LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A afilhada, de Manuel de Oliveira Paiva
Edição de base:
Obra Completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993.
I
O Desembargador Osório Pereira
de Góis dava o seu dedo de conversa na roda que todas as tardes costumavam
fazer na Botica da Feira Nova. Ali falavam sobre tudo e sobre todos, jogavam
gamão e fumavam o cigarro do café do jantar.
A Fortaleza não tinha aristocracia, nem classes, e não sei se hoje
tem; por modos que a florescente cidade poderia
comparar-se
a um organismo em formação, a uma semente fermentando, onde só o olho do sábio divisa o que terá
de ser caule, folha, raiz.
Conquanto homem de observação, era o Dr. Osório corredio em leis feitas e contrafeitas pelos homens, trovejando contra esse nivelamento social da capital dos cearenses, que ele
chamava o
"Caos". Talvez tivesse razão,
se conhecesse bem o sentido daquela palavra.
Isto havia de provir do querer-se avaliar uma
população ainda não caracterizada, tomando por termo de comparação a civilização
de ultramar, demorado produto de séculos sobre séculos.
O menino que exigir, daquele
solo ardente e inclinado, que o Jaguaribe sustentasse as suas águas, ou que a
lagoa Porangaba gelasse para se patinar e ir de trenó.
E pois, o Dr. Osório vivia
meio desquitado da sociedade fortense.
Porém, como quem tem língua é preciso sempre dar um pouco à tarmela, cifrava por esse tempo as suas relações à estreita convivência da roda da botica.
A par disto, sabiam-no político
dos que o
povo chama pé-de-boi, servindo cegamente ao grupo liberal moderado.
Quando se calculava
pelos dedos uma decisão disputada pelas goelas
famintas dos partidos, o seu nome era logo o dedo mindinho.
Casado com uma volumosa senhora, D. Maria Fabiana, dos Castros
da Vargem da Onça,
havia uma filha: a gentil menina Maria das Dores.
Poupão, metódico, temente a
Deus, o casal Góis
Tinha, Deus louvado, bem
segura
Esta vida presente e a futura.
Fabiana de Góis aspirava,
entretanto, participando das aversões do esposo à democracia cabeça-chata, um nome nobiliar na sua
família. Sertaneja dos antigos tempos em que os meninos hábeis, os curiosos,
eram dedicados, não à lavoura ou ao livro, sim ao maçarico de ourives ou ao
seminário; em que a hospitalidade era um dever, mas a vingança um direito;
sertaneja da era dos senhores territoriais que dispunham dos homens, das
mulheres, dos bois e dos campos; hoje em dia, ambicionava apenas casar a filha
com um titular.
Meu Jesus! quanta arenga não
teve ela com o marido por amor disso! No partido, o mais que havia eram
comendadores, e estes, casados. Nem um barão, nem um visconde!
— Fica tu certa, Fabinha, que nossa filha não pode fazer o casamento que desejas — dizia-lhe o homem,
alta noite, ambos deitados. Decididamente eu não me passo para os conservadores!
— Mas então hás de casá-la aí
com um bacharelete?
— E tu com quem casaste?
— Os tempos eram outros. E daí
sabes com quem é que a menina simpatiza? — acentuava o filósofo.
— Isto de simpatia nasce com a
continuação... Quando me casaram contigo eu te enjoava demais.
— E quem sabe lá se não
aparecerá um negociante rico que fique caidinho por ela?
Com esta última interrogação,
Maria Fabiana largava uma cotovelada no marido e virava-se para o outro lado.
Balbuciou consigo entre
zangada e chorosa:
— Fala-se em gente nobre e este idiota
vem agora
com o dinheiro pra frente! Diz que é preciso a simpatia,
que é preciso amor, amizade e o diabo! E você
sabe ou não se ela gostará do Visconde?
— Oh! Fabinha, dorme, deixa
isso para amanhã que hei de decidir como for de direito.
E dormiram.
Nesse rojão o desembargador ia
adiando o propósito de virar casaca.
O caráter político, efetivamente, estava em sustentar
a idéia do partido;
ora, nem uma das facções arvorava idéias: logo, estar num ou noutro
era o mesmo. Aparecia, porém, uma forte objeção — as suas intrigas
pessoais e a sua birra com a popularidade do grupo
chefado pelo desejado genro.
Em todo caso, esperava pelo ditame dos fatos.
Habituou-se a resingar com a consorte, empregando agora o raciocínio,
agora a frase brutal, agora a risada, até que, por
fim, apesar das disputas, da divergência aparente,
respiravam ambos as mesmas convicções.
Tinham invencível confiança
nos dotes da menina.
Muito gabada pelas Irmãs
de Caridade, Maria das
Dores deixara o colégio
com intenção de voltar. Continuava a ser confessada do padre reitor e ia
fazer lá a sua comunhão. Passava esse dia com as outras, e à
tarde, o Dr. Osório, no seu modesto carro, ia buscá-la todo embebido nas
inefáveis palpitações de pai. A rapariga, tendo ficado moça no colégio, e
sendo, como em geral as crianças, muito afeiçoada ao que a cercava, encontrava
ali na vaga delícia daquelas amizades coloridas de recordações, daqueles
corredores, daquelas salas, daqueles pátios ajardinados, e daquela capelinha
catita e incensada, bastantes ninhos onde adormecessem as revoadas do amor não
definido ainda.
Continuava em estudos clássicos
com professores que vinham lecionar em casa, e os conhecidos possuíam-se
de um certo
respeito pela sua simplicidade, riqueza, formosura, instrução. Espalhavam que
ela sabia como um
doutor, e exageravam os possuídos do pai, que não eram lá
essas coisas.
— Pode-se mesmo
afirmar, sem susto, que em verdade o Dr. Osório era pobre; um arremediado; e que o saber da filha não
passava de
umas lambugens variadas, muito à flor.
Para Maria das Dores, quando ia
ao colégio, a palavra ungida do padre reitor, se aconselhando, dispunha para a contrição; se gracejando,
fazia abrir-se sutil o riso, como as bobinas
com a fresca da noite;
ralhando, apertava o coração, como a rama da malícia. Ela estremecia
de íntima saudade quando, entre as antigas companheiras, pregava nos ombros os alfinetes
que seguravam a fita
azul das filhas de Maria, cuja medalha
caía no regaço, por sobre o vestido
afogado, na altura onde se cochichavam apertados pelo corpinho os dois seios adormecidos na noite aluarada da virgindade;
aspirava, como um aroma antinevrálgico o ar
da capelinha,
cuja influição especial agora é que ela sentia, acidulado pelas emanações das carnes inocentes, amornentado pelas chamas das velas, penumbreado pela vidraçaria
gótica à luz do sol oblíquo.
Sentia um quê de estranho, de comovente,
dessas impressões que nos trazem silenciosamente o pranto num riso, quando passavam as irmãs para os seus
genuflexórios, metidas em grosso burel, as mãos desaparecidas
nas mangas encruzadas, e da carne só
aparecendo o rosto com os olhos para a terra, o cérebro
circundado pelo chapeirão alvo, gelando as ruminações
das bocas mundanas e batendo pausadamente as duas abas em ponta, como
a marcar vôo para o alto céu.
E quando por detrás das duas colunas do santuário, douradinhas e leves, o padre reitor vinha subindo da sacristia, na capa de asperges, e lançava um manso olhar pela capela, o sol, que batia em caprichos do alto da parede, alumiava mais, e parecia que até a lâmpada estremecia. Depois o padre subia para o tapete
onde roçava o frontal e abria
o sacrário. Nossa Senhora estava lá em cima, com o manto azul, a coroa de rainha, e as mãos
abertas em graças para o globo celeste que ela pisava adornado de estrelas. As flores artificiais
do altar orvalhavam-se e tinham seiva e aroma,
com as
frases do Tantum ergo, cantadads pelas órfãs, ao gemido da serafina. E ao Genitore genitoque, quando o acólito
apresentava o turíbulo e a naveta, e o incenso caindo nas brasas subia em
palpitantes nuvenzinhas, a hóstia, no meio da custódia, que se abria num sol
de prata, parecia ir também subindo e levando as almas das criaturas.
Depois do Tantum ergo o padre
reitor ajoelhava, recebia o véu d'ombros, a capela num silêncio espectante.
Abatiam-se diante dele todas as frontes. Era a benção do Santíssimo Sacramento.
Suspirações, quantas naquele momento! Quantos segredos que as meninas contavam suplicativas ao bom Jesus Sacramentado!
Maria das Dores não dizia
coisa nenhuma. Sentia lágrimas nos olhos, prostrada,
e, mãos abertas no coração,
em asa de
borboleta que repousa. Adorável. Via-se-lhe o colo, metido no espartilho (que começara a usar depois que
saíra do colégio), agitado como se
fora exalar o último suspiro, e um suorzinho umedecer os cabelos das têmporas. As tranças presas deixavam o cangote a descoberto, cheio de umas pilosidades
que deviam cheirar brando e sempre.
E tinha-se vontade de encostar a face eternamente
naquele ombro como o discípulo amado para com o Mestre
puríssimo.
Ao Laudate, esse canto que alivia o coração e parece reboar pela face
da natureza, pausado, crescente, ondulado, estabelecia-se o equilíbrio entre
céu e terra, e Maria, sentada no meio das outras, patenteava agora a sua
fisionomia limpa e sorridente, de um moreno às vezes pálido, às vezes corado,
segundo o que lhe ia no físico.
Viveu assim aquela boa criatura durante mais de ano; o seu prazer circunscrito ao
colégio. Verdade é que sentia um tal ou qual pendor pelos rapazes, e não deixou de ser
tentada pelo demônio, mas era senhora
deste sujeito e olhava-o com desdém, pela grande confiança que depositava
Entretanto, ia-lhe, sobrevindo o mesmo tédio de
que sofreu no
último ano de
classe. Passou,
finalmente, a novidade dos passeios ao colégio, e das lições do professor
que vinha a casa. Quando o pai mandava aprontar o carro, e dizia-lhe que se vestisse, ela surpreendia-se
agora de não sentir a mesma agitação, o mesmo sustozinho grato.
Uma semana que foi passar
com as Irmãs, ao Meireles, tempo de caju, admirou-se de não
sentir o mesmo arrepio delicioso quando chegou lá. Descia ao
banho de mar, um tanto afastada da gritaria das outras, buscando
antes a companhia das-suas antigas
mestras. Vestia a camisola de banho, muito empuxada pelo vento, que queria à fina força levar-lhe a roupa e os cabelos; mas os seus
lábios, em lugar do riso, que enflora, tinham uma pontinha de meditação que enubla. Corria
para a maré, batendo com os pés nus na areia
luzente da
água, meio curvada para diante e prendendo a camisola entre
as mãos. Mergulhava na onda com um prazer que antes não sentia, e aquilo sim, era bom.
Gritava também, queria enovelar-se com a espuma e boiar
naquela cama de água, naquele colchão vivo que parecia possuir mil segredos. Vinha ao seco
e voltava num rodopio como um poldrinho espantado. Sumia-se no mar e a onda
abaixando, reaparecia o busto com os cabelos tapando o rosto, os quais, num gesto
rápido, ela sacudia para as costas. Passava a mão pelas feições e atirava-se de novo
ao cóncavo despenhante da onda. Os quadris muito desenvolvidos
na água pareciam ter molas ocultas, eles que na hora do tédio e dos bocejos, pesavam a
dobrar sobre os pezinhos de cabocla.
Deixava constrangida o mar. A última a sair, e depois da Irmã chamar por três vezes. Então vinha correndo, possuída de um pudor súbito, com a camisola pregadinha ao
corpo, as
mãos apertando o seio.
Uma tarde largaram-se até pertinho do Mucuripe. Uma légua pouco menos. Iam descalças, de chinelos na mão,
com a
mais sedutora liberdade deste mundo. Os vestidinhos de chita contra o vento. O sol que se estendia quase horizontalmente por detrás delas,
recebia-as
de longe,adiante, pondo luminárias no mar e nos coqueiros dos sítios.
— O céu, com uns tons de
faiança, para o Oriente, ganhava um esbatido róseo no azul esmaecido. Umas,
como cãezinhos festeiros, iam a corrupiar com as alternativas da maré; aquelas
três, abraçadas pelo ombro, esta isolada; outras pela areia frouxa.
O vento, eriçando pela cútis
das areias, traçava ligeiras sombras de uma alvura de flor de cáctus. O vasto
corpo arenoso, encrespadinho como a epiderme, apresentava empolamentos de
seios, fundos recônditos setinosos de sovacos e grossa macieza de ventres.
Subiam à Maria das
Dores desejos de largar-se por ali fora, curiosamente,
como se
p-r trás de cada morro se preparassem
novas
paisagens, como se novas praias beirassem outros mares e regiões de outra natureza.
Arrancharia nas povoações plantadas de coqueiros,
nos arraiais de pescadores,
nas palhoças metidas na areia como no gelo a cova dos esquimós; espraiar-se-ia como aquelas ondas de mar, de vento, de céu, de poeira
nevada.
A terra parecia findar-se na
duna enorme da ponta do Mucuripe,de onde descia uma alvura vagamente corada
pelos tons das nuvens.
Sob o fundo de coqueiros da
povoação, via-se branquejarem as velas das jangadas empoleiradas no seco e
saídas da pesca: um acampamento de alvas barracas pontudas no poeiramento do
crepúsculo. A praia vinha acompanhada, longe, de uma linha escura de matos e de
sítios, aqui fugindo para trás de um morro de pó, ali aparecendo como os ca‑
belos de uma calva incompleta.
E uma duna, de cimácio quase reto, encostando no escuro anil do Sul, era como o
dorso de um oceano de leite.
Da areia porejava uma frescura
confortativa. Porém, as educandas não chegaram à povoação. A Irmã disse que já
estavam muito afastadas do Meireles, e que era preciso voltar. Descansaram nuns
botes, jangadinhas a remo para um só tripulante. Maria das Dores, com a Irmã,
sentaram-se no banco do remeiro. Veio-lhe de súbito um desejo de ir-se naquela
jangadinha pelo mar adentro, e puxou a sua ex-preceptora a conversar sobre
viagens. A francesa tomou bondosamente a palavra.
Maria nem enxergava um peixeiro que passava para a cidade,
ao acostumado trotezinho, de calão carregado ao
ombro, e passou-lhe despercebida
a vaia que as outras deram
num menino muito sujo que ia com uma
carga de
cocos, escanchado entre os caçuás penosamente
suportados por um mísero cavalo que procurava instintivamente a areia endurecida pelo
malho das ondas.
Quando voltavam, entretanto, a Das Dores, como lhe
chamavam no colégio, quase chorou de dó, ao encontrar com uns pequenos que vinham
da lenha.
As fêmeas com o cabelinho embaraçado
e um pedaço de coberta
encardida ao ombro, e os meninos, em camisão, com as canelinhas ao
vento. Atrás, uma já moça, com um enorme feixe de garranchos, que inclinou
propositalmente para cima dos olhos. Via-se que a rapariga trazia a saia em cima da pele, e que o pudor dos peitos era apenas aquecido por um cabeção de algodãozinho. Maria
teve um desses ímpetos que se encontram
na vida
dos Santos, de perguntar pelos pais daquela gente, de arrimá-los, de dar o seu dote aos pobres e ficar
pobre também. Entretanto os pobres
passaram, ela se comprazendo nessas delícias de imaginação,
e nem reparou que em todas
aquelas feições acentuadas pelos revezes pousava sossegada a doce resignação da ignorância.
Adiante as colegiais
encontraram uma preta, sumida num molho de ramos
com que ia remendar as paredes
da sua
tapera; a preta olhou para uma das meninas, de quem tinha sido escrava, com uma frase de satisfação, mostrando sua dentadura de hiena.
Quando a pupila subia, porque o peso forçava o corpo a curvar para diante,
clareava muito o branco dos olhos. Aquela rigidez de homem fazia medo, e a maneira com que a negra
mudava as
pernas, e a tensão dos braços
estendidos para trás. E fez bater o coraçãozinho das
Das Dores,
como o peito de uma rolinha inexperta.
Em frente, pelo conjunto de morros, de coqueirais,
de matos, donde sobressaíam longinquamente as duas grossas torres da Sé, e as mastreações
distantes
no oceano aplanado, abriam-se os derradeiros raios expirantes do sol, que apontavam para o infinito
azul indiferente. A Irmã puxou o relógio. Tinham dado seis horas. Avistava-se o sítio, com a sua floresta
de cajueiros embaçada por um adorável efeito de luz. As meninas iam gostosamente com
os pés na água, sem se lembrar de cansaço. A maré estava enchendo, e lamberia
até as areias frouxas.
A Das Dores, quando enfrentaram com a altura da porteira, largou-se adiante sozinha. Não encontrava
mais a satisfação que dantes sentia na privança com a mestra. Que pena já não ser menina, para passar todo o tempo a gritar e a pular, estirando a língua pelas costas da Irmã, chorando por birra, inventando
saudades de mamãe
para não perder
um dia de saída, e fazendo caretas ao São Vicente do recreio! Como era
bom esse tempo, cujas
imunidades agora é que ela
reconhecia!
Obrigavam-na hoje em dia a ser pessoa de modos, a pautar a sua conduta, os seus movimentos, a sua voz, a estar com o espírito sempre de vigia, a dar direção obrigada aos olhos como ao
leme de um
barco.
A princípio lhe dava um secreto gozo o já não ser menina. Por outro lado, à medida que os pais foram se aborrecendo, um tanto enciumados pela preferência que a filha dava ao colégio, ela foi se impregnando dos atrativos do lar, foi querendo bem à sua camarinha, à sala, aos corredores, aos móveis, ao quintal, aos fâmulos da casa paterna.
No momento em que, sozinha, rumava para a porteira do sítio em que as pensionistas estavam hospedadas
por conselhos médicos, a sua alma
ia como a vela da jangada quando o vento bambeia. Era preciso virar de bordo. Decididamente reconhecia não ter vocação para Irmã de Caridade.
No dia seguinte o pai ainda
não viria buscá-la.
Quando
o padre reitor entrou
de manhãzinha montado no seu cavalo, estava ela no terraço esfregando os dentes. Admirou-se de achar muito feio agora aquele homem metido naquela
coisa preta. Que triste impressão!
Aos
seus ouvidos chegava, porém, o coro de uns sabiás nos melões do cercado. O mar, de um azul precioso, adiante dela, enchia o horizonte. O dia vinha forte por detrás dos cajueiros. Maria achava-se pertencendo àquele ar, àquelas
árvores, àquele pó, Aqueles pássaros, e queria ser botão, ser flor, ser fruto;
e depois ressuscitar em átomos daquela natureza que a gerara. Foi quando viu-se melhor. E foi para a missa adorando muito ao autor da Criação.
Assistiu
à cerimônia, que antes lhe era um fim,
como a um
simples episódio da existência diária.
No banho de mar, no rebuliço da onda, pôs-se a meditar de vez
E durante o dia preferia andar
pelos cajueiros, a ficar debruçada sobre o bastidor do bordado. A tarde fez-lhe
muito bem contemplar o curral, cujas emanações a confortavam, e guardou na
memória a poesia bucólica de uma vaca azeitã que de pescoço estirado se
deixava lamberpela bezerra já crescida, de formas carnudas e virginais,
douradinha de sol, e com uns grandes olhos de filha.
Gostava
de avistar os caminhantes, lá por longe, pela beira da praia, meio ocultos pela ribanceira do areal, e fitava agudamente o ponto branco das jangadas na risca azul do mar. O grito dos maçaricos produzia-lhe arrepiamentos, quando à noite ela tinha insônias e punha-se a olhar para os buraquinhos luminosos do telhado, ouvindo a ventania arrastar, a luz da lua, por sobre o arvoredo como que um vestido de sedas. O rolo do mar lhe despertava na imaginação um canhoneio longínquo.
Rezava-se o Angelus ali mesmo no terraço, depois da
ceia, que ainda era com dia. Era esta a última noitinha que a Das Dores
assistia no Meireles. Quis chorar, proferindo aquela oração tão simples, que
principiava dizendo: O Anjo do Senhor
anunciou à Maria. O sussurro quase hilariante da voz das meninas
respondendo em coro parecia um ruflo de asas que iam em bando no amortecimento
do sol, que não aparecia mais.
A areia foi a pouco e pouco empardecendo, e as folhas das árvores unindo-se na sombra. Apenas o extremo das palhas dos coqueiros balançavam, quando por entre eles, com o mesmo alaranjado que ainda retocava as nuvens, subia a lua, de um ninho de vapores indecisos, ligeira, grande, gorducha como um recém-nascido de boas carnes. Pestanejando
apressadamente acendia-se o farol
do Mucuripe, uma
enorme estrela avermelhada,
e foi abrandando,
até que entrou
a desaparecer e reaparecer vagarosamente e por medida.
As meninas ficaram no terraço
até bater a campainha para a oração da noite. Ali mesmo fizeram o recreio.
Delas, um grupo numeroso, sentadas em círculo no solo, brincava o limão, e cantavam compassadamente para a
do meio: lesa, menina, lesa... A
claridade da lua projetava sombras densas, e vinha já descendo meia parede. Os
recortes da bandeirola, na porta do lado, iam desenhar-se no tijolo da saleta
escura.
Isolada no parapeito a Das
Dores cochichava as frescas ave-marias e os longos padre-nossos do seu terço de
marfim, e o ar frio, brandamente agitado, fazia aparecer de vez em quando
entre os seus lábios a pontinha da língua para umedecê-los.
A claridade, a princípio muito forte por debaixo das árvores, por modos a luzirem as folhas caídas, penetrava
deslumbrantemente nas copas e ramadas, e em breve o disco da lua foi sobranceiro à tona do arvoredo. Por fora do cercado, para o mar, as pequenas dunas salpicadas de moitas de capim, na encosta interior, mostravam o lombo nitente, ou a cava escura dos pequenos vales, e em frente à porteira estendia-se um alagado em cuja face trêmula boiava em i brilhantíssimo, de margem a margem, a luz da lua.
O areal da praia aparecia como umas camadas de algodão, e a espuma da onda, refervia com uma alvura
excessiva. A direita
da porteira as salsas estendidas na irregularidade do terreno abriam os seus cálices roxos, inúmeros
pavilhões de cornetins,
de onde parecia
arrebentar a gritaria
dos insetos, e o verde verniz das folhas argentava e incrustava-se de brilhantes.
A areia do caminho,
trilhada pelos pés, traçava uma zona estreita,
esbatida, irregular. De uma jaqueira isolada via-se deliciosamente
a copa florida, nas menores minudências de volume, desde a linha acesa até a
parte indecisa que
se enxergava
através da sombra. E era belo aquele jogo de sombras diversamente graduadas, sem a monótona igualdade das do sol.
Umas impenetráveis, outras que eram a modo de um ar
apenas mais
espesso. O tronco brutal de uma
cajazeira
era todo repinicadinho na face iluminada. E as copas dos coqueiros, enormes crustáceos
aéreos, produziam uma música de cintilações e de chiados, como se nelas fervilhasse a luz em forma de insetos. A maré parecia branda, apenas de quando em quando o estouro de uma onda mais carregada. Até a risada rouca e fúnebre da coruja repassava-se
da sagrada
melancolia que pairava no ar. A esgalhada, sem folhas, do ateiral,
não lembrava
espectros, mas naquela claridade infiltrada do reflexo branco das areias,
despertava paisagens hiberninas da Europa,
que tinham se visto
O pó entrava a fazer-se luz. A imaginação fazia-se realidade no mundo interior.
Da altura do parapeito a Das
Dores, a sonhar acordada, como que se debruçava de um castelo fortificado, a
desoras, para um cavaleiro de capa e largo sombreiro desabado. Brincara muito
com uma figura assim, da tampa de um bocetão oblongo onde mamãe guardava a
chapelina. O bigode e a pera do conversado, que parecia ter entrado pela
porteira como o padre reitor, eram ver o tipo do primo Vicente. A Das Dores esqueceu
desta vez de esconjurar a tentação de Satã. Chegou ao fim do terço e recomeçou.
Proferia as santas palavras suspirando. Era com efeito o primo Vicente, um
oficial de artilharia, que a imaginação fizera entrar, a cavalo, no russinho do padre reitor. A Das Dores
admirava-se de ter guardado tão bem as feições dele, por modos a sentir-lhe até
a respiração, a ouvir-lhe o timbre da fala, e a sofrer no rosto uma forte
impressão de choro, de saudade, de amor, talvez!
Ali, no impalpável do ideal,
na fantasmagoria, da natureza, ao aroma penetrante das árvores, pensara coisas, de
que, no dia seguinte,
quando a brutalidade do sol com
a sua
grande risada universal de luz e de calor
penetrasse tudo, ela pasmaria e teria
vergonha. Pois a Das Dores era lá rapariga para apertar um mancebo a dizer-lhe — Eu te amo?
Eu te amo?
Entretanto era tão inocente aquela paixão pelo primo! Ela não procurara, não fizera cavilações. Viu-o, gostou de olhar. Um moço de
estudos. Tornou a
ver, e ambos
gostaram de olhar-se. Mais nada. Sonhou. E veio logo a idéia natural, o casamento, com todo o adorável cortejo das encantadoras ingenuidades do primeiro amor.
Como era esperado, de manhãzinha o pai veio buscá-la. Acordou mais cedo porque era preciso fazer um
ramilhete de flores silvestres para pôr num jarrozinho de búzios que ela fizera para presentear a mamãe no dia de seus anos. O carro
parou lá fora, no chão duro. Depois da missa, o pai foi cumprimentar ao padre reitor,
com quem trocou uma pitada, e beijar a mão às irmãs. Das Dores
abraçou as companheiras, tomou café,
e desceu muito
alegre os degraus do terraço, abrindo a sua sombrinha de seda, e de vez em
quando deitando para trás um riso de amorosa con-fraternidade,
como quem diz: — Vou ali e já volto.
E a sua antiga preceptora, de pé, no último degrau da escadaria exterior, ainda a olhava, quando ela pisou no estribo; e pelo movimento das asas da cornette via-se que a boa senhora balançara a cabeça como afugentando a mosca importuna de um pensamento mau ou
de desgosto. O
sol batia
fortemente na caixa azul do carro, ao arranco da parelha, e ouvia-se o estalo do chicote agitado no ar. O veículo navegava mansamente
procurando a areia menos frouxa, até desaparecer por detrás de uma ribanceira. A Irmã teve uma forte
recordação da lenda do rei de Thule, cuja taça, jogada ao mar, virou e revirou e desapareceu.
Entrou, apertando os beiços.
C'en est fait, mon père — disse ela tristemente ao
reitor que ia atravessando a sala. E voltou-se para a Irmã Superiora, com um
gesto chistoso, como arrancando uma coisa da boca e deixando cair: — Ma Mère,... babau!
Com toda certeza a Das Dores
não podia ser Irmã de Caridade. Entrava pelos olhos. As provas mentiram. O seu
amor pelo Colégio viera desmaiando até dar num esbatido que fazia transição
para outro género de afeições. Por isso é que a Irmã dizia penalizada ao
reitor: — Mon père, c'en est fait.
Acabou-se.
O padre era um homem sábio nisso de vocações. Incumbido da acerbissima e delicada missão de preparar os moços
para as ordens sacras, quanta desilusão não tinha sofrido!
Acontecera muito o seminarista ser um predestinado, e o padre um réprobo. Assim, o seu proceder cifrava-se em uma negativa constante.
Salvo rarissimos casos em que dizia ao ordenando:
— Tem vocação, mas peça a Deus
que o ilumine. Se achar em si uma partícula mundana, fuja, fuja do sacrilégio!
Quanto à Das Dores, disse-lhe francamente:
— Pense noutra coisa.
Estas palavras a menina
recebeu-as
de peito cheio. Um alívio. Estremeceu toda. E daí julgou-se
habilitada para o concurso da vida.
Ao lado do pai, ao corredio
deslizar das rodas por sobre o tapete luzente das areias batidas pelo mar, o
corpo, desaparecido na seda preta, agitava-se de molécula em molécula, como se
a faculdade imaginativa estivesse nele todo, desde as veiazinhas invisíveis da
unha até aos ignotos do espírito. O dia cerrava-lhe as pálpebras a meio.
Pendia para o fundo do carro. A odorante carnadura dos seios pulsava levemente.
No regaço, entre os joelhos, pousava, ou antes boiava, o jarrozinho de conchas,
feito pelas suas bentas mãos, tripulado por umas flores silvestres amarelas,
violetas e azuis, com umas folhinhas muito verdes, agitadas de manso pelo
ferver daquelas artérias extravasantes de sensação e de sentimento. As
mãozinhas gorduchas, metidas na luva de retrós, caíam sobre as dobras do
vestido. A seus pés sumia-se uma cestinha de vime. Na boléia, ao lado do
cocheiro, faiscava ao sol matutino um pequeno baú de folhas. A direita, o mar,
e à esquerda, a praia, avançavam. O pai fazia eternamente algumas perguntas, que
ela respondia mais com o sorriso do que com as palavras. Era preciso falar
alto, por causa do vento. "Se ia contente, se ainda tinha precisão dos
banhos de mar, se tivera saudades deles, isto é, dos pais..."
— Muita, papai, você bem sabe disso — soltava ela na sua voz
prolongada e rica de nuanças de timbre, olhando a cidade
que ia aparecendo na sinuosidade da costa,
detrás dos
morros e do coqueiral.
O bom homem sentia-se bem, com aquela preciosidade a seu lado, que não
cederia por todas as riquezas de mar e terra. Caidinho pela filha. Bastante feliz para distinguir,
avaliar, e prezar a nova espécie de sensações
que lhe nasceram desde que foi pai, era de uma grande avidez por estes haustos
inefáveis que sofre uma pessoa quando sente-se ao pé de outra a quem adora. Entretanto acontecia ser um tanto parvo e desastrado diante da filha.
O cocheiro não quis passar por
debaixo do trapiche, cujo conjunto roxo-terra aninhava-se na areia e metia pelo
mar uma ponte suspensa por grossa e longa estacada, muito nua e alta com aquela
maré tão seca. Subia um frescor salgado dos poços que a maré deixara, e o
arrecife, com uma parte no seco, abrolhava negro e áspero entre espumas e verdes
ondas.
Chegando próximo ao trapiche o carro fez-se logo para a Alfândega,
conquando
houvesse de vencer um pedaço de areia muito frouxa, princípio de uma duna; era inconveniente ir mais adiante, porque, àquela hora, o comércio aproveitava a maré para fazer a descarga e o embarque, e havia grande tropelia.
A Dorzinha avisou mesmo ao cocheiro que não fosse por lá. Os trabalhadores que entravam
mar adentro com fardos para os lanchões andavam
como o pai Adão, apenas com uma guisa de tanga em vez de folha
de parreira.
