com as faces orvalhadas de lágrimas,
com o seio anelante, com a voz cheia de angústia, pediu-lhe que salvasse Peri.
D. Antônio de Mariz antes que sua filha lhe fizesse
esse pedido, já tinha se lembrado de chamar os seus companheiros fiéis, e
seguido por eles correr contra o inimigo, e livrar o índio da morte certa e
inevitável que procurava. Mas o fidalgo era um homem de uma lealdade e de uma
generosidade a toda a prova; sabia que aquela empresa era de um risco imenso, e
não queria obrigar os seus companheiros a partilhar um sacrifício que ele só,
faria de bom grado à amizade que votava a Peri.
Os aventureiros que se haviam dedicado com tanta
constância à salvação de sua família, não tinham as mesmas razões para se
arriscarem por causa de um homem que não pertencia à sua religião, e que não
tinha com eles o menor laço de comunidade.
D. Antônio de Mariz perplexo, irresoluto entre a
amizade e o seu escrúpulo generoso, não soube o que responder a sua filha;
procurou consolá-la, aflito por não poder satisfazer imediatamente a sua
vontade.
Álvaro, que contemplava esta cena pungente a alguma
distancia, no meio dos aventureiros fiéis e dedicados que tinha sob suas ordens
tomou repentinamente uma resolução.
Seu coração partia-se vendo Cecília sofrer; e
embora amasse Isabel, a sua alma nobre sentia ainda pela mulher a quem votara
os seus primeiros sonhos, uma afeição pura, respeitosa, uma espécie de culto.
Era uma coisa singular na vida dessa menina; todas
as paixões, todos os sentimentos que a envolviam sofriam a influência de sua
inocência, e iam a pouco e pouco depurando-se e tomando um quer que seja de
ideal, um cunho de adoração.
O mesmo amor ardente e sensual de Loredano, quando
se tinha visto em face dela, adormecida na sua casta isenção, emudecera e
hesitara um momento se devia manchar a santidade do seu pudor.
Álvaro trocou com os aventureiros algumas palavras;
e dirigiu-se para o grupo que formavam D. Antônio de Mariz e sua filha.
— Consolai-vos, D. Cecília, disse o moço, e
esperai!
A menina fitou nele os olhos azuis cheios de
reconhecimento; aquela palavra era ao menos uma esperança.
— Que contais fazer? perguntou D. Antônio ao
cavalheiro.
— Tirar Peri das mãos do inimigo!
— Vós!... exclamou Cecília.
— Sim, D. Cecília, disse o moço; aqueles homens
dedicados vendo a vossa aflição sentiram-se comovidos e desejam poupar-vos uma
justa mágoa.
Álvaro atribuía a generosa iniciativa aos seus
companheiros, quando eles não tinham feito senão aceitá-la com entusiasmo.
Quanto a D. Antônio de Mariz sentira uma intima
satisfação ouvindo as palavras do moço: seus escrúpulos cessavam desde que seus
homens espontaneamente se ofereciam para realizar aquela difícil empresa.
— Me cedereis uma parte dos nossos homens; quatro
ou cinco me bastam, continuou o moço, dirigindo-se ao fidalgo; ficareis com o
resto para defender-vos no caso de algum ataque imprevisto.
— Não, respondeu D. Antônio; levai-os todos, já que
se prestam a essa tão nobre ação, que não me animava a exigir de sua coragem.
Para defender a minha família, basto eu, apesar de velho.
— Desculpai-me, Sr. D. Antônio, replicou Álvaro;
mas é uma imprudência a que me oponho; pensai que a dois passos de vós existem
homens perdidos, que nada respeitam e que espiam o momento de fazer-vos mal.
— Sabeis se prezo e estimo este tesouro cuja guarda
me foi confiada por Deus. Julgais que haja neste mundo alguma coisa que me faça
expô-lo a um novo perigo? Acreditai-me: D. Antônio de Mariz, só, defenderá sua
família, enquanto vós salvareis um bom e nobre amigo.
— Confiais demasiado em vossas forças!...
— Confio em Deus, e no poder que ele colocou em
minha mão: poder terrível que quando chegar o momento fulminará todos os nossos
inimigos com a rapidez do raio.
A voz do velho fidalgo pronunciando estas palavras
tinha-se revestido de uma solenidade imponente; o seu rosto iluminou-se com uma
expressão de heroísmo e de majestade que realçou a beleza severa do seu busto
venerável.
Álvaro olhou com uma admiração respeitosa o velho
cavalheiro enquanto Cecília, pálida e palpitante das emoções que sentira,
esperava com ansiedade a decisão que iam tomar.
O moço não insistiu e sujeitou-se à vontade de D.
Antônio de Mariz:
— Obedeço-vos; iremos todos e voltaremos mais
pronto.
O fidalgo apertou-lhe a mão:
— Salvai-o!
— Oh! sim, exclamou Cecília, salvai-o, Sr. Álvaro.
— Juro-vos, D. Cecília, que só a vontade do céu
fará que eu não cumpra a vossa ordem.
A menina não achou uma palavra para agradecer essa
generosa promessa; toda a sua alma partiu-se num sorriso divino.
Álvaro inclinou-se diante dela; foi juntar-se aos
aventureiros; e deu-lhes ordem de se prepararem para partir. Quando o moço
entrou na sala então deserta para tomar as suas armas, Isabel, que já sabia do
seu projeto, correu a ele pálida e assustada.
— Ides bater-vos? disse ela com a voz trêmula.
— Em que isso vos admira? Não nos batemos todos os
dias com o inimigo
— De longe!... Defendidos pela posição! Mas agora é
diferente!
— Não vos assusteis, Isabel! Daqui a uma hora
estarei de volta.
O moço passou a clavina a tiracolo e quis sair.
Isabel tomou-lhe as mãos com um movimento
arrebatado; seus olhos cintilavam com um fogo estranho; suas faces estavam
incendiadas de vivo rubor.
O moço procurou tirar as mãos daquela pressão
ardente e apaixonada: — Isabel, disse ele com uma doce exprobração; quereis que
falte à minha palavra, que recue diante de um perigo?
— Não! Nunca eu vos pediria semelhante coisa. Era
preciso que não vos conhecesse, e que não... vos amasse!...
— Mas então deixai-me partir.
— Tenho uma graça a suplicar-vos.
— De mim?... Neste momento?
— Sim! Neste momento!... Apesar do que me dizíeis
há pouco, apesar do vosso heroísmo, sei que caminhais a uma morte certa,
inevitável.
A voz de Isabel tornou-se balbuciante:
— Quem sabe... se nos veremos mais neste mundo?!
— Isabel!... disse o moço querendo fugir para
evitar a comoção que se apoderava dele.
— Prometestes fazer-me a graça que vos pedi.
— Qual?
— Antes de partir, antes de me dizer adeus para
sempre...
A moça fitou no cavalheiro um olhar que fascinava.
— Falai!... Falai!...
— Antes de nos separarmos, eu vos suplico,
deixai-me uma lembrança vossa!... Mas uma lembrança que fique dentro de minha
alma!
E a menina caiu de joelhos aos pés de Álvaro,
ocultando seu rosto que o pudor revoltado em luta com a paixão cobria de um
brilhante carmim.
Álvaro ergueu-a confusa e vergonhosa do que tinha
feito, e chegando seus lábios ao ouvido proferiu, ou antes, murmurou uma frase.
O semblante de Isabel expandiu-se; uma auréola de
ventura cingiu a sua fronte; seu seio dilatou-se e respirou com a embriaguez do
coração feliz.
— Eu te amo!
Era a frase que Álvaro deixara cair na sua alma, e
que a enchia toda como um eflúvio celeste, como um canto divino que ressoava
nos seus ouvidos e fazia palpitar todas as suas fibras.
Quando ela saiu deste êxtase, o moço tinha saído da
sala, e unia-se aos seus companheiros prontos a marchar.
Foi nessa ocasião que Cecília, chegando
imprudentemente à paliçada, fez a Peri um aceno que lhe dizia esperasse.
A pequena coluna partiu comandada por Álvaro e por
Aires Gomes, que depois de três dias não deixava o seu posto dentro do gabinete
do fidalgo.
Quando os bravos combatentes desapareceram na
floresta, D. Antônio de Mariz recolheu-se com sua família para a sala, e
sentando-se na sua poltrona esperou tranqüilamente. Não mostrava o menor temor
de ser atacado pelos aventureiros revoltados, que estavam a alguns passos de
distancia apenas, e que não deixariam de aproveitar um ensejo tão favorável.
D. Antônio tinha a este respeito uma completa
segurança; tendo fechado as portas e examinado a escorva de suas pistolas,
recomendou silêncio a fim de que nenhum rumor lhe escapasse.
Vigilante e atento, o fidalgo refletia ao mesmo
tempo sobre o fato que se acabava de passar, e que o tinha profundamente impressionado.
Conhecia Peri e não podia compreender como o índio,
sempre tão inteligente e tão perspicaz, se deixara levar por uma louca
esperança a ponto de ir ele só atacar os selvagens.
A extrema dedicação do índio por sua senhora, o
desespero da posição em que se achavam, podia explicar essa alucinação, se o
fidalgo não soubesse quanto Peri tinha a calma, a força e o sangue-frio que
tornam o homem superior a todos os perigos. O resultado de suas reflexões foi
que havia no procedimento de Peri alguma coisa que não estava clara e que devia
explicar-se mais tarde.
Ao passo que ele se entregava a esses pensamentos,
Álvaro tinha feito uma volta, e favorecido pela festa dos selvagens se
aproximara sem ser percebido.
Quando avistou Peri a algumas braças de distancia,
o velho cacique levantava a tangapema sobre a sua cabeça.
O moço levou a clavina ao rosto; e a bala sibilando
foi atravessar o crânio do selvagem.
IV
REVELAÇÃO
Apenas Álvaro, com a chegada dos seus companheiros, viu-se livre dos inimigos
que o atacavam, voltou a Peri, que assistia imóvel a toda esta cena.
— Vinde! disse o moço com autoridade.
— Não! respondeu o índio friamente.
— Tua senhora te chama!
Peri abaixou a cabeça com uma profunda tristeza.
— Dize à senhora que Peri deve morrer; que vai
morrer por ela. E tu parte, porque senão seria tarde.
Álvaro olhou a fisionomia inteligente do índio para
ver se descobria nela algum sinal de perturbação de espírito; porque o moço não
compreendia, nem podia compreender a causa dessa obstinação insensata.
O rosto de Peri, calmo e sereno, não lhe deixou ver
senão uma resolução firme, inabalável, tanto mais profunda quanto se mostrava
sob uma aparência de sossego e tranqüilidade.
— Assim, tu não obedeces à tua senhora?
Peri custou a arrancar a palavra dos lábios.
— A ninguém.
Quando pronunciava esta palavra, um grito fraco
soou ao lado dele; voltando-se viu a índia que lhe haviam destinado por esposa
caindo atravessada por uma flecha. O tiro fora destinado a Peri por um dos
selvagens; e a menina lançando-se para cobrir o corpo daquele que amara uma
hora, recebera a seta no peito.
Seus olhos negros, desmaiados pelas sombras da
morte, volveram a Peri um último olhar; e cerrando tornaram a abrir-se já sem
vida e sem brilho. Peri sentiu um movimento de piedade e simpatia vendo essa
vitima de sua dedicação, que como ele sacrificava sem hesitar a sua existência
para salvar aquele a quem amava.
Álvaro nem se apercebeu do que acabava de passar;
lançando um olhar para seus homens que batiam-se valentemente com os Aimorés
fez um aceno a Aires Gomes.
— Escuta, Peri; tu sabes se costumo cumprir a minha
palavra; jurei a Cecília levar-te; e ou tu me acompanhas, ou morreremos todos
neste lagar.
— Faze o que quiseres! Peri não sairá daqui.
— Vês estes homens?... são os únicos defensores que
restam à tua senhora; se todos eles morrem, bem sabes que é impossível que ela
se salve.
Peri estremeceu. Ficou um momento pensativo; depois
sem dar tempo a que o seguissem, lançou-se entre as árvores.
D. Antônio de Mariz e sua família, tendo ouvido os
tiros de arcabuzes, esperavam com ansiedade o resultado da expedição.
Dez minutos haviam decorrido na maior impaciência,
quando sentiram tocar na porta e ouviram a voz de Peri; Cecília correu, e o
índio ajoelhou-se a seus pés pedindo-lhe perdão. O fidalgo, livre do pesar de
perder um amigo, assumira a sua costumada severidade, como sempre que se
tratava de uma falta grave.
— Cometeste uma grande imprudência, disse ele ao
índio; fizeste sofrer teus amigos; expuseste a vida daqueles que te amam; não
precisas de outra punição além desta.
— Peri ia salvar-te!
— Entregando-te nas mãos do inimigo?
— Sim!
— Fazendo-te matar por eles?
— Matar e...
— Mas qual era o resultado dessa loucura?
O índio calou-se.
— É preciso explicares-te, para que não julguemos
que o amigo inteligente e dedicado de outrora tornou-se um louco e um rebelde.
A palavra era dura; e o tom em que foi dita ainda
agravava mais a repreensão severa que ela encerrava.
Peri sentiu uma lágrima umedecer-lhe as pálpebras:
— Obrigas Peri a dizer tudo!
— Deves fazê-lo, se desejas reabilitar-te na estima
que te votava, e que sinto perder.
— Peri vai falar.
Álvaro entrava nesse momento tendo deixado no alto
da esplanada os seus companheiros já livres de perigo, e quites por algumas
feridas que não eram felizmente muito graves.
Cecília apertou as mãos do moço com reconhecimento;
Isabel enviou-lhe num olhar toda a sua alma.
As pessoas presentes se gruparam ao redor da
poltrona de D. Antônio, em face do qual Peri de pé com a cabeça baixa, confuso
e envergonhado como um criminoso, ia justificar-se.
Dir-se-ia que confessava uma ação indigna e vil;
ninguém adivinhava que sublime heroísmo, que concepção gigantesca havia neste
ato, que todos condenavam como uma loucura.
Ele começou:
“Quando Ararê deitou o seu corpo sobre a terra para
não tornar a erguê-lo, chamou Peri e disse:
‘Filho de Ararê, teu pai vai morrer; lembra-te que
tua carne é a minha carne; e o teu sangue e o meu sangue. Teu corpo não deve
servir ao banquete do inimigo.’
“Ararê disse, e tirou suas contas de frutos que deu
a seu filho: estavam cheias de veneno; tinham nelas a morte.
“Quando Peri fosse prisioneiro, bastava quebrar um
fruto, e ria do vencedor que não se animaria a tocar no seu corpo.
“Peri viu que a senhora sofria, e olhou as suas
contas; teve uma idéia; a herança de Ararê podia salvar a todos.
“Se tu deixasses fazer o que queria, quando a noite
viesse não acharia um inimigo vivo; os brancos e os índios não te ofenderiam
mais.”
Toda a família ouvia esta narração com uma surpresa
extraordinária; compreendiam dela que havia em tudo isto uma arma terrível— o
veneno; mas não podiam saber os meios de que o índio se servira ou pretendia
servir-se para usar desse agente de destruição.
— Acaba! disse D. Antônio; por que modo contavas
então destruir o inimigo?
— Peri envenenou a água que os brancos bebem, e o
seu corpo, que devia servir ao banquete dos Aimorés!
Um grito de horror acolheu essas palavras ditas
pelo índio em um tom simples e natural.
O plano que Peri combinara para salvar seus amigos
acabava de revelar-se em toda a sua abnegação sublime e com o cortejo de cenas
terríveis e monstruosas que deviam acompanhar a sua realização.
Confiado nesse veneno que os índios conheciam com o
nome de curare, e cuja fabricação era um segredo de algumas tribos, Peri com a
sua inteligência e dedicação descobrira um meio de vencer ele só aos inimigos,
apesar do seu número e da sua força.
Sabia a violência e o efeito pronto daquela arma
que seu pai lhe confiara na hora da morte; sabia que bastava uma pequena
parcela desse pó sutil para destruir em algumas horas a organização a mais
forte e a mais robusta. O índio resolveu pois usar deste poder que na sua mão
heróica ia tornar-se um instrumento de salvação e o agente de um sacrifício
tremendo feito à amizade.
Dois frutos bastaram; um serviu para envenenar a
água e as bebidas dos aventureiros revoltados; e o outro acompanhou-o até o
momento do suplício, em que passou de suas mãos aos seus lábios.
Quando o cacique vendo-o cobrir o rosto
perguntou-lhe se tinha medo, Peri acabava de envenenar o seu corpo, que devia
daí a algumas horas ser um germe de morte para todos esses guerreiros bravos e
fortes.
O que porém dava a esse plano um cunho de grandeza
e de admiração, não era somente o heroísmo do sacrifício; era a beleza horrível
da concepção, era o pensamento superior que ligara tantos acontecimentos, que
os submetera à sua vontade, fazendo-os suceder-se naturalmente e caminhar para
um desfecho necessário e infalível.