Os telhados gigantescos dos
armazéns que formavam a ala avançada das edificações da cidade, sobre as
frentes caiadas de ocre, iam-se praia além, presidindo àquela balbúrdia
afastada, a que a Das Dores era indiferente, e de que apenas conservou na
lembrança uns montes de sacas de algodão, loirejando ao sol. Entraram na Praça
da Alfândega, descampada para a parte do mar. Das Dores estremeceu, e
empertigou-se, com o primeiro abalo do carro no calçamento, onde as rodas
produziam um ruído áspero, que mudou-lhe a natureza das impressões. Teve de ir
reparando para fora, desencostada do coxim, por causa daqueles saltos a que a
irregularidade das pedras obrigava o veículo. No tope de uma ladeira que
apareceu logo ali, assomava a capela da Prainha, com as suas torrezinhas
pontudas, e a singela cruz do frontispício, e as janelinhas do coro de onde
tantas vezes, pelas novenas da Conceição, Maria das Dores assistira missa
cantada, com muitos foguetes e repiques.
A Alfândega inda estava fechada, e o trilho, que sobre um
estreito viaduto de madeira, corta o pântano coberto de salsedo, que forma a área da praça, tinha
apenas um vagão, e vazio, como à espera que se abrisse
a grande
porta da entrada. No canto, um pé de mongubeira sacudiu
para dentro do carro
um punhado do aroma doce das suas grandes flores, e
o sol acendia uma fita de alvíssima luz no sabre calado da sentinela.
Na passagem das sarjetas era preciso prevenir contra o balanço violento. O jarrozinho de búzios, levava-o ela agora seguro contra o peito, como se quisesse
salvar de
um naufrágio uma lembrança querida. A Rua do Chafariz foi a melhor,
porque o calçamento estava muito coberto de capim e de terra molhada,
e era pitoresco ir-se beirando uma série de sítios
por trás dos quais ia-se avistando a encosta
barrenta e arenosa do bairro do Outeiro
entreaparecendo
aqui e acolá o topete das
casinhas de palha, e a gente sentindo-se como
próximo a
coisas que nunca viu.
Maria conhecia bem a cidade,
porém passava muito tempo sem ir a certas paragens, e achava-lhes sempre um sabor de coisas novas, uma
alegria, uma juventude, que lhe faziam
muito bem. O pai não era cearense, paraibano.
A mãe, sertaneja. Tosavam a Fortaleza, quando podiam. Ela defendia sempre a terra, os objetos, os habitantes, a natureza que assistiam-lhe desde que nascera.
Aquele olhar amoroso via amor
em tudo.
A nuvem branca, de verão, no céu
claro e profundamente azul; mesmo o sol terrível estorricando, a ventania, curvando a cerviz dos coqueiros
e arrepelando os telhados,
excitar-lhe-iam a morna saudade, e acenderiam, pelo torpor físico, a candeia mágica dos sonhos. A tarde, vermelha;
os cirros altíssimos sarapitando de neve o forro já menos
anilado
do firmamento; os vapores escuros a estreitar o espaço;
a bulha penetrante dos aguaceiros,
a luz meio argêntea dos dias de inverno, deveriam trazer-lhe a comoção à flux, a necessidade
do trabalho, por um secreto impulso primaveril. E uma grande frescura
iria regar-lhe o canteiro dos afetos.
Assim, de um modo ou de outro, aquela criatura que desejava muito e satisfazia-se
com o que havia, estava sempre em equilíbrio com o que a cercava. Nisto é que os pais a distinguiam.
O carro deu um vascolejo muito forte, que o velho pendeu um tanto sobre a moça, ao dobrar para a Rua de Baixo. Havia um atropelo de carroças que desciam pejadas
de fardos de algodão,
de
couros, de sacas de café, e de outras que subiam com bagagens de pouco desembarcadas.
Em conseqüência, apesar da largura da rua, o cocheiro teve de botar mais pelo
brando. Parecia, à donzela, que em vez do pai,
quem ia ali era o marido. E isto não era um disparate para a sua índole. Alma simples, não compreendia senão afetos santificados pelo dever. Marido, pai,
irmão, filho, amores igualmente sagrados pela natureza
e pela religião.
Ia experimentando o consolo suave de uma criança cujo
choro desaparece no seio da mãe. Para bem dizer, não via a fresca arborização
que transformava a rua numa avenida de parque, a corporatura cinzenta da
fortaleza à direita, com os seus antigos canhões negros, e a alegre fachada do
quartel, dominando uma eminência relvada onde pastavam animais, nem um fundo de
cidade que ia subindo pelo manso à medida que as rodas se moviam; nem as
bojudas torres da Sé, topando no azul, quase escondidas pelas árvores, e cujas
cúpulas apareciam como cheias de ar, semelhantes a dois balões a desprender-se
e nem ouvia mesmo o sino grande, que estava a tocar Nosso Pai. O renque de mongubas à esquerda era uma verde muralha
gigantesca e suspensa. A direta, no sopé da eminência do Quartel, a arborização
menos alimentada pintava no pó incertos círculos de sombra, e a projeção da
copa dos tamaringos depauperados pela carga de frutos eram frouxas cabeleiras
estendidas no gramado. Muito ao fundo, como um anão com um chapéu armado desproposital,
aparecia o Palácio do Governo, sob um rolo de nuvens de verão.
Chegados à Praça da Sé, de onde se desfrutava
uma bela vista para a banda de Leste, pararam ao
pé do
Santo Cruzeiro, porque o Santíssimo ia saindo. Apearam, e abateram-se ante os homens
de opa encarnada, três dos quais, iam na frente com a cruz e os lampiões
prateados. Quem dera que fosse ali de opa o primo Vicente! Maria, protegida pela sombrada sege, espalmava as duas mãos sobre o peito,
e pedia ao bom Jesus proteção para o seu ferido peito. O velho ajoelhava com os olhos na pedra,
segurando com as duas mãos adiante o seu chapéu alto. O cocheiro
dobrava a
perna militarmente, além da sarjeta, e puxava
a opa do rapazito que ia atroando a campainha,
bem na avançada e perguntava-lhe
para donde era.
— Eu sei que é pro Outeiro,
respondia o acólito.
— Mas pra quem?
O rapazinho, que ia
caminhando, não podia responder mais. Repetiu-se
a pergunta ao sacristão, que vinha com o turíbulo,
uma bolsa de baeta e uma toalha a tiracolo:
— Mas pra quem é?
— É pro diabo que o carregue,
rosnou o homem, que ia
bem consigo e mal com os outros.
Das Dores que ouviu
isso ficou escandalizada como se lhe fizesse
uma desfeita.
E disfarçou a contemplar a
modesta procissão.
O pálio descia os degraus do
patamar, e passou, da vasta sombra que a igreja projetava envolvendo os altos
braços do Cruzeiro, para o sol do meio da rua. Fazia um belo efeito aquela
fieira de opas escarlates. O brocado amarelecido do pálio abria e encolhia com
a marcha, fazendo tremer as compridas franjas cadentes, especado pelos seis
varais prateados. Iam depressa, na consciência de quem leva a água de salvação
para acudir a última devastação do incêndio da vida transitória.
O sol, uma hóstia ardente, arregalava.
Sacudia os
seus tentáculos de fogo por entre nuvens
acumuladas. Chupava, com os desesperados
calores da
estação seca, a pouquinha de frescura do romper
do dia. O
Santíssimo dobrou para o Outeiro, cuja ampla subida, a leste, moldada entre dois muros,
ia perder-se no confuso daquele bairro original e paupérrimo. Ao longe repontavam as torres
agudas da
Prainha, muito bem casadas, mimosas, forradinhas
de azulejo.
Uma população rareada, de gente pobre, transitava ali na subida, a mor parte recolhendo da feira.
Passavam quase todos pelo patamar da Sé, com os seus urus manteúdos, pés descalços, peito ao vento,
xale traspassado, satisfeitos como eles mesmos.
Uma pintura fresca aqueles tons brancos da camisa
e ceroula, do lençol
das mulheres, e do camisão sujo dos meninos de canela
à mostra. Pedreiros e carpinteiros, que iam almoçar, de botas
velhas ou
de chinelões, alguns de paletó cheirando a cedro, ou salpicado
de cal. Um bodegueiro vestindo
brim branco engomado. Pelo meio desses caminhantes
característicos, via-se lá
uma ou
outra senhora de capa, aureolada pela sombrinha
molemente bordada e forrada a cetim; raro cavalheiro grave, alguma rapariga de
vestido na moda, meninos de calção curto e meia alta; vindos da capela da
Prainha.
E a claridade ardia por cima das
edificações.
A Rua de Baixo, vista do patamar,
para o interior da cidade,
descambava
para o sul com uma largura de praça; atapeçada aqui
e ali por grandes manchas
de capim rasteiro.
No ponto onde a rua desaparecia em cotovelo,
apresentava-se o terraço
exterior do paço da Presidência, um bastião encimado por um gradeamento, em cuja rechã forrada pela relva
madura esboçava-se uma arborização, magra e insuficiente para
ocultar de todo a fachada. O teto do velho palácio era para a frente assim como uma fronte gigantesca e avermelhada, sobre uma
carita miúda e alvaçã; um velho casarão de péssimo efeito, segundo a opinião do Osório. Sobreapareciam
a torre amarela do Rosário, e a platibanda enegrecida da Assembléia; e pairando por cima, dentre os telhados, como uma nuvem descida, o cimo das árvores da
Feira.
O desembargador havia entrado na igreja, acompanhando a filha, que ia fazer oração.
Cá fora, da alvenaria
do templo se despegava
pelo patamar e pelo empedramento uma enorme sombra.
Uma sinfonia de sol, de
sombra, e de ruídos.
O adro se estendia em
plataforma, beirado por um anteparo de sofás de alvenaria, e na frente
agigantava-se a árvore do Santo Cruzeiro, a sair de um elevado gradeamento de
ferro.
Às portas da igreja,
escuras, percebiam-se as velas acesas, na penumbra que se fazia
lá dentro, coradas e inquietas como estrelas ao crepúsculo.
As ventoinhas das grossas torres
apontavam para as pequeninas nuvens que iam azul em fora.
O cocheiro, enquanto o velho e a sinhazinha demoravam
na igreja passeava no adro, pernóstico, fumando o seu cigarro. Dirigiu-se
de súbito a uma mulher maltrapilha, que pedia esmola:
— Você sabe se o Santíssimo foi para a mulher do cego João de Paula?
— Foi, inhó sim — respondeu a mendiga. Desna dont que ele não aparece por aqui.
— E a corna da Antônia nem se
lembra dele!
— Que Antônia? A Toinha
que está em casa de Siá Dona Fabiana? Não senhor, abaixo de Deus, foi quem mandou de comer
para onte
e pra hoje. Porém a Chiquinha está morre não morre. Deus me salve tal lugar, mas está
co'a barriga por aqueles mundos, de inchada — e arqueava
largamente os braços
sobre o
ventre.
Deu à taramela, até achar
ensejo de dizer em voz comprida e confidenciosa "que lhe desse a sua
esmolinha".
Aí o cocheiro, fazendo um ar
de grande senhor na cara retinta, atirou-lhe com um vintém.
Continuava a dar à língua com a mendiga, de cigarro entre os dedos, espevitado e grande coisa.
O Santo Cruzeiro ia a pouco e pouco emergindo ao sol. Um peixeiro que passava carregado para
a Feira, parou em
frente ao gradil sagrado, de chapéu na mão, aproximou-se, beijou uma das cruzes de
ferro cravadas no meio de um círculo no ponto donde sai cada lampião,
meteu a mão no uru, tirou um vintém e sacudiu para dentro. O disco de cobre foi tinir no ladrilho, junto à enorme peanha adornada de assuntos religiosos em meio-relevo de barro nas faces do prisma.
As cercanias, à distância, por trás do templo, alçavam os seus coqueiros, as
suas mangueiras e plantações, uma povoação de folhagens por trás da
de casarias. Para
além desses blocos
unidos de verdura, adivinhava-se o aspecto desolador do extenso bairro do Outeiro.
Uma zona irregular e caprichosa de alegrias da vegetação, entre o mundo da cidade e o vasto aldeamento dos
pescadores, dos
lancheiros, dos trabalhadores
da praia, dos
homens do ganho, dos operários, e de uma numerosa população
decaída, uns
habitando cabanas,
verdadeiras covas de palha desses esquimós do areal ardente. Através dos ruídos ouvia-se
o cantar do galo ao longe.
Para a cidade, os tetos se
destendiam esquentando sol. Na Rua de Baixo, ali pertinho, o Mercado, com as
suas paredes cor de sangue de boi, produzia uma zoada alegre, e era assim a
modo de uma grande colméia de gente. Defronte dele, ao meio da rua,
estacionavam animais devolutos, quase a dormir em pé, sob as cangalhas. Nos
armazéns, carroaças carregavam açúcar. Espalhava-se um odor de aguardente, da
destilação próxima, de par com o assobio da máquina a vapor.
A Rua das Flores abria diante
da igreja. A população se movia, na labutação diária. De quando em vez brilhava
a nota rubra de um xale no meio dos transeuntes afastados, que pareciam pisar
em veludo.
Maria desce o patamar, e a sua fascinação continua a esperar
de cada canto a imagem do primo. A rua, passando os castanheiros
da praça, estendia-se ao olhar, com a sua casaria térrea, indo fenecer num horizonte longínquo, de alvo, de verde, de cinzento e de vermelho.
O carro não podia partir imediatamente, porque um comboio de algodão nublava, com a sua onda loira, a largura
do arruado e avançava
como a cabeça-d'água de uma
enchente, com um passo dançado e medido.
Sobressaía ao lume da onda um vulto, a cavalo, e os gritos
dos
comboeiros e a sonarina dos chocalhos.
Enfrentando com o Santo Cruzeiro os matutos se descobriam, e
depois de ter dobrado para a praia, ainda iam olhando religiosamente para
trás.
Então foi que o carro
teve o
empedramento por seu. Das Dores ia atordoada com aquele tumultuamento rueiro do tempo
de safra.
O primo não partirá para o Rio
Madeira, naquela maldita comissão de engenharia! Mas que lembrança agora!...
Pois seria possível que ele abandonasse uma terra assim tão boa como a
Fortaleza, onde tudo ama e ri? Que pretensão extravagante a de ir meter-se pelos
pântanos infindos da Amazônia! E morrer! A procura de quê? De fama? Ora a fama
valia muito menos que o amor que ela sentia rebentar com todo o esplendor e
franqueza do sol e do céu da sua terra. E depois... Devia esperar que fossem
ambos, casadinhos, porque ela por si era bastante para salvá-lo do Inferno,
quanto mais de doença e de flecha do índio! Se os ingleses ainda não haviam
conquistado o Pólo do Norte, era porque não se haviam lembrado ainda de ir com
as suas mulheres.
Quer em caminho para a Relação,
onde ia desobrigar-se da papelada dos processos, quer jogando gamão na roda da
botica, ou dando seu girozinho pelos arrabaldes na companhia seleta de uns três
íntimos; quer à noite, de papo para o ar, cruciado pela insônia, Osório, a seu
pesar, malucava no casório inventado pela mulher. Que diabo! Um destempero!
Isso de amor será um fenómeno de afinidades naturais? Assentaria bem aos pais
armar casamento para os filhos, ou o direito seria esperar pelo que desse e
viesse?
Uma tarde, ainda palitando os
dentes, ia calçada acima, em demanda da Feira Nova, com as mãos para trás
segurando a bengala ao meio, o rosto para o ar, o sobrecasaco desabotoado como
para receber no estômago a frescura vespertina, as costas das mãos aderindo
sobre o roliço das nádegas, indo para um lado e para o outro as abas da
vestimenta ao impulso das passadas, quando, na esquina, quase abalroou no guapo
oficial sobrinho da sua mulher. Fez uma cara fechara para aquele sujeito que
não previra que o seu dever seria tomar imediatamente para o cordão do passeio.
Ambos, porém, buscaram desvio pelo mesmo lado, uma vez para dentro e outra para
fora, terminando pelo oficial, que ia à paisana, safar-se rapidamente pela
coxia, e seguir caminho.
Contrariadíssimo ficou o pobre do Centu, porque sentiu-se tão abestalhado com a súbita
aparição do pai de sua prima! Porém o velho,
depois de
dar algumas passadas, voltou-se como chamado por um íman, e perguntava a si mesmo
quem seria aquele indivíduo cuja aparência o estava agora impressionando.
Os olhos daquele mancebo haviam-no picado como dois marimbondos;
e mentalizados no cérebro
tardio e ronceiro do juiz,desafiavam-no, aguçavam-no,
dançavam diante dele. Colocasse-os agora na respectiva
fisionomia!
Continuando a demanda a
botica, o apetecido provável sogro punha na pontinha de um silogismo a sua
seguinte frase habitual: — Isto é um indício de afinidade qualquer.
E acrescentava:
— Incontestavelmente.
Principiara a ler Física,
depois de maduro, com o açodamento que por último havia por essas leituras; e o
seu tiquinho de Química e Biologia, e outros saberes frescais no país, tudo
por junto e atacado.
Cavaqueava com o boticário acerca dos preparados e dava-lhe
boas caceteações assistindo-o a trabalhar no modesto
laboratório:
Por que não decompunha
tais e
tais substâncias? Por que não analisava o caju e seus produtos, que poderiam dar uma riqueza para a província?
O boticário respondia-lhe com o seguinte rasgo, saído como das suas barbas impregnadas de cheiro
típico da
farmácia:
— Senhor desembargador dos trezentos diabos! Cuide nas suas leis artificiais, que as da natureza só serão descobertas a seu tempo; e inda mesmo desconhecidas agem sempre, quer a ciência queira, quer não.
Ficava de queixo caído. Disfarçava,
— com o riso emocionado de quando se abarca subitamente uma idéia —, o efeito
que aquilo produzia na solução do problema levantado pela Fabiana.
Absolutamente não, fazer a pequena conquistar o amor do Afrodísio,
simplesmente por este senhor ser hoje em dia o Visconde de São Galo,
absolutamente não. E mais, a nobreza dele seria um fenômeno natural? Era ele de fato um nobre, segundo os seus nervos, segundo o seu coração, segundo o
seu cérebro?
E gramaticava:
— Nobre vem do gnobil,
isto é, digno de ser
conhecido. A análise biológica escalpelando, e a sociológica descobrirá em todas as suas moléculas compleição
que satisfaça aos requisitos?
O desembargador de si já era uma dúvida. Que fora magro, alto e envergado,
poderia apelidar-se — ponto de interrogação.
Deixando o azougado
boticário, vinha para a roda da calçada, onde as discussões ebuliam e a tesoura
das murmurações tosava, e trabalhava à catana no lombo
alheio, os
dados se desatando constantemente pelo tabuleiro do gamão ao esfuziar das pedras de ponto em ponto, ao destro manusear dos parceiros.
A praça, fechada dos quatro lados por casas de comércio, tinha o ar agitado sempre, nas folhas da alta, frondosa, e clara arborização. A casaria era pintada variegadamente, com as cores reclames
das lojas de molhado, letreiros
espaventosos.
Ao longo da Rua da Palma, espalhava-se uma alegria vespertina, desde a sombra que bordava
a fronte, inda tinta de sol, das casas do nascente, até à meninada a rodopiar nas calçadas, e ao homem do ganho,
caminhando meio ébrio, com a biquara ou pedaços de miúdos pendurados ao dedo,
com o molho de coentro. Mas, o próprio asno chagado pelos arreios, arrastando a
carroça, o próprio cavalo ossudo com a dura cangalha a conduzir a carga de
lenha, o mendigo mesmo, a chorar o eterno refrão de "esmola pelo amor de
Deus", não tinham a pungência que se notava agora na expressão
fisionômica, acerbamente achacada, do desembargador.
Coitado, as suas deduções
filosóficas, de encontro à tirana decretação da sua velha, podiam valer-lhe
duros tratos.
A botica, situada ao poente, era muito afreguesada.
Também, a
Feira Nova era a bem dizer o centro
da cidade, e quase
todo mundo cruzava-a diariamente, quer em diagonal para abreviar caminho, quer pelo abaulado empedramento que lhe era como um caixilho gigante. Alcantilada de sobrados, cedo ficava aquela face do largo metida em fresca umbria.
Pensativo, o Osório,
as mãos no castão da bengala, caído para o espaldar da cadeira,
contemplava.
Por entre a arborização,
as outras
faces da praça, esmaeciam ao sol. Ao pé dos troncos,
alteavam-se
os feixes do marcado de capim.
Os moleques e as crioulas
agrupavam-se em torno ao liso cacimbão de pedra lioz, no meio da área, e enchiam os potes e canecões no
chafariz da Water Company, um quiosque
de ferro,
miudinho e bem acabado. Algumas cavalgaduras cochilavam,
presas pelo cabresto aos frades de pedra, no perímetro. E mais uma
porção de
minuciosidades na harmonia do quadro, que o bom
homem soía destacar, como geralmente acontece, somente naqueles instantes de atribulação íntima, quando os nervos se tornam
aptos acidentalmente para mil variadas
sugestões.
Nessa noite queixou-se de
nevralgia. Menos verdade; queria evitar dialogações com a mulher, é o que era,
convencido de que a sua cara-metade fosse vítima de um quer que seja de
doentio na cachola, e por ser um tanto chegado a frouxidão, que outros chamavam bondade,
ele, que se tinha a si por cabeça que regula, ia no recavém como o boi cansado,
e ela no varal. Resolvido a contemporizar na batalha. O tal nobre sujeito que
Fabiana queria incrustar na família era do partido contrário e seria o que se
chama uma vileza um integro magistrado virar casaca. A filha não havia de
desposar um inimigo político, bem se vê. A velha
objetava, porém:
— E o que é que um pai não deve fazer por amor da sua filha? Você deve se passar para os conservadores!
— Por amor da sua filha, é uma
grandíssima peta. É preciso esperar a manifestação das afinidades, ver qual é o
amor que lhe vem.
— Qual afinidade, nem Mané
afinidade! De onde este homem arrancou agora este palavrão, meu Santo Deus!
Mas a ignorância alheia é útil
à gente hábil. O finório concluía: — Afinidades.., quer dizer... quer dizer que
tu deves confiar em mim; pois ainda não dei lá essas provas de mau sujeito...
No sábado seguinte foi-lhe
apresentado aquele mancebo do encontrão, que o deixara impressionado. Fabiana
é que pedia ao sobrinho que fosse lá, ele bem sabia que abaixo de Deus era ela
quem mais o prezava neste mundo. O Centu, porém, não era um rapaz influído para
certas coisas. Chegado de pouco à sua província, para convalescer de uma pneumonia,
de volta da conclusão de seus estudos, evitou sobretudo ir à casa da tia, ele
que já não tinha mãe nem pai. Fatalmente inclinado para a prima, receava que a
assoberbação de um mal de amores viesse atropelar-lhe, ou antes, cortar-lhe o
veio das suas justíssimas ambições. Deveria ser um herói para a humanidade, ou
uma vítima, assim pensava ele na sua ingenuidade acadêmica.
Queria fugir do amor.
Estava o gás aceso na sala,
quando ele entrou com Lucas Pinto, uma espécie de ave de arribação, cultor
antigo da afeição dos Góis de Oliveira. Era este Lucas um velho de boca funda,
magricela, baixinho, profuso em ademanes e rapapés, e ao subir os três degraus
da entrada ia logo exclamando:
— Boas noites, gente daqui!
Venho fazer-lhes uma agradável surpresa...
Mas encontrando a sala vazia:
— Você é parente, disse para o
oficial. Sou mais de casa do que você. Sente-se que vou ver a sua tia D.
Fabiana, o velho, a Maria das Dores, sua prima, e tudo o mais.
E sumiu-se lá para dentro. O
mancebo ficou a sós.
Acima do sofá inclinavam-se os
retratos do casal Góis de Oliveira,em grandes molduras, e as bolas de torçal
verde caíam de cada quadro,nos ângulos superiores, como duas melenas. O papel
cor-de-rosa com floreios de veludo e avivamentos doirados, na parede, ia bem
com as sensações de um amante. As bandeirolas e as portas, muito alvinhas, coma
indiferença da matéria inerte, e o botão azul dos trincos, pareciam prestes a
dar entrada a alguém, e esse alguém o
oficial temia que fosse a prima.
O assoalho ocultava-se aqui
pelo tapete, e ali aplainava-se com asua alternativa aurinegra de tábuas de
pau-cetim e de acapu. Um soprozinho de ar fazia tinirem ao de leve os pingentes
do candelabro que descia do florão do estuque. Encaixilhados em jacarandá
subiam dois espelhos rente à parede, bilateralmente à porta do corredor,
reproduzindo porções da quadra. Uma mesa octogonal aparava a luz cheia, dos
bicos de gás, no centro, e por sobre os bordados a lã, da coberta que a
forrava,
diversas preciosidades jaziam,
como fossem o álbum de retratos, uma corbelha de cartões, duas brochuras, e,
bem de frente para o oficial, que se empertigava no sofá, o retrato de Maria
das Dores, num quadrozinho de metal. O boné ele o havia posto ao pé de si; mas
começou a entender que isto era matutice. Depó-lo sobre a mesa. De pé, no meio
da sala, estava mais senhor de si, e podia passar os minutos menos tolamente,
percorrendo o álbum, folheando as brochuras, ou coisa que o valha. Estas eram
romances.
— Frivolidades,
murmurou no seu peso de ciência.
Antes de abrir o fecho do álbum pegou no quadrinho da fotografia que alevantava-se quase à beira da mesa.
Quase o leva aos lábios. A Maninha, como ele a chamava, estava ali encarando-o, com a expressão firme do desenho fotográfico; a mão profana do retratista, com a deturpação dos retoques,
não conseguira arrancar-lhe às feições o timbre francamente
simpático; dos cabelos, puxados para cima, caía
um lacinho,
à banda, da fita que os prendia; uma rosa abria-se no peito esquerdo e pelo gosto da gola do vestido calculava-se
que ela trajava à moda, sinal de
que já não trazia o casaco e a saia de ascética simplicidade detestável
das colegiais do Outeiro, e a fita azul das
Filhas de
Maria...
O primeiro encontro deles, pois
quando embarcou para
o Rio ela
"ainda não era nada", havia cerca de dous meses. Foi logo ao chegar. De carruagem ela, e ele puxando a guarda da Cadeia, no ordinário, ao berro da corneta.
Olharam-se
forte, de longe, fito.
Depois que ela voltou do Meireles, encontrou-a
na Sé. Estava Mariinha
em uma tribuna.
Tentaram-se à vontade com o demo dos olhos. Ao sair, não pôde se dominar, e foi beijar a mão da tia, — pela primeira vez desde que
chegou! Aí foi
que a matrona
instou para que aparecesse, que não fosse esquisitão como o pai, que ele precisava de distrair-se em
família, que se afastasse mesmo de rapaziadas.
Logo nessa tarde passou pela janela da prima.
Três
dias depois é que lá foi, acoroçoado pelo guenzo do Lucas.
Estava recordando esses
antecedentes,
quando o retrato, vai, e cai-lhe da mão, de repente, com uma pancadinha frouxa no mármore da mesa, amortecida pela coberta
de lã. Simultaneamente fazia-se um ruído de porta que se abre. Era Maninha que aparecia...
Aproximou-se para o cortejar...
O Centu preferia agora não
ter tido aquele ensejo de tocar a sua mão na dela... Sofria no braço uma dor física somente em lembrar-se que ia tocar naquela pilha voltaica...
A delgada mãozinha estendia-se
para ele. E quando as carnes se apertaram, o abalo foi tão grande que fremiu na
alma de ambos. Anelariam que se não desligassem nunca! Amor! Es isto? Fruíram,
naquele relâmpago, um gozo sobrenatural, sublime unificação, paladar não experimentado.
Tormentoso e grato suorzinho atraente do cóncavo das palmas, emborcadas uma sobre
a outra. O espaço entre elas, um vácuo, chupava as duas epidermes para
aproximá-las, para fundi-las, para que se ajustassem hermeticamente,
geometricamente, em delicioso arrocho. Que universo num átomo de tempo! Levar à
face, ao lábio, aos olhos, ao nariz, abafar o rosto, cada um com a mão do
outro! Ao soltarem-se, foi um alívio. A menina disse uma banalidade para
afugentar com a voz a súbita aceleração sangüínea.
Ocorreu-lhe o
incidente do retrato,
que não fazia
minuto e parecia ter sido ontem, e disse que todos achavam muito parecido.
Isto, porém, era uma frase, que
não traduzia idéia
alguma. O verdadeiro era aquelas duas criaturas ficarem mudas uma para a
outra, porque estavam
sob esses pensamentos que se não traduzem. A conversa deles foi meramente
física, um simples funcionamento dos órgãos vocais. Naquele pé, a corrente das palavras estava para
a corrente das
idéias como dois nos que rolam simultaneamente, paralelamente, as suas águas, mas um para o norte e outro para o sul. Não era fácil encher assim os minutos.
O papai não tardava, tinha ido visitar o conselheiro Sucupira, que chegara do Rio. A mamãe estava no oratório acabando uma promessa. E dizendo, ela puxava uma cadeira para
a mesa do centro, fazendo por estar muito familiarizada. As mulheres! Ele afastara-se para o sofá.
Maninha lançava um olhar para
a rua deserta. Os lampiões não seriam acesos senão ao pôr da lua, e um
nevoeiro desde pela tardinha fechava o alto firmamento. Um desejo romanesco
atormentava-a para que fosse debruçar na janela, e de lá chamasse a atenção do
moço para alguma nonada, e que este fosse a aproximar-se dela, e ambos
conversassem de seu. De feito, emoldurados pelo vão da parede, de pé,
juntinhos, e recostados, parece que o sentimento se tornaria mais franco e
seria natural, pelo pinturesco, uma efusão.
A luz do candelabro deveria estar mais
à surdina... A fina claridade do gás não frisava com a nublada sensação que eles sofriam.
E a menina, com o cotovelo à beira da mesa, recostada na mão a face direita, como alheada. O mancebo poisava-lhe no todo o seu olhar de sol. Coitados! Separados, tinham um
livro inteiro a dizer-se; aproximados,
o anjo com a espada
de fogo, fria na sua incandescência
cruel, cortava-lhes não a volta, mas a entrada para o paraíso entre real e ideal dos assuntos de amor.
De repente a donzela feriu o silêncio com
um estouvamento
de ave:
— É exato que tem gostado
muito da minha terra?
— Da nossa,
minha prima...
Ela riu do timbre com que ele
respondeu.
— E a que propósito vem isso?
prosseguiu o oficial depois de uma demora. Sempre dei provas de querer bem à
província!
Ela não soube o que replicar.
— Disseram-me que ia para uma
comissão do Alto Amazonas... titubeou.
— Pode ser, poder ser, verdade
é que me empenhei...
— Empenhou-se?
E calaram-se.
— A vida é esta, minha prima. Vou,
irei, Deus
sabe como.
— Os homens deviam ser mais companheiros das mulheres, isto sim.
— Em que sentido?
— Com elas em tudo, no repouso ou no perigo.
— Elas não resistiriam, sorriu.
A menina arrepiou carreira no assunto, porque receou denunciar-se mais, com a exaltação do momento. Aquelas palavras seriam sementes bastantes
para plantar no cérebro
de Centu
mais um pezinho de cogitações. Estava entrançado o fio daquela inclinação recíproca. Ambos verificaram que se queriam
por um ímpeto orgânico. Tiveram por felicíssimos aqueles instantes, bem pode que os pode ser os melhores
da sua
vida.
Mudando prodigiosamente de tom, a moça indicou as duas brochuras que jaziam
próximas do retrato, e com um disfarce admirável pediu friamente ao
oficial que
desse a sua opinião a respeito.
Ele não tinha ouvido ainda tanta riqueza de expressão, nem presenciado tanta graça, nem tamanho domínio sobre o seu ser insubmisso.
E folheando os livros,
aguardava a entrada da tia. A menina fez-se
toda silêncio, a pretexto de o deixar examinar o livro. Espiava profundamente para o mancebo. A respiração tornava-se intensa.
Como fugindo não sei a que, ela
precipitou-se para a cadeira de balanço.
Horrível para ele,
horrivelmente atormentadores aqueles dois pés
que apareciam agora na fimbria da saia, ora tocando no tapete, ora suspensos
no ar, metidos num sapatinho de fivelas e em
meias tão macias como a cútis daquele
pescoço de
rola. Os babados da saia
calam capitosamente,
pesadamente, apenas arrepelando-se à leve agitação do ar. E toda a vez que o movimento
era ascendente, os pés estiravam-se como a ave morta; e descendente, vinham trazendo adiante o coração do moço,
de rojão, e com a pontinha do sapato
esmagavam-no sobre o tapete.
A barulhar com a sua prodigiosidade de língua, veio o Lucas, e espantou as duas pombinhas do amor que espiritualmente
abicaravam-se
ali.
As brochuras eram O Guarani, de José de Alencar, e O Seminarista, de Bernardo Guimarães.
O engenheiro, positivamente,
não podia deitar opiniões, devido à sua ignorância e animadversão por isso de
letras e artes. O nome de Alencar lhe soava mal. Havia a fama deste eminente
escritor em conta de cavilosidades dos brasileiros. Diga-se o certo: o Centu
falou menos verdade quando assegurou à Das Dores que amava o Ceará. Como
escrupuloso, todavia, em questões intelectuais, e não querendo passar pela
vergonha de dizer que ainda não lera aqueles livros, pronunciou um juízo, fiado
na reputação popular e universal dos dous escritores brasileiros. E para se
tornar agradável à prima:
— Eu gosto tanto dessas obras
que desejo lé-Ias de novo.
— Leve-as!
— Ah! meu caro amigo — interrompeu o abundante Lucas, vendo
o que se passava — você
cuidava que
isto aqui era o Rio de Janeiro? Há de topar
serviço! Isto está um país adiantadíssimo!... Além do calçamento, do encanamento
de água, da iluminação a gás, — contava nos dedos — do palácio da Assembléia, do novo
sistema de
carroças, das casas pela marca da Câmara, temos
pianos em todas as salas, e a instrução do belo sexo! Você pega uma dessas
flores do
paraíso terrestre, principalmente se tiver sido educada pelas Irmãs de Caridade,
corta a língua que nem maracanã, canta que nem sabiá,
lê como um doutor, e sabe que nem vigário! Que pensa? — findava ele, de mãos nos quadris, refratário ao arzinho de riso do Centu e a franca
risada da
menina.
Foram interrompidos por uma voz da porta da rua:
— Ó seu Lucas, já você
pega a dizer as suas barbaridades!
— vinha dizendo o desembargador, que ao entrar na sala, onde não esperava pessoa estranha, estacou diante do oficial.
— Este é o Centu, papai, o primo, do Rio...
— Ah! é este? Com efeito,
desculpe não reconhecê-lo "a prima
facíe". Mudou tanto!... Vi-o pequenito, como este mocho do piano. E
abraçaram-se.
— Não calcula o prazer que
sinto! E a Fabiana, por que não vem para cá?
— Já vou!
— Ela está acabando uma promessa, explicou a menina.
— Esta promessa, esta promessa!
— rosnou o Osório, em aparte, mordendo os beiços.
Agora sim, o primo estava de dentro. Expandiu-se com o velho, que era homem lido. Casaram
as simpatias. Fabiana veio com a sua volumosa corporatura de
barco ronceiro. Trazia vestido com
decote, à
antiga, pulseiras, colares e transelins de um ouro brutalmente precioso e trabalhado, e um grande e cravejado pente, no cocó
grisalho, que parecia um astro nascendo
detrás da
cabeça, dentre as névoas do cabelo
idoso. O rosto, ainda liso. A dentadura imprimia na voz um sotaque esquisito, como se tivesse uma coisa no céu da boca.
Excelentes maneiras, linguagem muitíssimo pinturesca e errada, onde cada
palavra ela soltava como se
estivera saboreando frutas.
Uns quadris enormes, e uma barriga idem, que pareciam ser a preocupação das
funções nutritivas. O olhar não era bambo; firme e doce. A gesticulação, parca.
No meio da conversa, como
era hábito seu adquirido, trazia sempre o Visconde
de São Galo. Conhecia-o? O chefe da nobreza da província. Não? Digno dos nossos antepasados! O desembargador ou concordava, ou não tugia. Mas o engenheiro
é que ficou embatucado.
Senhor, que nobreza
era aquela no Ceará moleque?! Enfim, como não conhecia aquilo bem...
O velho obrigou a filha a ir para o piano, o que foi para esta uma doce violência. Estava desafinado, pretextava a menina. E depois,
era um piano
tão ruim...
— Prima, não faz mal. Faça
justiça em me ter por discreto; e sobretudo.., ora, eu não sei música...
deixe-se de cerimônias... Mariinha foi como que arrastada.
Aprumada no tamborete,
a cintura da donzela
vinculava-se nitidamente disfarçando para o suave piramidal do tronco
jungido no
espartilho; as duas tranças negras, desprendendo-se pelo piloso e pelo nu do cangote, escorregavam pelo dorso e beijavam finalmente o alcantil das ancas luxuosas. Cantou:
Quis embalde varrer-te
da memória
em voz pouco forte, ressoante,
e timbrada. Nem uma vez a altura da nota foi mais do que a do sentimento.
Quando dizia:
E teu nome arrancar do
coração
acolchoava o som, como se
tapasse as válvulas da alma. Arrancar do coração o teu nome! Nem por morte! E
se às vezes gemia, ou se cantava, não é certo.
As nove horas o Centu quis
retirar-se, porém o tio afim obrigou-o a demorar dois minutos para o chá. O
Lucas dispensava teimosia semeIhante, mesmo porque não se despedia sem irem
para a mesa.
O engenheiro, em alívio da forte carga de sensações que pejava-Ihe o organismo,
dirigira-se
à prima, efusivamente. Que o piano era excelente sob as suas mãos, que não ouvira
ainda magias assim, que até aquele momento desconhecia
que o som tivesse tamanhos poderes...
— Conforme o instrumento, explicava o metediço do Lucas, e o tocador.
O estudioso mancebo começava, conquanto longinquamente,
a acreditar na Arte,
e na sua necessidade. Imaginava agora o homem uma ave — a que a ciência era asas, e a arte o meio aéreo.
Dormiu mal
naquela noite. A Mariinha lhe atravessava os sonhos pertinazmente. E de manhã ele sentia que ela, como um espírito tangível, andava diante dele,
tocava nele, e os seus cabelos passavam-lhe em
cócegas pelo rosto, e as suas mãos o acarinhavam, e os seus
olhos entravam pelos dele como duas abelhas.
Chovia, quando entrou
Não tornou no dia seguinte
à casa da
tia; ao contrário, ia raramente, o que não obstava que visse muito
a
Mariinha. O que receava, como homem não feito ao trato diário com o sexo oposto, era estar juntinho dela,
principalmente a sós, porque julgava então
apoucar-se,
parecer seco, sem espírito,
desmantelado, e feio. Vê-la, bastava. Na igreja, no teatro,
nas reuniões, na janela. Quando ia lá, trocavam flores, não muito às claras. Os pais tinham os olhos
vendados; e depois, havia a confiança do parentesco.
Mãe Zefa, uma preta
alforriada que vivia do seu tabuleiro de arroz à noite, e de hortaliças pela manhã,
servia-lhes para certas embaixadas, e contava a cada
um, coisas do outro. Entrava sem cerimônia na república, chalaçando com os companheiros de Centu que lhe batiam nas nádegas e faziam-na dizer palavrões, e semelhantemente, furava pela residência do desembargador até a cozinha, onde prosava
com os
escravos, e até às camarinhas, onde recebia recados de Siá Dona Fabiana.
Maria das Dores tinha
notícia dos
lugares por onde o Centu andava, e sabia
quando estava de serviço, a que horas tomava banho e lia os jornais e estudava. De uma às duas da tarde era
certo ele passar do quartel fazendo o caminho mais longe; e ela, se acontecia não aparecer, havia
motivo; pelo menos, via-o pela rótula. Deu para trabalhar na sala todos
os dias àquela hora. Era morta e viva ali.
Uma tarde por outra, o oficial tomava assento na roda da botica. Assuntos políticos ele mal entendia; o boticário,
todavia, o desembargador e uns dois mais, elevavam, por amor dele, a conversação para questões
de ciência, e sobretudo
de filosofia positiva. O desembargador já não prelecionava tanto, e parecia ter sempre
agora dentro de si alguma
coisa a digerir, meio concentrado, como se todos os dias fossem
véspera de
um grande acontecimento que o envolvesse. O Centu fazia
o seu gamão passavelmente. la-se habituando ao arzinho da farmácia,
cujo cheiro de drogas a princípio o enjoou;
afez-se àquelas vidraças encaixilhadas em madeira preta por
trás das quais perfilava-se a frascaria nitidamente rotulada; acostumou-se a ver as cobras afogadas em álcool, que antes lhe metiam um certo frio álgido pela vista; e a pequena
escuridade do interior, em complemento ao
jogo de
sol e de ensombrações da praça, descansava-lhe a visão.
Além da
grade, no meio do xadrez de pedras
alvas e
negras que eram o ladrilho, assentava
um ligeiro armário cujo mostrador expunha preparados estrangeiros encapotados
em lindo papel pomposamente impresso; quando se abria este móvel, espalhava-se
um capitoso aroma de toucador e de especiarias. Nestas ocasiões o desembargador
levantava a questão de ser necessário ou não o luxo nos remédios. O boticário
acabava a contenda por dizer-lhe uma aspereza. O oficial achava que sim, que
era preciso iludir os delicados sentidos de uma moça, disfarçar a brutalidade
do medicamento puro, enganar, como se faz aos bebês. E então o boticário,
curvado no seu paletó de seda cor de palha, continuava a triturar, no
almofariz, e batendo com o pé em sinal de apoio, dizia encolhendo os ombros:
— A mulher é criança toda a
vida, senhor desembargador.
E depois de uma pausa triunfante, levando a palavra com a espátula às
ventas
dos circunstantes:
— Até nas formas, até
nas formas!
que não se acentuam como as do homem!
— Teorias, dizia o magistrado
recuando. Palavreado.
Era este o meio óbvio de
Osório se descartar.
— São teorias, são modos de ver, são opiniões; o mundo para nós não é o que é, é o que nós vemos e o que entendemos
ser.
Entretanto essas boas cenas eram raras hoje em dia, depois da tal
história do Visconde. Não sei que frieza ia pelo desembargador. O boticário, que o prezava imenso, proferia encolhendo os ombros:
— Não sei que diabo de burrice
lhe pegou agora.
Foram escasseando, com efeito, na botica liberal os passeios do Desembargador
Osório de
Góis. Ora, isto era justamente quando o Centu acabava de ter entrada
em tão escolhido círculo. Seria que o velho desconfiasse da coisa? Pegaria o magistrado algum indício veemente do crime d'amor por parte de alguns dos co-réus? E começava
o coitado de notar
diversas passagens. Em tal dia deu-se isto
assim, assim, e ele fez isto, quando devia fazer aquilo. Deixou de cumprimentá-lo tantas vezes, não respondeu a tantas perguntas, falou áspero com a filha em sua presença...
Não havia dúvida! E oprimido,
cresceu mais o seu amor.
Voltava de um
baile no Clube, onde valsou
com a
prima. Dera-lhe a mão para subir ao
carro, que
viu desaparecer no escuro da primeira
esquina como um pirilampo gigantesco. Ainda esteve a bebericar com uma troça, por meia hora, os outros gargalhando da sua taciturnidade de coração ferido, e ele sem fazer conta. Pretextou qualquer coisa, mordeu a ponta de um charuto, e saiu,
com um forçado ar de riso.
Seguia pelas calçadas
desertas. A sua sombra estampava-se nítida na parede,
ia crescendo,
duplicava, obscurecia, apagava-se na eqüidistância
dos lampiões, renascia tênue,
desdobrando, pintava-se outra vez ao vivo, e tornava a repetir
o mesmo, por aquela atonia das desoras,rua acima, onde só as suas passadas feriam o soturno da noite.
Caminhava
pelo brando, mão no bolso, tanto pela fadiga,
como pela
dormência do pensamento. la feliz,
la de todo entregue ao seu maior inimigo, o amor; porém o amor
imediato, o amor de rabo-de-saia, que estiola como a sombra e descolora
como a luz.
Na entrada da Feira Nova sai-lhe ao encontro um vulto enfronhado em véstia de vaqueiro. Trazia esporas de grande roseta e um par de peias como rebenque. O largo chapéu de couro
cobria-o pacatamente como um sombreiro de aldeão que tange
o seu burreco; as alpercatas
batiam-lhe contra a sola dos pés; o gibão vinha
apenas abotoado em cima, e a camisa oculta
pelo guarda-peito. Saía-lhe do canto da boca um cachimbo de sertanejo. Pronúncia um tanto arrastada e aspirada por amor desse corpo estranho. Corta o caminho ao mancebo e estirando a mão,
como quem vai dar um tiro de revólver, tira o chapéu:
— Deus dê boas noites — e
entrega uma carta.
Palavra em como o oficial estivera pronto
a fazer uma proeza. E ainda atarantado, rompia o envoltório, sempre com o rabo do olho no desconhecido, cujos cabelos cacheados se mostravam ao gás, e cujo olhar ingênuo punha-se curiosamente no moço.
O Centu leu. E dobrando o
papel:
— Mas então há rolo?
— Adonde? Em Butrité? Inhô
sim. Está tudo muito açulerado. Nestas inleições sai macaco chumbado...
— Diga-lhe que sim, que eu
vou.
— Seu Visconde me dixe que eu
dixesse que Vossa Senhoria rasgasse a carta.
— Pronto.
E voaram os pedacinhos da
breve epístola, à luz do combustor, como um enxame de mariposas. O mensageiro
repetiu:
— Deus dé boas noites, e rumou
para a casa do desembargador, estalando as suas alpercatas no silêncio das
ruas.
— Magnífico! exclamava consigo
o tenente. Esplêndido! Enorme! Absolutamente ele não esperava por uma daquelas.
O pai da sua Maninha
empenhar-se
para que ele fosse o comandante do destacamento que ia para as eleições
de
Baturité, a pedido do Visconde de São Galo!
Dizia a carta:
"Os governistas, por não
terem mais no batalhão, senão oficiais desafetos, indicaram o seu nome ao
Presidente, porque ao menos você é de todo alheio às intrigas locais.
Disse-nos o major fiscal que não lhe cabe destacamento e que você é adido, e
que é de artilharia, e que poderia dar parte de doente, pois que realmente
está. Não faça isto. Peço-lhe encarecidamente, como amigo e como parente, que
vá. O Visconde, que encontrei em nossa casa, agora mesmo ao voltar do baile,
com alguns amigos, também lhe pede por minha intercessão.”
"Garanto-lhe, meu caro
doutor, que não se há de arrepender."
O palavreado ia mais adiante.
Era exato que o Visconde,
à meia-noite, fora com
alguns amigos, bater à porta do desembargador,
e que a Fabiana, que estava
desperta, fé-los entrar, oferecendo-lhes do bom café, e dos bons alcoólicos
na licoreira,
e esteve a fazer-lhe sala, até
virem do Clube, pai e filha.
Como a Fabiana estava
orgulhosa por ter alcançado a sua promessa! Agora ia
cumpri-la. Seis libras de velas
à Senhora de Lourdes.
Nem antes nem depois
de chegar o dono da casa, as portas
estavam abertas. Cerradas, como se houvera alguém adoecido. Era aquilo a graça da maçonaria
política, no que a Fabiana sentia um prazer de raça, inato, indígena, dos seus sertões. Quando saiu o portador com a carta para o sobrinho, foi ela
quem o trouxe à porta da rua, e quem segredou que o Visconde
mandava que
rasgasse-a depois de ler.
Mariinha fingia-se
despercebida. Quando, porém, de lá do quarto ouviu pronunciar o nome do primo, estremeceu. Parte? Vai
fazer eleições?... O seu ímpeto era largar-se na carreira e atirar-se aos braços do pai
implorando que por vida de seus olhos não deixasse o Centu destacar, que poderia
morrer de
facadas, morrer a cacete, ser varado por um tiro de bacamarte! Pelo amor de Deus, papai! pensava ela no seu coração, de pé, no meio do quarto, como uma Senhora Das Dores, as mãos postas, aflitivamente,
o seu lindíssimo olhar para o teto. Ajoelhou, rezou a São Vicente de
Paulo, o santo velhinho do Colégio, todo caridade e ternura. O coração batia,
vascolejava desapiedadamente. Prostrava-se
diante do
retrato do São Vicente, e sua fronte abaixava-se tão profundamente para o chão, que o pescoço,
caídos os
cabelos para os lados, evidenciava-se, como se fora ser degolada, esperando o corte certeiro do alfanje. E seria
melhor. Decapitá-la,
e suspender pelos cabelos a sua cabeça morta, porque imaginava também o Centu banhado em sangue e espezinhado pelo cabroeiro. Ah! mas se enganavam! Ele podia morrer, mas depois que matassem
mais de cem! E via-o de espada
em punho, entre o fumo da pólvora, ao fervilhar dos cacetes e das parnaíbas... Eram
talhadas de cego. Mas... escuta um tiro, foi bruto, um clarão que ofuscou o sol, a boca
do bacamarte era como um sino, e tinha-o um cabra de topete infernal... As balas caíram sobre o valente
guerreiro, abriu-se-lhe no peito uma enorme rosa de sangue...
Antônia entrou sorrindo, no quarto, com muitas momices, seca por achar companhia. Uma sagita, como lhe gritava a madrinha Fabiana, que passava o dia a ralhar
com ela por mor dos trejeitos, correrias e cavilações.
— Que é isso, Bem Bem?
fez ela correndo a confundir-se com a outra. 'Stá rezando?
'stá chorando? 'stará doente?
A outra caiu-lhe profusamente no seio, ela sentada na esteira. Soluçava sentida
como a criança que desafoga
em sua mãe um choro longamente
retido.
— Bem Bem, fale!
— Não posso, Tonha, não
posso... murmurava a Das Dores esmorecidamente, como
Cristo que
diz: Pai, se é possível, retirai este cálice!
Maria se entregava completamente àquela descarga de humores. As idéias
ruins, os
desesperos, os sentimentos venenosos, saíram, entretanto, pela mor parte, com as lágrimas profusas, como arrasta aos cardumes de peixe o grosso da água de um açude que arrombou. O pior é que a Antônia entrou a fazer duo. Choravam ambas e assoavam à surdina, para que não as ouvisse a velha, que então
seria um Deus nos acuda.
— Eu não disse? Tonha, não
disse?!
— O quê? Ele vai embarcar?
— Antes fosse! Vão mandá-lo
para as eleições.
— Ora é isso? Não é nada. O padrinho inda
hoje dizia que nessas coisas só morre quem é pequeno.
— Mas ele não é alto! abugalhou a ingenuidade da Mariinha, na sua cegueira de amor.
— Não é de alto nem
baixo! Bem, Bem. Em barulho só morre é gente pobre, os cabras, a gente de pé-no-chão! É isto.
— E por quê?
— Eu sei lá! Quem estava dizendo era o seu pai mesmo, à madrinha. Pergunte a eles.
A vela, no castiçal de latão,
assente no
mármore do toucador, duplicava-se ao espelho, semelhante a umas lágrimas.
O pavio estava mourrão, e a pouca luz fazia errarem na camarinha
umas idéias tristes. Amônia ergueu-se e espevitou, sacudindo ao chão a pontinha do pavio
esbraseado preso à tesoura; e a Bem Bem, como se chamava adoravelmente em casa a Maria das Dores, correu a esmagar com o pé a niquinha de fogo caída na palha
da esteira, cujas quadrículas de encarnado,
azul e amarelo, pintavam grande parte do chão.
Antônia invejava o seu
coração não tê-la obrigado ainda a sofrimentos daquela ordem. Com o seu belo donaire de rapariga loira, com uns olhos verdes e uns lábios
de carne viva, era toda um desejo. Quase não acreditava que aquilo da Mariinha fosse deveras! Mas a curiosidade a fazia cada vez mais confidenciosa para com a sua morena
amiga.
Estava de luto, a madrasta era
falecida, no Outeiro, onde habitava mísero casebre. la-lhe bem lindo o vestido
preto, que lhe dava uma aparência mais adelgaçada, punha-lhe mais oval o
rosto, tornava-a mais séria, acentuava as linhas, e gerava uns fluidos
simpáticos. O ouro dos cabelos ondeava no negrume do dorso, e se usasse
corpinho decotado, o colo e espádua desbrochariam como pétalas de magnólia, ou
como nívea flor do cardeiro no denso da noite. Ansias tinha ela disto! Mas a
condição inferior, de filha de um pobre cego, mantinha ainda sua alma deserta
das ambições a que lhe dava direito a sua carne. Um alçapão sem engodo e sem
chama. Queriam-se, ela e Maria das Dores. Tinha uns arrancos de estupidez,
denominado — mau gênio —, que desgostava a amiga; verdadeiras crises de
danação, em que maldizia dos padrinhos, dos pais e de tudo que lhe era afeto.
Uma idéia vaga assaltava-lhe às vezes, de obter um namorado, ver diante de si
um homem, um desses leões cujo corpo parece pedra, derretido ante ela como no
sol um prato de banha. Achava certo quezinho
no Centu, e gostava de ter a outra pelo beiço, de confidenciar com ela. Como
certas pessoas que se fossem milionárias comprariam casas para ter o prazer
selvagem de incendiá-las, num espetáculo neroniano, assim, gozava imensamente,
como expectadora daquele inextinguível incêndio de amor da Maria das Dores.
Ambas sentadas na rede, mãos sobre os ombros,
balançavam de manso, com o ouvido atento aos ruídos da sala. Conversavam homens lá fora: a fala, elas desconheciam. Sabiam que estava ali o Afrodísio, Visconde de São Galo, com outras personagens.
Maria esperava que o Centu viesse
logo ao chamado da carta.
Uma idéia! teve a capeta da
Antônia: passarem para o outro quarto, e treparem na porta, espiar pelas
bandeirolas.
— Bota-se o pé nas
costas da
cama, e segura-se no armador. Maria vacilou.
Que o Centu estivesse aí, isso sim!
Quem sabe se ele
vinha?...
Era tão esquisito e incompreensível!
Eram tão imprevistos os seus
atos, que não davam ensejo a que se calculasse havia de proceder assim ou
assado.
A Tonha instava:
— Não seja mole, Bem Bem! Vamos embora. Parece que tem
uma porção de moços lá.
— Que importam agora os moços,
mulher?
— Pode vir o seu!
— Ora...
O corpo lhe pedia, à morena apaixonada, quietação, como exaurido, como
surrado. Vinha-lhe uma prostração, e ceder a este convite da natureza,
e ao sono, para uma
cabeça repleta de imaginárias, era viver. Dê-se que o Centu viesse; inda bem, um moço como ele não havia de aprovar que, àquela
hora, uma donzela estivesse trepada pelas portas a espiar os homens na sala. Aprova a minha conduta,
comungou a Das Dores consigo. E decidiu:
— Não vou, Tonha. Vai
tu só.
— Pois fique-se...
Largou-se a estabanada, num
rodopio de saias.
O corredor, apenas alumiado por um bico de gás, e a grade do vestíbulo, meio aberta, deixavam passar a mulata
Ângela para
a sala de visitas, com uma bandeja onde reluziam facetas de copos e o bojo de garrafas. Antônia pegou-a, deu-lhe um beliscão, e segredou-lhe ao ouvido não sei o quê. A mulatinha deu
um ai surdo, a rir. Da sala de visitas, o gás vinha abrir no chão do vestíbulo um
pano de claridade, onde Ângela
pisou; e viu-se-lhe a estatura
frescal, vestida de americano, com um avental
preto que
prendia-se nas costas; e a carapinha
mal penteada; e a tez,
cor de chocolate esmaecido com uma pontinha de leite.
Antônia escorregou para o quarto dos padrinhos; uma peça folgada, cheia daquele ressonar de carnes já sem aroma e sem
brilho. O
guarda-roupa alteava-se de um lado, e de outro
avultava a cama do casal, aberta ao ar, sem
cortinados, com os cobertores estendidinhos e com um montão de travesseiros. A rapariga estribou na cabeceira da cama, de madeira
enflorada, alta cerca de um metro, e segurando a corda que pendia do armador, onde enfiava
o punho de uma rede,
içou-se até botar o rosto na altura dos entalhes
da
bandeirola.
Aconteceu bater com um joelho na porta, o que a fez estática um momento, espreitando se ouviram a pancada;
precisou morder o vestido para não rir, que aquilo
achava graça
Da sala ninguém via a espiona.
À mesa do centro, com
umas garrafas de cerveja e copos cheios, sentavam-se o Lucas, que se julgava a si mesmo
de um tino político admirável; o Capitão Desidério, da Guarda Nacional, chefe de uma
localidade próxima, que viria votar na Sé à frente de um enorme cabroeiro; e o João Batista, caixeiro de escritório
da casa
Afrodísio Pimenta & Cia., a escrever cartas, por ordem do patrão — de combinata com o desembargador. Estes dois, no sofá, serviam-se do vinho
do Porto
que Angela trazia na bandeja de charão,
discutindo assuntos de que Antônia não
entendia pitada.
Lá num ponto, o desembargador
estava dizendo:
— Mas é preciso dinheiro...
— Não seja por isso, obtemperou o Visconde. A fisionomia
serena deste, com um grande bigode, e o seu corpo fornido e alto, a pele trigueira semelhavam-no a um árabe, a um turco que Antônia vira
vendendo miçangas pela rua. Disse
aquele — não seja por isto — e ergueu-se de mão no bolso. O Lucas olhava-o como
entendido, com as pupilas confundidas no brilho dos óculos.
Faltavam ali muitas pessoas do estado maior do generalíssimo.
O advogado Cunegundes, eloqüente
e
coraçudo, redator d'A Oportunidade, rábula; vários negociantes, coronéis e comendadores; o cura da Sé; o vigário-geral; uns professores
do Liceu; uns juízes
de diversas varas; uns chefes
de repartição, etc. Donde
se vê, pelo número e qualidade, que a honra
política do Dr. Osório estava da cor das tábuas do teto,
alva.
Continuava, como toda a gente, a militar nas fileiras liberais; adido, porém, aos conservadores; que
era preferível
pedir pão aos inimigos a dar o beijo de paz nos irmãos. Neste quanto, conversassem com a
Fabiana, que
aquilo sim, era
pessoa de opinião. Quando esta senhora soltava de viés a palavra canalha, era com a limpeza de um asno que sacode um coice para
a banda. A gente deve
procurar sempre as pessoas de representação.
O conciliábulo não foi muito longe. Era
questão de
arranjar o oficial para Baturité, que iria ao mesmo tempo revestido
das funções de delegado policial.
Desde que voltou o portador que fora ao
Centu, era meio caminho andado. O Lucas, pela manhãzinha, daria destino ao maço de missivas para as cabalas
matutas, fora as que iriam pelo Capitão Desidério.
Nada mais havendo a tratar, retiraram-se todos. A Fabiana,
que segundo
as praxes da sua educação, fora para dentro
uma vez que
os homens iam discutir os seus negócios, que ao menos em aparência não têm que ver com mulheres, compareceu à saída do Visconde,
prazenteira, apresentada, ancha.
Sua Excelência continuasse
a visitar aquela
pobre choupana, que era pobre, mas o coração muito. Se quisesse vir um dia
passar mal,
assim... almoçar, ou jantar...
— Pobre sou eu, minha senhora,
respondia o homem, sem saber o que pronunciar sobre o convite que a matrona lhe
atirava com aquele garbo e prosápia dos Castro da Vargem da Onça.
O desembargador nisto era zero. O principiozinho de admiração que lhe ia nascendo pela arguta inteligência do titular, acanhava-o;
e tinha que
não saberia haver-se
em civilidades de mesa, com um homem viajado, e de hábitos,
com devia ser aquele. Todavia, fez coro com a mulher.
— Hei de aparecer, com muito gosto todas as vezes que puder, dizia o titular,
apertando a mão em despedida.
E até dobrarem eles na
esquina, o casal Góis ficou na porta.
Mas diz que amor é uma coisa que faz
uma pessoa pensar constantemente
noutra. Ora, só uma coisa havia que fizesse o Visconde matutar — o seu negócio. Assim, nem por longe
percebia o fluido que o casal Góis lhe projetava.
Introduzido naquela casa, todas as vezes que a Antônia vinha à sua presença,
achava-se ele confortado, feliz, pelo que, entrou a desconfiar
que viria a querê-la, e muito.
Dado a mulheres, isso
o era. Segredos virginais não lhe eram novidade. Bateu mão à prática
no ofício de lidar
com o
animal do outro sexo. Avançadas e retiradas, guerrilha, em vez de batalha campal. Certamente, receava cair nalguma
asneira romantica.
Em vez de pensar, conseguintemente,
Quanto ao seu negócio, o Visconde voltava-se novamente para a luta
política.