Porque, é preciso notar, a menos de um fato
extraordinário, desses que a previdência humana não pode prevenir, Peri quando
saiu da casa tinha a certeza de que as coisas se passariam como de fato se
passaram.
Atacando os Aimorés a sua intenção era excitá-los à
vingança; precisava mostrar-se forte, valente, destemido, para merecer que os
selvagens o tratassem como um inimigo digno de seu ódio. Com a sua destreza e
com a precaução que tomara tornando o seu corpo impenetrável, contava evitar a
morte antes de poder realizar o seu projeto; quando mesmo caísse ferido, tinha
tempo de passar o veneno aos lábios.
A sua previsão porém não o iludiu; tendo conseguido
o que desejava, tendo excitado a raiva dos Aimorés, quebrou a sua arma e
suplicou a vida ao inimigo; foi de todo o sacrifício o que mais lhe custou.
Mas assim era preciso; a vida de Cecília o exigia;
a morte que o havia respeitado até então podia surpreendê-lo; e Peri queria ser
feito prisioneiro, como foi, e contava ser.
O costume dos selvagens, de não matar na guerra o
inimigo e de cativá-lo para servir ao festim da vingança, era para Peri uma
garantia e uma condição favorável à execução do seu projeto.
Quanto à peripécia final, que a intervenção de
Álvaro obstara, não fora esse incidente imprevisto, que seria igualmente
infalível.
Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro, toda
a tribo devia tomar parte no festim: as mulheres moças tocavam apenas na carne
do prisioneiro; mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado, adubado
pelo prazer da vingança; e as velhas com a gula feroz das harpias que se cevam
no sangue de suas vítimas.
Peri contava pois com toda a segurança que dentro
de algumas horas o corpo envenenado da vitima levaria a morte às entranhas de
seus algozes, e que ele só destruiria toda uma tribo, grande, forte, poderosa,
apenas com o auxilio dessa arma silenciosa.
Pode-se agora compreender qual tinha sido o seu
desespero vendo esse plano inutilizado; depois de ter desobedecido à sua
senhora, depois de haver tudo realizado, quando só faltava o desfecho, quando o
golpe que ia salvar a todos caia, mudar-se de repente a face das coisas e ver
destruída a sua obra, filha de tanta meditação!
Ainda assim quis resistir, quis ficar, esperando
que os Aimorés continuariam o sacrifício; mas conheceu que a resolução de
Álvaro era inabalável como a sua; que ia ser a causa da morte de todos os
defensores fiéis de D. Antônio, sem ter já a certeza de sua salvação.
No primeiro momento que sucedeu à confissão de Peri,
todos os atores desta cena, pálidos, tomados de espanto e de terror, com os
olhos cravados no índio, duvidavam ainda do que tinham ouvido; o espírito
horrorizado não formulava uma idéia; os lábios trêmulos não achavam uma
palavra. D. Antônio foi o primeiro que recobrou a calma; no meio da admiração
que lhe causava aquela ação heróica, e das emoções produzidas por essa idéia ao
mesmo tempo sublime e horrível, uma circunstância o tinha sobretudo
impressionado. Os aventureiros iam ser vitimas de envenenamento; e por maior
que fosse o grau de baixeza e aviltamento a que tinham descido esses homens
pela sua traição, a nobreza do fidalgo não podia sofrer semelhante homicídio.
Ele os puniria a todos com a morte ou com o desprezo, essa outra morte moral;
mas o castigo na sua opinião elevava a morte à altura de um exemplo; enquanto
que a vingança a fazia descer ao nível do assassinato.
— Vai, Aires Gomes, gritou D. Antônio ao seu
escudeiro; corre e previne a esses desgraçados, se ainda é tempo!
V
O PAIOL
Cecília ouvindo a voz de seu pai, estremeceu como se acordasse de um sonho.
Atravessou o aposento com passo vacilante, e
chegando-se a Peri, fitou nele os seus lindos olhos azuis com uma expressão
indefinível.
Havia nesse olhar ao mesmo tempo a admiração imensa
que lhe causava a ação heróica do índio; a dor profunda que sentia pela sua
perda; e uma exprobração doce por não ter ele ouvido as suas súplicas.
O índio nem se animava a levantar os olhos para sua
senhora; não tendo realizado o seu desejo, considerava agora tudo quanto fizera
como uma loucura.
Sentia-se criminoso; e de toda a sua ação heróica e
sublime para os outros, só lhe restava o pesar de ter ofendido Cecília, e de
lhe haver causado inutilmente um desgosto.
— Peri, disse a menina com desespero, por que não
fizeste o que tua senhora te pedia?...
O índio não sabia o que responder; temia ter
perdido a afeição de Cecília, e essa idéia martirizava os últimos momentos que
lhe restavam a viver.
— Cecília não te disse, continuou a menina soluçando,
que ela não aceitaria a salvação com o sacrifício de tua vida?
— Peri já te pediu que perdoasses! murmurou o
índio.
— Oh! Se tu soubesses o que fizeste hoje sofrer a
tua senhora!... Mas ela te perdoa.
— Ah!... exclamou Peri, cuja fisionomia iluminou-se.
— Sim!... Cecília te perdoa tudo que sofreu, e tudo
que vai sofrer! Mas será por pouco tempo...
A menina dizia essas palavras com um triste sorriso
de sublime resignação; conhecia que não havia mais esperança de salvação, e
esta idéia quase a consolava.
Não pôde acabar porém; a palavra ficou-lhe presa
aos lábios, trêmula, convulsa: seus olhos se fixavam em Peri com um sentimento
de terror e de espanto.
A fisionomia do índio se tinha decomposto; seus
traços nobres alterados por contrações violentas, o rosto encovado, os lábios
roxos, os dentes que se entrechocavam, os cabelos eriçados davam-lhe um aspecto
medonho.
— O veneno!... gritaram os espectadores dessa cena
horrorizados.
Cecília fez um esforço extraordinário, e
lançando-se para o índio, procurou reanimá-lo.
— Peri!... Peri!... balbuciava a menina aquecendo
nas suas as mãos geladas de seu amigo.
— Peri vai te deixar para sempre, senhora.
— Não!... Não!... exclamou a menina fora de si. Não
quero que tu nos deixes!... Oh! tu és mau, muito mau!... Se estimasses tua
senhora, não a abandonarias assim!...
As lágrimas orvalhavam as faces da menina, que no
seu desespero não sabia o que dizia. Eram palavras entrecortadas, sem sentido;
mas que revelavam a sua angústia.
— Tu queres que Peri viva, senhora? disse o índio
com a voz comovida.
— Sim!... respondeu a menina suplicante. Quero que
tu vivas!
— Peri viverá!
O índio fez um esforço supremo, e restituindo um
pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos, dirigiu-se à porta e desapareceu.
Todas as pessoas presentes o acompanharam com os
olhos e o viram descer à várzea e ganhar a floresta correndo.
A última palavra que ele proferira tinha um momento
restituído a esperança a D. Antônio de Mariz; mas quase logo a dúvida
apoderou-se do seu espírito; julgou que o índio se iludia.
Cecília porém tinha mais do que uma esperança;
tinha quase uma certeza de que Peri não se enganara: a promessa de seu amigo
lhe inspirava uma confiança profunda. Nunca Peri lhe havia dito uma coisa que
se não realizasse; o que parecia impossível aos outros, tornava-se fácil para
sua vontade firme e inabalável, para o poder sobre-humano, de que a força e a
inteligência o revestia.
Quando D. Antônio de Mariz e sua família se
recolheram tristemente impressionados, Álvaro, de pé na porta do gabinete, fez
um gesto de espanto ao fidalgo, e apontou-lhe para o oratório.
A parede do fundo, prestes a tombar, oscilava sobre
a sua base como uma árvore balançada pelo vento.
D. Antônio sorriu; e ordenando à sua família que
entrasse no gabinete, tirou a pistola da cinta, armou-a e esperou na porta ao
lado de Álvaro.
No mesmo instante ouviu-se um grande estrondo, e no
meio da nuvem espessa de pó que se elevou desse montão de ruínas, seis homens
precipitaram-se na sala.
Loredano foi o primeiro; apenas tocou o chão,
ergueu-se com extraordinária rapidez, e seguido pelos seus companheiros
caminhou direito ao gabinete onde se achava recolhida a família.
Recuaram, porém, lívidos e trêmulos, horrorizados
diante da cena muda e terrível que se apresentava aos seus olhos espantados.
No meio do aposento via-se um desses grandes vasos
de barro vidrado, feitos pelos índios, e que continha pelo menos uma arroba de
pólvora. De uma aberta que havia nesse vaso corria um largo trilho que ia
perder-se no fundo do paiol, onde se achavam enterradas todas as munições de
guerra do fidalgo.
Duas pistolas, a de D. Antônio de Mariz e a de
Álvaro esperavam um movimento dos aventureiros para lançarem a primeira faisca
ao vulcão. D. Lauriana, Cecília e Isabel de joelhos, oravam julgando a cada
momento ver confundirem-se no turbilhão todos os espectadores dessa cena.
Era esta a arma terrível de que falara há pouco D.
Antônio, quando dizia à Álvaro que Deus lhe havia confiado o poder de fulminar
todos os seus inimigos. O moço compreendeu então a razão por que o fidalgo o
tinha obrigado a partir com todos os homens para salvar Peri, julgando-se
bastante forte para defender, ele só, a sua família
Quanto aos aventureiros, lembraram-se do juramento
solene de D. Antônio de Mariz; o fidalgo os tinha a todos fechados na sua mão,
e bastava apertar essa mão para esmagá-los como um torrão de argila. Lançando
um olhar esvairado em torno de si os seis criminosos quiseram fugir, mas não
tiveram animo de dar um passo e ficaram como pregados ao solo.
Ouviu-se então um rumor de vozes da parte de fora,
e Aires Gomes seguido pelos aventureiros apresentou-se à porta da sala.
Loredano conheceu que desta vez estava
irremediavelmente perdido, e assentou de vender caro a sua vida; mas a desgraça
pesava sobre ele. Dois dos seus companheiros caíram a seus pés estorcendo-se em
convulsões horríveis, e soltando gritos que metiam dó e compaixão.
A princípio ninguém compreendeu a causa dessa morte
súbita e violenta; mas a lembraça do veneno de Peri acudiu logo à memória de
alguns e explicou tudo.
Os aventureiros que chegavam guiados por Aires
Gomes apoderaram-se de Loredano e foram ajoelhar-se confusos e envergonhados
aos pés de D. Antônio de Mariz, pedindo-lhe o perdão de sua falta.
O fidalgo tinha assistido a todos esses
acontecimentos que se sucediam tão rapidamente, sem deixar a sua primeira
posição; dir-se-ia que sobre essas paixões humanas que se debatiam a seus pés
ele plainava como um gênio, prestes a vibrar o raio celeste.
— A vossa falta é daquelas que não se perdoam,
disse D. Antônio; mas estamos nesse momento extremo em que Deus manda esquecer
todas as ofensas. Levantai-vos e preparemo-nos todos para morrer como cristãos.
Os aventureiros ergueram-se, e arrastando Loredano
para fora da sala, retiraram-se para o alpendre, com a consciência aliviada de
um grande peso.
A família pôde então, depois de tantas emoções,
gozar um pouco de sossego e repouso; apesar da posição desesperada em que se
achavam, a reunião dos aventureiros revoltados tinha trazido um fraco vislumbre
de esperança.
Só D. Antônio de Mariz não se iludia, e desde
aquela manhã tinha conhecido que, quando os Aimorés não o vencessem pelas
armas, o venceriam pela fome. Todos os viveres estavam consumidos, e só uma
sortida vigorosa podia salvar a família desse martírio que a ameaçava, martírio
muito mais cruel do que uma morte violenta.
O fidalgo resolveu esgotar os últimos recursos
antes de confessar-se vencido; queria morrer com a consciência tranqüila de
haver cumprido o seu dever e de haver feito o que fosse humanamente possível.
Chamou Álvaro e entreteve-se com o moço durante algum tempo em voz baixa;
concertavam um meio de realizar essa idéia, de que dependia toda a esperança de
salvação.
Ao mesmo tempo que isto se passava, os aventureiros
reunidos em conselho, julgavam a Frei Ângelo di Luca, e o condenavam por um
voto unânime.
Proferida a sentença apresentaram-se diversas
opiniões sobre o suplício que devia ser infligido ao culpado; cada um lembrava
o gênero de morte o mais cruel; porém a opinião geral adotou a fogueira como o
castigo consagrado pela inquisição para punir os hereges.
Fincaram no meio do terreiro um alto poste e o
cercaram com uma grande pilha de madeira e outros combustíveis; depois sobre
essa pira ligaram o frade, que sofria todos os insultos e todas as injúrias sem
proferir uma palavra.
Uma espécie de atonia se apoderara do italiano
desde o momento em que os aventureiros o haviam arrastado da sala de D. Antônio
de Mariz; ele tinha a consciência do seu crime e a certeza de sua condenação.
Entretanto na ocasião em que o atavam à fogueira,
um incidente despertou de repente a sensibilidade desse homem embrutecido pela
idéia da morte, e pela convicção de que não podia escapar a ela.
Um dos aventureiros, um dos cinco cúmplices da
última conspiração, chegou-se a Loredano, e tirando-lhe a cinta que prendia o
seu gibão, mostrou-a aos seus companheiros. O italiano vendo-se separado do seu
tesouro sentiu uma dor muito mais forte do que a que ia sofrer na fogueira;
para ele não havia suplício, não havia martírio que igualasse a este.
O que o consolava na sua última hora era a idéia de
que esse segredo que possuía, e do qual não pudera utilizar-se, ia morrer com
ele, e ficaria perdido para todos; que ninguém gozaria do tesouro que lhe
escapava.
Por isso apenas o aventureiro tirou-lhe a cinta
onde guardava o roteiro; soltou um rugido de cólera e de raiva impotente; seus
olhos injetaram-se de sangue, e seus membros crispando-se feriram-se contra as
cordas que os ligavam ao poste.
Era horrível de ver nesse momento; seu aspecto
tinha a expressão brutal e feroz de um hidrófobo; seus lábios espumavam,
silvando como a serpente; e seus dentes ameaçavam de longe os seus algozes como
as presas do jaguar.
Os aventureiros riram-se do desespero do frade por
ver roubarem-lhe o seu precioso tesouro, e divertiram-se em aumentar-lhe o
suplício, prometendo que apenas livres dos Aimorés fariam uma expedição às
minas de prata.
A raiva do italiano redobrou quando Martim Vaz atou
a cinta ao corpo, e disse-lhe sorrindo:
— Bem sabeis o provérbio: “O bocado não é para quem
o faz”.
VI
TRÉGUA
Eram oito horas da noite.
Os aventureiros, sentados no terreiro em roda de um
pequeno fogo, esperavam tristemente que cozinhassem alguns legumes destinados à
magra ceia.
A penaria tinha sucedido à abundância de outrora;
privados da caça, sua alimentação ordinária, estavam reduzidos a simples
vegetais. Os seus vinhos e as bebidas fermentadas de que faziam largas
libações, tinham sido envenenados por Peri; e foram pois obrigados a deitá-los
fora muito felizes ainda por não terem sido vitimas deles.
Loredano fechando a porta da despensa é que os
tinha salvado; apenas dois dos aventureiros que o haviam acompanhado tinham
tocado nessas bebidas, e por isso poucas horas depois caíram mortos, como
vimos, na ocasião em que iam atacar D. Antônio de Mariz.
Não eram porém essas cenas de lato e a situação
critica em que se achavam, que infundiam nesses homens sempre alegres e tão
galhofeiros aquela tristeza que não lhes era habitual. Morrer com as armas na
mão, batendo-se contra o inimigo, era para eles uma coisa natural, uma idéia a
que a sua vida de aventuras e de perigos os tinha afeito.
O que realmente os entristecia, era não terem uma boa
ceia, e um canjirão de vinho diante de si; era o seu estômago que se contraia
por falta de alimento, e que tirava-lhes toda a disposição de rir e de folgar.
A chama avermelhada da fogueira às vezes oscilava
ao sopro do vento, e estendendo-
se pelo terreiro ia iluminar a alguma distância com
o seu frouxo clarão o vulto de Loredano atado ao poste sobre a pira de lenha.
Os aventureiros tinham resolvido demorar o suplício
e dar tempo a que o frade se arrepende-se dos seus crimes e se decidisse a
morrer como cristão, humilde e penitente; por isso deixaram-lhe a noite para
refletir.
Talvez entrasse também nessa resolução um requinte
de maldade e de vingança; julgando o italiano a verdadeira causa da posição em
que estavam colocados, os seus companheiros o odiavam e queriam prolongar o seu
sofrimento como uma reparação do mal que lhes tinha feito.