Como dizia o Osório, convencendo-se a
si mesmo que
deveria politicar em regra, a política
havia rendido muito ao Visconde. Tornara-o nobre.
Se ele não se tivesse
encarapitado
no trono de uma facção, não teria passado de um burguês apenas rico e obscuro. Assim, a tudo dominava. Agora,
porém, que
já era conhecido na
Corte pelos a pedidos do Jornal do Comércio,
queria uma luta clara, de idéias, bonita, que satisfizesse a sua
momentânea e intermitente aspiração para
o bem. Entretanto,
meditava ainda o Osório, arrastavam o homem a combater o outro ramo do partido, para o que, era preciso fazer uma liga
incongruente com uma facção
contrária!!! Ingratos cearenses, não deixarem o Afrodísio subir a grande homem!
— Eu, no seu caso, disse-lhe uma vez o desembargador, fazia-me
chefe republicano, e reagia contra o Rio de Janeiro.
— Bem sei, respondeu o Visconde na sua sabedoria, mas a gente
é como o queijo, cuja figura
depende é da
fôrma. Se
esta é quadrada, por mais que o queijo
queira, não ficará redondo.
— Mas, Vossa Excelência, isto é, seu espírito, deveria buscar os horizontes largos, uma
coisa que
frizasse com o amplo fôlego das suas aspirações!
Uma coisa era ver o Osório dantes, e outra vê-lo agora. O que olhos
não vêem, o coração não sente. Longe do magnata, era como os liberais republicanizados quando os conservadores estão no poder. Uma vez que Sua Excelência dignou-se a respirar o mesmo
ar que ele, servir-se da sua cerveja
e do seu café, o Osório
sentiu-se
mais alto. O homem, também, não era
tão ruim. Que força de argúcia, de inteligência, que senso admirável! E o mundo
é esse, minha gente. Deste pão
não comerei, nem desta água beberei? Pudera!
E viu logo todas as
possibilidades de chegar a Senador do Império.
Naquela noite a velhusca
Senhora Góis de Oliveira voltou aos bons tempos em que a Maninha, em embrião,
crepusculava para o dia da vida. A camarinha aromatizou-se de flores de
laranjeira. Aquela cama, onde pousara pouco antes o pé sensual da Antônia que
deixara ali como que o rastro dos seus doidos pensamentos, rejuvenescia, como
se a loira tivera soltado um demônio dos muitos que turbilhonavam nas suas
saias. Não abriu-se o oratório, fizeram as orações da noite à beira do leito,
num pelo-sinal garatujado e numas ave-marias aferventadas. Contentaram-se com a
luz mortiça da lamparina, que através do copo espargia na toalha um círculo cor
de rosa. A Fabiana deitou-se primeiro. E entrou numa confusão de amor e de
sonhos. Transportava-se aos seus dias do sertão. A modo que ouvia o chorar do
carro ao longe, a vida dos currais, e o sussuro da mata próxima. Lembrava-se
do formoso touro, orgulhoso e bravo, a rondar e a gemer; e da fresca enfieira
dos sapos na lagoa, a coaxar; e dos beija-flores, velozes, com o biquito fino e
as asas tremendo espasmodicamente no ósculo das corolas, despedindo ao sol
faíscas da sua penugem catita, incrustação de variadíssimas pedras preciosas
geradàs no ninho suspenso das árvores. Enxergava o lume da água do açude, por
onde o vento se esfregava encrespando a esteira líquida, e donde saíam as
flechas dos juncos, e, como caudas de castor, as folhas da bananeira brava; as
associações do pacaviral; as jaçanãs, galinhas-d'água, marrecas, pacaparas, e
potriões; nos cercados, os gaviões a pegar no pé o uruá; o pica-peixe caindo
como seta; e o sol devassando a paisagem, enchendo o azul e rastejando pelo
campo, a clarear a epiderme nua das raparigas que se atiravam ao banho sem as
cavilações do pejo. Entre as folhagens da gigântea gameleira ribeirinha saltava
agachado, de vestimenta vermelha e azul, o pica-pau atrevido; e o férreo bico
dos bem-te-vis acossava os negros urubus nos ares. A areia,aqui branca e ali
corada dos caminhos ia; e os cargueiros sumiam-se nas descidas e nas voltas;
galopavam os magotes de éguas, e os poldros de cauda alevantada; as vacas
pastavam lentamente. O sol adormentava as pupilas, e pesavam as sobrancelhas.
As folhas tenras pendiam, à sesta.
Acontecia sempre, à Fabiana,
nos momentos felizes, sentir uma forte ressurreição dos seus dias de moça, e ao
Osório uma certa fixidez pensativa no olhar. Para Fabiana o real era o passado,
que deveria reconstruir-se; para o marido o amanhã. Foram encerradas as
discussões acerca do casamento da Maria das Dores. Estavam de relações travadas
com o titular, e agora iam de vento
A habitação do casal Góis
mudou, como o ar quando o inverno fecha. Rebenta a babugem, o grão de areia
sente a pressão da água e da raiz, o pêlo do gado aveluda-se, as borboletas
ressuscitam, os anfíbios se desenterram; passou a grande síncope da seca, a
estiação da natureza.
É verdade que o desembargador continuava a pôr-se de pé às cinco e meia, vestir a calça, às vezes sem botar de todo a camisa para dentro, e em seguida ir para
o gabinete ler os jornais que achava metidos pela
rótula. Era entretanto nova a impressão que lhe
fazia agora
a leitura. Gostava de A Oportunidade, cujo tino, que dantes ele
chamava estradeirice,
produzia-lhe
prazeres não contados, imprevistos, de jogador pixote que aperua uma partida de mestres.
Daí, Angela trazia-lhe o café, ele virava a xícara,
devagarzinho,
fungava uma
pitada, e ia estudar o seu pouco. Banhava o rosto, ou banhava-se todo, perto do almoço. A amofinação dos trabalhos do cargo era para as onze, ou para a noite. As tardes continuavam
para a prosa.
Tinha-se reformado um
bocadinho o Passeio Público, senão criado, porque dantes ninguém lá ia. A
sua aversão pela
populaça crescia, à medida que a tendência democrática dos
cearenses crescia
também. Insulava-se num grupo de estudiosos, certo nos bancos
do terraço de cima, sob a esgalhada em dossel dos
castanheiros de
grandes folhas
verdes e coralinas; todos como ele, sentindo esmorecer em si o caráter político.
Com a mulher, ainda
rezava, quando não podia pretextar sono. Dizia-se católico, porém os outros o tinham
por livre-pensador.
A Fabiana ficou muito maçada porque o sobrinho não veio tomar-lhe a benção antes de partir para o Baturité. Perguntou ao marido a razão, este respondeu
que, naturalmente, a pressa da viagem. Maria das
Dores, porém, não admitia isto. Sentiu-se muito, mas não deu mostras. O
que pareceu é
que Centu estava
esfriando. Já havia deixado de passar de tarde, a horas certas. Ora, ela não fizera coisa alguma que motivasse esse desprezo. Mãe Zefa,
pelo seu lado,
jurava que o rapaz não tinha namoros por aí. Mas a menina duvidava ainda, afiançando que onde quer que fosse existia alguma tipa que o estava a seduzir. Tinha raiva dele,
muita, e desejava a morte a si. E o espírito feminino, nessa angústia, comprimido, elevava-se a um ponto sublime,
onde não alcança
coração de homem; fazia consigo a jura de amor eterno apesar de tudo. Com esta deliberação,
achou-se com vida e energia para sufocar a ingratidão dele, e com uma fé indestrutível,
aguardava o dia em que o houvesse de ter a seus pés, para todo o sempre.
Uma dificuldade surgiu desde o princípio, o disfarce. Conhecia o gênio. da mãe, e teve de inventar quanta doençazinha
galante existe, quando, estando ela
sob o domínio de tredas impressões
ou de brandas cismas, a carnuda senhora inquiria:
— Que é que tu tens, Maria?
Não gostava de sair tanto.
Para ver o quê? Em casa figurava-se num convento. Fazia de conta que tinha ido
ser Irmã de Caridade, como desejou
Logo naquele tempo, haviam de
os pais introduzir pessoas estranhas em casa, e forçavam-na a comparecer! De
quando em vez estava por lá o Senhor Visconde, um bichão, como ela dizia, sem
jeito para nada, que parecia primo do bodegueiro da esquina. A menina olhava
admirada para a mãe, quando esta disparava, em quanto elogio há, para com ele:
— Aquilo sim, minha filha, é
um fidalgo, digno do nosso sangue! Vês como ele se porta? Não é como os outros.
Não faz caso de nada! Responde a tudo com uma sabedoria de Salomão!
O Lucas entoava pela mesma
cartilha. Maria comparecia, de propósito, mal penteada, à mesa, e com uma cara
de enjôo. Queria ter o prazer de desagradar. Ao piano é que não podia resistir,
nem fingir; mesmo que fosse tocar para o maldito Visconde e sua comitiva. Não
podia: o sentimento fervilhava nas teclas, daqueles dedos que tantas vezes
retorciam-se no desespero, e o som das cordas, de dentro, só falavam no Centu,
daquele rapaz franzino que lhe parecia forte como um gigante, da sua fala
virgulada, do seu riso parco e caçoador, e do seu coração rico de segredos e
de surpresas. Também, pensava ela, mal ou perfeitamente que tocasse, equivalia,
para aquele troço de homens sensaborões.
Passou a idéia de que o
oficial morresse
E então, ajustaremos conta!
ameaçava ela como se fora de fato sua mulher.
Uma tarde, no quintal, colhendo
ela umas rosas para os santos, chega-lhe a Antônia devagar, quebrando uma
folha entre os dedos:
— Sabes? O Afrodísio está
apaixonado por mim...
Esfregava as mãos, de
contentamento. Maria fez um ar de escandalizada. Havia algumas semanas que
aquele homem entrara ali. Pela insistência da mãe, percebera que desejavam-na
para noiva dele, e mais ainda, que ele é que queria casar com ela, que uma
poderosa paixão o fizera angariar a difícil amizade do pai. Havia estudado até
a resposta a dar à mãe: que se decidira a morrer solteira.
— Apaixonado por ti! franziu
ela.
— Ah! está!
— Mas como conheceste?
— Não se diz. Isto agora é só com a baita.
— Ele te disse?
— É segredo! Não pergunte mais nada.
E largou a rir
irresistivelmente.
— Eu digo a papai. Vê lá se me contas!
— Vá dizer logo, o caminho
está aberto. Você pensa que só você é que pode ter namorado? Vá contar,
Maninha, vá Bem Bem! Eu até lhe pago. Mas é você ir por um caminho e eu por outro.
Conte o meu que eu conto o seu. E ficamos de conta justa, sabe?
Maria calou-se. Olhava para o
sol espalhando-se por cima dos teIhados do quarteirão. Tocaram na corda
sensível. Entretanto, artificiosa e vingativa quando ferida, a vaidade natural
do sexo comungou consigo um — Tu me pagas — que deslizou como um áspide por
cima de sua alma
Ângela atravessava o quintal,
carregando água, com o pote aprumado na cabeça. Ouvia-se a ralhação biliosa da
Fabiana, com a crioula Honorata. Maria lembrou-se de interrogar a cabrocha, e
foi. Entraram pela sombra do tamarindeiro, por cuja folhagem renascida,
miudinha e basta, não era fácil descer o sol, tendo sido preciso, até, mutilar
uma linda ramada para a luz ter franquia com o seu cortejo de ar e de aromas
até as profundezas da cacimba, ao pé da árvore, por modos que quando a crioula
Honorata vinha puxar água a desoras via lá dentro os olhos arregalados das
estrelas. Ali o chão era fresco, entulhado para o pé do muro do fundo, e no
canto do galinheiro, por fora, entre as brechas de um montão de caliça antiga,
nasciam urtigas e camapuns, entressachados por uma primavera.
— Ângela, tu viste o Visconde
dar alguma coisa a Antônia?
— Inhora não.
— E... nem falou com ela?
— Falou sim, a mode que trocou
o nome dela, chamou Rosa.
— Deu a mão a ela?
— Deu, inhora sim.
— E o que mais?
— Eu não sei de mais nada,
mas parece que beliscou.
— Pois olha, tu reparas, o que
tu vires me dirás. Eu te pago. Já ouviste?
— Inhora sim.
E a cabrocha, com os seus
braços ainda não recheados pela puberdade, puxava a corda, ao ganir intermitente
do carretel. As abelhas zuniam no tamarindeiro em flores, que exalavam um
perfume ácido.
Mãe Zefa trouxe
nesse mesmo dia às escondidas uma carta do
Centu. A concordata fora ele
endereçar para um amigo da república, e este entregar à preta velha.
Que alegria! Antes do romper o envoltório, Maria
cheirou, beijou,apertou contra
o peito uma porção de vezes. Abriu com todo o mimo como se doesse no papel, com um alfinete que
despregou do seio. Foi ler na camarinha,
fechada por dentro.
Uma réstia, pela telha de
vidro, rolava-lhe por cima a sua muda cascata de sol; e com a lentidão do
ponteiro das horas umas pequeninas ovais incandescentes estampavam-se pela
esteira. As mãos da menina tremiam, como o pestanejamento das estrelas em
véspera de chuva. Sombra de uma ave que passa, fendia o cimo da carta a
seguinte invocação:
"Minha adorada
prima"
Como no engenho a cana, que
uma vez apontando entre os cilindros, vai-se toda, ela não pôde parar na
leitura, e no espírito, pela calha invisível das sensações, derramava-se o sumo
das palavras, que havia de fermentar. Deslizavam, as linhas, palavra por
palavra, e vírgula por vírgula, tudo, vividas, animadas, fonógrafo a repetir a
voz cativadora do namorado, que as pronunciara, que as sentira, que as
escrevera. O papel cheirava a mais! Era cor de rosa. Dobrava em cruz; e no
canto superior, em caprichoso monograma um V e um M, Vicente Moura, que a
menina lia — Vida Minha, Vinde Maria, Vencerás Maria —, naquelas gostosas
puerilidades do amor primeiro. Chegando ao fim, tornou ao princípio. A
compreensão estava difícil e demorada; os pensamentos a modo que se não
mostravam por inteiro, e sim pela perspectiva das palavras mais frisantes com
o sentimento que a dominava e absorvia. Pela quinta vez é que alcançou destacar
como que o volume de cada idéia. E relia com pausa:
"Primeiro que tudo
peço-lhe desculpa de uma grande falta, que espero você me há de perdoar no seu
coração. Eu sei o que se passa em mim, só eu sei o que sofro. Se nãd fosse para
fazer os gostos a seu pai, eu tinha recusado o serviço deste destacamento. Não
me aconteceria nada, porque vim para o Ceará por doente, e qualquer doutor me
dava um atestado.
"A minha vontade, querida
Maria, era implorar-te que te esquecesses de mim para todo sempre, porque...
Ora, enfim perdoa-me isto, que a minha cabeça não está regulando.
"Abri os livros e não
pude estudar; aborreci a meticulosa calma, o processo fatigante e absortivo dos
estudos; aquilo que era o meu maior prazer neste mundo! Desde que afastei-me
daí, o meu amor cresceu desbragadamente. Só acho graça, só compreendo mesmo os
livros que me emprestaste; O Guarani
e O Seminarista. Que incompatibilidade
haverá entre o amor e o estudo, entre a arte e a ciência? Estas questões não
estarão talvez ao alcance da tua feliz organizaçãode mulher, eu escrevo-as,
todavia, porque não posso escrever senão isto. Eu vivo numa tristeza, num
"spleen", macambúzio, que já me envergonho. Felizmente o meu sargento
é muito brioso e inteligente, e me supre em presença dos soldados. Ah, minha
pobre vida, eu que me supunha votado ao sacerdócio da ciência, como os Newton,
os Galileu, os Lavoisier, me achar agora cego de espírito! Será possível,
Maria, que sejas tu um sol, um relâmpago, que me paralisasse as funções da vida
intelectual? Pelo amor de Deus, esquece-me! O meu caminho é diverso. Fica, o
amor não é dado a mim, porque aniquila-me; o amor me é morte!
"Eppure si muove. Entretanto eu te amo! Ah eu te amo ainda e sempre!
Teu
V.”
A menina ficava perplexa.
Mas como se entendia aquilo? Ele a amava; ele não queria o seu amor, pedia que
o esquecesse, e amava eternamente! Então, só ele
queria ter
o direito de amar? Não quer ser compensado? Ah!?
Era bonzinho, meu
caro, havia de ser amado, grandíssimo canalha; quer quisesse, quer não!
— Vou responder severamente a todos estes desaforos. Mas vacilou. Papai estará aí? Ela não estaria alterada? Vamos ao espelho.
Foi ao toucador, que ficava
por baixo da imagem do bom velho São Vicente de Paulo, no seu eterno sorriso bem-aventurado. Passou o
pente no cabelo,
assoou-se, imaginou um defluxo nasal para disfarçar os ressaibos
do choro, tomou
fôlego, suspirou, sacudiu-se como para verificar se ainda tinha sangue nas veias,
proferiu palavras em voz alta, correu o trinco, abriu a porta,
e saiu do
quarto, la cantarolando e saltando pelo corredor.
Entrou no gabinete, estava deserto, era
meio-dia, papai estava na Relação.
O relógio cosia-se com a
parede, com a estatura de uma pessoa, e na altura do abdome abria-se no verniz
uma vidraça redonda por onde vagarosamente passava e repassava o plenilúnio
dourado do péndulo. Maria entrou na pontinha dos pés, porém primeiro foi à sala
de visitas, correu a mão pelo piano, e tossiu para que a supusessem aí.
O gabinete do pai era uma
pequena peça forrada de papel cor de tabaco, imitando certas fazendas de seda,
com uma janela de rótula e vidraça para a rua. Ao pés da escrivaninha
deitava-se um couro de canguçu, sob as pernas dianteiras da cadeira de braço,
que girava como os tamboretes de piano. A estante subia, parede acima, da
casimira verde que formava como um gramado no tabuleiro da mesa; e a pasta,
gorda de papelada, adiante da meia lua onde encaixava o corpo do escrevente,
abria-se
A imaginação, de braço
dado com o amor, açudava-Ihe no coração os rios do sangue.
Pegou na pena e escreveu no alto de uma folha de papel
amizade:
"Ilmo Sr. Tenente
Vicente."D.
Não pode mais. Os caracteres
saíam tremidos como sombras de varas na água corrente. Indignada consigo,
passou o dedo, e borrou. Ficou inerte, debruçada sobre a pasta, julgando-se
muito estúpida a si mesma. Queria desabusá-lo, mostrar para quanto presta a filha
do Desembargador Osório! Figurava ter o primo junto a si, em uma daquelas
cadeiras onde assentavam as partes que vinham falar ao pai; e dirigia-lhe, com
atitude de prima-dona, queixumes e increpações. Acabava, com os olhos para o
céu, lacrimosa. Não, ia escrever, isto não era possível! Pois então, o que
havia de ser de si?
E tornava, em outro papel:
"IImo Sr. Meu
Primo Vic..."
Agora a pena cortava à guisa de bisturi, e a linha
saía da pauta. Com certeza era aquele irônico IP'° Sr. que estava fazendo mal. Venha mais papel.
Meteu a mão na pasta, e veio
uma folha tarjada. Luto? Mas que agouro,
meu Deus!
Teria ele morrido!?
Ouvia-se da rua o ruído
timpanoso
da carroça d'água, que produzia um efeito estonteante no cérebro, e o árido
calor do
sol a pino abafava. Não passava quase
ninguém, ao soturno daquela grande luz meridiana. O sino de São Bernardo,
magro e desafinado, batia o Ângelus, e em seguida a voz de estentor do campanário
da Sé. A idéia de morte pegou-a, como o cascavel ao magnetizado batráquio. A razão trucidada, e a imaginação, ruim piloto, iam-lhe com a mente aos escolhos da alucinação.
Sentia-se inflamada, e parecia
que o seu coração era uma postema!
As duas tranças, como duas cobras negras, amornentavam-se nas suas espáduas ofegantes, mordendo o cerebelo;
e os lindos braços morenos faziam coxim à fronte
pendida! O pés, nas sandálias de marroquim, cruzavam, apertavam-se no pano sala, debaixo da cadeira. Um cálido aroma de carnes virgens subia com a umidade daquele suor de agonia e de salvação.
Mansamente veio-lhe o receio de que o pai
entrasse,
e, disfarçando quanto podia, tornou à camarinha. Fez o que fazem
as mulheres em caso semelhante — vasou-se
— Defluxo novo incomoda muito,
não é filhinha? dizia-lhe o pai, num afago desajeitado, tomando lugar à
cabeceira da mesa.
— É, papai. É horrível.
— Mas devias ter dito, que eu mandava um chá, repreendeu a mãe.
Vocês moças não aprendem nunca a ter juízo.
Em caso parelho, se algum
namorado escrevesse à Antônia declarando que agradecia o seu amor; que o
esquecesse; apesar de ele conservar o dito amor pela sua parte eternamente,
ela dava uma rabanada de traíra, deixando, ao lume da água, numa borbulha, a
seguinte expressão canalha e brejeira:
— Seu caju azedo, quando se
quiser levanta-se o dedo!
Mas com esta sujeita acontecia
justamente o contrário.
O João Batista, caixeiro da casa Afrodísio Pimenta & Cia, apaixonou-se por ela. Um namorado sem
ventura.
Naquela noite em que ela
trepou por detrás da porta a fim de espiar os homens que estavam na sala, foi a
primeira vez que ele a viu. Antes sentiu-a, realmente, do que viu-a, por entre
os bordados da bandeirola. Babou-se logo por aqueles olhos de gata ruiva.
Alcançou uma formosura imensa no corpo a que deviam pertencer uns olhos assim.
A parelha de luzios de
esmeralda entrou a galopar-lhe pela alma adentro, indefinidamente, e um grande
prazer o abalava na sua obscuridade de moço econômico e recatado. Pensava
haver topado enfim o que desejava, a sua mulherzinha. Aquilo, parece,
introduziu-lhe na pele uma substância estranha e salutar. A loira fisgou-o, sem
saber. Verdade é que lhe não passou despercebida a insistência com que o
caixeiro mantinha o nariz para aquele lado; mas ao descer, nem mais se
lembrava daquela fisionomia enjoada e inocentona.
O pobre, com um mês, sem
trocar palavra (pois se ia à casa do Osório a recados do patrão, a beldade o
evitava de instinto) pespegou-lhe uma carta. A portadora foi a Mãe Zefa.
Antônia ficou toda uma alegria: supunha que era do Visconde. O Senhor Visconde
escrever-lhe!.., que achado, que fortunão.
E agora, onde ler aquilo bem
de seu, com a maior segurança? Ocorreu-lhe a camarinha das regras. Entrou,
escondidinha. Uma claridade, encardida, um cheiro de àmoníaco e bodum; a telha
escurecida pelas fumaradas da cozinha. Estendeu-se na cama de couro de boi, ao
canto, onde dormia, à noite, a penca de moleques. Foi logo à assinatura: João Batista do Nascimento!
Desapontou! Batia-lhe o
coração, de insultada. Sentia um buraco
no peito esquerdo, como se
estivera com três dias de fome. Esmorecia miseravelmente. Quase teve um
faniquito.
João Batista do Nascimento!
Fosse para a casa do diabo!
Já se viu um bicho mais besta?
Que mal fizera a Deus? Não lhe diriam?
Amada por uma figura daquelas,
entristeceu. Uma ofensa à sua beleza e formosura.
Pareceu-se muito feia a si mesma, uma
vez que um tipo daquela ordem simpatizava com ela. De feito, entendia de seu natural,
só haver simpatia, havendo semelhança. Neste ponto
se tinha ou não razão, é com o boticário Fernandes, que sustentava: aquela atração do corpo e alma supõe sempre
certos pontos de igualdade, aparentes ou não, entre as duas
pessoas; o que o Osório combatia com uma teoria
contrária. Completa oposição,
dizia este, é a base do amor.
O escrevente
pedia licença para ofertar-lhe um vestido. Que pediria a sua mão, quando
ela quisesse. Que só ia naquela casa por amor dela, etc. etc.
"Sei que seu pai é um
pobre cego, e que você é quase só no mundo. Seu pai não precisará pedir
esmolas, quando nós nos casarmos."
Isto irritou-a. Falar assim naquela mancha negra da mendicância,
que era como umas sardas na pele rósea do seu rosto! Lembrou-se de quando o vira pela primeira vez. Que olhar
impertinente! Dias depois, vindo a mandado
do Visconde, saudou-a muito sem
vergonha, deslambido, e daí,
continuou.
O pobre
não sabia disfarçar. Gostou da rapariga.
Desconhecendo, porém, completamente a vaidade e suscetibilidades femininas, julgou que o maior
agrado seria pedi-la chatamente, — sem saber se caíra
De bruços,
no couro cru, Antônia, meio pasma e meio enraivecida, erguia os olhos
de bichano para o altar das
crioulas. Diria que sim? Mas antipatizava
horrivelmente com aquele rapaz, sobretudo ao ver que ele,
vinha com isso de amor. Ante ele,
depois dessa idéia de fundirem-se os corpos
e a vida de ambos, tinha sensações de um sezonático ao pôr a vista em carne crua. Quando
ele apertava-lhe teimosamente a mão, sentia
ela uma impressão fria e pegajosa, e se lhe revoltavam as entranhas.
— Impossível, minha Nossa Senhora!
E repetia a frase
instintiva, dolorosa:
— Não posso. Não posso, meu pobre pai!
O João de Paula, estava ali, pelo poder sugestivo que se obrava nela, naquele raro momento. A filha escutava, no tijolo, as pancadinhas do seu bastão, guiando os passos, e sentia-o passar a mão pela parede,
como fazem os cegos na rua. Mirava, sem rumo, os santos do oratório
das escravas, destas cuja fé era assaz vidente para não descobrir as disformidades de uma Santa Rita de venta chata
e de um São José de pernas de beribérico, desde que eram imagens
benzidas. Sim, aos pobres negros tanto rendia um Cristo pançudo como um de barriga no espinhaço;
era o mesmo Bom Jesus dos Aflitos; o mesmo
cujo sangue era tão rútilo como o do Dr. Afrodísio, ou como o do preto velho Mané Corre que fedia a cachaça e a masca de fumo.
Antônia procurava
como que uma resposta inspirada, no pedaço
de parede reverenda. Olhava para aqueles
trapos de papel pintado, um pouco acima
das malas incrustadas de remelas de cera de carnaúba, salpicadas de sangue
de pulga e empoeiradas.
Parecia estar no terço das Almas, a que vinham os crioulos, tirado
por ela, que se fazia muito rogada para isso, lido num caderno
antigo distribuído por Frei Serafim. Com
certeza a cantoria
instintiva dessas mulheres degradadas era supinamente mais comovedora, expressiva, incomparavelmente mais rica e cheia de alma, do que a das meninas do Colégio.
De um ritmo saudoso, bastava entoarem o primeiro
trecho:
"Abrirei meus
lábios, em tristes assuntos Para sufragar os fiéis defuntos..."
e transfigurava-se aquela
camarinha imunda, em fantasiosos compartimentos do Purgatório. A corda de
roupa, que lhes era o guarda-vestidos; as redes amarelentas entrouxadas entre
os cordões do punho do armador; o vão do telhado, fusco pelas fumaradas do
fogão vizinho; o tijolo catingoso do mijo dos molecotes; o bodum que recendia
com um enjôo de panos abafados: a triste indecência daquelas mulheres sem
direito de amar; os cafundós de sob o vasto leito de couro cru; os velhos
trastes imprestáveis que os senhores botavam pr'aí; desaparecia tudo na íntegra
da impressão auricular. Duas velinhas de vintém, pregadas no tampo das malas,
alumiavam parcamente a caixa de cedro, feita pelo cabra Teodoro, suspensa na
parede forrada, apinhada de santos, entre os quais pompeava o S. Benedito de
beiço vermelho e grandes olhos limpos, com um resplendor de níquel.
E Antônia, estirada na cama de
couro, de vestido preto, com a sua tez, cujas imperfeições apagavam-se na
penumbra, e aqueles cabelos dourados, estava mesmo uma pintura. Entrasse ali
agora o Afrodísio! Aquele para quem ela se sentia de todo inclinada! Sonhava
desposá-lo.
Teve um susto com esta idéia... O painel
de madapolão, que, na parede,
acima do nicho, com abundâncias de tinta azul e amarela, ex-bandeira das novenas do Rosário, seguro com preguinhos, abria-se como um pássaro de grandes asas, a modo que agitou-se como se ainda estivera
içado no mastro e passasse um vento forte e repentino...
Enfim, foi-se o mau
pensamento. O pano continuava estendido, com a sua rígida pintura estraladinha
como o vidrado de louça velha, e a imagem de Nossa Senhora, a virgem das
virgens, na sua pureza imaculada.
Na sala, aproveitando uma
discussão que os pais travavam no gabinete, Maria das Dores lia a segunda
carta do Centu. Parecendo-lhe um olhar em cada poro de parede, balançava-se na
cadeira de vime, junto à mesa do centro, muito aplicada com um livro que abria
ante si, com as duas mãos: Lições de
História Natural, muito recomendado pelo velho.
Assim, podia vir quem
quisesse. Não estava para aflições: uma página, intercalada, era a preciosa
cartinha, que dizia assim, com uma letra demorada e rabiscada:
"Querida Maniinha:
Me deste uma lição de mestre!
Não me confiaste uma palavrinha sequer. Oh! crueldade! Uma folha de
independência metida num envoltório de papel avermelhado, com o meu endereço,
eis aí a resposta que me enviaste! E castigo merecido, eu te ofendi muito. Mas
que queres? Hei de eu enganar-te? Dirás: Mas neste caso você devia ter previsto
no princípio, porque há meses que você voltou ao Ceará, e sempre que me via
demonstrava, cada vez, mais amor!
E eu acrescentarei: Antes de
partir para o Rio, sem conhecer-te, já eu te adorava
Desde que resolvi entregar-me
simplesmente às forças naturais, tirar à minha vontade o direito de imiscuir-se
em tudo que não seja o estudo e o trabalho, passo melhor, leio, rio, faço
caminhadas de recreio. É verdade que me dizem melancólico, e me chamam
filósofo; e eu me sinto muito sensível. Isto, porém, é o amor que me gravaste,
que me aguçou a percepção externa, me afinou os nervos e os sentidos.
Bendito amor...
Eu ia pondo aqui uma
adversativa, ia dizendo um mas... que te faria muito mal. Não quero, porém,
agravar a tua ferida.
Teu
V.”
Se com a outra carta a menina
desapontou, com esta muito mais.
— Que ingratos, estes homens!
Uma carta com reticências e mistérios: o Senhor meu primo estará me
flauteando? Quer me desfrutar!... Quem sabe...
Esta frase veio num turbilhão
histérico; a menina largou o livro e levou as mãos ao rosto, sacudida pelos
soluços.
Não havia maior vilipêndio,
maior desilusão, mais acerbo dissabor. Experimentava a mesma revolta que um
homem de bem associado de boa-fé a um tratante que o bigodeou por fim.
Melhor não se importar mais
com aquilo. Abafar, com subido heroísmo e frio disfarce, o sentimento; fazer
como à baleia fisgada, dar linha, até o cetáceo cansar ou desaparecer. Mas, se
começasse a ficar magra e amarela! e ele viesse de repente, vendo-a
desfigurada... Que jeito? Dieut le veut. Seguiu o conselho que lhe dera o padre
reitor, para as atribulações:
— Faça-se a vontade de Deus, e
não a minha... Ah! mas, uma boa idéia!...
E depois que o pai saiu para a
rua, foi ao gabinete, tomou uma folha de papel de carta, escreveu
transversalmente, em grandes e frisantes caracteres: DIEU LE VEUT Dobrou, meteu no envoltório e subscritou ao primo.
— Sim, senhor. Deus assim o
quer. Agora, decifre Sr. sábio! Embrulhei-o!
A tarde esteve bonita. Ela
saiu de carro com o pai.
Deram uma volta pela cidade,
e, da Rua de Baixo, enfiaram pela comprida ladeira do Outeiro dos Educandos, no
horizonte da qual apontava o muro branco do Colégio. Na subida, de um lado e
outro as boas edificações iam rareando. Já na esplanada, estendia-se a cidade
de casas pequenas, ruas de areia e hervanço, quarteirões de mato, habitada por
uma população de vida vegetativa. O carro dobrou o canto do muro. Acharam-se
marginando a frente do edifício, diante do qual abria-se um descampado que se
destinava a uma futura praça. Aí, o mata-pasto, salpicado de florinhas
douradas, cobria o pó, subia como um mandiocal; e na tona viridante, avistava-se
o busto de quem se internava pelas veredas.
A Mariinha aliviara o abalo
interno em demorar a vista na paisagem.
Umas casinhas novas começavam
a delinear a praça, agrupadas espaçadamente, com o amarelo do ocre, ou o escuro
do roxo-terra, ou o alvo da cal. Um proprietário mais poderoso sungava a frente
aos 22 palmos da marca da Câmara, e deixava o resto
cobriam terrenos devolutos,
capoeiras de antigos roçados; e um roxo lácteo florescia como enxames de
mariposas, por miríades, nos jurubebais. As cercas de faxina, as caiçaras, onde
o melão trepava, alinhavam-se, toucadas de filó verde, e com o cinzento de
casca de pau. O ar denunciava a pancada dos pilões, o canto dos galos, o latir
da canzoada, o gritar dos meninos, naquele viver promíscuo e semi-selvagem.
Pela frente do edifício
passava o
empedramento, que um pouco adiante
morria na
estrada de areia, artéria dos roceiros da Aldeota
e do Rio Cocó, por cerca de duas léguas ao
Sudeste.
O Senhor Bispo vinha saindo pelo portão do Colégio, construção de forte alvenaria ladeada por um gradeamento preto. A cruz e o tran-selim de ouro,
na murça cor da túnica do Bom Jesus, e o roquete de finíssima guipura, transparente no lindo roxo da batina, o tom sagrado dos seus
passos, o
olhar pontifício, o lustroso pêlo do chapéu, as pedras
preciosas
do anel e da cruz, feitos para o macio
das catedrais e dos aposentos principescos,
melhoravam aquele ambiente mísero e terreno. Era
com um fervor que há muito não sentia que a Das Dores, dobrando o joelho, baixava o rosto sobre a mão
sagrada e
depositava um beijo na pedra fria do anelão do pastor. O Senhor Bispo sorria uma palavra amena, um gracejo, como para nivelar os espíritos.
E as Irmãs que o acompanhavam
até o portão entravam no cavaco, e recebiam
a Das Dores com a maior doçura, como se esta fosse ainda aquela. O desembargador oferecia o carro a Sua Excelência
Reverendíssima. O Bispo agradecia, e continuava a pé,
mansamente, sob o guarda-sol do seu secretário.
As Irmãs demoravam na soleira do portão.
Uma nuvem passando lentamente servia de pára-fogo
àquele sol
das cinco e meia da tarde. Em
seguida, as altas copas dos coqueiros dos quintais
da Rua de
Baixo, ao Ocidente, avistadas por
cima, amostravam as bordas acendidas, as palmas, em estrelas, avivadas de luz.
Das mudas cenas do Ocaso
sentia-se um fino silêncio, que vinha quebrar-se na superfície da terra. A
areia tomava um cinzento corado e morno, e o mato era enormes manchas de vário
verde infiltradas de uma claridade aloirada, amortecida e palpável. Rente à
paisagem, para o Ocidente, ia-se percebendo uma poeira brumosa, com o moroso
cair do sol.
Fez-se um crepúsculo quase nu.
O Poente empastou-se por uma nuvem parda e lisa, por entre as brechas da qual
saíam vislumbres fulvos que iam colorir as ligeiras névoas salpicadas aqui e
ali pelo firmamento.
A Das Dores fora à capela de
Lourdes com o pai fazer umas orações. Mandada pela Fabiana. As Irmãs entraram,
ao bater da sineta, para a ceia, depois de no parlatório entregarem à antiga
educanda a chave da capelinha. A porteira seguiu os visitantes com o seu paletó
quadrado e o seu beato andar de leigo fervoroso, conversando piedosamente,
narrando os últimos milagres da Senhora de Lourdes. Atravessaram uma área de
jardim. O desembargador meteu a chave na porta. Abriu. Dentro era escuro,
apenas no ar, ao fundo, a lâmpada arroxeada. Puseram-se às escâncaras três
janelas. Então se podia admirar a gruta. A mica brilhava nos papos da rocha; e,
numa cavidade alta, aparecia Nossa Senhora, de alvo, mãos postas, pisando em
rosas silvestres, faixa azul, os olhos no céu, e em torno um letreiro: "JE SUIS L'IMMACULÉE CONCEPTION."
Prostrou-se
profundamente a Das Dores. Ah! dias, que foram! sentimentos
escoados para sempre que não há invocar! Do chão ao telhado, até um terço da extensão da capela, amontanhava-se a gruta, que parecia
conter as
mais ricas pedrarias. A estátua da pequena
Bernadete,
a quem a Santa apareceu, ajoelhava por dentro da grade, de vela e rosário, olhando para a Imagem. A esquerda
aplainava-se na rocha fingida, uma ara para a celebração da missa.
Um Cristo e castiçais de prata aí repousavam no morno silêncio. Ao meio da gruta cavava-se um depósito da água
milagrosa, vinda de França.
Estava-se como numa sepultura
subterrânea.
Pelas paredes sombrias,
quadros do Juízo Final, da Morte do Justo, da horrenda Morte do Pecador; e ao lado da porta
principal, fechada, que dava para a rua, escancarado, o armário dos milagres,
ostentando per-rias de elefantíases, dependuradas, mãos inchadas e em pústulas,
braços cortados, cabeças de crânio roído, ou de boca torta, ou de nariz canceroso,
muletas, representações de naufrágios, em desenho rijo, ventres dilacerados,
retratos desfigurados, peitos lancetados, pescoços escrofulosos, lombos mirrados
pela tísica: a carne nua e podre na mais horrível confissão da miséria humana e
do milagre divino. O desembargador examinava, atento, afigurando-se que ainda
cria naquilo.
A Das Dores, porém, no genuflexório, pensava era em beber da água miraculosa, para o mal que a minava. Pedia que lhe apagasse o fogo que lhe ardia dentro, a chama excomungada, o ciúme consumidor. De repente lhe havia surpreendido a convicção de que o primo amava outra, alguma filha de rico fazendeiro baturiteense! Que enorme afronta! Esta idéia de traição
metera nojo, e trouxera imediatamente uns cheiros vis de impureza
e de intestinos, uma lúcida intuição da quanta baixeza a que pode
afundir o
bicho homem. Ofuscou-lhe a feminina e transcendente
idéia do heroísmo. E ficou
como as esposas esquecidas e desesperançadas. Representava-se-lhe o ser como uma
esponja insaciável. Escandalizou-a, aquilo, como
a quebra de uma
palavra de
honra. Uma sensação de esmagamento. Num mar onde tudo vacila. Um naufrágio da esperança. A alma, da sua pureza de amor, caída na privada onde brotoejam o ódio e as aversões.
— Coitada de mim! bradava com
os olhos para a Santa.
"Não se lembrava,
a sua antiga padroeira, da pequenina Das Dores que vinha cantar em coro, e o hino delas enchia aquela gruta sombria e sagrada? Já a esqueceste
Maria Virgem? Por que a deixas
neste mundo maldito? Ah! quando ela
renunciou a Satanás suas pompas e suas obras!
"Um raio desse teu olhar
azul conserte o seu coração quebrado pelos maus pensamentos!
"Ilumina o escuro de sua
alma, Senhora, Ave Mana cheia de graça!"
Os ratos faziam uma correria por detrás do zinco e madeiras que representavam a rocha. Um morcego ia e vinha com o seu
voar frouxo. Por uma janela entreaberta, para o Oriente, o desembargador avistava um último luzir de sol na trunfa de uma
castanheira afastada. Chegavam até ali, claramente, os gritos e vozerios
das educandas, no recreio; e uma Irmã saía de dentro da gruta,
por um corredor disfarçado, a convidar a Das Cores para o Mês de Maria no caramanchel dos jasmins, num dos pátios internos. Das Dores não quis. Beijou a mão da sua antiga
mestra, saiu e foi a meter-se no carro.
A Irmã, em companhia da porteira, que fechava
o grande portão de ferro do jardim,
ouvindo-se ainda o forte ruído
das rodas
no calçamento, fazia balançar no dedo o olhal da tesoura
que lhe pendia do cinto,
e cantarolava:
"Le monde fait son tapage..."
A perteira curvava-se para correr
o ferrolho de baixo,
com o
&u ar piedoso, não entendendo o francês, nem o sentido
mordaz daquelas
palavras.
Ao pisar na soleira da porta
do parlatório, a francesa relanceou um último olhar pelo crepúsculo. Nem mais
se via um pingo de sol:
"Et l'amour fait son ravage..."
Seria em português cortante: O
mundo amotina, e o amor arruína.
Dos extremos do cano meio
descido, paralelo à toalha, sobre o serviço de chá, os dois bicos de gás, nas
mangas de vidro em forma de meio globo, clareavam suficientemente, sobretudo à
calva do desembargador, à direita dos bigodes do Visconde que honrava a cabeceira
da mesa. O pente de tartaruga marchetado e duas pastas grisalhas, o riso e
parlapatice ocasional, não punham dúvida de que à esquerda assentava Fabiana.
Um reflexo doloroso na fala, uma sombra, uma colateral melodia como se com os
sons primordiais marchassem harmonicamente outros sons, davam a entender Maria
das Dores, a morena, ao lado da Fabiana. Fronteiros a ela, o Cunegundes,
redator de A Oportunidade, e mais o
Major Secundino, comerciante, barbaçudo e circunspecto. Antônia acoitava-se
vizinho à Maria, e era um pedaço de latão arejado junto a uma obra de lei.
O Lucas seguia-se a Antônia, e
chamava-lhe sempre Antonina, à maneira dos portugueses.
Parecia um repasto de luxo, a notar pelo
bule de prata. Havia bolos, pão-de-ló, vários queijos, torradas, carnes frias, pastéis. A manteigueira, o açucareiro, e a fruteira
do centro, de grande custo.
É que ali andou mão de Maria das Dores.Pela primeira
vez, esta
coadunou-se com a mãe. O diabo entrou-lhe. Tomou uma tal aversão pelo primo, com a simples idéia de que ele a enganava, que o sangue materno, como os cururus da beira da lagoa, entrou
a berrar-lhe naquela noite do sentimento. Resolveu conquistar o Visconde.
Este fidalgo estava caidinho pela Antônia, e por isso, olhava, ria e falava para o lado
delas, e
a Maria tomava que isso era consigo, pois um Visconde não ia lá se ocupar
deveras com a filha do cego João de Paula.
Fabiana, satisfeitíssima. O
desembargador, esse, nem como coisa. Conhecia o magano pela pinta do olho.
Sabia-lhe agora muitas mamparras.
O caso é que Antônia, dias
depois, indo ao mês de Maria
Neste entretempo, a menina recebe a terceira carta do Centu e foi caçoando mostrá-la à mãe:
— Vosmecê quer ver como anda o seu sobrinho com as manias de papai? Olhe cá.
Fabiana estava assentada no banquinho da costura, na sala de jantar. Com os óculos na ponta do nariz, inspecionava a renda que a Ângela
fazia, e achava, como era fado seu, pelo menos, preta de sujo. Puxou a almofada
para si,
e desenrolava a quantidade de renda
já urdida; media a palmos, avaliando quantos
côvados precisava para um cabeção com três carreiras
de entremeios; enrolou a peça e pregou-a de novo na almofada. Angela,
de pernas cruzadas, no chão, a seu lado,
entrou a trocar os bilros.
Largava uns
e tomava outros, e quando um ponto ficava dado, segurava-o descendo um alfinete, e assim, imperceptivelmente, ao longo da tira de papelão ia se formando
aquele caminhozinho
bordado. Maninha gritava do gabinete:
— Mamãe, ande ver!
A velha enfezada:
— Arre lá, que me importa isso
agora!
Por certo, uma vez que a menina manifestou-se pelo Visconde, merecia toda confiança. Pudera, boa filha.
Na cadeirinha de pés
aparados, Fabiana continuava costurando. Descansava os tacões na travessa de um mocho onde depunha
o açafate contendo a caixa dos óculos, o agulheiro, a tesourinha, o canivete, uma laranja de madeira para consertar meias, o coto de cera branca, os novelos, os carretéis,
alecrim seco e uma raiz de gengibre. No silêncio
que
pairava na habitação, quase
ouvia-se a ebulição das panelas e a voz dos próprios pensamentos. A mesa
expunha o seu verniz de sândalo, a coberta, de linho pardo com estrias
vermelhas, repuxada para uma das cabeceiras, ao lento esvoaçar de umas duas
moscas. Antônia, junto ao envidraçado e alto guarda-louça, curvada sobre o
bastidor do labirinto, levantava de vez em quando um olhar para a quente
perspectiva do quintal, ninando, aos estalinhos secos dos bilros da Ângela, as
idéias que lhe adormeciam na mente. Ângela mudava automaticamente os alfinetes
e estalava os bilros fortemente, sem mesmo reparar na bela chita adamascada
que revestia a frente do almofadão. Irmanada intimidade fazia-se entre todas. A
Fabiana com o seu dedal de prata, cerzia uma ceroula do marido. Os seus dedos
sem brilho paravam por momento, estendidos no travesseiro da costura, e dos
seus lábios secos desciam palavras pelo brando, repassadas de unção materna.
Nos buracos da almofada, nos
topos, Ângela guardava um pedaço de rapadura, que roía às furtadelas. Pouco
entendia dos conselhos da senhora, e a prova é que saía-se com perguntas tolas,
indiscretas algumas, que pasmavam de pejo ou de riso. Faria a primeira
comunhão, ia inteirar treze anos, precisava recordar a doutrina...
— E como é isso? perguntava à senhora.
— Como? No catecismo, tola!
Esquecera a matrona de que o
catecismo é para ser lido e decorado, e que, no seu pensar, negro não se
instrui. Foi desenvolvendo os capítulos, que sabia de cor, explicando o melhor
meio de decorar, de compreender as sagradas lições. Quando encarava o quintal,
nos vidros dos seus óculos, dançava em miniaturas catitas o dia exterior com os
objetos que ele banhava.
Um profundo pesar
avermelhava-lhe de costume esses fins de conversa de religião: não ter ido
para freira
Abaixava para Antônia e Ângela
um olhar duro, crivado de mistérios e de interrogações. Daí, o desejo da
virtude física amadurecia em inveja.
A cabrinha trocava pacatamente
seus bilros, erguendo sobre os quadris esparramados no chão o tronco esbelto e
rijo. Da Antônia, roçavam na grade do labirinto os dois seios fatais, parecendo
pipilarem como pintinhos ao sair do ovo; tremiam-lhe ao mais leve meneio, as
argolas dos brincos postados como espiões na pontinha doce das orelhas; a pele,
com a quentura, porejava, e os dois olhos verdes, cambiando, amorneciam sob a
fixidez superciliar; e o largo da testa, para ser plantado de ósculos de amor,
ia esconder-se pudico na úmida orla do cabelo, onde enrolava como uma cobra uma
fita azul. Pelas portas, que abriam sobre a varanda, sonoro de vidrações
incandescentes, auriverdes, via-se o dia lá fora, cheio, equatorial, invasor,
oceânico. Em jarros de terracota, assentes no peitoril do alpendre, que
seguia-se à sala de jantar, reverdeciam pés de alecrim, de cravos, de
junquilho, de rosa-menina; e numa corda armada entre as colunas da varanda que
seguia-se à puxada da cozinha e dependências, pendia uma vistosa toalha de
mesa, franjada, com manchas de café e de vinho. Uma toalha de sol acendia-se no
ladrilho, e abria um foco deslumbrante no flandres de um pequeno regador
emborcado junto a uma vassoura de piaçava. Ouvia-se, como um ebulir de sons num
cristalino caldeirão de luz, o discorrer dos passarinhos presos. Das
bandeirolas, pendiam duas gaiolas de fio de ferro, com casais de canários
belgas, e numa de taliscas de bambu, junto ao guarda-louça, uma graúna, negro
brilhante, lembrava o cair da tarde nos carnaubais, desmanchando-se numa
cantoria selvagem e lânguida, por modos a lavar um peito ébrio de amor, naquela
hora de modorra. As folhas das portas, com uma tinta alva de casca d'ovo,
dobravam-se na espessura da parede forrada de paisagens. Como um prédio de
construção pesada, o guarda-louça, na sua abundância de vidraçaria, enchia um
claro. Angela fazia estalarem os bilros, na renda; e o gato mourisco, de
orelhas em pé e cauda para o ar, passava e repassava o lombo sob o seu
cotovelo, fazendo ron-ron.
A Mariinha, teimosa como ela
mesma, veio com a carta do primo, sentou-se ao pé da mãe, e fê-la ouvir a
leitura.
— Eu quero que você veja só,
mamãe, como este rapaz é maníaco. Estou que ele acaba doido. Se há de cuidar nos
seus soldados, passa o tempo estudando as aves, as pedras e os matos de
Baturité e da Serra! Veja lá!
A carta parecia de rapaz a
rapaz. Nem vislumbre fugitivo de paixão. A Fabiana respondia:
— Está direito, minha filha!
Puxa ao pai, que morreu de aprender. Assim é que o teu primo há de conseguir
ser alguma coisa.
— Eu aprecio muito mais um
homem como o Visconde, que vive sempre no desempenho da sua profissão, atalhou
a moça.
— Está bom... Isto agora é
assim mesmo. O Visconde é um fidalgo, um homem notável, uma espécie de
príncipe.
E olhava maternalmente a
filha:
— Ele te aprecia muito. Parece
mostrar, até, uma certa queda por ti...
— Já reparei... fez a donzela,
entre sorrindo e desconfiada.
— Mamãe, e soldado é soldado;
o Centu não devia pôr-se agora
a idiotar estudando bobagens!
exclamou intempestivamente.
A velha, na satisfação
da sua vontade, que costumava
antepor a
tudo, não surpreendia aquelas lucilações repentinas que involuntariamente
relampeavam
na conversa da filha, a respeito do Centu, fosse qual fosse o assunto. Era imperfeito o prisma da sua compreensão,
para decompor a grossa
luz do pensamento da donzela
e ler-lhe nas cores simples.
A própria carta do oficial
traía-se, apesar da calculada frieza.
Dizia que as eleições
tinham-se feito sem mais novidade.
Não revelava grande entusiasmo
pela vitória dos amigos
do desembargador. Estendia-se muito em desenhar a natureza baturiteense, sobretudo da serra, onde passava semanas
inteiras, deixando a força entregue ao sargento. Mas escrevia
por baixo de tudo, em um "note bem", que a Mariinha não leu para a mãe ouvir, que o estudo não lhe fora bastante para compreender
tão apaixonadamente a esquisita natureza da sua terra, se
antes, alguém não lhe tivesse
fornecido a chave do cofre dos sentimentos.
Repetia a
frase dela. Dieu le veut! e acrescentava:
J'en doute!
— Que blasfémia! vociferava,
de dentro do coração, a menina! Deus quer, mas eu duvido! Ah! senhor meu primo!
O caso é que passou a crise do ódio. Raiva de amantes, que degenera
Entretanto, ela sentia — que uma coisa lhe faltava. Estava como uma gaiola cheia
de canários, donde fugira um. Voou.
O amor é como um cacho de uvas: toda vez que a carne assoberba devora-lhe uma, até que só resta a vinha da amizade, se não
lhe dá a filoxera do esquecimento,
do tédio, da repulsa,
da saciedade, da aversão.
Mariinha levou a mão ao peito, o músculo cardíaco era o mesmo, agitando a massa do sangue.
— Mas o que é que eu queria? dizia consigo, entrando na camarinha. Eu ia fazer
alguma coisa... e levou o dedo aos lábios.
Procurava lembrar-se, ligar idéias, não encontrava em si a faculdade da memória!
Pesavam-lhe as capelas dos olhos: dois abalos sucessivos haviam-na prostrado. Restituída a si, ao seu amor, por aquele nota bene que ela não vira a princípio,
estava, entretanto, cansada.
Havia, ali dentro da camarinha, um trescalar longíquo de paixão e de flores. Num ângulo sombrio, pelo punho enfiado no armador, dependurava-se
a rede, cujo panejamento dobrado entalava entre
os cordões distendidos,
o todo parecendo uma funda carregada, as voltas do tecido abraçando-se cumulativamente.
Abrolhava escapulida, uma bolota com um pedaço de varanda, em desmazelo de gente nova, em frouxo aconchego. Os cordões do punho
desleixadamente enrolado no corpo fofudo e alvo
daqueles algodões, apareciam enlaçantes, como dedos que abarcam
e afagam. Réstias de sol imprimiam pelo recinto os seus
topos acesos, grandes olhos de luz, pequenos caprichos de claridade.
Um cheiro de mato subia da esteira, nova, sobre a qual se estirava um par de sandálias de marroquim,
com o jeito do pé. Fechou sobre si a porta, cor
de folha madura, francate esvazada na parede branca. Armou a rede. E dormiu.
Antônia veio mostrar-lhe o Meirinho, jomalzinho picaresco
e jocoso, que trazia
umas chavascadas no Visconde; porém recuou, por não
acordá-la.
Quando o desembargador
foi para
o jantar, disse, como costumava, as novidades do dia; entre as quais a nova de que seguira para Baturité um oficial, render o Centu, que tinha de ir para o Amazonas, dois dias depois, por ordem do Ministro, vinda por telegrama.
Cortando a carne assada,
Mariinha,
ao escutar esta notícia, demorou um pouquinho o garfo à beira do prato, baixando os olhos como se estivesse
engolindo alguma coisa com dificuldade. Depois, voltando a si, pigarreou, e continuou
a jantar com a maior calma deste mundo.
O pai entrou a enfatuar
de elogios o nome do moço,
almejando-lhe uma esposa condigna, possuidora de bens que garantissem-no contra a perseguição da sorte.
Gabou muito a carta que ele dirigira à prima, no sentido
de atraí-la para o estudo
sério das coisas.
"Se ele fosse outro, acrescentou,
cuidava era namorá-la."
Aquele post-scriptum fatídico a Mariinha arrancara, para mostrar a carta
ao pai, avançando que o papel rompera no abrir do envoltório.
Embarcava pela manhã, no
paquete brasileiro, o Centu. Vivia agora numa calma feliz, tendo conseguido
torcer o pescoço, como ele dizia, ao pintainho do amor. Concretizou, na
excursão, vários conhecimentos. Gozou do supremo prazer de colher, comparar,
deduzir, induzir, generalizar, formular princípios, lendo no livro da
observação, fervilhando na natureza bruta. Indo para a bacia do Amazonas, que
antegozo o picava, que curiosidade, que estremecimentos!
E Mariinha?
O desembargador, calculava que
ele voltaria capitão do Corpo de Engenheiros, ao que o tenente objetava dizendo
que era preciso ser transferido previamente para o Estado-Maior de 1 ° Classe.
— Pois isso, pois isso! Hei de
fazer valer os seus trabalhos.
— Vosmecê cuida ainda que, mesmo
no Exército, voga o que mais age no desempenho dos seus deveres e no evoluir
da sua vocação?
— Está bem, eu sei que tudo neste país é muito pela casca. É por isso que quem
primeiro anda primeiro manja, contra o Evangelho,
que diz que os últimos
serão os primeiros.
— Pôr-se em evidência pela
astúcia! frisou o moço.
— Pois sim! E estamos na lei
da sabedoria: pomba e serpente.
— Esse consórcio é quase
impossível, é contranatural.
— Pode ser até absurdo!
Enfim, seja o que for, não
é motivo para desesperançar.
Enquanto aprendo e trabalho, sou feliz. Navego sem pavor de naufrágios. Soçobrando, fá-lo-ei com frieza de marinheiro
que nisso vê o seu
fim natural. Entretanto, enquanto puder, deito lastros ao mar. Já comecei...
— Como já começou? Então se compara a um navio?...
— Sou um navio que largou
carregado a todo o calado, de um porto, e atravessa o oceano,
visando outro porto. Do Rio a Lisboa, por
exemplo. Tudo é não deixar-me surpreender pela borrasca,
nem pelas
colisões, nem pelos parcéis.
— E então?
— As colisões, evito; ou
afundará o menos avantajado. Os parcéis, a eles não vou porque conheço a
navegação, e se for, me arrebento gaIhardamente.
— E a tempestade?
— Carga ao mar.
— E que volumes tem deitado? Diz que já começou...
— À medida que o mar
se encapela (neste ponto o símile é imperfeito,
o mar da vida, para cada
indivíduo, vai embravecendo gradualmente, fatalmente, até o horrível ciclone da morte), vou alojando às ondas do esquecimento, ou da abstinência, vários pequenos vícios e prazeres, e até
alguns sentimentos...
— Bons ou maus?
— Se bons ou maus sentimentos, não sei.
O mais pesado de todos, que
por um triz imerge o tombadilho, tanto pesava, foi isso... de amor...
— Hein, isso de amor?!
— Vosmecê não calcula sequer...
— Então isso leva ao
fundo do mar?
— Avalie um negociante que se estabelece à fiúza de outro, assinando letras; entra pagando juro, sem liberdade, comprando caro...
— Mas não é o geral.
— Ê o meu caso, e o de todos
os moços pobres que são
votados a
um serviço como que nacional, cuja vida não pode encerrar-se no lar, que anseiam é por palpitar com um país inteiro, são um glóbulo de sangue que tem que circular no organismo
de um povo do coração
à ponta
dos cabelos e às unhas dos pés.
— Que imodesto que é!
— E pretensioso, não me faz favor.
O velho sorria pelo brando. No
interior, estava contentíssimo com aquela franqueza bruta de soldado,
confiante, decidido e bravio.
— Disto é que o Brasil
precisa, filosofava, a fungar uma pitada. Com que não se casa, não é assim?
— Não. Eu mesmo hei de
carregar a mochila, quero estar escoteiro para levantar acampamento ao primeiro
toque.
— Admirável, admirável.
O velho passeava de um canto a outro da sala, sacudindo o lenço de tabaco.
— Sabes muito, meu filho, mas ignoras uma parte de ti
mesmo. O conhecimento é um sol que se acende no cérebro.
No ser, entretanto, há grutas onde ele não penetra nunca. Nessa gruta é a fonte das
contradições. Sobem dela vapores que ofuscam inesperadamente, o sol se oculta, a luz
decompõe-se em cores diversas, o ser parece outro, e o mundo chama-o contraditório. Mais tarde volta o clarão
diuturno. Novas nuvens passam depois, ou demoram. E assim
vai. O homem é como a nossa atmosfera, meu
caro, sempre a mesma e sempre variável, domínio do imprevisto, do problemático.
— Ora diga-me, senhor: esse grande
amigo seu, esse Visconde, não se tem conservado refratário aos afetos?
O legista ficou em dúvida.
— Não tenho elementos para responder-lhe. Mas desgraçado daquele
que não é caroável a essa
afeição, a esse sentimento primordial, candeia, roteiro, chave das puras delícias do espírito.
— Mas há tanto bruto que ama! exclamou triunfante o moço.
— O que quer dizer com isso de bruto? Em todo caso, destaque da massa humana os indivíduos
privilegiados, e veja se a algum deles faltou essa afeição.
— Mas não quer dizer casamento.
— Isso agora... conforme.
— Qual conforme, nem
meio conforme,
confesse que venci-o!
Mariinha que apanhara metade
da discussão, e compreendeu a mira das palavras do Centu, aquela obstinada
pirronice, aquele torcer da conversa para um só rumo, de caso pensado; tendo
apertado a mão ao primo, e ido para a janela, não pôde assenhorear-se, e mal
findava ele aquele o venci irónico, ela avançou e atirou-lhe, como se fora uma
bofetada a um malcriado:
— Isto é ser bruto de mais!
Proferiu, ou antes gritou
estas palavras como a cobra que dá o bote, e o moço
ficou como se lhe houvessem abanado os queixos. Mudo e quedo. Cobarde.
Mariinha desapareceu ato contínuo pelo corredor, e o pai, caindo das nuvens, gritava-lhe: 'O que é isto!? O que é isto!?
"seguindo-a, porém ela desaparecia
vertiginosamente adiante dele, até que bateu-lhe
a porta
da camarinha. O pai ordenava que abrisse,
ela soluçava de dentro.
Passaram os minutos,
num forte
palpitar de corações. O pai a pouco e pouco foi invocando o raciocínio:
— Dar-se-á o caso que. ..Santo Deus! Mas.. .eu não lhe vi indício algum de histeria!... Ela é sã como um abacate. Ah! Estes ladrões... estes canalhas
se amam! Patifes, e me enganarem até aqui!
Um transporte de alegria
relampeou-lhe. Estava descoberto o meio de aniquilar por uma vez a turrice da Fabiana, que queria
à fina força casar a adorável criança com o repelente politicão do Afrodísio. E, contra o natural dos pais que se abalam com a simples idéia de entregar sua filha
a outro homem, achou conforto.