Assim, de vez em quando algum deles se erguia, e
chegando-se ao frade, exprobrava-
lhe a sua perversidade e cobria-o de impropérios e
de injúrias. Loredano estorcia-se de raiva, mas não proferia uma palavra,
porque os seus algozes o tinham ameaçado de cortar-
lhe a língua.
Aires Gomes veio chamar os aventureiros da parte de
D. Antônio de Mariz; todos se apressaram em obedecer, e pouco depois entraram
na sala onde estava toda a família.
Tratava-se de uma sortida com o fim de procurar
víveres que pudessem alimentar os habitantes da casa, até que D. Diogo tivesse
tempo de chegar com o socorro que tinha ido procurar. D. Antônio de Mariz
reservava dez homens para defender-se; os outros partiriam com Álvaro; se
fossem felizes, havia ainda uma esperança de salvação; de fossem malsucedidos,
uns e outros, os que fossem e os que ficassem morreriam como cristãos e
portugueses.
Imediatamente a expedição preparou-se, a favorecida
pelo silêncio da noite partiu e interno-se pela floresta; devia afastar-se sem
ser percebida pelos Aimorés, e procurar pelas vizinhanças fazer uma ampla
provisão de alimentos.
Durante a primeira hora que sucedeu à partida,
todos os que ficaram, com o ouvido atento escutaram, temendo ouvir a cada
momento o estrondo de tiros que anunciasse um combate entre os aventureiros e
os índios. Tudo conservou-se em silêncio; e uma esperança, bem que vaga e
tênue, veio pousar nesses corações quebrados por tantos sofrimentos e tantas
angústias.
A noite passou-se tranqüilamente; nada indicava que
a casa estivesse cercada por um inimigo tão terrível como os Aimorés.
D. Antônio admirava-se que os selvagens, depois do
ataque da manhã, se conservassem tranqüilos no seu campo, e não tivessem
investido a habitação uma só vez. Passou-lhe pelo espírito a idéia de que se
tivessem retirado com a perda de alguns dos seus principais guerreiros; mas ele
conhecia de há muito o espírito vingativo e a tenacidade dessa raça para admitir
semelhante suposição.
Cecília recostou-se num sofá, e alquebrada de
fadiga conseguiu adormecer apesar das idéias tristes e das inquietações que a
agitavam. Isabel, com o coração cerrado por um terrível pressentimento,
lembrava-se de Álvaro, e acompanhava-o de longe na sua perigosa expedição,
misturando as suas preces com as palavras ardentes do seu amor.
Assim passou-se esta noite; a primeira, depois de
três dias, em que a família de D. Antônio de Mariz pôde gozar alguns momentos
de sossego.
De vez em quando o fidalgo chegando à janela via ao
longe, perto do rio, brilharem os fogos do campo dos Aimorés; mas uma calma
profunda reinava em toda aquela planície. Nem mesmo se ouvia o eco enfraquecido
de uma dessas cantigas monótonas com que os selvagens costumam à noite
acompanhar o embalançar de sua rede de palha; apenas o sussurrar do vento nas
folhas, a queda da água sobre as pedras, e o grito do oitibó.
Contemplando a solidão, o fidalgo insensivelmente
voltava a essa esperança que há pouco sorrira, e que o seu espírito tinha
repelido como uma simples ilusão. Tudo com efeito parecia indicar que os
selvagens haviam abandonado o seu campo, deixando nele apenas os fogos que
haviam servido para esclarecer os seus preparativos de partida.
Para quem conhecia, como D. Antônio, os costumes
desses povos bárbaros, para quem sabia quanto era ativa, agitada, ruidosa esta
existência nômada, o silêncio em que estava sepultada a margem do rio era um
sinal certo de que os Aimorés já ali não estavam. Contudo o fidalgo,
demasiadamente prudente para se fiar em aparências, recomendara aos seus homens
que redobrassem de vigilância para evitar alguma surpresa.
Talvez que aquele sossego e aquela serenidade
fossem apenas uma dessas calmas sinistras que preludiam as grandes tempestades,
e durante as quais os elementos parecem concentrar as suas forças para entrarem
nessa luta espantosa que tem por campo de batalha o espaço e o infinito.
As horas correram silenciosamente; a viuvinha
cantou pela primeira vez; e a luz branca da alvorada veio empalidecer as
sombras da noite.
Pouco e pouco o dia foi rompendo; o arrebol da
manhã desenhou-se no horizonte, tingindo as nuvens com todas as cores do
prisma. O primeiro raio do sol, desprendendo-se daqueles vapores tênues e
diáfanos, deslizou pelo azul do céu, e foi brincar no cabeço dos montes.
O astro assomou, e torrentes de luz inundaram toda
a floresta, que nadava num mar de ouro marchetado de brilhantes, que cintilavam
em cada uma das gotas do orvalho suspensas às folhas das árvores.
Os habitantes da casa, despertando, admiravam esse
espetáculo magnífico do nascer do dia, que depois de tantas tribulações e de
tantas angústias, lhes parecia completamente novo.
Uma noite de quietação e sossego os tinha como que
restituído à vida; nunca esses campos verdes, esse rio puro e límpido, essas
árvores florescentes, esses horizontes descortinados se haviam mostrado a seus
olhos tão belos, tão risonhos como agora.
É que o prazer e o sofrimento não passam de um
contraste; em lata perpétua e continua, eles se acrisolam um no outro, e se
deparam: não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a
desgraça.
Cecília, com a frescura da manhã, tinha-se
expandido como uma flor do campo; suas faces coloriram-se de novo, como se um
raio do sol, beijando-as lhes tivesse imprimido o seu reflexo roseado; os olhos
brilharam; e os lábios entreabrindo-se para aspirarem o ar puro e embalsamado
da manhã, arquearam-se graciosamente quase sorrindo.
A esperança, esse anjo invisível, essa doce amiga dos
que sofrem, tinha vindo pousar no seu coração, e murmurava-lhe ao ouvido
palavras confusas, cantos misteriosos, que ela não compreendia, mas que a
consolavam e vertiam em sua alma um bálsamo suave.
Sentia-se em todas as pessoas de casa um quer que
seja, uma animação, um começo de bem-estar que revelava uma grande
transformação operada na situação da véspera; era mais do que a esperança,
menos do que a seguridade.
Só Isabel não partilhava essa impressão geral; como
sua prima, ela também viera contemplar o raiar do dia; mas fora para interrogar
a natureza, e perguntar ao sol, à luz, ao céu, se as lúgubres imagens que
tinham passado e repassado na sua longa vigília, eram uma realidade ou uma
visão.
E uma coisa singular! Esse sol tão brilhante, essa
luz esplêndida, esse céu azul, que aos outros reanimara, e que devia inspirar a
Isabel o mesmo sentimento, pareceu-lhe ao contrário uma amarga ironia.
Comparou a cena radiante que se apresentava aos
seus olhos com o quadro que se desenhava em sua alma; enquanto a natureza
sorria, o seu coração chorava. No meio dessa festa esplêndida do nascer do dia,
a sua dor, só, isolada, não achava uma simpatia, e repelida pela criação
voltava a recalcar-se em seu seio. A moça recostou a cabeça sobre o ombro de
sua prima, e escondeu ai o rosto para não perturbar a doce serenidade que se
expandia no semblante de Cecília.
Entretanto D. Antônio tinha tratado de averiguar se
as suas suspeitas da véspera eram reais; certificou-se de que os selvagens
haviam abandonado o campo. Aires Gomes, acompanhado de mestre Nunes, chegou
mesmo a sair da casa e aproximar-se com todas as cautelas do lugar onde na
véspera os Aimorés festejavam o sacrifício de Peri.
Tudo estava deserto; não se viam mais no campo os
vasos de barro, as peças de caça suspensas aos galhos da árvore, e as redes
grosseiras que indicavam a alta de uma horda selvagem. Não havia já dúvidas, os
Aimorés tinham partido desde a véspera à noite, depois de enterrarem os seus
mortos.
O escudeiro voltou a dar esta noticia ao fidalgo,
que recebeu-a menos favoravelmente do que se devia supor; ignorava a causa e o
fim dessa partida repentina, e desconfiava dela.
Não há que admirar nisto; D. Antônio era um homem
prudente e avisado; a sua experiência de quarenta anos o tinha tornado suspeitoso;
por coisa nenhuma queria dar aos seus uma esperança que viesse a frustrar-se.
VII
PELEJA
Quando a família de D. Antônio de Mariz gozava dos primeiros momentos de
tranqüilidade que sucediam a tantas aflições, soou um grito na escada de pedra.
Cecília levantou-se estremecendo de alegria e
felicidade; tinha reconhecido a voz de Peri.
No momento em que ia correr ao encontro do seu
amigo, mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte levadiça,
e Peri chegava à porta da sala.
D. Antônio de Mariz, sua mulher e sua filha ficaram
mudos de espanto e terror; Isabel caiu fulminada, como se a vida lhe faltasse
de repente.
Peri trazia nos seus ombros o corpo inanimado de
Álvaro; e no rosto uma expressão de tristeza profunda. Atravessando a sala,
depôs sobre o sofá o seu fardo precioso, e olhando o rosto lívido daquele que
fora seu amigo, enxugou uma lágrima que lhe corria pela face.
Nenhuma das pessoas presentes se animava a quebrar
o silêncio solene que envolvia aquela cena lúgubre; os aventureiros que haviam
acompanhado Peri quando passara no meio deles correndo, pararam na porta,
tomados de compaixão e respeito por aquela desgraça.
Cecília nem pôde gozar da alegria de ver Peri
salvo; seus olhos, apesar dos sofrimentos passados, ainda tinham lágrimas para
chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar. Quanto a D.
Antônio de Mariz, sua dor era de um pai que havia perdido um filho; era a dor
muda e concentrada que abala as organizações fortes, sem contudo abatê-las.
Depois dessa primeira comoção produzida pela
chegada de Peri, o fidalgo interrogou o índio e ouviu de sua boca a narração
breve dos acontecimentos, cuja peripécia tinha diante dos olhos.
Eis o que havia passado.
Partindo na véspera, no momento em que começava a
sentir os primeiros efeitos do veneno terrível que tomara, Peri ia cumprir a
promessa que tinha feito a Cecília. Ia procurar a vida em um contraveneno
infalível, cuja existência só era conhecida pelos velhos pajés da tribo, e
pelas mulheres que os auxiliavam nas suas preparações medicinais.
Sua mãe, quando ele partira para a primeira guerra,
lhe tinha revelado esse segredo que devia salvá-lo de uma morte certa no caso
de ser ferido por alguma seta ervada. Vendo o desespero de sua senhora, o índio
sentiu-se com forças de resistir ao torpor do envenenamento que começava a
ganhar-lhe o corpo, e ir ao fundo da floresta e procurar essa erva poderosa que
devia restituir-lhe a saúde, o vigor e a existência.
Contudo, quando atravessava a mata parecia-lhe às
vezes que já era tarde, que não chegaria a tempo: então tinha medo de morrer
longe de sua senhora, sem poder volver para ela o seu último olhar.
Arrependia-se quase de ter partido de casa e não deixar-se ficar aos pés de
Cecília até exalar o seu último suspiro; mas lembrava-se que a menina o
esperava, lembrava-se que ela ainda precisava de sua vida e criava novas
forças.
Peri entranhou-se no mais basto e sombrio da
floresta, e aí, na sombra e no silêncio passou-se entre ele e a natureza uma
cena da vida selvagem, dessa vida primitiva, cuja imagem nos chegou tão
incompleta e desfigurada. O dia declinou: veio a tarde, depois a noite, e sob
essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário, nem um rumor
revelara o que ai se passou.
Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o
horizonte, as folhas se abriram, e Peri exausto de forças, vacilante,
emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade. saiu do seu retiro.
Mal se podia suster, e para caminhar era obrigado a
sustentar-se aos galhos das árvores que encontrava na sua passagem: assim
adiantou-se pela floresta, e colheu alguns frutos, que lhe restabeleceram um
tanto as forças.
Chegando à beira do rio, Peri já sentiu o vigor que
voltava, e o calor que começava a animar-lhe o corpo entorpecido; atirou-se à
água e mergulhou. Quando voltou à margem, era outro homem; uma reação se havia
operado; seus membros tinham adquirido a elasticidade natural; o sangue girava
livremente nas veias.
Então tratou de recuperar as forças que havia
perdido, e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a
este banquete da vida, em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte
e o veneno.
O sol tinha raiado havia horas; Peri, acabada a sua
refeição, caminhava pensativo, quando ouviu uma descarga de armas de fogo, cujo
estrondo reboou pelo âmbito da floresta.
Lançou-se na direção dos tiros, e a pouca
distancia, num claro da mata, decobriu um espetáculo grandioso.
Álvaro e os seus nove companheiros divididos em
duas colunas de cinco homens, com as costas apoiadas às costas uns dos outros,
estavam cercados por mais de cem Aimorés que se precipitavam sobre eles com um
furor selvagem.
Mas as ondas dessa torrente de bárbaros que
soltavam bramidos espantosos, iam quebrar-se contra essa pequena coluna, que
não parecia de homens, mas de aço; as espadas jogavam com tanta velocidade que
a tornavam impenetrável; no raio de uma braça o inimigo que se adiantava caia
morto. Havia uma hora que durava esse combate, começado com armas de fogo; mas
os Aimorés atacavam com tanta fúria, que breve tinham chegado a luta corpo a
corpo e à arma branca.
No momento em que Peri assomava à margem da
clareira, um incidente veio modificar a face do combate.
O aventureiro que dava as costas a Álvaro, levado
pelo ardor da peleja, adiantou-se alguns passos para ferir um inimigo; os
selvagens o envolveram, deixando a coluna interrompida e Álvaro sem defesa.
Entretanto o valente cavalheiro continuava a fazer
prodígios de valor e de coragem; cada volta que descrevia sua espada era um
inimigo de menos, uma vida que se extinguia a seus pés num rio de sangue. Os
selvagens redobravam de furor contra ele, e cada vez o seu braço ágil movia-se
com mais segurança e mais certeza, fazendo jogar como um raio a lamina de aço
que mal se via brilhar nas suas rápidas evoluções.
Desde porém que os Aimorés viram o moço sem defesa
pelas costas, e exposto aos seus golpes, concentraram-se nesse ponto; um deles
adiantando-se, ergueu com as duas mãos a pesada tangapema e atirou-a ao alto da
cabeça de Álvaro.
O moço caiu; mas na sua queda a espada descreveu
ainda um semi-círculo e abateu o inimigo que o tinha ferido à traição; a dor
violenta dera a esse último golpe uma força sobrenatural.
Quando os índios iam precipitar-se sobre o
cavalheiro, Peri saltou no meio deles, e agarrando a espingarda que estava a
seus pés, fez dela uma arma terrível uma clava formidável, cujo poder em breve
sentiram os Aimorés. Apenas se viu livre do turbilhão dos inimigos, o índio
tomou Álvaro nos seus ombros, e abrindo caminho com a sua arma temível,
lançou-se pela floresta e desapareceu. Alguns o seguiram; mas Peri voltou-se e
fê-los arrepender-se de sua ousadia; livrando-se do peso que levava, carregou a
espingarda com as munições que Álvaro trazia e mandou uma bala àquele que o
perseguia mais de perto; os outros, que já o conheciam pelo combate da véspera,
retrocederam. A idéia de Peri era salvar Álvaro, não só pela amizade que lhe
tinha, como por causa de Cecília, que ele supunha amar o cavalheiro; vendo
porém que o corpo continuava inanimado, acreditou que Álvaro estava morto.
Apesar disto não desistiu do seu propósito; morto
ou vivo devia levá-lo àqueles que o amavam, ou para o restituírem à vida, ou
para derramarem sobre o seu corpo o pranto da despedida.
Quando Peri acabou a sua narração, o fidalgo
comovido chegou-se à beira do sofá, e apertando a mão gelada e fria do
cavalheiro, disse:
— Até logo, bravo e valente amigo; até logo! A
nossa separação é de poucos instantes; breve nos reuniremos na mansão dos
justos onde deveis estar, e onde espero que Deus me concederá a graça de
entrar.
Cecília deu à memória do moço as ultimas lágrimas;
e ajoelhando aos pés do moribundo com sua mãe, dirigiu ao céu uma prece
ardente.
D. Lauriana tinha esgotado todos os recursos dessa
medicina doméstica que no interior das casas substituía a falta dos homens
profissionais, muito raros naquela época, e sobretudo longe das cidades; o moço
não deu porém o menor sinal de vida.
D. Antônio de Mariz, que compreendera perfeitamente
o que devia esperar da pretendida retirada dos Aimorés, mandou que os seus
homens se preparassem para a defesa, não que tivesse a menor esperança, mas
porque desejava resistir ate o último momento.
Peri, depois de ter respondido a todas as perguntas
de Cecília a respeito do modo por que se havia salvado do veneno, saiu da sala
e percorreu a esplanada, observando os arredores. O índio, infatigável sempre
que se tratava de sua senhora, apenas acabava de uma empresa gigantesca, como a
que o tinha levado ao campo dos Aimorés, cuidava já em combinar outro projeto
para salvar Cecília.