Tremente, sibilou pelo buraco
da fechadura:
— Já compreendi, minha filha,
acalma-te, e conta-me a teu favor.
Felizmente, rodava um carro na rua e parou na porta. O Centu, sozinho
na sala, veio à janela, e num longo suspiro restabeleceu a calma para o sangue. Como poderia encarar ao desembargador, que era um homem tão estouvado e ingênuo quanto fino, sem envergonhar-se?
— Ele compreendeu, por força! — cogitava o coitado.
Olhando para
o carro conheceu a tia, que apeava com a Antônia.
— Anda com isso, mulher! gritava a Fabiana, desenganchando do estribo o rabo da saia. Que lesma!... Oh, então você está aí, senhor valente capitão?
— Estou, sim senhora,
respondeu da janela o Centu. A sua bênção. — Deus te abençoe, e te faça um
general. Anda com isso Antônia! — Vou já!
Antônia, com um pé no estribo,
segurava uma trouxa de sapotis.
— Deu muito trabalho apanhar, o lenço desatou-se todo
e caiu tudinho no carro. Pode ser que tenha ficado algum, — e virando-se para o cocheiro,
que fechava a portinhola:
— Procura
para ti, Joaquim.
— Este cá não vive dessas
porqueiras, cá é carne e pirão, resmungava o moleque,
fechando a tromba de negro ruim.
— Quase que não
venho, minha gente, exalava a Fabiana, subindo, os três degraus, pegando o vestido na frente
e arrepanhando a cauda.
A Dona Porcina é tão
agradável, e a Jacarecanga é tão longe... Safa! Estou como se viesse a pé... O carro sacode tanto... Osorinho, é preciso comprar-se outro carro!
O Centu e o Osório vieram recebê-la na porta. Ela tomou para a camarinha,
ia desapertar-se, e meter o pé na chinela; o sapatinho de cordovão
era uma luva, mas arrochava como os trezentos.
Antônia correu a guardar os
sapotis na despensa, que estavam de vez; os poucos maduros viera comerricando
com a madrinha, na viagem. E ficou o Centu de frente com o desembargador:
— Sim, senhor, vosmecê tem uma
grande habilidade.
Esta frase, dita pelo manso,
com um certo ar de apoio e superiorperspicácia, puxou ao Centu o inevitável
sorriso, irreprimível, amarelo, de quem não acha termos para escudar-se, tão
flagrante está a verdade.
— Sente-se na cadeira de
balanço... Amanhã vosmecê embarca... E diga: promete escrever-me?
— Sempre.
— Tanto basta. Louvo que
sustente a sua maneira de pensar. É o melhor caminho de se mudar de idéia; para
melhor, bem entendido.
— Agora é que eu rio francamente, exclamou o mancebo, de um
salto, pondo-se em pé, tomando de novo as rédeas do coração:
Eu? Mudar?
E soltava uma gargalhada seca.
— É isso mesmo! gargalhava também o desembargador. Você? Mudar? E ria irónico, e riam
ambos, pondo no canto do olho uma pontinha de brejeirice.
— Você quer saber de uma
coisa, senhor futuro Capitão de Engenheiros? Cheguemo-nos às boas, e vamos a
um gole de vinho. .E erguendo-se de mãos no bolso:
— Oh Ângela!
— A praça rendeu-se,
—entressorriu o oficial, agitando o balanço da cadeira,—com armas e bagagens.
Defronte, nos fofos
de lã que encobria o mármore como as rendas
a alvura de um
seio, empinava-se o retratozinho da Maria das Dores, em busto, na doçura
dos
quinze anos já passados. O olhar fito da fotografia
molestou-o,
e fê-lo mudar de cadeira,
protestando contra o sol que batia nas paredes
do Nascente.
Entrou a brincar
com a corrente do relógio.
Estava outro. Tendo feito sentir claramente
ao pai de
Mariinha o seu modo de ver sobre isso de amor, foi uma verdadeira vitória. Sentia-se mais de casa, despira todo o acanhamento.
Absorvia-se
no passeio ao Amazonas. Donzela que ia
ao primeiro baile. Daí, cobria a tudo com um
dourado sorriso de felicidade, todo rosas, limpidez, candura, esperanças. Mil cegos pedissem-lhe esmolas naquele dia, que aos
mil daria tudo, tamanhos lhe eram a sensibilidade e os receios. Acentuavam-se-lhes os traços, e a fala fremia e ofegava
nos pontos e vírgulas.
Mariinha ficava. A culpa não
era dele, que resolvera, para ser forte, dedicar-se ao exclusivismo da Ciência. Não há como um sábio, embora rombo de sentidos, de hábitos
e de paladar.
No insondável de sua alma, o Centu ficou lisonjeadíssimo com
a cena que dera a prima; e cada vez se tornou
mais sobranceiro, por julgá-la mais cativa, completamente conquistada, de todo entregue. Já não havia ali as seduções de um
problema.
Angela depôs a bandeja com uma
garrafa e cálices, e o desembargador serviu.
No momento em que o Osório
entregava-lhe o cálice, o moço fez uma pergunta, passando de um pólo a outro,
com uns ares de mulher quarentona e curiosa:
— Ora, meu tio,
diga-me lá, quem é essa Dona Porcina, donde veio a tia Fabiana, e de quem muito
ouço tratar?
— É... é... proferia o
outro baixinho, e parou. Relanceou o olhar pela sala como se faz nas
confidências de teatro; e debruçando-se por cima do moço, fazendo, com a mão
arqueada, sombra à boca, sibilou cochichando:
— É uma viúva muito
estimada pelo Visconde.
— Mora...
— Em um sítio
esplêndido, na Jacarecanga.
— Mas então, como é
que...
— Muito simples. Tua
tia procura freqüentar todas as pessoas que o Visconde preza. É um jogo. Aquilo
é política como os seiscentos! — Mas que vantagem poderá ela...
— Meteu-se-lhe no
miolo casar a filha com o Visconde! Aí está. O velho deu uma volta pela sala,
e, como se faz nos romances, reparou minuciosamente o efeito de suas palavras
no sobrinho afim. O rapaz proferiu simplesmente um arregalado:
— Caramba! E mordeu os
beiços pondo-se de pé.
— É certamente um
grande enlace, não há dúvida nenhuma. O desembargador vai ser trunfo.
O velho observa-o de
braços cruzados.
— Muito obrigado. Mas
fique sabendo que se isso acontecer, é por elas. E não preciso ser trunfo.
Nesse julgado faço de Pilatos.
— E a sua candidatura
à senatoria? sorriu o moço, em tom filial e confiado.
— Disso já perdi a
ilusão. Estou voltando ao meu tempo da academia, sabe? em que acastelava
pensamentos de justiça, de hombridade, de independência, supondo que amoldava
os homens a mim (porque cada qual faz o mundo à sua imagem e semelhança).
— Os moços querem ser
palmatória do mundo...
— Depois, caí na
babozeira da vida prática; os interesses da política estragaram-me
completamente, fui deputado, fui presidente de província, fui grande, e
finalmente queria cronificar a minha grandeza: ser senador, babau! Já passei
dos cinqüenta, e nada! Ultimamente, apareceu-me esse Visconde. Supus que fosse
uma adivinhação de minha mulher, que tem a feminil pretensão de ler no fundo
dos corações alheios... Finalmente, o nosso homem é um mercador, como eu fui,
como todos os partidários... Você sabe que isso de justiça pública, é sempre
obra humana, sujeita aos caprichos e paladares. Houve meio decente de aliar-me
ao Visconde, pois sim, aceitei. E ficou ele com mais um desembargador na
Relação.
— Bravos, é de uma
franqueza a meu modo.
— Estou na fase. Não
tenho, porém, mais interesses, nem propensões. Disponho-me a seguir só. Tenho
de que viver, estou livre de parentalha arranjável. Enfim, vou acompanhando
ainda o Visconde, mera formalidade; um belo dia rôo-lhe a corda. Depois, a
Fabiana gosta que eu assim proceda; e ela apesar de seus defeitos de raça e de
educação, é todavia a pessoa que me ama sinceramente, que me sustenta o
espírito nas crises de desânimo, ela enfim é sempre a minha mulher.
Na noite do casamento,
disse-lhe:
"Faça de conta
que sempre fomos casados, e todos os dias, no correr dos decénios, julgue
sempre que está casadinha de novo. Assim a felicidade não nos abandonará,
decerto."
— Mas isso é humano?
— O divino é apenas um
caso particular do humano.
— A razão é que não casaram
somente homem e mulher, senão a sua natureza com a dela.
— Diga-me lá—irrompeu
novamente o Osório, mudando de ar: —O que é o Diabo? É Deus em divergência
consigo mesmo. O que é Deus? É o homem concebendo a suprema força. O que é
homem?...
— Não sei aonde me
quer levar...
— Quero lhe dizer que
a Ciência não sabe o que é o homem! Responda! Penetre nas diversíssimas
organizações que se embastem do passado até hoje, como farinha de nebulosas,
nos mistérios do íntimo, no mundo psíquico, e tire uma fórmula geral.
— Mas a que vem...
— A que vem? A nadà, é
que você parte amanhã, e eu não sei se o verei mais! Há só um recurso infalível
de não transformar a nossa afeição em motivo de dor. A força do raciocínio.
Pois é essa força que assegura a paz do meu lar. Você ainda anda de sunga de
alçapão! Vá para o seu Amazonas, é um futuro brilhante. Estude, engorde o seu
espírito. Fique certo de que nesse pau tem abelha. Não surpreenda-se quando
aparecerem os favos de mel, e o zumbir de insetos a aferroarem-no.
— Misteriosas
palavras! Isso é filosofia indígena?
A Fabiana gritava lá
de dentro:
— Oh seu Doutor
Osório, deixe de arreliar o menino!
Pelas cinco e meia
foram jantar. Maninha não compareceu. O pai amparou-a contra as exigências
fulminantes da Fabiana que alegava repetidamente gente moça não ter juízo, que
não dizem o que sentem cuidando bigodear aos velhos, que devem é levar muita
peia, que se enganam aos pais, a Deus não lhe botam poeira nos olhos; e por
aqui assim, esvaziando uma grande pipa de bílis.
A coisa é a Fabiana
estar com os seus azeites, e sentir a mínima contradição a uma vontade sua. Não
saiu-se como ideara na visita a Dona Porcina; pois que... essa senhora não
perdera ainda os seus sonhos a Viscondessa...
— Mas é o que tu não pegas, amargava consigo a Fabiana. Também amava!
Quem pagou o pato foi a Mariinha. Sim, porque nessas pessoas de bilis atroante, a causa do frenesi, — é como
o ferro candente lançado pelo ferreiro à tina de água, e que faz efervescência na superficie, ou como a gruta do álveo que produz o perau nos rios, e fica fora das vistas.
Na monstruosa engrenagem do rancor, do ódio,
do amor próprio contrariado, a roda motora fica inapercebida na sua insignificância. Parecia que a fúria proviera da filha, talvez a própria Fabiana entendesse isso; mas é que esta senhora havia encontrado
As mulheres quando se encontram se beijam,
mas os homens que ouvem
aqueles regalados estalidos sorriem e comentam,
sabe Deus
o quê.
Fabiana, invadindo o sítio da outra, e chegando
à habitação, edificada entre os cajueiros, abriu um grande ar de pasmo topando
a Dona Porcina, e fingiu ter-se iludido:
— Ah, minha querida, desculpe... eu me enganei... ia para o sítio do Dr. Barbosa, que é neste correr...
— Não há de que, Dona
Fabiana, ora esta, agora entre e descanse, faça
favor.
E pronto. A Fabiana
estava introduzida. Serviu-se de garapa de cana; foram ver o riacho,
percorrer o sítio, e bastou.
A dona da casa pressentiu
que aquela princesa dos sertões ia ali era farejar o rosto do Visconde, e com acinte feminil, dava a entender, tanto quanto permitisse o trato com uma senhora afidalgada, a amizade que o titular
lhe dedicava. Só faltava dizer:
— Ele e eu nos queremos! A
senhora chegou tarde com a sua filha!
Fabiana tinha, por
conseguinte, pedra no sapato. Ora, como quando uma pessoa está de mau humor,
embora descarregue-o sobre uma dada criatura, a gente sempre toma para si uma
parte daquela zanga — é o caso de estar bem consigo e mal com todos —, o
coitado do Centu, ainda por a vítima ser a Mariinha, ficou pelos ares. Cada
palavra áspera que a mãe botava contra a filha, era um aperto no coração dele.
Mais uma verificação de que havia um quê é de inextinguível entre as duas
naturezas, dele e da menina. Mariinha não apareceu, e nem era possível. Por seu
lado, maldara que a mãe havia descoberto o namoro dela com o Centu.
A noite, porém, foi à sala.
Quanto à cólera brutal da Fabiana, tendo aparecido o Afrodísio, foi água na
fervura.
Fabiana abriu-se toda,
como as folhas do mata-pasto
ao sair do
sol, e desfez-se em carícias para a filha,
e para o sobrinho, chamando Osorinho ao marido, e espanejando
gostosas gargalhadas de sertanejo.
Aquela mulher tinha consigo
uma qualquer morrinha, alguma coisa no interior, assim como a semente de uma
doença vagarosa e fatal, um broto raquítico hoje, amanhã viçoso, e vice-versa;
pelo menos assim entendia o marido. Um curandeiro matuto que a conhecesse,
diria logo na sua experiência, franzindo a cara, com um ar magistral:
— Seo compadre! Neste pau
tem formiga!
Apartados para a janela, em
que a Fabiana atirava a filha a conver-sar com o Visconde, o Osório e o Centu
discutiam o caso:
— Ela não era assim — dizia o
marido. Receio que venha dar em alienação!
— Qual!
— Está emagrecendo...
— Muito pouquinho. São fatalidades da carne. Pode
ser que seja a morte que comece
a brocar o seu
roçado. Se
assim é, não há tolher. Já fé-la examinar por médicos?
— Ela mesma os chama. Quando
lhe dá na mania queixa-se de quanta moléstia há no mundo!
— E o que eles dizem?
— Receitam, e não fazem
diagnóstico positivo. Também eu não tenho dado cavaco.
— Já sei, é vítima
do grande
mal do século.
— Hein?
— Da nevrose.
Aqui ao desembargador
subiu-lhe sangue às orelhas, e dando um passo para trás, largou um prolongado:
— Com efeito!...
O moço ficou como se houvera dito uma
grande asneira.
— Pois seu Centu, você entoa
com essa troça das outras terras, sem mais aquela?...
— Está dito. Minha tia é vitima de nevrose,
o grande
mal do século.
— Prá que vocês hão de ser
embusteiros! Seo Centu, o grande mal do século é a Cavilação. Fabiana é uma grandíssima cavilosa, como quase todas as mulheres
educadas com quindingues. Se receio pelo juízo
dela, é porque seu bisavô morreu doido, que você bem sabe disso...
Podia que fosse essa a última noite que o Centu passava
entre aquelas paredes, podia que fosse a derradeira vez que o seu olhar modesto se abrisse, como a estrela na
noite, imerso, como a papa-ceia com a dindinha Lua, no disco luminoso que irradiava
da calma simpatia da Mariinha.
A menina estava uma tagarela. Mesmo com o Visconde, — por
quem nas tredas horas do ciúme, do suplício
da carne,
sentira brutal e vingativa inclinação,
mas que a
sua nobre natureza repelia, — falava por quantas juntas tinha. O que ela queria era fazer a sua voz, as suas idéias, os seus pensamentos, setarem pelos ouvidos do Centu, como a flecha do índio atirada para o alto e que desce ao alvo certeira. Assim como, com a menina dos olhos,
dominava-o por um longo beijo das duas pupilas, assim quisera
com a voz, e com o pensamento. E o mesmo
fazia ele.
Cantou o Vorrei
morir. Baixinho, como só para o oficial, impressionou-o. E ele erguendo-se, para ela,
dizia galanteando:
— Prima, isso de querer
morrer, embora no mês das flores e das aves, já se não usa. Não existe mais a morte. Vive-se eternamente quando...
E disfarçando a folhear
o livro da música,
aberto na
estante do piano diante dela, como à procura de uma peça conhecida, acabou a frase, só para os dois:
— Vive-se eternamente quando
se ama!
Que sorriso com que a moça
aureolou esta oração nos seus lábios mudos de pejo e de contentamento!
Arrulhou ainda uma modinha brasileira, e então ao Centu subiu-lhe
mesmo o sangue indígena. Vibrou com as paisagens pátrias, agiu com os nossos músculos, cismou com a nossa modorra, palpitou com o nosso coração singelo e ardente, puro e cioso, doce e bravio, luminoso e tonante como as fecundas
tempestades do inverno, coração suicida que acaba por arrebentar com as hipertrofias; e no gemido consolador daquela
cantiga em música e língua nossa, naquele volteio sensual e queixoso, o Centu sofria
!mpetos
de ajoelhar aos pés da amada, embolar-se com o gato friorento debaixo de seus
pés, viver como pulga nas pilosidades daquela
epiderme,
ser uma das suas chinelas, um ponto das suas meias, uma dobra da sua camisa, um biquinho dos seus seios, uma gota do seu sangue, uma bossa do seu cérebro, um cabelito daqueles braços, uma palma daquelas mãos que quando
tocavam pareciam ter a alma nos dedos!
E quase que se levanta e diz ao pai, implorativo e decidido, torcendo o boné entre as mãos nervosas:
— Meu tio, eu já não embarco!
Embarcou sem despedir-se. O Osório foi do parecer
que não era bem aconselhado ele fazer os seus adeuses à Mariinha, porque,
a mão de uma pessoa
amada que
se despede aperta umas certas molas do íntimo, como em certas
bonecas, e o sentimento grita. Bem sabia que a Fabiana destinava a sua bonequinha ao Visconde. Que ele, Centu, nãose arreceasse disto, mas que não era curial chofrar
assim a Fabiana com uma pedra inesperada!...
— Asseguro-lhe que a sua tia nem se apercebe
da sua benquerença! Ela vê as coisas pelo seu próprio pensar. Está certa de que a menina e o Afrodísio se amam!
— Meu tio, quer saber? Antes venha a ser como ela deseja. A falar franco, hei de envidar tudo por apagar essa candeia que se me ateou na alma à socapa.
Osório ria cínico:
— Seja. Mas o que eu não quero
é a minha Fabiana contrariada...
— Nem eu tampouco, meu caro senhor.
— E quanto a desarraigar ou não isso de amor, digo-lhe que a erva é de caule subterrâneo, é como capim-gengibre. Tenho muita confiança é numa coisa: vocês ambos são educados, e têm o sentimento do verdadeiro, e não são
organizações pervertidas. Confio na hélice e no leme dos dois paquetes, nas
impulsões das duas naturezas; se atraírem-se, melhor, se afastarem-se, melhor.
— E que idéia minha tia fará de mim se eu não for tomar-lhe a benção?
— Vá às sete da manhã. Levarei a menina para a missa de Lourdes; tem de ir, que é sábado.
Foram para bordo às duas da tarde. Daí, o Centu viu-se no meio dos camaradas, uns da oficialidade do batalhão, outros da rapaziada paisana, que se lhe tinham afeiçoado, e os companheiros de comissão, boa troça do tempo escolar. Tudo nele transmudou realmente, da terra para o oceano. Quando o escaler, à forte impulsão dos remos, estonteava em cima da onda, ele erguia o busto altaneiro, o mento para o ar, — como o cão escapo do outro, e que adiante, livre, na primeira eminência,
alça o focinho e late por despique e desafogo. Agora ia pertencer exclusivamente ao seu verdadeiro amor: à Ciência, palavra proferida de boca cheia.
"O passarinho que comeu o xerém e o queijinho da gaiola, cuidado por mão amorosa e
vigilante,quando foge, —pensava o Osório, silencioso, sentado ao fundo —, tem perdido muito da boêmia das aves, e não tem o mesmo vigor no bando."
Mariinha em casa, estava prostrada. Inventou um estalido. E então, Santo Deus, a sua dor podia gemer alto. O Centu ia naufragar... Quando visse unicamente mar e céu, e no tenebroso da tempestade, aí o vapor afundava... Ela tapava os olhos e dava um grito. Considerava-se viúva. Ah! tornaria ao Colégio, ia ser Irmã!... Mas a congregação não aceitaria mais, ela tinha agora consigo, como a louça velha, as eivas do calor mundano impregnadas de ranço. A Fabiana trazia-lhe bochechos, e ralhava Porque ela repelia o remédio:
— Mamãe eu sinto uma agonia no
estômago... não sei se engolir isso...
— É só para tomar na boca, e
não se engole, filha! Arre, com os diabos, valha-me Deus! Tem efeito vomitivo.
Agora, arranja-te! — Pois deixe estar, mamãe, ora esta! respondia a menina
chorando,com mágoa.
Era o que mais doía-lhe
dentro: não ser compreendida pela mãe, estar
sob o jugo daquele animal tenaz,
e desapiedado, com doçuras e crueldades de tirano.
Figurava a Fabiana como certos araçás, que tem um lado maduro e doce, um pedaço verde e outro pedrado, e outro
já podre. Antes não a tivessem posto no Colégio, se queriam-na inteiramente moldada ao sabor da mãe.
Mas não. Permitiram-lhe aprendimentos que lhe germinaram gosto próprio, alçaram seu
pensamento a alturas que a mãe não divisaria nunca; e agora, forçarem-na ao
vôo rasteiro? Antes bodocar de uma vez a andorinha, e vê-la morta, do que atirá-la de penas aparadas rojando no pó.
No dia seguinte, à noite,
houve terço com alguma solenidade. Acendeu-se
uma vela
do Santo Sepulcro, de muitos anos, já com a cor e as manchas peculiares da cera antiga.
À tardinha, teve de arrumar-se de novo
o oratório, para hospedar
mais uma imagem, — Santo António,
chegadinho
do Porto. Mariinha, de queixo amarrado, e Antônia, auxiliavam de bom
grado à Fabiana. Gostavam de pegar naquelas pastas de tinta viva e doiradas de rendas e salpicos de flores, naqueles nariguinhos, boquinhas
e olhos de vidro; tinham
ímpetos de
apertá-los, ou de beijá-los em cheio na cara.
Riam dos
malfeitores, e admiravam os bem acabados:
— Este santo, sim, faz
milagre... Mas aquele?... Bem queria!
E soltavam muxoxos. Riam como os preás. Fabiana, com os seus óculos, muito aplicada na sua obra, não prestava-lhes ouvido. Lá uma vez ou outra passava um pito em ar de gracejo. Estava de um humor admirável,
o que era uma feliz compensação para o machucado coraçãozito da Mariinha.
Fabiana apelidava o Santo Antônio:
o seu namorado. A imagem, numa caixa de folha envernizada à água-forte, sob o reflexo argênteo do flandres, estendia-se como
um anjinho no seu caixão, ainda cheirando a copal, entre um recheio de fitinhas
de papel, à espera
de que a
arrancassem daquela modorra. Vênus de burela surgir das
espumas. Tinha palmo e meio de altura, fora o resplendor.
Antônia apanhou o santo
num abraço reverente, e pô-lo de pé sobre as suas coxas, sentindo-se bem ao contacto transfigurado e cheio da peanha. A cabeça do amoroso frade
e legendário pregador das turbas, muito redondinha, naquele momento, saía do sono de uma viagem em pacote, para fisgar o olhar
matreiro nasi feições da loira... Enfiaram-lhe, por um buraquinho do sincipúcio, o resplendor
, de prata, aberto profusamente em forma de cauda de pavão. Ai que gorducho e
engraçadinho que era!
Aquele nunca sofrera de
moléstias. Vê-lo é ouvi-lo. O burel, uma sombra. Semelhante ao traje grosseiro
das donzelas do campo, em nada , apouca, ao contrário, faz destaque ao corpo
cetinoso e túrgido que se adivinha.
De um embrulho de papel
de seda, Mariinha desenrolava o Menino Deus, um
pimpolho de carne, fortemente cheirando a verniz, estremecendo em um riso íntimo de infância, espernegando como em travesseiros de cetim e alfazema:
— Ai gente, olhe a pimbinha dele,
mamãezinha! gritou ela, com que Antônia ficou
muito escandalizada, e até repreendeu-a:
— Dorzinha! — exclamava esta,
como se acontecera alguma desgraça. E indicava com um beiço e um olhar severo
o respeito devido à Fabiana. Esta, porém, num riso úmido, entrou a pespegar
enormes beijos no pequenito, dizendo que era preciso fazer-lhe uma camisinha de
cambraia com bicos de ouro; e falava como bebê, em tatibitate, com efusões de
mãe. Das Dores sentia uma doce inclinação pelo pequerrucho. Antônia ardia por
fazer-lhe cócegas, e por ficar sozinha no quarto, naquele cheiro de homem que
lhe saía dos próprios sentidos, ante o Cristo pregado nu e musculoso na cruz,
lá ao fundo do oratório, ante aqueles santos varões barbados.
A lamparina, em um copinho roxo,espalhava na toalha odorante a roseiras,
um clarãozinho
violáceo. A toalha, ao gume da pesada cómoda, caía em cachoeira de rendas e babados,
por cima do frontal de damasco eriçado ao de leve pelos puxadores das gavetas, biquinhos de peitos ocultos.
O dia poeirava ali, pouco difuso, parco, sobras anêmicas da perenal harmonia exterior. No campo das paredes bruxuleava um paraíso de quadros bentos, bem-aventurados
de diversas condições e idades, mendigo até rei, donzela até messalina,
salteador até pontífice, operário até apóstolo; dentre
todos ressaltava o Batista, metido numa pele de carneiro, com energia desusada, a desfraldar no tope do cajado
a bandeira do Ecce Agnus Dei; revolucionário, selvagem, puro, dos lábios voando-lhe a sublime palavra do sábio
e do poeta; e pobre,
e nu, e sóbrio, era, — entre o luxo
e a ingenuidade de seus
colegas de
Empíreo, ali presentes na parede em grande auréola em torno da cômoda, — como a casca de uma árvore frutífera que alevantava o porte monstruoso dos seus
braços por sobre a casquilhagem de um jardim de flores ociosas. Mariinha ficava horas de mão no queixo a admirá-lo sem o compreender.
Fabiana pediu mais claridade para ver bem
o efeito da nova arrumação das imagens no oratório. Antônia, mais que depressa, escancarou as janelas da sala, e as
portas do quarto; mais uma pouca de dia entrou, e também o vento, que atacou de
súbito a um molho de palmas bentas que pendia de um armador, e as pontinhas da
palha encarquilhada roçagaram no áspero do caiamento com ligeiros pruridos de
lixa. Fabiana sentava-se num baú grande, envernizado, de aldrabas de latão e
tendo na fechadura uma penca de chavinhas luzentes; cansada, deixando-se
escorregar até à parede, cruzava os braços desleixadamente, apreciando o
serviço feito. A saia arregaçara um bocadinho, por modos que os olhitos azuis
dos santos perceber-lhe-iam a canela reluzente, com uma roncha de chaga antiga.
II
Não houve novena, nem terço,
nem promessa que fizesse os gostos à Fabiana. Qual casamentos nem namoricos da
filha com o Visconde! Uma miséria. Duvidou até da masculinidade do fidalgo, e classificou-o com um nome feio. Que aquilo
era ver o bacorinho de chiqueiro, insensível às doçuras do Amor. Osório ria
disto que era um gosto, e repetia joco-sério:
— É Fabiana, é isso mesmo, ele
parece que não é caroável a muIheres. O que eu creio, porém, é que a nossa
nobreza não é suficiente. Sua Excelência prefere acabar solteirão, a desposar
donzela que não seja da sua iguala.
— Home na verdade, compreendia
ela, mó de coisa que é isso mesmo!
E desse jeito, Osório tornava-se
mais coraçudo para com a dura Fabiana chegando a dizer-lhe um dia nas ventas:
— Parece que não enxergas?
Pois não vês, pelos modos, que esse Afrodisio Pimenta é sim uma boa criatura,
mas que não tem coisa alguma das que exiges?
— Não
é caroável a mulheres!
— E depois, a Maninha
não casará com ele.
Por
que não havia de casar? Ela
se governava?
Osório sabia o motivo. A
mulher quis por força que o dissesse, mas ele teimou em não, e foi mudando de
assunto.
— Fica prá missa
do dia.
— Então
a menina não é caroável ao
casamento.
Risota
por parte do marido.
Não, lá isso; tu mo hás de
dizer. Estás pegando uma moda que não tinhas. — Vamos, diga lá, por que é que
ela não casa?...
— Porque... Ora gentes, aí
está: porque não chove! Fabiana, olha o que eu te digo: Sê menos crédula. E
senão... Deus queira que tu não tenhas plantado a desgraça nesta casa!
— Que diabo estás dizendo!
Osório, deixemo-nos de mistérios. Ora muito bem!
— Nada, filha; vai para os teus
arranjos. Entretém-te a costurar, e governar a casa... Pelo amor de Deus, não
me inventes mais coisas... — Que coisas? Terás tu bebido sobrei osse?
— Nada. No frigir dos ovos é
que se vê que manteiga sobra!... Dize: tens reparado a Antônia?
— A que respeito?
— Quantas vezes mandaste Ângela com presentes ao Afrodísio?
— Muitas.
— Meia palavra basta.
Aqui ele conchichou no ouvido
da mulher, e esta fez primeiro um ar de pasmo, que transmudou em incredulidade.
— Duvido muito, homem. Quê?! O
Visconde? Duvido até com os pés! Não é caroável...
— Sancta simplicitas! — fez o Osório em atitude de oração. Enfim, se
for, não me pesa na consciência.
— Desse pecado? Quero eu arder no inferno!
— Pois estás fritinha... Em
todo o caso, Fabiana, tu és mulher, e peço-te que repares. Não crés, não é assim? Mas olha
que somos donos desta casa, e respondemos por todos que estão sob o nosso
telhado. Faze de conta que és polícia, tiveste
uma denúncia, espiona, teu dever é averiguar. Não calculas quanto me aflige e assusta
se isto for verdade. Pois que diabo de homem serei eu? E se os adversários políticos explorarem o escândalo, pondo a autoria para cima
de mim?
— Não, por isso responde essa senhora.
— Toma providências, e se já for
tarde, é urdir o segredo. Quando me lembro! quando me lembro!... Olha, separa-a
um pouco da Mariinha!...
— Mas se for uma calúnia?... É calúnia,
é! Não pode deixar de ser!
— Fabiana, faça o que eu lhe digo!... imperou o marido. A sertaneja,
em toda a
sua proa, gostava contudo, quando, num
caso sério e grave, depois de disputarem, o marido
batia-lhe o pé. Faça-se isto! — Ela não
dava a entender obediência, ao contrário, replicava; mas aquilo, se fazia.