Depois do seu exame estratégico, entrou no quarto
que havia abandonado na antevéspera, e no qual encontrou ainda as suas armas,
do mesmo modo que as tinha deixado.
Lembrou-se do pedido que fizera a Álvaro, da
contradição do destino que lhe restituía a vida a ele, um homem três vezes
morto, e roubava-a ao cavalheiro a quem ele havia deixado são e salvo.
VIII
NOIVA
Uma hora depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, Peri, recostado à
janela do quarto que tinha pertencido a sua senhora, olhava com uma grande
atenção para uma árvore que se elevava a algumas braças de distancia.
Seu olhar parecia estudar as curvas dos galhos
retorcidos, medindo-lhes a distancia, a altura e o tamanho, como se disso
dependesse a solução de uma grande dificuldade com que lutava o seu espírito.
No momento em que estava todo entregue a esse exame minucioso, o índio sentiu
uma mão tímida e delicada tocar-lhe de leve no ombro.
Voltou-se: era Isabel que estava junto dele, e que
se havia aproximado como uma sombra, sem fazer o menor rumor. Uma palidez
mortal cobria as feições da moça, que apenas sala do seu desmaio; mas o rosto
tinha uma calma ou antes uma imobilidade que assustava.
Voltando a si, Isabel correu um olhar pelo
aposento, como para certificar-se de que não era um sonho o que havia passado.
A sala estava deserta; D. Antônio de Mariz tinha
saído para dar as suas ordens; sua mulher, ajoelhada no oratório sobre um
montão de ruínas, rezava ao pé de uma cruz que ficara junto ao altar. No fundo
do aposento, sobre o sofá, destacava-se o vulto imóvel do cavalheiro, aos pés
do qual ardia uma vela de cera, lançando pálidos clarões.
Cecília é que estava perto dele, e apertava no seio
a sua cabeça desfalecida, procurando reanimá-lo.
Quando o olhar de Isabel caiu sobre o corpo de seu
amante, ela ergueu-se como impelida por uma força sobrenatural, atravessou
rapidamente a sala, e foi por sua vez ajoelhar-se em face desse leito
mortuário. Mas não era para fazer uma prece que ajoelhava, era para embeber-se
na contemplação desse rosto lívido e gelado, desses lábios frios, desses olhos
extintos, que ela amava apesar da morte.
Cecília respeitou a dor de sua prima, e por um
instinto de delicadeza que só possuem as mulheres, compreendeu que o amor,
mesmo em face de um cadáver, tem o seu pudor e a sua castidade; saiu para
deixar que Isabel chorasse livremente.
Passado algum tempo depois da saída de Cecília, a
moça ergueu-se, percorreu automaticamente a casa, e vendo Peri de longe
aproximou-se dele e tocou-lhe no ombro.
O índio e a moça se odiavam desde o primeiro dia em
que se tinham visto; em Isabel era o ódio de uma raça que a rebaixava a seus
próprios olhos; em Peri era essa repugnância natural que sente o homem por
aqueles em quem reconhece um inimigo.
Por isso Peri, vendo Isabel junto dele, ficou
extremamente admirado, sobretudo quando reparou no gesto suplicante que a moça
lhe dirigia, como se esperasse dele uma graça.
— Peri!...
O índio sentiu-se comovido ao aspecto daquele
sofrimento, e pela primeira vez na sua vida dirigiu a palavra a Isabel.
— Precisas de Peri? disse ele.
— Vinha pedir-te um serviço. Não mo negarás, sim?
balbuciou a moça.
— Fala! se for coisa que Peri possa fazer, ele não
te negará.
— Prometes então? exclamou Isabel cujos olhos
brilharam com uma expressão de alegria.
— Sim, Peri te promete.
— Vem!
Dizendo essa palavra, a mova fez um gesto ao índio
e dirigiu-se acompanhada por ele à sala que ainda estava deserta como tinha deixado.
Parou junto do sofá, e apontando para o corpo inanimado de seu amante, acenou a
Peri que o tomasse nos seus braços.
O índio obedeceu, e acompanhou Isabel até um
gabinete retirado a um lado da casa; ai deitou o seu fardo sobre um leito,
cujas cortinas a moça entreabriu, corando como uma noiva.
Corava porque o gabinete onde tinha entrado era o
quarto em que habitara e encontrava ainda povoado de todos os sonhos de seu
amor; porque o leito, que recebia seu amante, era o seu leito de virgem casta e
pura; porque ela era realmente uma noiva do túmulo.
Peri, tendo satisfeito o desejo da moça, retirou-se
e voltou ao seu trabalho, que ele prosseguia com uma constância infatigável.
Apenas ficou só, Isabel sorriu; mas o seu sorriso
tinha um quer que seja do êxtase da dor, da voluptuosidade do sofrimento, que
faz sorrir na sua última hora os mártires e os desgraçados. Tirou do seio a
redoma de vidro onde guardava os cabelos de sua mãe e fitou nela um olhar
ardente; mas abanou a cabeça com um gesto de expressão indefinível. Tinha
mudado de resolução; o segredo que encerrava essa jóia, o pó sutil que empenava
a face interior do cristal, a morte que sua mãe lhe confiara não a satisfazia;
era muito rápida, quase instantânea.
Saiu então furtivamente e acendeu uma vela de cera,
que havia sobre a cômoda ao lado de um crucifixo de marfim; depois fechou a
porta, cerrou as janelas e interceptou as frestas por onde a luz do dia podia
penetrar. O gabinete ficou às escuras; apenas em torno do círio que ardia, uma
auréola pálida se destacava no meio das trevas e iluminava a imagem do Cristo.
A moça ajoelhou e fez uma oração breve: pedia a
Deus uma última graça: pedia a eternidade e a ventura do seu amor, que tinha
passado tão rápido pela terra.
Acabando a prece, tomou a luz, deitou-a na
cabeceira do leito, afastou o cortinado e começou a contemplar o seu amante com
enlevo.
Álvaro parecia adormecido apenas; sua bela
fisionomia não tinha a menor alteração; a morte, imprimindo nos seus traços a
descor da cera e do mármore, havia unicamente imobilizado a expressão e feito
do gentil cavalheiro uma bela estátua.
Isabel interrompeu o enlevo de sua contemplação
para chegar-se de novo à cômoda, onde se viam algumas conchas de mariscos
tintas de nácar que se apanham nas nossas praias, e uma cesta de palha
matizada.
Esta cesta continha todas as resinas aromáticas,
todos os perfumes que dão as árvores de nossa terra; o anime da aroeira, as
pérolas do benjoim, as lágrimas cristalizadas da embaíba, e gotas do bálsamo,
esse sândalo do Brasil.
A moça deitou na concha a maior parte dos perfumes,
e acendeu algumas bagas de benjoim; o óleo de que estavam impregnadas
alimentando a chama, comunicou-a às outras resinas.
Frocos de fumo alvadio impregnado de perfumes
embriagadores se elevaram da caçoula em grossas espirais e encheram o gabinete
de nuvens transparentes que oscilavam à luz pálida do círio.
Isabel sentada à beira do leito, com as mãos do seu
amante nas suas e com os olhos embebidos naquela imagem querida, balbuciava
frases entrecortadas, confidências intimas, sons inarticulados, que são a
linguagem verdadeira do coração.
Às vezes sonhava que Álvaro ainda vivia, que lhe
murmurava ao ouvido a confissão do seu amor; e ela falava-lhe como se seu
amante a ouvisse, contava-lhe os segredos de sua paixão, vertia toda a sua alma
nas palavras que caiam dos lábios. Sua mão delicada afastava os cabelos do
moço, descobria sua fronte, animava a sua face gelada, e rogava aqueles lábios
frios e mudos como pedindo-lhe um sorriso.
— Por que não me falas? murmurava ela docemente;
não conheces tua Isabel?... Dize outra vez que me amas! Dize sempre essa
palavra, para que minha alma não duvide da felicidade! Eu te suplico!...
E com o ouvido atento, com os lábios entreabertos,
o seio palpitante, ela esperava o som dessa voz querida e o eco dessa primeira
e última palavra de seu triste amor.
Mas o silêncio só lhe respondia; seu peito aspirava
apenas as ondas dos perfumes inebriantes, que faziam circular nas suas veias
uma chama ardente.
O aposento apresentava então um aspecto fantástico:
no fundo escuro desenhava-se um circulo esclarecido, envolto por uma névoa
espessa.
Nessa esfera luminosa como no meio de uma visão,
surgiam Álvaro deitado no leito e Isabel reclinada sobre o rosto de seu amante,
a quem continuava a falar, como se ele a escutasse. A menina começava a sentir
a respiração faltar-lhe; seu seio opresso sufocava-a; e entretanto uma
voluptuosidade inexprimível a embriagava; um gozo imensa havia nessa asfixia de
perfumes que se condensavam e rarefaziam no ar.
Louca, perdida, alucinada, ela ergueu-se, seu seio
dilatou-se, e sua boca, entreabrindo-se, colou-se aos lábios frios e gelados de
seu amante; era o seu primeiro e último beijo; o seu beijo de noiva.
Foi uma agonia lenta, um pesadelo horrível em que a
dor lutava com o gozo, em que as sensações tinham um requinte de prazer e de
sofrimento ao mesmo tempo; em que a morte, torturando o corpo, vertia na alma
eflúvios celestes.
De repente pareceu a Isabel que os lábios de Álvaro
se agitavam, que um tênue suspiro se exalava de seu peito, ainda há pouco
insensível como o mármore.
Julgou que se iludia, mas não; Álvaro: estava vivo,
realmente vivo, suas mãos apertavam as dela convulsamente; seus olhos,
brilhando com um fogo estranho, se tinham fitado no rosto da moça; um sopro
reanimou seus lábios, que exalaram uma palavra quase imperceptível:
— Isabel!...
A moça soltou um grito débil de alegria, de
espanto, de medo; entre as idéias confusas que se agitavam na sua cabeça
desvairada, lembrou-se com horror que era ela quem matava seu amante, quem o ia
sacrificar por causa de um engano fatal. Fazendo um esforço extraordinário,
conseguiu erguer a cabeça e ia precipitar-se para a janela, abri-la e dar
entrada ao ar livre; sabia que a sua morte era inevitável; mas salvaria Álvaro.
No momento, porém, em que se levantava, sentiu as
mãos do moço que apertavam as suas, e a obrigavam a reclinar-se sobre o leito;
seus olhos encontraram de novo os olhos de seu amante.
Isabel não tinha mais forças para resistir e
realizar o seu heróico sacrifício; deixou cair a cabeça desfalecida, e seus
lábios se uniram outra vez num longo beijo, em que essas duas almas irmãs,
confundindo-se numa só, voaram ao céu, e foram abrigar-se no seio do Criador.
As nuvens de fumaça e de perfume se condensavam
cada vez mais e envolviam como um lençol aquele grupo original, impossível de
descrever.
Por volta de duas horas da tarde, a porta do
gabinete, impelida por um choque violento, abriu-se; e um turbilhão de fumo
lançou-se por essa aberta, e quase sufocou as pessoas que ai estavam.
Eram Cecília e Peri.
A menina inquieta pela longa ausência de sua prima,
soube de Peri que ela estava no seu quarto; mas o índio ocultou parte da
verdade, e não disse onde deitara o corpo de Álvaro.
Duas vezes Cecília viera até à porta, escutara e
nada ouvira; por fim resolveu-se a bater, a falar a Isabel, e não teve a menor
resposta. Chamou Peri e contou-lhe o que se passava; o índio, tomado de um
pressentimento meteu o ombro à porta e abriu-a.
Quando a corrente de ar expeliu a fumaça do
aposento, Cecília pôde entrar e ver a cena que descrevemos.
A menina recuou, e respeitando esse mistério de um
amor profundo, fez um gesto a Peri e retirou-se.
O índio fechou de novo a porta e acompanhou sua
senhora.
— Ela morreu feliz! disse Peri.
Cecília fitou nele os seus grandes olhos azuis, e
corou.
IX
O
CASTIGO
O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavam a estender-se sobre
o verde-negro da floresta. D. Antônio de Mariz, apoiado ao umbral da porta,
junto de sua mulher, passava o braço pela cintura de Cecília. O sol a
esconder-se iluminava com o seu reflexo esse grupo de família digno do quadro
majestoso que lhe servia de baixo-relevo.
O fidalgo, Cecília e sua mãe, com os olhos no
horizonte, recebiam esse último raio de despedida, e mandavam o adeus extremo à
luz do dia, as montanhas que os cercavam, as árvores, aos campos, ao rio, a
toda a natureza.
Para eles esse sol era a imagem de sua vida; o
ocaso era a sua hora derradeira: e as sombras da eternidade se estendiam já
como as sombras da noite.
Os Aimorés tinham voltado, depois do combate em que
os aventureiros venderam caro a sua vida; e cada vez mais sequiosos de
vingança, esperavam que anoitecesse para assaltar a casa. Certos desta vez que
o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento, tinham tratado de
destruir todos os meios que pudessem favorecer a fuga de um só dos brancos.
Isto era fácil: além da escada de pedra, o rochedo
formava um despenhadeiro por todos os lados; e só a árvore, que lançava os
galhos sobre a cabana de Peri, oferecia um ponto de comunicação praticável para
quem tivesse a agilidade e a força do índio.
Os selvagens, que não queriam que lhes escapasse um
só inimigo, e ainda menos que esse fosse Peri, abateram a árvore, e cortaram
assim a única passagem por onde um homem poderia sair do rochedo, no momento do
ataque.
Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o
grosso tronco do óleo, Peri estremeceu, e saltando sobre a sua clavina, ia
despedaçar a cabeça do selvagem; mas sorriu-se, e encostou tranqüilamente a
arma à parede. Sem inquietar-se com a destruição que faziam os Aimorés,
continuou no seu trabalho interrompido, e acabou de torcer uma corda com os
filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana.
Ele tinha o seu plano: e para realizá-lo, começara
por cortar as duas palmeiras e trazê-las para o quarto de Cecília; depois
rachou uma das árvores, e durante toda a manhã ocupou-se em torcer essa longa
corda, a que dava uma extraordinária importância.
Quando Peri terminava a sua obra, ouviu o baque da
árvore que tombava sobre o rochedo; chegou-se de novo à janela, e seu rosto
exprimiu uma satisfação imensa. O óleo, cortado pela raiz, deitara-se sobre o
precipício, elevando a uma grande altura os seus galhos seculares, mais
frondosos e mais robustos do que uma árvore nova da floresta.
Os Aimorés, tranqüilos por esse lado, continuaram
nos seus preparativos para o combate que contavam dar durante as horas mortas
da noite.
Quando o sol desapareceu no horizonte e a luz do
crepúsculo cedeu às trevas que envolviam a terra, Peri dirigiu-se à sala.
Aires Gomes, sempre infatigável, guardava a porta
do gabinete; D. Antônio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar; e
Cecília, sentada sobre seus joelhos, recusava beber uma taça que seu pai lhe
apresentava.
— Bebe, minha Cecília, dizia o fidalgo; é um
cordial que te fará muito bem.
— De que serve, meu pai? Por uma hora, se tanto nos
resta viver, não vale a pena! respondia a menina, sorrindo tristemente.
— Tu te enganas! Ainda não estamos de todo
perdidos.
— Tendes alguma esperança? perguntou ela incrédula.
— Sim, tenho uma esperança, e esta não me iludirá!
respondeu D. Antônio, com um acento profundo.
— Qual? Dizei-me!
— És curiosa? replicou o fidalgo sorrindo. Pois só
te direi se fizeres o que te peço.
— Quereis que beta essa taça?
— Sim
Cecília tomou a taça das mãos de seu pai, e depois
de beber, volveu para ele o seu olhar interrogador.
— A esperança que eu tenho, minha filha, é que
nenhum inimigo passara nunca do limiar daquela porta; podes crer na palavra de
teu pai e dormir tranqüila. Deus vela sobre nos.
Beijando a fronte pura da menina, ele ergueu-se,
tomou-a nos seus braços, e recostando-a sobre a poltrona em que estivera
sentado, saiu do gabinete e foi examinar o que se passava fora da casa.
Peri, que tinha assistido a esse diálogo entre o
pai e a filha, estava ocupado em procurar no gabinete vários objetos de que
tinha necessidade aparentemente:
Logo que achou quanto desejava, o índio
encaminhou-se para a porta.
— Onde vais? disse Cecília, que tinha acompanhado
todos os seus movimentos.
— Peri volta, senhora.
— E por que nos deixa?
— Porque é preciso.
— Ao menos volta logo. Não devemos morrer todos juntos,
da mesma morte?
O índio estremeceu.
— Não; Peri morrerá; mas tu hás de viver, senhora.
— Para que viver, depois de ter perdido todos os
seus amigos?...