O homem começou a andar impressionado. Se ali estivesse ainda o Centu, bem; conversariam luminosamente sobre o caso, e quando menos, tiravam deduções filosóficas e bastantes para amainar
as atribulações daquele ânimo frouxo. Com a mulher, encetaram uma série de cochichos, de mímicas,
pisadas nas pontinhas dos pés, de mãos pela parede, uma
verdadeira caducação. Antônia não saiu mais, foi-lhe vedado; a não
ser na companhia da matrona.
Dantes confiavam-na à mãe Zefa. Hoje nem isso.
Em uma daquelas ocasiões em
que ela fora com a mãe Zefa, às novenas, na Prainha, que eram muito arrojadas,
voltou um bocadinho tarde, alegando que houve muitos fogos de vista, e
máquinas, de maneira que a novena foi longe. Mas, se alguém maldasse, notaria a
tremura da fala, as titilações daquele coração, a abundante verbosidade que ela
despejava por cima de uma idéia fixa que a beliscava, que estava sempre a pôr
a cabecinha de fora, como um demônio, quem atinasse, havia de suarpreender a
bondade flagrante e a satisfação com que ela narrava, e descrevia; a maneira
saborosa por que ela mordia ou chupava os beiços, na inversa, como se acabasse
de beber mel; o passar da mão pela cabeça :afastando dos olhos os cabelos
fugidos do pente de arregaço, o encolher dos ombros em arrepios súbitos, e o
modo por que, assentada, esfregava finamente os pés e mexia com as pernas, como
se uma força oculta as obrigasse a enroscar. Estavam ceando, quando chegaram.
Mãe Zefa tirava as sevilhas para deixar cair a areia, enquanto a loira
tagarelava para impedir que lhe exigissem mais explicações pela tardança.
Curvava o busto com um garbo de atriz, e parecia ter azeite na cintura, tão
flácido a movia. A modos que dos pés ao rosto subiam uns afagos pela pele
acima, e às vezes ela apertava os peitos com os braços encolhidos, em surpresa e
com medo. Teria brasas nos pés, tanto pisava, fazendo estalar no tijolo seco o
salto da botina.
Maria das Dores, essa,
crassamente indiferente, brutalizada para tudo que não fosse a sua vida íntima
com as cartas do Centu, com o espírito dele. Podia o mundo virar de pernas
para cima. Fabiana lhe era um pesadelo, uma torneira que impedia o vazamento da
sua verve da rapariga, um canhão encravado onde as suas fortes e virgínicas
impressões não podiam explodir, uma porta condenada que vedava o dia de
clarear-Ihe a alma pudica e anelante. Consolava-se ao piano, e com o estudo
daquilo que agradaria ao amado; palestrava longamente com o pai, e escrevia
laudas e laudas para o Centu, que não seriam endereçadas, mas que um dia ao
menos haveriam ambos de ler. Antônia não podia ser-lhe confidente, Mariinha
entendeu-a logo, e pó-la de parte.
— É uma doidela. Entende que sou apaixonada pelo seu Visconde, e por
isso lança-me
uns olhos revirados para o lado e uma cara muito
beiçuda. Coitadinha! Eu lhe queria
tanto! Já não me apelida Bem Bem, agora é nuamente: Maria das
Dores. Das Dores vivo eu, alguém
se farte
de alegrias.
Nessa noite dos fogos
de vista Antônia dormiu
um sono regalado. Deitou-se nuazinha. Para isso esperou que a Mariinha se recolhesse primeiro e apagasse a vela. É verdade
que por cima das paredes do quarto aparecia ainda claridade do aposento dos donos
da casa,
que tinha luz até a Fabiana catar a derradeira pulga. Mariinha ressonava bem; e como ela estivesse voltada para o lado da porta, a outra metade
da rede, entesada, encobria-a para o aspecto do fundo
do
quarto. Antônia sentia uma espécie de correrias pela carne, e fazia-lhe bem o contacto
imediato do ar. Chegou a rolar pela esteira,
debaixo da
rede, como uma cadela ao sol. E beijava surdamente os próprios cabelos e os próprios braços, num soluço abafado, num desespero
de mordeduras e de apertos, de paroxismo e de espasmo. Ajoelhada, puxou a
beira da rede para si, e como o nadador agarrando-se à borda do escaler e
içando-se com os próprios músculos, foi rojando os peitos docemente pelo grosso
algodãozinho, o estômago, o ventre, as pernas, e devagarinho estendeu-se então
na rede, ao comprido, inânime, como um cadáver no esquife. Lembrara-se de que o
punho do lado dos pés enfiava no mesmo armador que o da rede da outra, e que o
movimento comunicava. Cobriu-se com o lençol. E daí a pouco as varandas da rede
estremeciam espaçada e levemente com a respiração dela, em começo de um amplo
sono venturoso.
A cabra Ângela, esta se pusera
moça aos treze anos. Uma cuia de mangabas não apeteceria tanto, nem um odorante
abacaxi, nem uma dourada penca de bananas maçãs, das que ela ia levar de
presente ao Visconde, em uma bandeja de xarão coberta com guardanapo de
frivolité feito pelas mãozinhas da Das Dores ainda no tempo do Colégio.
Uma vez foi Ângela
assim, ao Afrodísio, ao meio-dia em ponto, com uma compota de cajus, naquela mania de presentear
que a Fabiana ainda conservava dos hábitos do seu
torrão. O
homem, sozinho em casa, veio recebê-la no topo da escada, "pensando que era gente", como
disse gaiatando.
Estava mesmo de truz.
De mangas curtinhas, vestido
em leve decote, cintava-lhe por cima dos cós da saia a fita do avental, de
fazenda preta por mó do sujo. Nas costas encruzava um x formado pelas alças do sobrepeito.
la mesmo pisando duro. Que mexer de quartos e de cotovelos! Que faceirice! Com
que chiste arrebitava um muxoxo! Ria, como uma sem-vergonha! A carapinha, de
um castanho fulo, formava um pão, enfeitado com fita vermelha e cravos
brancos. Era domingo. Aquilo era muito bruta e muito linda. As ventas e os
beiços volatilizavam ardor concupiscente, atordoante, apesar de que as mãos
cheiravam sempre a ranço de cozinha, e os braços tinham um pêlo miudinho que
parecia sujo permanente. Do cós, o panejamento da saia, muito cheio de
pregazinhas verticais, descia rotundo e parecia ímpar com as pulsações do
sangue. Pelo fio do lombo descia uma concavidade, afogada logo al pela
compressão do corpinho aspeado. Os ombros, como os da Antônia tinham o voltear
veludoso das dunas, pejados noite e dia pelo sopro de Cupido. No pescoço
aninhava-se uma cobra de aljôfares,e nas orelhas estavam sempre a dançar uns
brincos enormes, de vidro, com um donaire arrebatado e domingão. A droga da
cabrocha inflamava! As faces, carnosas como um caju de mimo, por cima do
pigmento escuro da raça, tinham a transparência da fruta do imbu, apesar de não
serem como as da Antônia, que eram pétalas de rosa através da luz. O relevo do
cabelo e o roliço do cangote, com a firmeza turgescente da puberdade,
porventura sacudiam por todo o corpo um fluxode humores cálidos, uma
predisposição para o riso e para o choro, com mil nuanças várias de
animalidade. Uma alimária de papoco, aquela escrava. Quando andava, estremecia
como geléia.
O quarto do Afrodísio ficava
no andar daquele seu casarão portugués, de negociante, que destoava da ligeira
e risonha edificação da cidade. Cheirava a mofo. Além, ainda tinha um mirante,
onde o amigo desembargador gostava de ir para gozar do panorama urbano. Aqui,
janelinha para o nascente, e outra para o ocaso, com rótula e vidraça
estorricadas, e óculos na parede ao sul e ao norte. Sempre uma rede armada nos
caibros, uma banca e castiçal, e dois mochos. Merendava lá, quando lhe parecia,
o solteirão; e até, ao canto, entre palhas de ninho de rato e garrafas
esgotadas, reviravam-se latas vazias de doces e de biscoitos, e em cima de uma
trave jaziam pratos cobertos de pó e talheres ensebados de queijo. Tinha graça
era assim, à estudante do Recife, apesar de que, o Senhor Visconde, quando lhe
dava na veneta, esmurrava o moleque do serviço, bradava contra aquela porcaria,
mandava lavar, por erva de ratos, entupir os buracos, arsenicar os cupins,
protestando pintar tudinho de novo.
Angela depôs a bandeja em cima
da mesa, com um ligeiro ofego da subida. Destamparam as compoteiras.
O sol não entrava pelas janelinhas
escancaradas, porque estava a pino; mas o vento, que ajudava
a agitar as bolotas
da rede, aplicava nas telhas um chupão sensual. De quando em vez as bandas da rótula iam e
vinham, e
em instante batiam furiosamente no portal, à refrega, para acalmar
de novo.
Uma rajada, como sacudida adrede, esflorava a poeira do assoalho;
e, à guisa de um balão de festejo, apagado, perdido numa árvore, a inflar o papel
sussurrante, como um fantasma em
noite de luar, pendia de um
armador a
saia de chita, em folha, com que naquele domingo a cabrocha "quebrara a tigela". O vento entrava-lhe pelos babados, e enchia tudo. A guarda-pisa
arrebitava, deixando ver a saia por
dentro, e
abaixava. O cordão de enfiar,
que franzia o cós,
preso ao armador, agüentava os empuxões do ar agitado. E boquiaberto,
camaleões a engolir vento, os dois sapatinhos verdes estiravam-se mesmo com a dormência
de
lezardos. Alva, como uma alva de padre, sobre o armário
da sacristia por cima dos paramentos para ser
vestida, encobria o casaco e o corpinho a anágua,
revirada na mesa, ao lado das compoteiras cobertas de frivolité.
Além da influência do berço e
da educação, Mãe Zefa estendia so-tre Angela e sobre a Antônia outras muitas.
Eram estas duas quase da mesma feição, pois que a brancura de Antônia era
enegrecida pela miséria dos pais, por um descuido hereditário, pela existência
vegetativa da sua linhagem. Foi um tormento, quando a Fabiana lhe pós nas mãos
o Método Fácil para Aprender a Ler; a
menina gastava o tempo abismada nas vinhetas, uma das quais, logo no princípio,
era um moço a cavalo, correndo, quase nu, com um volumoso X e por baixo esta
inscrição: Xenofonte era um filósofo
guerreiro. Porém, a vinheta preferida era uma, na letra L, em que se
abeiram uns lírios perseguidos por um moscardo; os lírios quietos no seu lugar,
e o inseto a dar voltas como procurando o coração de um deles para varar de
uma feita. A criança atraía-se por esse namoro.
— Certamente não podes ainda avaliar que de horror e de náuseas
produz uma beijoca aplicada por um besouro num imo virginal de uma flor, — dizia
então o padrinho, sempre filosófico.
Para Ângela, além de tudo,
Mãe Zefa ostentava mais o prestígio
de ser a rainha dos pretos. A cabrita
bem se lembrava de té-la visto
com uma coroa de lata vistosamente dourada, com
assento à
esquerda d'el-rei, também, de coroa, e mais os calções
e capa de
grande varredura que enrolam no braço
para dispensar criados do séquito. Tinha bem presente, gravada na recordação de menina,
aquele casarão da Praça do Patrocínio, que os pretos alugaram para a festa de 6 de janeiro.
O dossel do trono,
armado pelo sacristão do Rosário, num grande salão forrado e assoalhado; as pretas,
vestidas longamente, de alvo, e de cor rosa, florescidas de ramalhetes,
peroladas com miçangas, a caminhar com ares de grandes damas,
e mais elegantes que as moças brancas do Clube, mais cheias
de cane, mui destras e remexidas
na dança, desabridas na galhofa, e com
estudados refinamentos e meneios de nobres senhoras; Vossa Incelença pra qui, Sua Maxtade d'acolá, e de quando em vez, como estouro de bomba um tu e um não seja besta a entornar o caldo da civilidade. Angela futurava vir a ser a rainha da classe.
Antônia, por seu lado, até isso almejou uma feita! Num
ímpeto da
sua natureza açudada, num escouceamento da sua pobre alma votada ao
inferno. Arranchavam-se nela oásis de felicidade bruta e momentânea, em um só dia, caravanas de desejos.
Indo ao circo de cavalinhos, voltava querendo
ser pelotiqueira.
Do mesmo modo, se fosse ao Colégio das Irmãs, ficaria presa de um anelo orgástico de entrar para o recolhimento,
amando ao bom Jesus, com a cabeça metida
em um chapeirão semelhante a uma enorme
borboleta de goma. Assim como, presenciando a cachorrada de uma
messalina do tom, arderia por ser também
cadela em cio contínuo de devassidões aniquiladoras, e pestilências, de abominações de cloaca estucada
com ouros e brilhantes.
— Virtude próxima do vício é o amor,
proferia o Osório nas suas ponderações — basta
uma vareja, e o belo nariz de Cupido broca-se em
bicheira horrível como um cancro.
Siá Dona Fabiana depositava
— Deus me perdoe, dizia Mãe
Zefa batendo nas suas faces pelhancosas, mas, em tão boa hora diga, sinhazinha
Fabiana a mode coisa que se enviuvasse casava com seo Visconde! Nunca vi uma
cegueira assim!
A preta não se enganava.
E se o desembargador ouvisse aquilo, teria presente, por
associação de idéias, o que se deu com ele e a sogra,
que Deus haja, e que o fez obter
mais uma variedade para a espécie amor. A sogra amava-o, pelo
veiculo da
filha! Amor de sogra, que as transforma em harpias quando são ciumentas. Assim fazia Fabiana com o Visconde, futuro genro falhado.
Antônia, contudo, fingia não bater-lhe o papo com desejos de sair, pois conhecia o fraco da madrinha. Se botasse muita força por passear, o espírito
contraditório da Fabiana saía-se logo:
— Não, senhora; não perdeu nada em novenas, nem
Assim, Antônia ficava nas
encolhas, e ao menor convite das vizinhas, punha-se com chove não me molha. A
matrona metia então o bedelho:
— Vai com as outras, homem!
Queres te fazer rogada, criatura?
Mãe Zefa acompanhava como cabo
de ordem e como aia.
O Afrodísio, perpicaz como ele, ia menos à casa do desembargador. Ver o quê? Pegou no ar as intenções da velhusca, e riu entre as varandas da rede:
— Chô! Arma tua arapuca prá
lá. Não se quer não, caju azedo!
Osório caçoava da mulher, e dava
pinotes, esfregando as mãos. Um rapaz, lá uma vez,
aquele sujeito sisudo. Dizia-lhe esperançosa:
— Deixe estar, senhor! Eu conheço estas coisas.
Os fidalgos procedem diferente de nós.
O letrado foi mudando de rumo,
com a privança do titular. Farto de familias como a da mulher que tinham por
brasões o nascimento, a colocação suntuosa, a solidariedade partidária e de
parentesco, o sentimento da honra traduzido em ódio e em exterminação até das
galinhas do terreiro do ofensor, e um amor próprio a ponto de só achar
superior o que era dos seus. Com todo o fulgurante cortejo de preceitos
estrelados engrinaldando o escudo de pau da fidalguia cabeça-chata, em forma de tartaruga; diante do fulmíneo
Sinai da lei dos nossos avós, com Moisés de chapéu de couro e garrucha, e Jeová
de chile e esporas, e coivara de roçado por sarça ardente, e tábuas de lei
escritas com a ponta das parnaíbas, o desembargador soltava na cara da mulher
uma gargalhada esvoaçante e bulhenta como um bando de jandaias devastadoras, e
como Aarão, preferia vir adorar na planície o bezerro de ouro, feitura humana,
reconhecendo que só é admissível a aristrocracia dos mais inteligentes e mais
educados cosmopolitamente, e dos habilmente lidadores. Por este lado valia o
Afrodísio, mas era abominável o Visconde.
Este, quando pilhava o Osório
nessas marés de gente nova, chamava-o gracejando: "Cabeça erma de cãs e
de riso".
Mariinha vivia resignada,
muito amiga do pai, e, Deus lhe perdoe, enterrando no coração, como um sapo
durante o estio, uma eterna queixa da mãe. Fabiana um dia caiu na asneira de
falar pelo claro, já impando: queria que namorasse o Visconde e casasse com
ele. A filha teve ímpeto de responder: Namore vosmecê! Mas limitou-se a fazer
como a rama verde ao toque da labareda. E a muito instar, suplicou:
— Mamãe, eu não me caso.
— Havemos de ver. Tolinha!
— Filha de quem sou eu?
— Pois é, por isso mesmo...
— Por ser sua filha,
tenho palavra! disse com timidez.
— Gentes! Venham ver agora esta
rainha! Tens palavra, não é, Maria? Pois bem, guarde-a, que é bem bonito.
Aquele sarcasmo hirto de gente
velha era irritante. A tensão deliciosa em que vivia imersa a donzela, e a
idéia fixa no Centu, faziam-na astuta. Vencia sempre a mãe. Dizia-lhe por
exemplo, voltando às boas:
— Mamãezinha, confie
— Tola como o pai!
— Mas como é? Fecho o olho prá ele?
— Que olho, mulher! Faze...
Derrenga-te um pouco, amortece a vista, fala assim...
— Assim como o gato no telhado?
— Sim... Não! Como teu pai...
Mas...
— O que é? Hein?
— Conversa com o Visconde. Arre
lá!
— Mas eu não conversei?
— Faze de conta que ele
vem expressamente visitar-te...
— Ofereço fogo para o charuto e um
cálice de
conhaque, não é?
— Deixa que te aperte a mão demoradamente,
interessa-te por ele, pela sua saúde...
— Mas eu sei que ele é sadio
como o peru que se comeu ontem! — Espia muito pra ele.
— E o que mais?
— Principia, continua, teima,
que há de vir aparecendo o que for preciso fazer.
— Pois sim. Olhe que vontade
não me falta. Está ouvindo?
E por esse modo Maninha ia
ganhando tempo, à medida que as visitas do Visconde iam espaçando.
Antônia é que vivia feliz.
Amada! Achava uma graça extraordinária
— Feliz o pai que te gerou!
Deus dê o reino do céu à mãe que te pôs no mundo!... A rapariga era tão
estimável que até o Visconde prestava-lhe atenção! E criminavam esta
amorosidade dele! Caluniosos! Que gente, meu Deus, o Visconde era incapaz de
abusar da hospitalidade! Um homem temente a Deus! E por outro lado: se fosse
verdade, podia fazê-la feliz, casando-a aí com um rapaz pobre, com o seu
dotezinho e com proteção para toda a vida. Mas era mentira. Enfim, Deus escreve
direito por linhas tortas.
E Fabiana ia sempre direita ao
alvo: tê-lo para genro. Pulava ror cima de qualquer empeço. E tudo se
desculparia ao Afrodísio, porque não há como a lógica da própria satisfação e
do próprio interesse.
Maninha, que vivia como o caramujo
na sua concha, entretinha-se em reparar na vida nova da Antônia, como se
estivesse incumbida de biografá-la ou de policiá-la secretamente. Uma ocupação
para o seu espírito apreensivo. Logo ao amanhecer, que a Honorata abria as
portas, e entrava o arzinho azulado e puro de lá de fora, Antônia corria para
o quintal. Atravessava o jardim e a horta, e penetrava no chiqueiro das
galinhas, desatando a correia da portinhola relaxadamente engonçada na cerca de
faxina. Debatia-se então no ar o branco volitar dos pombos a descerem para o
terreiro raso de milho que ela sacudia a mancheias. Corriam para ela as aves, o
pequeno exército galináceo encobria .a zona alimentícia, a desfiar os grãos
pela garganta adentro, engolindo gulosamente. Antônia parecia mãe deles todos.
A aurora para a população do chiqueiro. Sobranceira, como um gigante, na onda
irrequieta e emplumada, arengava ao mais forte que beliscava ao mais fraco,
ralhava com os atrevidos que pulavam para ela vorazmente, sobretudo os senhores
pombos, que pousavam arrulhando-lhe em torno ao pescoço, fazendo cócegas com
os pés de coral na pele nua. O sol ainda estava pelos telhados, e na
cabeleirameio flava de um pé de oiti vizinho cantava o galo de campina. Ao
fundo do quarteirão, uma palmeira imperial, lindissima e alta coluna, fantasiosamente
dedilhava com as pontas das folhas, no beiral de um sobrado, donde assemelha-se
que a luz cala. Pressentia-se o acordar das habitações na sua alvenaria folgada
e leve. Acolchoavam-se pés de fava na cerca do galinheiro, e do chão poeirento
e úmido, erguiam-se mamoeiros machos, a esgalhar dentre o bordado feixe de
suas palmas de leque, a alvura da inflorescência, de que as aves saboreiam as
pétalas chuviscadas no pó.
Já esvaziara o avental
da Antônia e ei-la, corno um reposteiro, pendente ao vinco da cintura, meio
arroliçado no ventre, meio cauteloso sobre o colo, onde é pregado a bico de
alfinete, e afastando-se um e aproximando-se, à mercê do ar, dos babados da
saia. Um arrepio de matinal frescura percorria-lhe a cútis a descoberto, do
antebraço e do pescoço, e uns tons pálidos machucavam-lhe a fisionomia, como
ainda pela impressão de sonhos, e arroxeiam de leve a mucosa dos lábios, que
não são, como os da Angela, da cor dos mangarás das bananeiras.
Há uma certa lividez
passageira na polpa das suas mãos, porém o cor-de-rosa começa a aurorear da
transparência marfínea das suas unhas. À medida que declina o limite moroso e
tremente da sombra, como um vaso que se vai esgotando, e ressuscitam no sol os
corpos, e as cores se esquentam, vão-lhe os átomos do sangue tomando lugar a
flux, e mais tarde parece querer borbotar da epiderme, marejando a cor do fruto
do mandacaru. A branda chita do vestido, esfriado, parece buscar-lhe o calor
do corpo, apegar-se-lhe, secundada pelo pequeno sopro erradio matutino. Os
cabelos caem desprendidos para as costas, meio embaraçados, e pela
impertinência do ar, prende-os ela, enrolando-os, com uma grampa. O galo tem a
impertinência de procurar milho até no purpúreo marroquim das suas chinelas, e
é tão desastrado que belisca-lhe o tornozelo, ligeira empola disfarçando o
encastoamento da perna no pé rechonchudo, que irritado pela dor arrebita a
orla da saia aplicando violentamente contra o corpo do galo atrevido. O rei do
galinheiro toca rebate com uma gritaria alarmante, depois de erguer-se no pó
onde o rebolcara o pontapé, que muita gente quereria levar em parelhas
circunstâncias, principalmente o coitado do João Batista, que a amava à
proporção que ela o desprezava.
No alto do muro o gato
se assustou, e vendo a dona, acocorava-se de novo ao bom sol que já o banhava
com a sua inundação de luz e de quentura. As cores pipilam. O limite da sombra
corta em oblíqua de mais em mais encolhida o longo do muro, e a areia se
desnuda paulatinamente ao loirejamento solar. O fundo do quintal parece arder,
desde a ramaria miudinha e gigantesca do tamarindo até à sapata do muro, onde
aqui e ali se prendem flocos de grama, como saídos do alto, e donde, já no
solo,irrompem mamoeirinhos novos e frementes. Diferencia-se na areia a faixa
irregular do caminho da cacimba, pepinado e socado, e luzem os braços negros da
Honorata puxando água, ao ganir moroso do carretel.
Sentia-se uma cheiro
de umidade, de horta, e um errante perfume. A copa do tamarindo era uma nuvem,
como feita de frouxel de melindres, miudinhas folhas, miudinhas pétalas
douradas pelo mordente do sol, miudinhos insetos fervilhando e zunindo,
naquele matutino ágape aéreo. Como caem os pingos da chuva grossa, e como voa a
areia peneirada dos morros, assim deflora-se a dourada carregação do
tamarindeiro, e o germe fica, ao confuso e profuso efervescer das abelhas e
marimbondos e besouros e vespas. De toda parte acodem os bandos de insetos, na
época da inflorescência, ao namoro, ao idílio das florinhas incautas. E é nos
dois crespúsculos, da aurora e do entardecer, que se abrem as portas daquela
feira suspensa.
Antônia evidenciava-se
ao sol, que descera até aos seus sapatos de marroquim. Daí a pouco os seus
lábios estavam da cor da crista do galo, e as faces com a ternura da rosa
amélia, e seus olhos como um pingo de verde-mar numa pétala de jasmim. Fechou
sobre si a portinhola do galinheiro. Sacudiu o avental. Consertou de novo o
cabelo, foi olhar-se na cacimba, e soltou-o de novo. Lavou o rosto e as mãos na
tina que a Honorata enchia. Enxugou-se com o avental, e era um prazer vê-la esfregar
com ele os braços que pareciam feitos de uma substância não classificada
ainda, e o pescoço, arrodeado de beijos por força da imaginação de quem a visse.
O grito de Fabiana, trespassando as plantações como uma seta importuna,
chamou-a para casa, perguntou-lhe "pela saia de gorgorão que ficou nas
costas da cadeira". Antônia veio devagarinho. Mariinha ia. E a loira e a
morena encontraram-se no meio do quintal, cada qual com o sorriso que lhe era
próprio.
— Vai aguar os seus
craveiros, Maria?
— Vou. Não sei se o
tio Raimundo preparou o estrume. As fo, migas estavam roendo, mas eu botei
algodão...
— Não serve, menina!
Só uma roda como eu fiz r' sempre-viva. — Para mim eu creio que nem isso,
Antônia. Eu sou caipora até com as minhas flores.
— Pois esta cá é feliz
até com as galinhas. A minha ninhada está que é um gosto. É cada pintão deste
tamanho.
Através das plantas
ouvia-se a fala biliosa da Fabiana, gritando pela rapariga. Esta apressou o
passo, e correu, deixando após si, como a catinga de certos animais, uma
peculiar emanação.
Mariinha ficou um
instante parada, recebendo o hálito feminil das flores. Figurava, como sempre,
ter a seu lado o Centu ou que ele a estivesse vendo. Havia escrito pela
terceira vez, la muito bem. Esperançoso, entusiasmado com o seu amor pela
Ciência. Parecia nem se lembrar daquela cujo pensamento estava nele noite e
dia! Porém os enlevos de amor, essa vida toda pelo impalpável, na supliciada
menina, eram toldadas pela idéia feroz do capricho materno. Ela estava no mais
belo dos sonhos acorda, lhe avançava essa idéia, de dentes arreganhados, e o
seu coração dava mais um grito de pavor. Tinha uma pasmosa sensibilidade por todo
o corpo. Uma simpatia imensa, adquirida, pela natureza em bruto, e apreciava o
isolamento, a soledade naquele selvagem egoísmo de paixão. No seu imaginar
emprestava sentimento às plantas, e forgicava colóquios entre os seres
inanimados, como fazem as crianças com as bonecas. A mãe já lhe havia dito que
ela parecia "ter paixão pelo Senhor Dom Vicente".
Isto abalou-a no momento,
como a queda de um raio, e à luz deslumbrante do relâmpago
ela persuadiu-se de que a mãe leu-a toda por dentro. Mas disfarçou em surpresa, pôde achar nos lábios uma dobra de riso, e depois no diafragma uma boa gargalhada, e respondeu
galantemente,
com a incubada ironia das donzelas.
— Era só o que faltava...
Nem pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo
Senhor Visconde de São Galo, mamãe, quanto mais...
Quando passeava no quintal, ouvia trincarem as florinhas nos seus pecíolos. Àquela hora, em que ia em busca do regador
pequenino para amanhar as suas plantas prediletas, o velho
crioulo Raimundo, irmão de Mãe Zefa, mas um polo oposto, e que é torto de um olho, ia e vinha armado de dois enormes
regadores que mergulhava alternativamente nos barris do pé da cacimba, e alternativamente ia distribuindo pelas plantas, de manso, caminhando ora suave, ora apressado.
Como que sentia-se o cair das
folhas mortas expulsas pela selva, cujo ímpeto a manhã desafiava. Para Maninha,
corolas baforavam versidades de aromas; corolas como borboletas fixas,
colibris abismados na própria contemplação. Reportava-se insensivelmente à
idade infantil, e ao tempo do Colégio, e cantava ingenuamente com a sua fininha
voz de criança:
"Acordei de madrugada
Fui varrer a Conceição
Encontrei Nossa Senhora
Com seu raminho na mão...
Ao preto velho Raimundo, ao ver a donzela morena, surpreendia-se uma saudade comprimida nas suas feições de mono. Ele
perpassava pausadamente como quem conduz um
defunto pela
alça do esquife; ouvia-se entre a rama de vereda em vereda, com as suas calças de azulão,
ao peso
de uma vida inteira de cativeiro,
e reaparecia, o crânio
entoucado
por um lenço de ganga. E continuava a regar.
Os fios de água
trespassavam em chusma a ramaria
delicada. A areia estrumada como que entumescia,desprendendo um tênue cheiro de estrume e de esturro.
Os ramos
ficavam a gotejar, e espaçadamente, a água junta na ponta de uma folha, caía. A rega era a modo de uma
vassoura de cristal fundido, a espanar a poeira
que inquinava as plantas. A terra das veredas parecia upar ondeantemente, artérias da circulação
da luz sobre as ramadas.
A hortaliça, nos canteiros
suspensos, afogava-se a meio na sombra, e a meio emergia no sol, e por aí
adejavam borboletas brancas e amarelas.
Maninha, entrou a matar as lagartas das couves, depois
de abençoar as suas plantinhas com a linfa do regadorzinho verde. E de pedaço
em pedaço, ouvia-se
o grunhir do carretel,
seco e o despenhar da água no bojo dos barris, ao braço negro da Honorata.
O muro entreaparecia, com as
suas fieiras, a nu, reforçado pelas pilastras cujos lombos empolavam na
penumbra. Havia um largo jogo de ensombrações, e trémulos de frondagens
frescas. O pino das altas árvores fulminava ardente. Nesses toques de fogo e
verde da clorofila pulsava como um raro fulgor de pedrarias. Havia um saudoso
encanto de florestas ínvias.
— Centu! Centu! — É o grito surdo que se remexe
no coração da morena.
Que fazes? Aqui também há a poesia da selva, e mais a poesia única, a da minha alma, a dos meus sonhos, a do mundo
inteiro que
eu cismo superior a esse que loucamente buscas interpretar. Sê sábio, para esta natureza, para este universo
que eu sinto dentro de mim. Que és tu nessa
amplidão de águas da Amazônia? Nessa infinidade de florestas mudas e pavorosas, sem o sol e sem mulher; que vales
para
esses homens secarrões que te acompanham e para os índios
bravios, e para as feras, e para tudo isso que é indiferente às tuas dores e às tuas alegrias? Centu ingrato! Conhece, no meu padecimento e firmeza, como se é grande e forte! Centu!