Cecília, que há alguns momentos sentia a cabeça
vacilar, os olhos cerrarem-se e um sono invencível apoderar-se dela, deixou-se
cair sobre o espaldar da cadeira.
— Não!... Antes morrer como Isabel! murmurou a
menina já entorpecida pelo sono.
Um meigo sorriso veio adejar nos seus lábios
entreabertos, por onde se escapava a respiração doce, branda e igual.
Peri a princípio assustou se com esse sono
repentino que não lhe parecia natural e com a palidez súbita de que se cobriram
as feições de Cecília.
Seus olhos caíram sobre a taça que estava em cima
da mesa; deitou nos lábios algumas gotas do liquido que tinham ficado no fundo
e tomou-lhes o sabor: não podia conhecer o que continha; mas satisfez-se em não
achar o que receara.
Repeliu a idéia que lhe assaltara o espírito, e
lembrou-se que D. Antônio sorria no momento em que pedia à sua filha para
beber, e que a sua mão não tremera apresentando-lhe a taça. Tranqüilo a este
respeito, o índio, que não tinha tempo a perder, ganhou a esplanada, correu
para o quarto que ocupava, e desapareceu.
A noite já estava fechada, e uma escuridão profunda
envolvia a casa e os arredores. Durante esse tempo nenhum acontecimento
extraordinário viera modificar a posição desesperada em que se achava a família
a calma sinistra, que precede a grandes tempestades, plainava sobre a cabeça
dessas vitimas que contavam, não as horas, mas os instantes de vida que lhes
restavam.
D. Antônio passeava ao longo da sala, com a mesma
serenidade de seus dias tranqüilos e plácidos de outrora; de vez em quando o
fidalgo parava na porta do gabinete, lançava um olhar sobre sua mulher que orava
e sua filha adormecida; depois continuava o passeio interrompido.
Os aventureiros grupados junto à porta seguiam com
os olhos o vulto do fidalgo que se perdia no fundo escuro da sala, ou se
destacava cheio de vigor e de colorido na esfera luminosa que cingia a lâmpada
de prata suspensa ao teto.
Mudos, resignados, nenhum desses homens deixava
escapar uma queixa, um suspiro que fosse; o exemplo de seu chefe reanimava
neles essa coragem heróica do soldado que morre por uma causa santa.
Antes de obedecerem à ordem de D. Antônio de Mariz,
eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse
então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade,
uma língua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.
O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a
fumaça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa; é impossível
descrever a raiva, a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que
precederam o suplício.
Mas voltemos à sala em que se achavam reunidos os
principais personagens desta história, e onde se vão passar as cenas talvez
mais importantes do drama.
A calma profunda que reinava nessa solidão não
tinha sido perturbada; tudo estava em silêncio: e as trevas espessas da noite
não deixavam perceber os objetos a alguns passos de distancia.
De repente listras de fogo atravessaram o ar, e se
abateram sobre o edifício; eram as setas inflamadas dos selvagens que
anunciavam o começo do ataque; durante alguns minutos foi como uma chuva de
fogo, uma cascata de chamas que caiu sobre a casa.
Os aventureiros estremeceram; D. Antônio sorriu.
— É chegado o momento, meus amigos. Temos uma hora
de vida; preparai-vos para morrer como cristãos e portugueses. Abri as portas
para que possamos ver o céu.
O fidalgo dizia que lhe restava uma hora de vida,
porque, tendo destruído o resto da escada de pedra, os selvagens não podiam
subir ao rochedo senão escalando-o; e por maior que fosse a sua habilidade, não
era possível que consumissem nisso menos tempo. Quando os aventureiros abriram
as portas, um vulto resvalou na sombra, e entrou na sala.
Era Peri.
X
CRISTÃO
O índio dirigiu-se rapidamente a D. Antônio de Mariz.
— Peri quer salvar a senhora.
O fidalgo abanou a cabeça em sinal de dúvida.
— Escuta! replicou o índio.
Aproximando os lábios do ouvido de D. Antônio,
falou-lhe por algum tempo em voz baixa, e num tom rápido e decisivo.
— Tudo está preparado: parte, desce o rio; quando a
lua estender o seu arco chegarás à tribo dos Goitacás. A mãe de Peri te
conhece: cem guerreiros te acompanharão à grande taba dos brancos.
D. Antônio de Mariz ouviu em profundo silêncio as
palavras do índio; e quando ele terminou, apertou-lhe a mão com reconhecimento.
— Não, Peri: o que me propões é impossível. D.
Antônio de Mariz não pode abandonar a sua casa, a sua família e os seus amigos
no momento do perigo, ainda mesmo para salvar aquilo que ele mais ama neste
mundo. Um fidalgo português não pode fugir diante do inimigo, qualquer que ele
seja: morre vingando a sua morte.
Peri fez um gesto de desespero.
— Assim tu não queres salvar a senhora?
— Não posso, respondeu o cavalheiro; o meu dever
manda que fique e partilhe a sorte de meus companheiros.
O índio no seu fanatismo não compreendia que
houvesse uma razão capaz de sacrificar a vida de Cecília, que para ele era
sagrada.
— Peri pensou que tu amasses a senhora! disse ele
fora de si.
D. Antônio olhou-o com uma expressão de dignidade e
nobreza.
— Perdôo-te a ofensa que me fizeste, amigo; porque
é ainda uma prova de tua grande dedicação. Mas acredita-me; se fosse preciso
que eu me votasse só ao sacrifício bárbaro dos selvagens para salvar minha
filha, eu o faria sorrindo.
— E por que recusas o que Peri te pede?
— Por quê?... Porque o que tu pedes não é um
sacrifício, é uma vergonha; é uma traição. Tu abandonarias tua mulher, teus
companheiros, para salvar-te do inimigo, Peri?...
O índio abaixou a cabeça com abatimento.
— Demais, essa empresa demanda forças com que um
velho como eu já não pode contar. Havia duas pessoas que a poderiam realizar.
— Quem? perguntou Peri com um raio de esperança.
— Uma era meu filho, que a esta hora está bem longe
daqui; a outra deixou-nos esta manhã e nos espera; era Álvaro.
— Peri fez pela senhora o que podia; tu não queres
salvá-la; Peri vai morrer a seus pés.
— Morrer? disse o fidalgo. Quando tens a liberdade
e a vida à tua disposição? E julgas que consentirei nisto?... Nunca! Vai, Peri;
conserva a lembrança de teus amigos; a nossa alma te acompanhará na terra.
Adeus. Parte: o tempo urge.
O índio ergueu a cabeça com um gesto soberbo de
indignação.
— Peri arriscou bastantes vezes a sua vida por ti,
para ter o direito de morrer contigo; tu não podes abandonar teus companheiros;
o escravo não pode abandonar sua senhora.
— És injusto, amigo: exprimi um desejo, não quis
irrogar-te uma injúria. Se exiges uma parte do sacrifício, esta te pertence, e
tu és digno dela: fica.
Um grito dos selvagens retroou nos ares.
D. Antônio, fazendo um gesto aos aventureiros,
encaminhou-se para o gabinete.
Cecília, adormecida sobre a cadeira de espaldar,
sorria, como se algum sonho alegre a embalasse no seu sono tranqüilo; o rosto
um pouco pálido, moldurado pelas tranças louras de seus cabelos, tinha a expressão
suave da inocência feliz.
O fidalgo, contemplando sua filha, sentiu uma dor
pungente e quase arrependeu-se de não ter aceitado o oferecimento de Peri, e de
não tentar ao menos esse último esforço para defender aquela vida que apenas
começava a expandir-se.
Mas podia ele mentir ao seu passado e faltar ao
dever imperioso que o obrigava a
morrer no seu posto? Podia trair na sua última hora
àqueles que haviam partilhado a sua sorte?
Tal era o sentimento de honra naqueles antigos
cavalheiros, que D. Antônio nem um momento admitiu a idéia de fugir para salvar
sua filha; se houvesse outro meio, decerto o receberia como um favor do céu;
mas aquele era impossível.
Enquanto o espírito do fidalgo se debatia nessa
luta cruel, Peri, de pé, junto de Cecília, parecia querer ainda protegê-la
contra a morte inevitável que a ameaçava. Dir-se-ia que o índio esperava algum
socorro imprevisto, algum milagre que salvasse sua senhora; e que aguardava o
momento de fazer por ela tudo quanto fosse possível ao homem.
D. Antônio, vendo a resolução que se pintava no
rosto do selvagem, tornou-se ainda mais pensativo; quando, passado esse momento
de reflexão, ergueu a cabeça, seus olhos brilhavam com um raio de esperança.
Atravessou o espaço que o separava de sua filha, e,
tomando a mão de Peri, disse-lhe com uma voz profunda e solene:
— Se tu fosses cristão, Peri!...
O índio voltou-se extremamente admirado daquelas
palavras.
— Por quê?... perguntou ele.
— Por quê?... disse lentamente o fidalgo. Porque se
tu fosses cristão, eu te confiaria a salvação de minha Cecília, e estou
convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, à minha irmã.
O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou
de felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de
palavras que lhe vinham do intimo da alma.
— Peri quer ser cristão! exclamou ele.
D. Antônio lançou-lhe um olhar úmido de
reconhecimento.
— A nossa religião permite, disse o fidalgo, que na
hora extrema todo o homem possa dar o batismo. Nós estamos com o pé sobre o
túmulo. Ajoelha, Peri!
O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que
impôs-lhe as mãos sobre a cabeça.
— Sê cristão! Dou-te o meu nome.
Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe
apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os
perigos para salvar sua senhora.
— Escuso exigir de ti a promessa de respeitares e
defenderes minha filha. Conheço a tua alma nobre, conheço o teu heroísmo e a
tua sublime dedicação por Cecília, Mas quero que me faças um outro juramento.
— Qual? Peri está pronto para tudo.
— Juras que, se não puderes salvar minha filha, ela
não cairá nas mãos do inimigo?
— Peri te jura que ele levará a senhora à tua irmã;
e que se o Senhor do céu não deixar que Peri cumpra a sua promessa, nenhum
inimigo tocará em tua filha; ainda que para isso seja preciso queimar uma
floresta inteira.
— Bem; estou tranqüilo. Ponho minha Cecília, sob
tua guarda; e morro satisfeito. Podes partir.
— Manda fechar todas as portas.
Os aventureiros obedeceram a ordem do fidalgo;
todas as portas se fecharam; o índio empregava este meio para ganhar tempo.
Os gritos e bramidos dos selvagens, que continuavam
com algumas interrupções, foram se aproximando da casa; conhecia-se que
escalavam o rochedo nesse momento.
Alguns minutos se passaram numa ansiedade cruel. D.
Antônio de Mariz depositou um último beijo na fronte de sua filha; D. Lauriana
apertou ao seio a cabeça adormecida da menina e envolveu-a numa manta de seda.
Peri, com o ouvido atento, o olhar fito na porta,
esperava. Ligeiramente apoiado sobre o espaldar da cadeira, as vezes estremecia
de impaciência e batia com o pé sobre o pavimento da sala.
De repente, um grande clamor soou em torno da casa;
as chamas lamberam com as suas línguas de fogo as frestas das portas e janelas;
o edifício tremeu desde os alicerces com o embate da tromba de selvagens que se
lançava furiosa no meio do incêndio.
Peri, apenas ouviu o primeiro grito, reclinou sobre
a cadeira e tomou Cecília nos braços; quando o estrondo soou na porta larga do
salão, o índio já tinha desaparecido.
Apesar da escuridão profunda que reinava em todo o
interior da casa, Peri não hesitou um momento; caminhou direito ao quarto onde
habitara sua senhora e subiu à janela.
Uma das palmeiras da cabana estendia-se por cima do
precipício e apoiava-se a trinta palmos de distancia sobre um dos galhos da
árvore que os Aimorés tinham abatido durante o dia para tirarem aos habitantes
da casa a menor esperança de fuga.
Peri, apertando Cecília nos braços, firmou o pé
sobre essa ponte frágil, cuja face convexa tinha quando muito algumas polegadas
de largura.
Quem lançasse os olhos nesse momento para aquela
banda da esplanada veria ao pálido clarão do incêndio deslizar-se lentamente
por cima do precipício um vulto hirto, como um dos fantasmas que, segundo a
crença popular, atravessavam à meia-noite as velhas ameias de algum castelo em
ruínas.
A palmeira oscilava, e Peri, embalando se sobre o
abismo, adiantava-se vagarosamente para a encosta oposta. Os gritos dos
selvagens repercutiam nos ares de envolta com o estrépito dos tacapes que
abalavam as portas da sala e as paredes do edifício.
Sem se inquietar com a cena tumultuosa que deixava
após si, o índio ganhou a encosta oposta, e segurando com uma mão nos galhos da
árvore, conseguiu tocar a terra sem o menor acidente.
Então, fazendo uma volta para não aproximar-se do
campo dos Aimorés, dirigiu-se à margem do rio; ai estava escondida entre as
folhas a pequena canoa que servia outrora para os habitantes da casa
atravessarem o Paquequer.
Durante a ausência de uma hora que Peri tinha
feito, quando deixara Cecília adormecida, ele havia tudo preparado para essa
empresa arriscada que devia salvar sua senhora. Graças à sua atividade
espantosa, armou com o auxilio da corda a ponte pênsil sobre o precipício,
correu ao rio, amarrou a canoa no lugar que lhe pareceu mais propicio, e em
duas viagens levou a esse barquinho, que ia servir de morada a Cecília durante
alguns dias, tudo quanto a menina podia carecer.
Eram roupas, uma colcha de damasco com que se
poderia arranjar um leito, alguns alimentos que restavam na casa; lembrou-se
até que D. Antônio devia ter necessidade de dinheiro logo que chegasse ao Rio
de Janeiro, porque Peri contava que o fidalgo não duvidaria salvar sua filha.
Chegando à beira do rio, o índio deitou sua senhora
no fundo da canoa, como uma menina no seu berço, envolveu-a na manta de seda
para abrigá-la do orvalho da noite, e tomando o remo, fez a canoa saltar como
um peixe sobre as águas.
A algumas braças de distancia, por entre uma aberta
da floresta, Peri viu sobre o rochedo a casa iluminada pelas chamas do
incêndio, que começava a lavrar com alguma intensidade. De repente uma cena
fantástica, terrível passou diante de seus olhos, como uma dessas visões
rápidas que brilham e se apagam de repente no delírio da imaginação.
A frente da casa estava às escuras; o fogo ganhara
as outras faces do edifício e o vento o lançava para o fundo. Peri do primeiro
olhar tinha visto os vultos dos Aimorés a se moverem nas sombras e a figura
horrível e medonha de Loredano, erguendo-se como um espectro no meio das chamas
que o devoravam.
De repente a fachada do edifício tombou sobre a
esplanada, esmagando na sua queda um grande número de selvagens.
Foi então que o quadro fantástico se desenhou aos
olhos de Peri.
A sala era um mar de fogo; os vultos que se moviam
nessa esfera luminosa pareciam nadar em vagas de chamas.
No fundo destacava o vulto majestoso de D. Antônio
de Mariz de pé no meio do gabinete, elevando com a mão esquerda uma imagem do
Cristo e com a direita abaixando a pistola para a cava escura onde dormia o
vulcão.
Sua mulher abraçava os seus joelhos calma e
resignada; Aires Gomes e os poucos aventureiros que restavam, imóveis e
ajoelhados a seus pés, formavam o baixo-relevo dessa estátua digna de um grande
cinzel.
Sobre o montão de ruínas formado pela parede que
desmoronara, desenhavam-se as figuras sinistras dos selvagens, semelhantes a
espíritos diabólicos dançando nas chamas infernais.
Tudo isso, Peri viu de um só relance de olhos, como
um painel vivo iluminado um momento pelo clarão instantâneo do relâmpago.
Um estampido horrível reboou por toda aquela
solidão: a terra tremeu, e as águas do rio se encapelaram como batidas pelo
tufão. As trevas envolveram o rochedo há pouco esclarecido pelas chamas, e tudo
entrou de novo no silêncio profundo da noite. Um soluço partiu o peito de Peri,
talvez a única testemunha dessa grande catástrofe.
Dominando a sua dor, o índio vergou sobre o remo, e
a canoa voou pela face lisa e polida do Paquequer.
XI
EPÍLOGO
Quando o sol, erguendo-se no horizonte, iluminou os campos, um montão de ruínas
cobria as margens do Paquequer.
Grandes lascas de rochedos, talhadas de um golpe e
semeadas pelo campo, pareciam ter saltado do malho gigantesco de Novos
Ciclopes.
A eminência sobre a qual estava situada a casa
tinha desaparecido, e no seu lugar via-se apenas uma larga fenda semelhante à
cratera de algum vulcão subterrâneo.
As árvores arrancadas dos seus alvéolos, a terra
revolta, a cinza enegrecida que cobria a floresta, anunciavam que por ai tinham
passado algum desses cataclismas que deixam após si a morte e a destruição.
Aqui e ali entre os cômoros das ruínas aparecia
alguma índia, resto da tribo dos Aimorés, que tinha ficado para chorar a morte
dos seus, e levar às outras tribos a noticia dessa tremenda vingança.
Quem plainasse nesse momento sobre aquela solidão,
e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se abriam em torno, se a vista
pudesse devassar a distancia de muitas léguas, veria ao longe, na larga esteira
do Paraíba, passar rapidamente uma forma vaga e indecisa.
Era a canoa de Peri, que impelida pelo remo e pela
viração da manhã corria com uma velocidade espantosa, semelhando uma sombra a
fugir das primeiras claridades do dia.
Toda a noite o índio tinha remado sem descansar um
momento; não ignorava que D. Antônio de Mariz na sua terrível vingança havia
exterminado a tribo dos Aimorés, mas desejava apartar-se do teatro da
catástrofe, e aproximar-se dos seus campos nativos.
Não era o sentimento da pátria, sempre tão poderoso
no coração do homem; não era o desejo de ver sua cabana reclinada à beira do
rio e abraçar sua mãe e seus irmãos, que dominava sua alma nesse momento e lhe
dava esse ardor.
Era sim a idéia de que ia salvar sua senhora e
cumprir o juramento que tinha feito ao velho fidalgo; era o sentimento de
orgulho que se apoderava dele, pensando que bastava a sua coragem e a sua força
para vencer todos os obstáculos, e realizar a missão de que se havia
encarregado.
Quando o sol, no meio de sua carreira, lançava
torrentes de luz sobre esse vasto deserto, Peri sentiu que era tempo de abrigar
Cecília dos raios abrasadores, e fez a canoa abicar à beira do rio na sombra de
uma ramagem de árvores.
A menina envolta na sua manta de seda, com a cabeça
apoiada sobre a proa do barquinho, dormia ainda o mesmo sono tranqüilo da
véspera; as cores tinham voltado, e sob a alvura transparente de sua pele
brilhavam esses tons cor-de-rosa, esse colorido suave, que só a natureza,
artista sublime, sabe criar.
Peri tomou a canoa nos seus braços, como se fora um
berço mimoso, e deitou-a sobre a relva que cobria a margem do rio; depois
sentou-se ao lado, e com os olhos fitos em Cecília, esperou que ela saísse
desse sono prolongado que começava a inquietá-lo.
Tremia lembrando-se da dor que sua senhora ia
sentir quando soubesse a desgraça de que ele fora testemunha na véspera; e não
se achava com forças de responder ao primeiro olhar de surpresa que a menina
lançaria em torno de si, logo que despertasse no meio do deserto.
Enquanto durou o sono, Peri, com o braço apoiado à
borda da canoa e o corpo reclinado sobre o rosto da menina, esperando com
ansiedade o momento que ele desejava e temia ao mesmo tempo, velava sobre
Cecília, com um cuidado e uma solicitude admirável. A mãe, a mais extremosa não
se desvelaria tanto por seu filho, como esse amigo dedicado por sua senhora;
uma réstia de sol que, enfiando-se pelas folhas, vinha brincar no rosto da
menina, um passarinho que cantava sobre um ramo do arbusto, um inseto que
saltava na relva, tudo ele afastava para não perturbar o seu repouso.
Cada minuto que passava era uma nova inquietação
para ele; porém era também um instante mais de sossego e de tranqüilidade que a
menina gozava, antes de saber a desgraça que pesava sobre ela, e que a privara
de sua família.
Um longo suspiro elevou o seio de Cecília; seus
lindos olhos azuis se abriram e cerraram, deslumbrados pela claridade do dia;
ela passou a mão delicada pelas pálpebras rosadas, como para afugentar o sono,
e seu olhar límpido e suave foi pousar no rosto de Peri. Soltou um gritozinho
de prazer, e sentando-se com vivacidade, lançou um olhar de surpresa e
admiração em torno da espécie de pavilhão de folhagem que a cercava; parecia
interrogar as árvores, o rio, o céu; mas tudo emudecia.
Peri não se animava a pronunciar uma palavra; via o
que se passava na alma de sua senhora, e não tinha a coragem de dizer a
primeira letra do enigma que ela não tardaria a compreender.
Por fim, a menina, baixando a vista para ver onde
estava, descobriu a canoa, e lançando um volver rápido para o vasto leito do
Paraíba que se espreguiçava indolentemente pela floresta, ficou branca como a
cambraia do seu roupão.
Voltou-se para o índio com os olhos extremamente
dilatados, os lábios trêmulos, a respiração presa, o seio ofegante, e
suplicando com as mãozinhas juntas:
— Meu pai!... meu pai!... exclamou soluçando.
O selvagem deixou cair a cabeça sobre o peito e
escondeu o rosto nas mãos.
— Morto!... Minha mãe também morta!... Todos
mortos!...
Vencida pela dor, a menina apertou convulsamente o
seio que lhe estalava com os soluços, e reclinando-se como o cálice delicado de
uma flor que a noite enchera de orvalho, desfez-se em lágrimas.
— Peri só podia salvar a ti, senhora! murmurou o
índio tristemente.
Cecília ergueu a cabeça altiva.
— Por que não me deixaste morrer com os meus?...
exclamou ela numa exaltação febril. Pedi-te eu que me salvasses? Precisava de
teus serviços?...
Seu rosto tomou uma expressão de energia extraordinária.
— Tu vais me levar ao lugar onde descansa o corpo
de meu pai. É ai que deve estar sua filha... Depois partirás!... Não careço de
ti.
Peri estremeceu.
— Escuta, senhora... balbuciou ele em tom submisso.
A menina lançou-lhe um olhar tão imperioso, tão
soberano, que o índio emudeceu, e voltando o rosto escondeu as lágrimas que lhe
molhavam as faces.
Cecília caminhou até a beira do rio e com os olhos
estendidos pelo horizonte, que ela supunha ocultar o lugar em que habitara,
ajoelhou e fez uma oração longa e ardente.
Quando ergueu-se, estava mais calma: a dor tinha-se
repassado do consolo sublime da religião, dessa doçura e suavidade que infiltra
no coração a esperança de uma vida celeste, que reuna aqueles que se amaram na
terra.
Ela pôde então refletir sobre o que se tinha
passado na véspera: e procurou lembrar-se das circunstâncias que haviam
precedido à morte de sua família. Todas as suas recordações, porém, chegavam
unicamente até o momento em que, já meio adormecida, falava a Peri, e dizia
essa palavra ingênua e inocente que lhe escapara do intimo da alma:
— Antes morrer como Isabel!
Lembrando-se dessa palavra corou; e vendo-se só no
deserto com Peri, sentiu uma inquietação vaga e indefinida, um sentimento de
temor e de receio, cuja causa não sabia explicar.
Seria essa desconfiança súbita proveniente da
cólera que ela sentira, porque o índio salvara a sua vida, e a arrancara da
desgraça que tinha destruído toda a sua família?
Não; não era essa a causa; ao contrário, Cecília
conhecia que fora injusta para com seu amigo que tinha talvez feito impossíveis
por ela; e a não ser o receio instintivo que se aponderara involuntariamente de
sua alma, já o teria chamado para pedir-lhe perdão daquelas palavras duras e
cruéis.
A menina ergueu os olhos tímidos e encontrou o
olhar triste e súplice de Peri: não pôde resistir; esqueceu os seus receios, e
um tênue sorriso fugiu-lhe pelos lábios.
— Peri!...
O índio estremeceu, mas desta vez de alegria e de
contentamento; veio cair aos pés de sua senhora, que ele encontrava de novo boa
como sempre tinha sido.
— Perdoa a Peri, senhora!
— És tu que me deves perdoar, porque te fiz sofrer;
não é verdade? Mas bem sabes!... Não podia abandonar meu pobre pai!
— Foi ele que mandou a Peri que te salvasse! disse
o índio.
— Como?... exclamou a menina. Conta-me, meu amigo.
O índio fez a narração da cena da noite antecedente
desde que Cecília tinha adormecido até o momento em que a casa saltara com a
explosão, restando dela apenas um montão de ruínas.
Contou que ele tinha preparado tudo para que D.
Antônio de Mariz fugisse, salvando Cecília; mas que o fidalgo recusara, dizendo
que a sua lealdade e a sua honra mandavam que morresse no seu posto.
— Meu nobre pai! murmurou a menina enxugando as
lágrimas.
Houve um instante de silêncio, depois do qual Peri
concluiu a sua narração, e referiu como D. Antônio de Mariz o tinha batizado, e
lhe havia confiado a salvação de sua filha.
— Tu és cristão, Peri?... exclamou a menina, cujos
olhos brilharam com uma alegria inefável.
— Sim; teu pai disse: “Peri, tu és cristão; dou-te
o meu nome!”
— Obrigado, meu Deus, disse a menina juntando as
mãos e erguendo os olhos ao céu.
Depois envergonhada desse movimento espontâneo,
escondeu o rosto: o rubor que cobriu as suas faces tingiu de uns longes
cor-de-rosa as linhas puras do colo acetinado.
Peri ergueu-se e foi colher alguns frutos delicados
que serviram de refeição à sua senhora.
O sol tinha quebrado a sua força, era tempo de
continuar a viagem e aproveitar a frescura da tarde para vencer a distancia que
os separava do campo dos goitacás.
O índio chegou-se trêmulo para a menina:
— Que queres tu que Peri faça, senhora?
— Não sei, respondeu Cecília indecisa.
— Não queres que Peri te leve à taba dos brancos?
— É a vontade de meu pai?... deves cumpri-la.
— Peri prometeu a D. Antônio levar-te à sua irmã.
O índio fez a canoa boiar sobre as águas do rio, e
quando tomou a menina nos seus braços para deitá-la no barquinho, ela sentiu
pela primeira vez na sua vida que o coração de Peri palpitava sobre o seu seio.
A tarde estava soberba; os raios do sol no ocaso,
filtrando por entre as folhas das árvores, douravam as flores alvas que
cresciam pela beira do rio.
As rolas começavam a soltar os seus arrulhos no
fundo da floresta; e a brisa, que passava ainda tépida das exalações da terra,
vinha impregnada de aromas silvestres.
A canoa resvalou pela flor da água como uma garça
ligeira levada pela correnteza do rio.
Peri remava sentado na proa.
Cecília, deitada no fundo, meio apoiada sobre uma
alcatifa de folhas que Peri tinha arranjado, engolfava-se nos seus pensamentos,
e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas, e a frescura do ar e
das águas.
Quando os seus olhos encontravam os de Peri, os
longos cílios desciam ocultando um momento o seu olhar doce e triste.
A noite estava serena.
A canoa, vogando sobre as águas do rio, abria essas
flores de espuma, que brilham um momento à luz das estrelas, e se desfazem como
o sorriso da mulher.
A brisa tinha escasseado; e a natureza adormecida
respirava a calma tépida e perfumada das noites americanas, tão cheias de
enlevo e encanto.
A viagem fora silenciosa: essas duas criaturas
abandonadas no meio do deserto, sós em face da natureza, emudeciam, como se
temessem despertar o eco profundo da solidão.
Cecília repassava na memória toda a sua vida
inocente e tranqüila, cujo fio dourado tinha-se rompido de uma maneira tão
cruel; mas era sobretudo o último ano dessa existência, desde o dia do
aparecimento imprevisto de Peri, que se desenhava na sua imaginação.
Por que interrogava ela assim os dias que tinha
vivido no remanso da felicidade? Por que o seu espírito voltava ao passado, e
procurava ligar todos esses fatos a que na descuidosa ingenuidade dos primeiros
anos dera tão pouco apreço?
Ela mesma não saberia explicar as emoções que
sentia; sua alma inocente e ignorante tinha-se iluminado com uma súbita
revelação; novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento.
Volvendo ao passado admirava-se de sua existência,
como os olhos se deslumbram com a claridade depois de um sono profundo; não se
reconhecia na imagem do que fora outrora, na menina isenta e travessa.
Toda a sua vida estava mudada: a desgraça tinha
operado essa revolução repentina, e um outro sentimento ainda confuso ia talvez
completar a transformação misteriosa da mulher.
Em torno dela tudo se ressentia dessa mudança; as
cores tinham tons harmoniosos, o ar perfumes inebriantes, a luz reflexos
aveludados, que seus sentidos não conheciam.
Uma flor, que antes era para ela apenas uma bela
forma, parecia-lhe agora uma criatura que sentia e palpitava; a brisa que
outrora passava como um simples bafejo das auras, murmurava ao seu ouvido nesse
momento melodias inefáveis, notas místicas que ressoavam no seu coração.
Peri, julgando sua senhora adormecida, remava
docemente para não perturbar o seu repouso; a fadiga começava a vencê-lo;
apesar de sua coragem indomável e de sua vontade poderosa, as forças estavam
exaustas.
Apenas vencedor da luta terrível que travara com o
veneno, tinha começado a empresa quase impossível da salvação de sua senhora;
havia três dias que seus olhos não se cerravam, que seu espírito não repousava
um instante.
Tudo quanto a natureza permitia à inteligência e ao
poder do homem, ele tinha feito; e contudo não era a fadiga do corpo que o
vencia, eram sim as emoções violentas por que passara durante esse tempo.
O que ele tinha sentido quando plainava sobre o
abismo, e que a vida de sua senhora dependia de um passo falso, de uma
oscilação da haste frágil que lhe servia de ponte pênsil, ninguém
compreenderia.
O que sofreu quando Cecília no seu desespero pela
morte de seu pai o acusava por tê-la salvado, e lhe dava ordem de levá-la ao
lugar onde repousavam as cinzas do velho fidalgo, é impossível de descrever.
Foram horas de martírio, de sofrimento horrível, em
que sua alma sucumbiria, se não achasse na sua vontade inflexível e na sua
dedicação sublime um conforto para a dor, e um estimulo para triunfar de todos
os obstáculos.
Eram essas emoções que o venciam, e ainda depois de
vencidas; ele conheceu que seus músculos de aço, escravos submissos que
obedeciam ao seu menor desejo, se distendiam como a corda do arco depois do
combate. Lembrou-se que sua senhora precisava dele e que devia aproveitar esses
momentos em que ela repousava para pedir ao sono novo vigor e novas forças.
Ganhou o meio do rio, e escolhendo um lugar onde
não chegava nem um galho das árvores que cresciam nas ribanceiras,- amarrou a
canoa nos nenúfares que boiavam à tona da água.
Tudo estava quieto; a terra ficava a uma distancia
de muitas braças; portanto podia sua senhora dormir sem perigo sobre esse chão
prateado, debaixo da abobada azul do céu; as ondinhas a embalariam no seu
berço, as estrelas vigiariam o seu sono.
Livre de inquietação, Peri encostou a cabeça na
borda da canoa; um momento depois suas pálpebras entorpecidas cerraram-se a
pouco e pouco; seu último olhar, esse olhar vago e incerto que adeja na pupila
já meio adormecida, viu desenhar-se na sombra uma forma alva e graciosa que se
reclinava docemente para ele.
Não era um sonho, essa linda visão. Cecília
sentindo a canoa imóvel despertou das suas recordações; sentou-se, e
debruçando-se um pouco viu que seu amigo dormia, e acusou-se por não ter há mais
tempo exigido dele esse instante de repouso.
O primeiro sentimento que se apoderou da menina,
vendo-se só, foi o terror solene e respeitoso que infunde a solidão no meio do
deserto, nas horas. monas da noite. O silêncio parece falar; as sombras se povoam
de seres invisíveis; os objetos, na sua imobilidade, como que oscilam pelo
espaço.
É ao mesmo tempo o nada com o seu vácuo profundo,
imenso, infinito; e o caos com a sua confusão, as suas trevas, as suas formas
incriadas; a alma sente que falta-lhe a vida ou a luz em torno.
Cecília recebeu essa impressão com um temor
religioso; mas não se deixou dominar pelo susto; a desgraça a habituara ao
perigo; e a confiança que tinha no seu companheiro era tanta, que mesmo
dormindo parecia-lhe que Peri velava sobre ela.
Contemplando essa cabeça adormecida, a menina
admirou-se da beleza inculta dos traços, da correção das linhas do perfil
altivo, da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem
moldado pela natureza.
Como é que até então ela não tinha percebido
naquele aspecto senão um rosto amigo? Como seus olhos tinham passado sem ver
sobre essas feições talhadas com tanta energia? É que a revelação física que
acabava de iluminar o seu olhar, não era senão o resultado dessa outra revelação
moral que esclarecera o seu espírito; dantes via com os olhos do corpo, agora
via com os olhos da alma.
Peri, que durante um ano não fora para ela senão um
amigo dedicado, aparecia-lhe de repente como um herói; no seio de sua família
estimava-o, no meio dessa solidão admirava-o.
Como os quadros dos grandes pintores que precisam
de luz, de um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem a
perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas, o selvagem precisava do
deserto para revelar-se em todo o esplendor de sua beleza primitiva. No meio de
homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem
a civilização repelia e marcava o lagar de cativo. Embora para Cecília e D.
Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo.
Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o
filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei
do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da
coragem.
As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os
grandes rios, as árvores seculares, serviam de trono, de dossel, de manto e
cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o
esplendor da natureza.
Que efusão de reconhecimento e de admiração não
havia no olhar de Cecília! Era nesse momento que ela compreendia toda a
abnegação do culto santo e respeitoso que o índio lhe votava!
As horas correram silenciosamente nessa muda
contemplação; a aragem fresca que anuncia o despontar do dia bafejou o rosto da
menina; e pouco depois o primeiro albor da manhã desmaiou o negrume do
horizonte.
Sobre o relevo que formava o perfil escuro da
floresta, nas sombras da noite, luziu límpida e brilhante a estrela-d’alva; as
águas do rio arfaram docemente; e os leques das palmeiras se agitaram rumorejando.
A menina lembrou-se do seu despertar tão plácido de
outrora, de suas manhãs tão descuidosas, de sua prece alegre e risonha em que
agradecia a Deus a ventura que vertia sobre ela e sua família.
Uma lágrima pendeu nos cílios dourados e caiu sobre
a face de Peri; abrindo os olhos e vendo ainda a mesma doce visão que o
adormecera, o índio julgou que o sonho continuava.
Cecília sorriu-lhe; e passou a mãozinha pelas
pálpebras ainda meio cerradas de seu amigo:
— Dorme, disse ela, dorme; Ceci vela.
A música dessas palavras despertou completamente o
selvagem.
— Não! balbuciou ele envergonhado de ter cedido à
fadiga. Peri sente-se forte.
— Mas tu deves ter necessidade de repouso! Há tão
pouco tempo que adormeceste!
— O dia vai raiar; Peri deve velar sobre sua
senhora.
— E por que tua senhora não velará também sobre ti?
Queres tomar tudo; e não me deixas nem mesmo a gratidão!
O índio lançou um olhar cheio de admiração a
menina:
— Peri não entende o que tu dizes. A rolinha quando
atravessa o campo e sente-se fatigada, descansa sobre a asa de seu companheiro
que é mais forte; e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme, que vai
buscar o alimento, que a defende e que a protege. Tu és como a rolinha,
senhora.
Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo.
— E tu? perguntou ela confusa e trêmula de emoção.
— Peri... é teu escravo, respondeu o índio
naturalmente.
A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa:
— A rolinha não tem escravo.
Os olhos de Peri brilharam; uma exclamação partiu
de seus lábios:
— Teu...
Cecília com o seio palpitante, as faces vermelhas,
os olhos úmidos, levou a mãozinha aos lábios de Peri, e reteve a palavra que
ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado.
— Tu és meu irmão! disse ela com um sorriso divino.
Peri olhou o céu como para fazê-lo confidente de
sua felicidade.
A claridade da alvorada estendia-se sobre a
floresta e os campos como um véu finíssimo; a estrela da manhã cintilava em
todo o seu fulgor.
Cecília ajoelhou-se.
— Salve, rainha!...
O índio contemplava-a com uma expressão de ventura
inefável.
— Tu és cristão, Peri! disse ela lançando-lhe um
olhar suplicante.
Seu amigo compreendeu-a, e ajoelhando, juntou as
mãos como ela. — Tu repetirás todas as minhas palavras; e faze por não
esquecê-las. Sim?
— Elas vêm de teus lábios, senhora.
— Senhora, não! irmã!
Daí a pouco os murmúrios das águas confundiam-se
com os acenos maviosos da voz de Cecília que recitava o hino cristão repassado
de tanta unção e poesia.
A palavra de Peri repetia como um eco a frase
sagrada.
Terminada a prece cristã, talvez a primeira que
tinha ouvido aquelas árvores seculares, a viagem continuou.
Logo que o sol chegou ao zênite, Peri procurou como
na véspera um abrigo para passar as horas de calma.
A canoa pojou num pequeno seio do rio; Cecília
saltou em terra; e seu companheiro escolheu uma sombra onde ela repousasse.
— Espere aqui; Peri já volta.
— Onde vais? perguntou a menina inquieta.
— Ver frutos para ti.
— Não tenho fome.
— Tu os guardarás.
— Pois bem; eu te acompanho.
— Não; Peri não consente.
— E por quê? Não me queres junto de ti?
— Olha tuas roupas; olha teu pé, senhora; os
espinhos do cardo te ofenderiam.
Com efeito Cecília estava vestida com um ligeiro
roupão
de cambraia; e seu pezinho que descansava sobre a
relva, calçava um borzeguim de seda.
— Então me deixas só? disse a menina entristecendo.
O índio ficou um momento indeciso; mas de repente
sua fisionomia expandiu-se.
Cortou a haste de um íris que se balançava ao sopro
da aragem, e apresentou a flor à menina.
— Escuta, disse ele. Os velhos da tribo ouviram de
seus pais, que a alma do homem quando sai do corpo, se esconde numa flor, e
fica ali até que a are do céu vem buscá-la e a leva li, bem longe. É por isso que
tu vês o guanumbi, saltando de flor em flor, beijando uma, beijando outra, e
depois batendo as asas e fugindo.
Cecília, habituada à linguagem poética do selvagem,
esperava a última palavra que devia fazê-la compreender o seu pensamento.
O índio continuou:
— Peri não leva a sua alma no corpo, deixa-a nesta
flor. Tu não ficas só.
A menina sorriu, e tomando a flor escondeu-a no
seio.
— Ela me acompanhará. Vai, meu irmão, e volta logo.
— Peri não se afastará; se tu o chamares, ele
ouvirá.
— E me responderás, sim?... para que eu te sinta
perto de mim...
O índio, antes de partir, circulou a alguma
distancia o lugar onde se achava Cecília, de uma corda de pequenas fogueiras
feitas de louro, de canela, urataí e outras árvores aromáticas.
Desta maneira tornava aquele retiro impenetrável; o
rio de um lado, e do outro as chamas que afugentariam os animais daninhos, e
sobretudo os répteis; o fumo odorífero que se escapava das fogueiras afastaria
até mesmo os insetos. Peri não sofreria que uma vespa e uma mosca sequer
ofendesse a cútis de sua senhora, e sugasse uma gota desse sangue precioso; por
isso tomara todas essas precauções.
Cecília devia pois ficar tranqüila como se
estivesse em um palácio; e de fato era um palácio de rainha do deserto esse
sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa, as folhas de
dossel, as grinaldas em flores de cortinas, os sabiás de orquestra, as águas de
espelho, e os raios do sol de arabescos dourados.
A menina viu de longe o desvelo com que seu amigo
tratava de sua segurança, e acompanhou-o com o olhar até o momento em que ele
desapareceu no mais espesso da mata.
Foi então que ela sentiu a soledade estender-se em
torno e envolvê-la; insensivelmente levou a mão ao seio e tirou a flor que Peri
lhe tinha dado.
Apesar de sua fé cristã, não pôde vencer essa
inocente superstição do coração: pareceu-lhe, olhando o íris, que já não estava
só e que a alma de Peri a acompanhava.
Qual é o seio de dezesseis anos que não abriga uma
dessas ilusões encantadoras, nascidas com o fogo dos primeiros raios do amor?
Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer, e não vê numa
borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela
esperança?
Como a humanidade na infância, o coração nos
primeiros anos tem também a sua mitologia; mitologia mais graciosa e mais
poética do que as criações da Grécia; o amor é o seu Olimpo povoado de deusas
ou deuses de uma beleza celeste e imortal. Cecília amava; a gentil e inocente
menina procurava iludir-se a si mesma, atribuindo o sentimento que enchia sua
alma a uma afeição fraternal, e ocultando, sob o doce nome de irmão, um outro
mais doce que titilava nos seus lábios, mas que seus lábios não ousavam
pronunciar.
Mesmo só, de vez em quando um pensamento que
passava no seu espírito, incendia-lhe as faces de rubor, fazia palpitar-lhe o
seio e pender molemente a cabeça, como a haste da planta delicada quando o
calor do sol fecunda a florescência.
Em que pensava ela, com os olhos fitos no íris, que
o seu hálito bafejava, com as pálpebras meio cerradas e o corpo reclinado sobre
os joelhos?
Pensava no passado que não voltaria; no presente
que devia escoar-se rapidamente; e no futuro que lhe aparecia vago, incerto e
confuso.
Pensava que de todo o seu mundo só lhe restava um irmão
de sangue, cujo destino ignorava, e um irmão de alma, em que tinha concentrado
todas as afeições que perdera.
Um sentimento de tristeza profunda anuviava o seu
semblante, lembrando-se de seu pai, de sua mãe, de Isabel, de Álvaro, de todos
que amava e que formavam o universo para ela; então o que a consolava era a
esperança de que os dois únicos corações que lhe restavam, não a abandonariam
nunca.
E isto a fazia feliz; não desejava mais nada; não
pedia a Deus mais ventura do que a que sentiria vivendo junto de seus amigos e
enchendo o futuro com as recordações do passado.
A sombra das árvores já beijava as águas do rio, e
Peri ainda não tinha voltado; Cecília assustou-se, e, temendo que lhe tivesse
sucedido alguma coisa, chamou por ele.
O índio respondeu longe, e pouco depois apareceu
entre as árvores; o seu tempo não tinha sido inutilmente empregado, a julgar
pelos objetos que trazia.
— Como tardaste!... disse-lhe Cecília erguendo-se e
indo ao seu encontro.
— Tu estavas sossegada; Peri aproveitou para não te
deixar amanhã.
— Amanhã só?
— Sim, porque depois chegaremos.
— Aonde? perguntou a menina com vivacidade.
Aos campos dos goitacás, à cabana de Peri, onde tu
mandarás a todos os guerreiros da tribo.
— E depois, como iremos ao Rio de Janeiro?
— Não te inquietes; os goitacás têm igaras grandes
como aquela árvore que toca às nuvens; quando eles atiram o remo, elas voam
sobre as águas como a atiati de asas brancas. Antes que a lua, que vai nascer,
tenha desaparecido, Peri te deixará com a irmã de teu pai.
— Deixará!... exclamou a menina, empalidecendo. Tu
queres me abandonar?
— Peri é um selvagem, disse o índio tristemente;
não pode viver na taba dos brancos.
— Por quê? perguntou a menina com ansiedade. Não és
tu cristão como Ceci?
— Sim; porque era preciso ser cristão para te
salvar; mas Peri morrerá selvagem como Ararê.
— Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a
conhecer Deus, Nossa Senhora, as suas virgens e os seus anjinhos. Tu viverás
comigo e não me deixarás nunca!
— Vê, senhora: a flor que Peri te deu já marchou
porque saiu de sua planta; e a flor estava no teu seio. Peri na taba dos
brancos, ainda mesmo junto de ti, será como esta flor; tu terás vergonha de
olhar para ele.
— Peri!... exclamou a menina ofendida.
— Tu és boa; mas todas as que têm a tua cor, não
têm o teu coração. Li o selvagem seria um escravo dos escravos; e quem nasceu o
primeiro, pode ser teu escravo; mas é senhor dos campos, e manda aos mais
fortes.
Cecília, admirando o reflexo de nobre orgulho que
brilhava na fronte do índio, sentiu que não podia combater a sua resolução
ditada por um sentimento elevado. Reconheceu que havia no fundo de suas
palavras uma grande verdade, que o seu instinto adivinhava: ela tinha a prova
na revolução que se operara no seu espírito, vendo Peri no meio do deserto,
livre, grande, majestoso como um rei.
Qual não seria pois a conseqüência dessa outra
transição, muito mais brusca? Numa cidade, no meio da civilização, o que seria
um selvagem, senão um cativo, tratado por todos com desprezo?
No íntimo de sua alma quase que aprovava a
resolução de Peri; mas não podia afazer-se à idéia de perder seu amigo, seu
companheiro, a única afeição que talvez ainda lhe restava no mundo.
Durante esse tempo, o índio preparava a simples refeição
que lhes oferecia a natureza. Deitou sobre uma folha larga os frutos que tinha
colhido: eram os araçás, os jambos corados, os ingás de polpa macia, os cocos
de várias espécies.
A outra folha continha favos de uma pequena abelha,
que fabricara a sua colmeia no tronco de uma catuíba, de sorte que o mel puro e
claro tinha perfumes deliciosos; dir-se-ia mel de flores.
O índio tornou côncava uma palma larga e encheu-a
com o suco do ananás, cuja fragrância é como a essência do sabor: era o vinho
que devia servir ao banquete frugal.
Numa segunda palma, também côncava, apanhou a água
cristalina da corrente que murmurava a alguns passos; devia servir para Cecília
lavar as mãos depois da refeição.
Quando acabou esses preparativos que ele fazia com
uma satisfação inexprimível, Peri sentou-se junto da menina e começou a
trabalhar num arco de que precisava. O arco era a sua arma favorita, e sem ele,
embora possuísse a clavina e as munições que por precaução deitara na canoa
para servirem a D. Antônio de Mariz, não tinha tranqüilidade de espírito e
confiança plena na sua agilidade. Reparando, porém, que sua senhora não tocava
nos alimentos, ergueu a cabeça e viu o rosto da menina banhado de lágrimas, que
calam em pérolas sobre os frutos e os rociavam como gotas de orvalho.
Não era preciso adivinhar para conhecer a causa
dessas lágrimas.
— Não chora, senhora, disse o índio aflito; Peri te
falou o que sentia; manda, e Peri fará a tua vontade.
Cecília olhou-o com uma expressão de melancolia que
partia a alma.
— Queres que Peri fique contigo? Ele ficará; todos
serão seus inimigos; todos o tratarão mal; desejara defender-te e não poderá;
quererá servir-te e não o deixarão; mas Peri ficará. — Não, respondeu Cecília;
não exijo de ti esse último sacrifício. Deves viver onde nasceste, Peri.
— Mas tu vais ainda chorar!
— Vê, disse a menina enxugando as lágrimas; estou
contente.
— Agora toma uma fruta.
— Sim; juntaremos juntos, como jantavas outrora no
meio das matas com tua irmã.
— Peri nunca teve irmã.
— Mas tens agora, respondeu ela sorrindo.
E como uma filha das florestas, uma verdadeira
americana, a gentil menina fez a sua refeição, partilhando-a com seu
companheiro, e acompanhando-a dos gestos inocentes e faceiros que só ela sabia
ter.
Peri admirava-se da mudança brusca que se tinha
operado em sua senhora, e no fundo do seu coração sentia um aperto, pensando
que ela se consolara bem depressa com a lembrança da separação.
Mas ele não era egoísta, e preferia a alegria de
sua senhora a seu prazer; porque vivia antes da vida dela do que da sua
própria.
Depois da refeição, Peri voltou ao seu trabalho.
Cecília, que desde o primeiro dia sentia-se abatida
e lânguida, tinha recobrado um pouco de sua vivacidade e gentileza dos bons
dias.
O rosto mimoso conservava ainda a sombra
melancólica que lhe deixaram impressas as cenas tristes de que fora testemunha,
e sobretudo a última desgraça que a tinha privado de seu pai e de sua mãe.
Mas essa mágoa tomava nas suas feições uma
expressão angélica, e tal mansuetude e suavidade, que dava novo encanto à sua
beleza ideal.
Deixando seu companheiro distraído com a sua obra,
chegou à beira do rio e sentou-se junto de uma moita de uvaias, à qual estava
amarrada a canoa.
Peri viu-a afastar-se, e sempre seguindo-a com os olhos,
continuou a preparar a vergôntea que devia servir-lhe de arco, e as canas
selvagens, as quais o seu braço ia dar o vôo da ave altaneira.
A menina, com a face apoiada na mão e os olhos
postos na correnteza do rio, cismava; às vezes as pálpebras cerravam-se; os
lábios se agitavam imperceptivelmente; nesses momentos parecia que conversava
com algum espírito invisível.
Outras vezes, um doce sorriso despontava nos seus
lábios e desfazia-se logo, como se o pensamento que viera pousar ali voltasse a
esconder-se no fundo do coração, donde se tinha escapado.
Por fim ergueu a fronte com o meneio de rainha, que
às vezes tomava a sua cabecinha loura, à qual só faltava o diadema; a
fisionomia mostrou uma expressão de energia, que lembrava o caráter de D.
Antônio de Mariz.
Tinha tomado uma resolução; uma resolução firme,
inabalável, que ia cumprir com a mesma força de vontade e coragem que herdara
de seu pai, e dormia no fundo de sua alma, para só revelar-se nas ocasiões
extremas.
Levantou os olhos ao céu, e pediu a Deus um perdão
para uma falta, e ao mesmo tempo uma esperança para uma boa ação que ia
praticar; sua oração foi breve, mas ardente e cheia de fervor.
Enquanto isso se passava, Peri, vendo que as
sombras da terra já se deitavam sobre o leito do Paraíba, conheceu que era
tempo de partir, e preparou-se para continuar a viagem.
No momento em que levantava-se, Cecília correu para
ele, e colocou-se em face, de modo a lhe ocultar a vista do rio.
— Tu sabes? disse ela sorrindo; tenho uma coisa a
pedir-te.
Esta só palavra bastava para que Peri não visse
mais nada senão os olhos e os lábios de sua senhora, que iam dizer-lhe o que
ela desejava.
— Quero que apanhes muito algodão para mim e me
tragas uma pele bonita. Sim?
— Para quê? perguntou o índio admirado.
— Do algodão fiarei um vestido; da pele tu cobrirás
os meus pés.
Peri, cada vez mais admirado, ouvia sua senhora sem
compreendê-la:
— Assim, disse a menina sorrindo, tu me deixarás
acompanhar-te, os espinhos não me farão mal.
O espanto do índio tinha-o tornado imóvel; mas de
repente soltou um grito, e quis precipitar-se para o rio.
A mãozinha de Cecília apoiando-se no seu peito,
reteve-o.
— Espera!
— Olha! respondeu o índio inquieto apontando para o
rio.
A canoa, desprendida do tronco a que estava
amarrada, resvalava à discrição das águas, e, girando sobre si, desaparecia
levada pela correnteza.
Cecília depois de olhar se voltou sorrindo:
— Fui eu que soltei!
— Tu, senhora! Por quê?
— Porque não precisamos mais dela.
Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis,
disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido
e uma resolução inabalável.
— Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade
dos brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas.
Era essa idéia que ela há pouco acariciava no seu
espírito, e para a qual tinha invocado a graça divina.
Não foi sem algum esforço que ela conseguiu dominar
os primeiros temores que a assaltaram, quando encarou em face essa existência
longe da sociedade, na solidão, no isolamento.
Mas qual era o laço que a prendia ao mundo
civilizado? Não era ela quase uma filha desses campos, criada com o seu ar puro
e livre, com as suas águas cristalinas?
A cidade lhe aparecia apenas como um recordação da
primeira infância, como um sonho do berço; deixara o Rio de Janeiro aos cinco
anos, e nunca mais ali voltara.
O campo, esse tinha para ela outras recordações
ainda vivas e palpitantes; a flor da sua mocidade tinha sido bafejada por essas
auras; o botão desatara aos raios desse sol esplêndido.
Toda a sua vida, todos os seus belos dias, todos os
seus prazeres infantis viviam ali, falavam naqueles ecos da solidão, naqueles
murmúrios confusos, naquele silêncio mesmo.
Ela pertencia, pois, mais ao deserto do que à cidade;
era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã; seus hábitos e seus
gostos prendiam-se mais as pompas singelas da natureza, do que às festas e às
galas da arte e da civilização.
Decidiu ficar.
A única felicidade que ainda podia gozar neste
mundo, depois da perda de sua família, era viver com os dois entes que a
amavam; essa felicidade não era possível; devia escolher entre um deles.
Ai o seu coração foi impelido pela força invencível
que o arrastava; mas depois, envergonhando-se de ter cedido tão depressa,
procurou desculpar-se a si mesma.
Disse então que entre seus dois irmãos era justo
que acompanhasse antes aquele que só vivia para ela, que não tinha um
pensamento, um cuidado, um desejo que não fosse inspirado por ela.
D. Diogo era um fidalgo, herdeiro do nome de seu
pai; tinha um futuro diante de si, tinha uma missão a cumprir no mundo; ele
escolheria uma companheira para suavizar-lhe a existência.
Peri tinha abandonado tudo por ela; seu passado,
seu presente, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era
ela, e unicamente ela; não havia pois que hesitar.
Depois, Cecília tinha ainda um pensamento que lhe
sorria: queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã;
queria dar-lhe um lugar perto dela na mansão dos justos, aos pés do trono
celeste do Criador.
É impossível descrever o que se passou no espírito
do selvagem ouvindo as palavras de Cecília: sua inteligência inculta, mas
brilhante, capaz de elevar-se aos mais altos pensamentos, não podia compreender
aquela idéia; duvidou do que escutava.
— Cecília fica no deserto?... balbuciou ele.
— Sim! respondeu a menina tomando-lhe as mãos:
Cecília fica contigo e não te deixará. Tu és rei destas florestas, destes
campos, destas montanhas; tua irmã te acompanhará.
— Sempre?...
— Sempre... Viveremos juntos como ontem, como hoje,
como amanhã. Tu cuidas?... Eu também sou filha desta terra; também me criei no
seio desta natureza. Amo este belo pais!... — Mas, senhora, tu não vês que tuas
mãos foram feitas para as flores e não para os espinhos; teus pés para brincar
e não para andar; teu corpo para a sombra e não para o sol e a chuva?
— Oh! Eu sou forte! exclamou a menina erguendo a
cabeça com altivez. Junto de ti não tenho medo. Quando eu estiver cansada, tu
me levarás nos teus braços. A rolinha não se apóia sobre a asa de seu
companheiro?
Era preciso ver a gentileza e a garridice com que
ela dizia todas essas frases graciosas, que borbulhavam dos seus lábios! A
irradiação do seu olhar, a animação do seu rosto e a travessura de seu gesto
fascinavam.
Peri ficou extático diante da perspectiva dessa
felicidade imensa, com a qual nunca sonhara; mas jurou de novo em sua alma que
cumpriria a promessa feita a D. Antônio.
A tarde descaia; e era preciso tratar de prover aos
meios de passar a noite em terra, o que seria muito mais perigoso; não para ele
a quem bastava o galho de uma árvore; mas para Cecília.
Seguindo pela margem para escolher o lugar mais
favorável, Peri soltou uma palavra de surpresa vendo a canoa que se tinha
embaraçado numa dessas ilhas flutuantes feitas pelas parasitas do rio que bóiam
sobre as águas.
Era o melhor leito que podia ter a menina no meio
do deserto; puxou a canoa, alcatifou o fundo com as folhas macias das
palmeiras, e, tomando Cecília nos braços, deitou-a no seu berço.
A menina não consentiu que Peri remasse; a canoa
deslizou docemente pelo leito do rio, apenas impelida pela correnteza.
Cecília brincava; debruçava-se sobre as águas para
colher uma flor de passagem, para perseguir um peixe que beijava a face lisa
das ondas, para ter o prazer de molhar as mãos nessa água cristalina, para
rever a sua imagem nesse espelho vacilante.
Quando tinha brincado bastante, voltava-se para seu
amigo e falava-lhe com o gazeio argentino, mimoso chilrear dos lábios travessos
de uma linda menina, onde as coisas mais ligeiras e mais frívolas revestem
encantos e graça suprema.
Peri estava distraído; seu olhar fitava-se no
horizonte com uma atenção extraordinária; a inquietação que se desenhava no seu
semblante era o indício de algum perigo, embora ainda remoto:
Sobre a linha azulada da cordilheira dos Órgãos,
que se destacava num fundo de púrpura e rosicler, amontoavam-se grossas nuvens
escuras e pesadas, que, feridas pelos raios do ocaso, lançavam reflexos
acobreados.
Daí a pouco a serrania desapareceu envolta nesse
manto cor de bronze, que se elevava como as colunas e abóbadas de estalactites
que se encontram nas grutas das nossas montanhas. O azul puro e risonho que
cobria o resto do firmamento contrastava com a cinta escura, que ia enegrecendo
gradualmente à medida que a noite caia.
Peri voltou-se.
— Tu queres ir para terra, senhora?
— Não; estou tão bem aqui! Não foste tu que me
trouxeste?
— Sim; mas...
— O quê?
— Nada; podes dormir sem receio!
Ele tinha se lembrado que entre dois perigos o
melhor era preferir o mais remoto; aquele que ainda estava longe e talvez não
viesse.
Por isso resolveu não dizer nada a Cecília, e
conservar-se atento e vigilante para salvá-la, se o que ele temia se
realizasse.
Peri havia lutado com o tigre, com os homens, com
uma tribo de selvagens, com o veneno; e tinha vencido. Era chegada a ocasião de
lutar com os elementos: com a mesma confiança calma e impassível, esperou
pronto a aceitar o combate.
Anoiteceu.
O horizonte, sempre negro e fechado, se iluminava
às vezes com um lampejo fosforescente; um tremor surdo parecia correr pelas
entranhas da terra e fazia ondular a superfície das águas, como o seio de uma
vela enfunada pelo vento.
Entretanto, ao redor tudo estava quieto; as
estrelas recamavam o azul do céu; a viração aninhava-se nas folhas das árvores:
os murmúrios doces da solidão cantavam o hino da noite.
Cecília adormeceu no seu berço, murmurando uma
prece.
Era alta noite; sombras espessas cobriam as margens
do Paraíba.
De repente um rumor surdo e abafado, como de um
tremor subterrâneo, propagando-se por aquela solidão, quebrou o silêncio
profundo do ermo.
Peri estremeceu: ergueu a cabeça e estendeu os
olhos pela larga esteira do rio, que, enroscando-se como uma serpente
monstruosa de escamas prateadas, ia perder-se no fundo negro da floresta.
O espelho das águas, liso e polido como um cristal,
refletia a claridade das estrelas, que já desmaiavam com a aproximação do dia;
tudo estava imóvel e quedo.
O índio curvou-se sobre a borda da canoa, e de novo
aplicou o ouvido; pela superfície do rio rolava um som estrepitoso: semelhante
ao quebrar-se da catadupa precipitando-se do alto dos rochedos.
Cecília dormia tranqüilamente; sua respiração ligeira
ressoava com a harmonia doce e sutil das folhas da cana quando estremecem ao
sopro tênue da aragem.
Peri lançou um olhar de desespero para as margens
que se destacavam a alguma distancia sobre a corrente plácida do rio. Quebrou o
laço que prendia a canoa e impeliu-a para a terra com toda a força do remo, que
fendeu a água rapidamente.
À beira do rio elevava-se uma bela palmeira, cujo
alto tronco era coroado pela grande cúpula verde, formada com os leques de suas
folhas lindas e graciosas. Os cipós e as parasitas, engrazando-se pelos ramos
das árvores vizinhas, desciam até o chão, formando grinaldas e cortinas de
folhagem, que se prendiam às hastes da palmeira.
Tocando a margem, Peri saltou em terra, tomou
Cecília meio adormecida nos seus braços, e ia entranhar-se pela mata virgem que
se elevava diante dele.
Nesse momento o rio arquejou como um gigante
estorcendo-se em convulsões, e deitou-se de novo no seu leito, soltando um
gemido profundo e cavernoso.
Ao longe o cristal da corrente achamalotou-se; as
águas frisaram-se; e um lençol de espuma estendeu-se sobre essa face lisa e
polida, semelhante a uma vaga do mar desenrolando-se pela areia da praia.
Logo todo o leito do rio cobriu-se com esse delgado
sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa, rumorejando como um
manto de seda.
Então no fundo da floresta troou um estampido
horrível, que veio reboando pelo espaço; dir-se-ia o trovão correndo nas
quebradas da serrania.
Era tarde.
Não havia tempo para fugir; a água tinha soltado o
seu primeiro bramido, e, erguendo o colo, precipitava-se furiosa, invencível,
devorando o espaço como algum monstro do deserto.
Peri tomou a resolução pronta que exigia a
iminência do perigo: em vez de ganhar a mata, suspendeu-se a um dos cipós, e,
galgando o cimo da palmeira, ai abrigou-se com Cecília.
A menina, despertada violentamente e procurando
conhecer o que se passava, interrogou seu amigo.
— A água!... respondeu ele, apontando para o
horizonte.
Com efeito, uma montanha branca, fosforescente,
assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta, e atirou-se sobre
o leito do rio, mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas
vagas.
A torrente passou, rápida, veloz, vencendo na
carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e
enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores, que estremeciam com o
embate hercúleo.
Depois, outra montanha, e outra, e outra, se
elevaram no fundo da floresta; arremessando-se no turbilhão, lutaram corpo a
corpo, esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem.
Dir-se-ia que algum monstro enorme, dessas jibóias
tremendas que vivem nas profundezas da água, mordendo a raiz de uma rocha,
fazia girar a cauda imensa, apertando nas suas mil voltas a mata que se
estendia pelas margens.
Ou que o Paraíba, levantando-se qual novo Briareu
no meio do deserto, estendia os cem braços titânicos, e apertava ao peito,
estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que
nascera com o mundo.
As árvores estalavam; arrancadas do seio da terra
ou partidas pelo tronco, prostravam-se vencidas sobre o gigante, que,
carregando-as ao ombro, precipitava para o oceano.
O estrondo dessas montanhas de água que se
quebravam, o estampido da torrente, os trôos do embate desses rochedos
movediços, que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa, formavam
um concerto horrível, digno do drama majestoso que se representava no grande
cenário.
As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver
os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto
recinto, onde um dos elementos reinava como soberano.
Cecília, apoiada ao ombro de seu amigo, assistia
horrorizada a esse espetáculo pavoroso; Peri sentia o seu corpinho estremecer;
mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa, um só grito de susto.
Em face desses transes solenes, desses grandes
cataclismas da natureza, a alma humana sente-se tão pequena, aniquila-se tanto,
que se esquece da existência; o receio é substituído pelo pavor, pelo respeito,
pela emoção que emudece e paralisa.
O sol, dissipando as trevas da noite, assomou no
oriente; seu aspecto majestoso iluminou o deserto; as ondas de sua luz
brilhante derramaram-se em cascatas sobre um lago imenso, sem horizontes.
Tudo era água e céu.
A inundação tinha coberto as margens do rio até
onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante
uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba,
desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba
gigantesca que se abatera sobre a várzea.
A tempestade continuava ainda ao longo de toda a
cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas o céu, azul e
límpido, sorria mirando-se no espelho das águas.
A inundação crescia sempre; o leito do rio
elevava-se gradualmente; as árvores pequenas desapareciam; e a folhagem
dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes
moitas de arbustos.
A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e
Cecília, parecia uma ilha de verdura banhando-se nas águas da corrente; as
palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso, onde os dois amigos,
estreitando-se, pediam ao céu para ambos uma só morte, pois uma só era a sua
vida.
Cecília esperava o seu último momento com a sublime
resignação evangélica, que só dá a religião do Cristo; morria feliz; Peri tinha
confundido as suas almas na derradeira prece que expirara dos seus lábios.
— Podemos morrer, meu amigo! disse ela com uma
expressão sublime. Peri estremeceu; ainda nessa hora suprema seu espírito
revoltava-se contra aquela idéia, e não podia conceber que a vida de sua
senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal.
— Não! exclamou ele. Tu não podes morrer.
A menina sorriu docemente.
— Olha! disse ela com a sua voz maviosa, a água
sobe, sobe...
— Que importa! Peri vencerá a água, como venceu a
todos os teus inimigos.
— Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Peri. Mas é
Deus... É o seu poder infinito!
— Tu não sabes? disse o índio como inspirado pelo
seu amor ardente, o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom
pensamento.
E o índio ergueu os olhos com uma expressão
inefável de reconhecimento.
Falou com um tom solene:
“Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas
caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens subiram ao alto dos
montes; um só ficou na várzea com sua esposa.
“Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais
que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da
tribo o que aprendia do céu.
“Quando todos subiram aos montes ele disse:
‘Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a
água.’
“Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e
deixaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.
“Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com
ela ao olho da palmeira; ai esperou que a água viesse e passasse; a palmeira
dava frutos que o alimentavam.
“A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e
surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a
montanha desapareceu.
“A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que
parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira
que boiava levando Tamandaré e sua companheira.
“A corrente cavou a terra; cavando a terra,
arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale,
acima da árvore, acima da montanha.
“Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com
três noites; depois baixou; baixou até que descobriu a terra.
“Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira
estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que
batia as asas.
“Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.”
Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as
crenças profundas; com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento.
Cecília o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas
palavras, como se fossem as partículas do ar que respirava; parecia-lhe que a
alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se desprendia do seu corpo em cada
uma das frases solenes, e vinha embeber-se no seu coração, que se abria para
recebê-la.
A água subindo molhou as pontas das largas folhas
da palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na alva cambraia
das roupas de Cecília.
A menina, por um movimento instintivo de terror,
conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a
fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente:
— Meu Deus!... Peri!...
Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e
céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma
sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se
entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço
desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos, abalou-o até
as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se,
inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração
violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da
vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a
imobilidade.
Houve um momento de respouso em que o homem,
concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto
foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível:
Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das
águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada
profundamente pela torrente.
A cúpula da palmeira, embalançando-se
graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma
ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora
quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura
suprema:
— Tu viverás!...
Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto
dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida
eterna.
— Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no
seio de Deus, junto daqueles que amamos!...
O anjo espanejava-se para remontar ao berço.
— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus
mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás
com tua irmã, sempre...!
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e
lânguida reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos
rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um
beijo soltando o vôo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa
fugia...
E sumiu-se no horizonte.
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