Centu, ingrato!...
A garrixa soltava, no muro,
aos saltinhos
de cauda erguida, para o ninho do beiral da cozinha, o ruído que a natureza lhe ensinou, semelhante
a fricção arrostada de um seixo no outro;
e o vem-vem balançava docemente no macio do tamarindeiro,
com o seu assobiozinho afinado
e afilado; pequenininho feito de gema de ovo e de ônix, coroado de ouro, um reizinho aéreo
e feliz.
A rapariga, debruçada sobre o canteiro, já não catava as couves, e com a mão no estrume, que estava
afofando entre os pés de coentro, acompanhava com a vista o voejar de uma borboleta nas primaveras do alpendre. Angela, de ciscador, limpava o terreiro,
reunindo as folhas e detritos em um montículo. O tio Raimundo descansava um pouco os regadores, e lançava
um olhar conhecedor para a habitação, guiado por uma
vozeria, e resmungou para a menina:
— Já pega o lelê, sinhazinha.
Modelava-se, em fundo
alteroso, a alvenaria da casa. Pela grilhagem miudinha do peitoril da varanda,
cor de telha, oscilavam os sarmentos e as folhas verde-escuras do
maracujá-suspiro, e uns braços, por cordões e varinhas, galgavam acima, com
pretensões de guarnecer o freste das colunas. Os largos ombros da Dona Fabiana
perpassavam de vez em quando, de uma porta para outra, já encobrindo alguns dos
quadros e móveis da sala de jantar, já oculto. E então, como se lhe enxergasse
bem o olhar lívido e o carão arroxeado, o preto Raimundo se escoava medroso
pelas ramadas, e foi sentar-se na casinha de banhos, de barro e zinco,
chupitando no seu cachimbo, ancho por estar fora do alcance da fúria, e caçoava
da triste da Benedita, cujo topete e cuja tromba perpassavam também o zunzum.
Ouvia-se baques e despejamentos de raiva. Ângela, no terreiro, divertia
perseguindo um besouro, com o ciscador, quando a Fabiana se afastava; e ciscava
muito apurada, o corpo acurvado na lida, quando a senhora reaparecia:
— Que parelha! — murmura no seu asilo o regadeiro. A Benedita e a senhora à mode que nasceram
pra comer no mesmo cocho. Se pegam por tudo! E você vê —
continuava, como se estivesse com outra pessoa — a senhora podia vender logo a Benedita! Mas não
senhor, mode
que precisa dela é assim mesmo. Deus me livre! Hum hum! Eu mesmo? Não presta? Bote pra fora, acabe de uma vez. Mas agora, pôr-se um cristão de Deus se arreliando
todo dia?
Por mode quê? Como é que seo desembargador agüenta isto, senhor? Eu mesmo
nem sei! Hum hum! Chega me dá um vexame! O que é que os vizinhos não é de dizer
desta mulher, e da sinhazinha? Oh! que moça boa. Nem parece filha da senhora..
Entra-lhe de repente pelo
banheiro um molequinho, nu, perseguido pela mãe, a Benedita, que o queria arrebentar com uma acha de lenha, sem que, nem
pra quê; talvez por vingar-se da ama. O mísero foi agarrar-se com o preto arrulhando numa vozinha suplicativa:
— Dindinho!
Meteu-se-lhe pela roupa, achando no suor do cabra velho
um cheiro esquisito e bom. A Benedita, deixou-o de mão, por veneração ao crioulo. Mas este repeliu a criança,
obrigando a voltar para casa:
— É que tu fizeste cousa, corno! Passa já pra cima!
E o moleque repetia:
— Dindinho!
— Passa! — replicou o regadeiro, pegando num cipó.
— O que está dizendo, tio Raimundo? — fez a Mariinha, que acordava
do seu enlevo, e aproximava-se da cacimba. Deixe o moleque! Vai brincar, Francisco... Olha, tira-me umas
goiabas...
Mas a donzela tomou um susto, com a voz da mãe, que assomava na varanda
e gritava-lhe:
— Que está também fazendo,
senhora dona?
— Já vou, mamãe. E virando-se para o moleque,
tomou-o
pela mão: Vamos. Quero ver quem toca em você.
Aquela zoada era muito conhecida em casa, e tolo é quem a estranha. A Fabiana,
usurária, por um lado, e esbanjadeira por
outro. Queria, por exemplo, quando lhe dava na cachola, que a Benedita
desse conta
da panela com dez réis de alho e dez réis de pimenta. Até a lenha, dada por contagem. O Visconde prezava-a por isso, ele que, mesmo nos grandes negócios
políticos não gastava sem o cálculo
prévio. Se
ele derramasse um saquinho de ouro
nas mãos da plebe faminta que elege aos representantes da nação, diz o Osório
desiludido da sua candidatura a senador, é que estes não
passavam de procuradores de meia dúzia interesseira.
Caramba!
O desembargador, muito em
segredo, chamava epicurista ao Visconde, no mau sentido da palavra. Bem ou mal,
entende que o cacique receava o saque à sua casa, em revolução que por acaso
estalasse, e que por isso arrumou-se chefe de partido e alimentador da
multidão, e a cada vulto festejado pelas turbas sacudia um tentáculo. Isto o
letrado apreciaria como virtude, como sinal de superioridade digna do século da
astúcia e da inteligência, se não lhe fosse além de tudo ganhando uma certa
aversão, indiretamente, por causa da embirrância da. Fabiana em querer à fina
força conquistá-lo para genro. O Afrodísio não tinha culpa disto, entretanto. O
mais que poderia fazer, seria, aproveitando aquela cegueira da mulher, dar
pasto aos seus apetites egoístas, de homem hábil e despido de certos rigores de
moralidade.
O Visconde, muitas vezes,
dizia intencionalmente ao desembargador: — Seo Osório, fique certo de que
ninguém trabalha pela morte. — Nem o suicida? acudia presto.
— Nem mesmo quem se suicida,
que quando morre está gozando do efeito do seu desaparecimento.
— Ah! fez o Osório pasmando e levando o dedo à fronte... Existirá em absoluto este antegozo compensador?
E entrou a ruminar
filosofias, enquanto as conseqüências
da teimosia da mulher,
aliás muito bem intencionada, seguiam naturalmente o fio das águas.
Afrodísio tinha agora o
mirante bem varridinho, com uma rede de varandas sempre lavada, e lençol
vermelho com avesso branco, e uma cama de vento, bom vinho do Porto e ovos para
gemada, pães-de-ló, biscoitinhos, etc. Queixava-se de fraqueza "por amor
do trabalho", e da recrudescência de um mal antigo. Viam-no por vezes
apoetado. Punha-se na alta janelinha, de mão no queixo, a olhar para o escuro
da noite, como se esperasse alguém, ou como se estivera idiotando. Por cima de
sua cabeça abria-se muda a solenidade das estrelas, abundantes e vivas, na
ardósia indistinta; e no horizonte, crepitava algum foguinho de arrabalde
reverberando dubiamente numa frentezinha caiada ou nalguma árvore. A cidade
confundia-se em enormes blocos negros, dentre os quais, como de folgadas
junturas, surgia a claridade aqui e ali estrelando os combustores. O homem
sentia-se bem, com aquela perspectiva da noite. As delicadas nuanças da treva
e da claridade, ora um pesado negror de carvão, ora um sublime luzir de
estrelas, e os mais melodiosos esbatimentos, os mais fantásticos reflexos, uma
frente de sobrado que subia vagamente, o interior arborizado de um quarteirão,
sombras coladas em sombras, a série angulosa dos telhados, tudo se lhe
desenhava ao mais doce conjunto, e um sentimento vago e dolorido penetrava-o.
Um galo feria como uma estrela
o escuro do silêncio, ao longe, sentinela a bradar as armas.
Às vezes quisera ter a sua
mulher e os seus filhinhos. Mas era bastante abraçar a Antônia, a Porcina, a
Angela, ou qualquer outra, e na idéia do animal fêmea submergia-se a da esposa.
Ficava desconchavado na atmosfera de um lar. Em compensação as famílias
olhavam-no com desconfiança.
Estava com sono e dispunha-se para descer. Ao pegar na luz, corria um derradeiro olhar pelo compartimento,
o mais
alto da cidade, povoado de sensações amortecidas; para a rede, para a esteira, para a mesa, onde num grampo
enrolava uma fita de veludo, atilho do cabelo, beijava saborosamente a fita, e as sandálias de mulher, que jaziam
entre os objetos da mesa.
Atirado na
cadeira havia um par de meias servidas, em cuja catinga de suor feminino ele se absorvia. Havia mais uma adorável camisa de cambraia, clâmide finíssima,
com rendas de alto a baixo, decotada, curta,
sem mangas, parecendo conservar um jeito de seios.
Isso tudo ele tinha ali, compradinho por
ele. Estava cansado de maquinar um meio de encher aquela camisa fora de horas.
Aquelas sensações deslizavam num plano inclinado, o coitado solto nele, rolava, e a velocidade, nestas soalheiras, inda cada vez maior,
quem sabe, a tropeçar no delírio. O Afrodísio tinha
o amor da Antônia, aviltado
a princípio com o da Angela; e agora, o que servia era subir, subir até às estrelas, no balão do amor. Antônia calculava subir até
ao casamento, iludida pelo exemplo ainda frescal, de um português que vivera
com uma escrava e a desposara em artigo de morte.
Antônia cogitava também em um meio plausível de deixar a casa da madrinha.
A intenção desta — e as suas intenções eram de ferro — era que a afilhada
só havia da sair de sua companhia, ou casada,
ou para o
cemitério.
Mãe Zefa desempenhava
papel importante.
Propusera ao homem alvitres vários para arrebatar a rapariga
e tê-la
de peito cheio, sem hora marcada. Mas nenhum era aceitável. Davam nas vistas. Uma terra pequena, é o diabo!
Antônia vivia no céu. Tudo a sensibilizava a boa parte. Mariinha reparava
nela com tristeza. A Dona Fabiana queria cada vez mais a afilhada. Aquilo sim! Havia ela de ser uma dona de casa, uma
senhora, dando-se ao respeito com os escravos, sempre muito limpa, e cheirosa; que noivo
de mão cheia não acharia! O João Batista babava-se por ela! Um
moço de juízo, poupado, um regalo, que parzinho de dar pencas!
Antônia estava mesmo de cheirar
e guardar. A carne a fazia
feliz. De
uma grande ternura pelos gatos, pelos cães, pelas galinhas; é crível
que achava numa flor um segredo novo, uma beleza
misteriosa e significativa.
la ao banho, sozinha, quase todos os dias. Passava lá um tempão, com sabonetes e água-florida. Dona
Fabiana perguntou-lhe a sorrir, donde
lhe vinha dinheiro para tanta coisa:
— Oh, madrinha, pois o João Batista não botou na rifa
aquela fronha
que acabei?
Estava, portanto, justificado
e explicado.
Uma obra feita pela mão de Antônia, rifada
pelo João
Batista, seria vendida a peso de ouro.
Um día a Mariinha, para
moê-la, perguntou ingenuamente: — Que fronha é essa para render tanto? menina!
— Olhe lá, cadê essa dinheirama? Só nos frasquinhos de cheiro,
nos sabonetes, uma...
— Está bom, Amônia, acudiu a Mariinha, já penalizada do embaraço da outra, eu estou brincando, não estou pedindo contas. Bem sei que és
uma rapariga exemplar, que não
aceitarias dinheiro do... João Batista assim com um
descaro de
cômica... ‑
— Por certo.
— E então? Para que começaste
a dizer o que compraste? E depois, fosse como fosse, é teu, faze do que é teu
o que te convier. — Por certo.
— Parece que desconfias
de que não sou mais tua amiga.
Por que namoras o João Batista? Ora esta! Eu até poderia servir-lede onze letras,
tanto aprovo esse amor... pelo João Batista.
A Antônia ia protestanto que "não
havia de namorar nunca esse tipo; que não sei que diabo tinha, que não
lhe entrava";
mas acudia-lhe ao espírito ser
necessário e vantajoso para o seu descanso ficar a outra na suposição.
Mariinha feriu-a com um olhar
risonho, e malicioso, como um cardeiro com a sua linda flor, e foi estudar o
seu piano, cantando, aos saltinhos de valsa, corri no tempo do colégio; e
batendo palma a ritmo:
"Virgem bela dá-me um
beijo,
Se me amas com ardor,
Dá-me um beijo tão-somente
Em prova do teu amor!"
Às dez horas, a Angela foi
fazer o ménage do galinheiro, como era costume nos sábados. Não gostava daquela
tarefa "por mó dos cafutes".
O galinheiro era situado em seguida à puxada, cujo último compartimento era a cozinha.
Depois de Ângela
findar o serviço, entrou Antônia, que ia ver os seus
pintainhos. Também, Antônia era a única pessoa que acostando-se
de uma ninhada, a galinha
não beliscava com a fúria do choco, levava os inocentes biquinhos pipilantes à sua boca da cor de sangue,
como se lhe desse a sorver
o mel dos seus beijos,
repassava no pano das suas faces o pêlo dos pipis, e metia-os no seio, de mistura com os dois peitos durinhos
e assustados. Riu daquela cócega de veludo.
— Por outro lado adorava a púrpura dos galos
e o seu canto de guerra.
Lembrava-se
do Afrodísio quando via o galo generoso, enlameando as suas barbas rubicundas,
clamar pelas
suas raparigas, sacudindo coisinhas do bico adunco e breve.
Açodado, espalhafatoso, nos largos desempenhos
do patriarcado e da poligamia.
Sóbrio, um para todos, para as velhas arrepiadas, para as frangas, para os bambinos
cor de gema de ovo
salpicados de cor de café, com os biquitos de âmbar e os grandes olhos
de inocência... Antônia abominava
um frangote roufenho, que esgaratava tímido
a distância, como entristecido por ideais ciúmes.
Acertou de, na alta
janela da
cozinha, aparecer, a Benedita em busto, com um alguidar entre as mãos e atirar um volume líquido que espalhou-se no solo e assustou a população
galinácea.
Bordou-se, na areia,
uma larga mancha escura, brilhando um instante. A terra, descascando ao calor, empolou-se, parecia chiar, e entrou a expandir
frescura, evidenciando ao sol detritos de alimento. As aves
tornaram do susto, em cima do rastro, de chofre,
e puseram-se a aproveitar
os lanhos de peles,
naquinhas
de osso, de gordura, saídos com a lavagem de carnes. A sociedade concorreu para aí, de vários pontos do chiqueiro.
O grande peru negro impara nas
suas penas vãs, por entre aquela pequena humanidade. Caninhava majestoso para
que todos o vissem. As carúnculas lhe desciam para as ventas, mudando de cor, a
cambiar pelo alvo, pelo violeta, pelo zul e pelo rubro. Ele faz-se respeitar. O
galo que tem uns músculos de homem, açoita-o por vezes, e mais o receia.
Consente-se que o peru avulte
o seu grande corpo em pleno galinheiro, para regalo de todos. Antônia assobia,
para vê-lo entoar o seu belo canto de corvo da fábula, tossindo glô-glô-glô.
As frangas se comprazem
na casquilha companhia do galo pimpão que lhes
arrasta a
asa. As galinhas poedeiras passam com seu positivo
conhecimento da vida. Qual se aninha, qual se abebera
no caco de pote sob a projeção da gravioleira, qual se espoja na terra escandecida e fofa. Os frangotes procedem com um acanhamento de colegiais bisonhos. Um esgaravata na barrica do cisco,
jazente perto da porteira e esturrando ao sol, outro procura um
derradeiro grão de milho enterrado, da ração da manhã, e aquele cisca junto ao alicerce da cozinha, numa areia gorda espalhada de cascas de abóbora
e talos de hortaliça. A um canto levanta-se tumulto
pela descoberta de uma cobra de duas cabeças, que todos querem papar.
Pela janela da cozinha o vento
puxa e desfia uma fumacinha vaporosa, e do peitoril para o chão alarga-se na
parede uma faixa encardida, esboçando no amarelo de ocre uma longa silhueta de
respingos e de estrias, de água suja escorrida como por uma boca abaixo.
Estorrica o terreiro úmido,
que encrespa-se, e as tijubinas lambiscam por sobre o banquete abandonado. A
sociedade busca as sombras, e refocila à sesta, uns num pé só, outros
agachados, e uns atirados numa adormecida frouxidão de membros. Entre as ramas
aparecem as verdes graviolas. O peru, entufado, ronda e tosse. Uma carrapateira
de tronco acinzentado, e furunculado pelos anos, ao canto, entre a cerca e o
muro, recebe na sua esgalhada uma tosca escadinha de mão, que à noite serve a
alguns de dormida ao ar livre. Como lágrimas de bugia prendiam-se à madeira
incrustações de cocô, solidificadas, e montículos no chão como estalagmites que
Angela fez desaparecer na limpeza sabatina.
No fundo do caco da água aparece o olho do sol, e uma galinha de pintos,
com os pés na beira,
acocorada, abaixa e levanta o bico, abeberando, na melhor paz deste mundo. Os pintainhos
trepam-lhe e escorregam, ao liso das penas.
Súbito, uma sombra atravessa o espaço, como uma nuvem ligeira pelo sol. O galo solta um grito entalado, gutural, de pavor, e mais depressa
que um raio a galinha
pula ao chão e os filhinhos se Ihe escondem debaixo da asa. A sombra, foi como
uma seta. As aves correram apavoradas,
repetindo simultaneamente o grito que faz arrepiar os cabelos.
Passara, roçando no pó, crescida, a sombra enorme de um urubu. Ao galo, vem água nos olhos, de medo,
e ele, passado o susto,
ergue o pescoço, com o ouvido
alerta e
a crista empavesada. Depois entra a ciscar, como se dissesse:
"Não foi nada".
As aves tinham corrido para o
telheiro, que lhes serve de albergue. Pelo muro arrulham os pombos, frocados, e
pelas traves, entrando e saindo de suas habitações suspensas metidas no vão da
coberta em meia-água.
Arde o zinco em cima, e pelos
pedaços da parede de palha fervilha a passagem
de algum pintainho. Dos ninhos cavoucados no pó macio e moreno
acamados de toiro capim de gigo, irrompe às vezes uma galinha, em grita,
fazendo ciente a Deus e a todo mundo que pôs um ovo de suas entranhas.
Dá vontade de a gente se deitar na terra sombreada, e Antônia, tendo recolhido uma porção de ovos numa corbelha, desejava também forçar e sacudir-se.
Um capão se lhe
aproxima, e ela avalia-lhe o peso suspendendo-o pelos
encontros. Uns pintainhos correm piando para ela e pelo peito dos pés, deixado a nu pela chinela
rasa, roçam com os biquinhos
como fazem os patos na flor da água. Os olhos dela amolentam-se, à vista da grande luz que a tudo penetra. Assalta-lhe um delírio animal e esporcado
pela recordação que ela já conta. Vé-se a titilação das
veias das frontes e os seus dedos fremem até aos ossinhos. O seu corpo estremece, ao calor que descolora o limbo
das folhas e incendeia a cal dos rebocos. Ela busca
folgar ao contacto neloso da camurça dos pintainhos. E deixa-se cair na areia
impregnada do odor das aves sentindo os videntes segredos da solidão. Era como se fora no fundo
de secular floresta, ou sob as abóbadas
desertas de um templo. Fervem-lhe os cinco sentidos, e ela estira-se no pó.
A natureza curva-a para a sesta. Antônia desaba
sobre si mesma, como o teto de uma casa incendiada.
E os
pipis lhe fossam na roupa úmida de suor
cálido, como os patos entre os nenúfares embastidos. Afrouxa
os braços, crucificada pelas turbas do desejo,
e escuta o arrulho
dos pombos.
E é como se no alto da cruz murmurasse: "Tenho
sede".
Mas dar-te-ão fel e vinagre? Bom esse mel, esse doce luar do amor feito realidade.
As réstias alouram a tênue sombra do interior do telheiro,
e o verde dos olhos enubla-se nas sombrancelhas, onde naquela
ocasião assentaria o mais prolongado
beijo. As
teias de aranha, tenuíssimo labirinto,
libram-se
trespassadas pela grossa e rala
chuva de
sol coado através das folhas da coberta estragada pela oxidação. Há no chão
recantos em que a areia não trilhada está
ainda bexigosa das chuvas do inverno.
A palha das paredes tem grandes rombos. De permeio
com o paIhamento
há trechos de flandres, e tabiques pintados que serviram a um teatrinho particular. Num ângulo sobem em escala as varinhas do poleiro.
Num bule velho metido entre a coberta e o muro há um ninho de carriças. Há um cortiço abraçado por cordas de cruá oco, abandonado, uma cabaça de tapuia, onde, quando o vento
dá, produz um assobio fúnebre, e tenta quebrá-la contra o muro. As abelhas foram devoradas pelas lagartixas.
As cinco horas da manhã
o tio Raimundo já está de pé. Dorme ao fundo do quintal, em um casinholo de palha, sob o tamarindeiro.
Levanta-se, desarma a rede, faz o pelo-sinal, de pé, na porta da cabana, olhando para o lado do Nascente, e resmunga a sua oração
à Senhora do Rosário.
Toma o seu gole de cana, e sai
a colher as verduras
para a venda do dia. Prepara
tudo muito bem, os molhos de coentro, os mercados
de couve,
pimentas de cheiro, malaguetas e outras, a hortelã, a alface,
os
tomates e os limões por modos que em chegando, Mãe Zefa, de caminho, já com alguns produtos que apruma na cabeça,
não tem mais
do que pegar mais esse contigente para o seu
comércio, e largar-se. A Dona Fabiana confia grandemente
no tio Raimundo. Se há bananas maduras, ou alguma outra fruta
do
quintal, que tudo ele superintende,
como sapoti,
maracujá, groselha, romã, graviola, mamão e mesmo goiaba,
ele prepara o tabuleiro e manda o moleque Joaquim pela rua. Um dia Angela foi empenhar-se com
ele para sair também com um tabuleiro, e levou umas cipoadas. Taciturno
e severo, sempre do voto da senhora, só
achava bom aquilo que ela achava, embora fosse ruim.
Tinha um olho abugalhado e congesto, que
Antônia horrorizava como a uma coisa do outro
mundo. Certa manhã, quando a loura ia para o banheiro, ele pôs-lhe o dito olho
em cima, e a rapariga entendeu que aquele órgão cego e inútil estava lendo-a por dentro; arrepiou-se, e muscou-se por entre as ramadas.
Oh! como as plantas são boas! Toda vez que Antônia se abrigava nelas, a doçura daquele
verde, o alourado das frondes maduras,
o matiz da inflorescência, o ar, a linguagem daqueles viventes, a indescritível, a misteriosa, disposição dos ramos e das folhas, derramavam uma proteção que ela não encontrava, nem na secura da matéria
inerte, nem nos seres que têm vista e ouvidos.
De tamancos, a rapariga
sumiu-se
entre as bananeiras, com a toalha dourada de cabelos soltos sobre a toalha felpuda que lhe abarcava as espáduas.
Tinha mais
pejo que dantes. Acontecera, alguns meses atrás, vir ao
banho, de
saia e cabeção, e toalha
mal protegendo o colo, mas agora nem por nada.
Ficou de pé na portinha do
banheiro, alheada, braços cruzados, fronte recostada no umbral, em doce
dormência.
O bananedo agitava, sobre a
associação de pilares lisos, os monstruosos penachos de palmas oblongas,
enormes ramalhetes entressachando-se, com elegância de arcárias, de dóceis, de
zimbórios imaginados.
O palhiço brilhante dessas heliocônias, à guisa de línguas
pardas, subia do chão, a lamber o último
verdor daqueles troncos aquosos. Palmas emurchecidas
pendiam, e outras ficavam em cima,
dilaceradas pelo sopro do ar.
Formavam-se acordes de
colorido, a pegar do amarelo das folhas maduras, ao das palhas secas, e ao
verde setíneo das frescais.
Dentre essa boscagem de fustes viridentes despontavam
os grelos dos filhotes,
e uma fértil umidade azeda. Pelos troncos,
descambavam madeixas descuradas, as velhas folhas
mortas. Os
cachos, crivados de pencas de fruta,
faziam inclinar com o peso as bananeiras mães, e na pontinha de cada
um, o respectivo mangará, procurando o solo com um bico de pião,
arrebitava a roxa capemba, semelhando língua, e como dentinhos alvos
apareciam debaixo destas as camadas de florzinhas, onde vão
a
chupitar doce líquor os colibris e as abelhas. Em derredor, a terra do caminho, escura e socada, com poças de lama que de longe parecem pastas de mica ou de prata. Pelos baixos, umbroso; e o olhar da menina
cansado da
muita luz do dia anterior, deliciava em penetrar nessas branduras de sombra. Havia
despertado o desafio dos pássaros e da luz.
Chuviscara pela madrugada.
As
frondes espanejavam mais leves, no ar
frio, e frouxéis de nuvens
cinzentas apareciam pelos interstícios da vegetação,
vagarosamente se arrastando no azul esbranquiçado.
Um casal de lavadeiras,
saltava para
o chão da cacimba, com o seu gritito monótono, e o seu
traje lavrado de preto e branco. A umidade
trazia a
Antônia um acesso de nostalgia. Contra a sua vontade, tinha rubros assaltos de pejo,
consigo mesma, figurando que estavam a olhá-la. Por que não se criou no Outeiro com o pai? Teria desconhecido os aparatos e confortos
da gente rica, o verdadeiro
tormento seu. Tudo isto poderia faltar-lhe de um momento para outro,
e ela cair no chinelo
roto e na
saia suja das raparigas da Feira! Uma impressão medonha afogou-lhe a garganta. Mulher de feira! Virgem Santa!... Ainda podia inventar um motivo qualquer, e buscar a companhia
do pai, o mendigo João de Paula. Ninguém adivinhava. Tinha irmãos pequenos e irmãzinhas, uma quase moça. A madrasta morrera, já se vê que ia até
ajudar o pai. Que vida no meio
deles! Quando houvesse o quê, almoçava;
senão, jantariam; e por último, antes uma ceia por almoço que fartura e riqueza
em risco de perder-se uma rapariga para sempre
aos olhos de todos. A Maninha que pensaria
dela? Como era boa, a Dorzinha! Feliz criatura. Mas também, teve papai e mamãe e espera com
fundamento. E Antônia? Casar com aquele João Batista a quem abomina?
A loura conservava o timbre rústico
da sua gente,
não sabia contrariar-se. Iria para a casa do pai, ser feliz com aquela miséria honrada, deliberou.
Mas casar com o tal de
Batistinha? Um frade!
Um susto, porém, estremeceu-a; o Afrodísio iria bater lá; e então a infâmia
invadiria a tapera de seu pai, o fundo roto das redes
das suas irmãs, e cuspiria
na fronte de seus irmãozinhos. Ah!, madrinha Fabiana! Para que introduziste este homem
na tua
casa, onde a felicidade habitava e donde mudou-se para sempre?
Desgraçada madrinha! atiraste o osso ao cão!
Era possível que um Visconde a
desposasse? Ele tinha dado a entender que não. E depois, contavam que ele e os
outros, a gente endinheirada, costumava proceder assim. É verdade que lhe
ofereceu uma boa casa no Beco do Rosário, alta e espaçosa, reformada pela marca
da Câmara, com mobília, prontinha de tudo. Mas diz que é assim que eles fazem
mesmo. Aboletam uma rapariga inocente, freqüentam-na por uns tempos, e vão
negaceando, negaceando, com esse desamor, a gente, que não é de pedra, vai
gostando de outro, e de mais outro. Cai no vício. E vai se queixar ao Sem
Jeito.
Um acesso de medo correu-lhe
pelas juntas, e a rapariga encolheu-se toda. Meu Deus, por que é que não podia
chorar? Por que é que não achava lágrimas? Dantes não lhe era tão fácil? Aqueles
olhos secos a assassinavam, o coração virava em brasa e a cabeça tornava-se um
coco roído da lua.
Hoje em dia, com que cara
apareceria ela ao João Batista? Horrivelmente despeitado, e considerando-se
injuriado, ele insultou-a numa carta em que dizia pelo claro todos os passos
ocultos da loura! Historiava diversos casos parecidos com o dela. E dizia, como
uns assomos de tragédia: "uma foi fulana, com o Doutor Sicrano, médico.
Sabes que é dela? É a Chica de tal, com um apelido indecente, e mora um mês na
Santa Casa e dous na rua. Outra? Beltrana." Assim por diante.
Antônia queimou aquela infame carta. E cada vez ficou odiando mais aquele homem grosseiro que se atrevia a ofender
por tal modo
os melindres de uma mulher que, afinal de conta, não
lhe devia coisa alguma nisso de amor. Bruto!
Não compreende a grandeza daquela fragilidade.
— Esta peste, exclamava ela, se fosse outra coisa, poderia salvar-me. E vem com injúria, me chamando simplesmente fêmea! Ah meu Deus, meu Deus! Maldita sejas tu, madrinha Fabiana! Oh
mãe, por que me pariste?
O João Batista surgia-Ihe
diante, ali debaixo das bananeiras, esguedelhudo, tétrico, faiscando ciúme,
com largas e cambaleantes passadas de teatro, e estendia horizontalmente o
braço e a mão. Rouquenho:
— Antônia de Paula, amásia do
Afrodísio Pimenta!
Na alucinação ouvia
distintamente a voz encatarrada do miserável, e bateu subitamente a porta do
banheiro. Correu a taramela, e o ferrolho da padieira e o de baixo...
Só, em frente do tanque de
cimento, entre quatro paredinhas caiadas, sob um teto sacudidinho de teias de
aranha. O dia espionava por esguichamentos na cabeceira de cada telha.
Respirou, e soltou um prolongado e aspirado — ai de descanso.
Acercou-se do banco de pau,
corrido ao longo da parede, e com um adorável pontapé no ar, desfez-se dos
tamancos, de couro e joão-moleque, que fizeram soar como um sino fúnebre a
beira da bacia de arame encostada ao canto. Arremessou a toalha, que foi
enganchar no cabide; esticou-se toda, cruzando os braços, com os pés
endurecidos, juntinhos como os de um cadáver, roçando os calcanhares no cimento
frio do solo. O corpo apoiava-se pelos calcanhares, ali no cimento, e pela
cabeça, na parede, e pelas nádegas, na quina do assento. Esteve momentos assim.
Era muito boa aquela posição hirta, que fazia parar o relógio da imaginação
dos pensamentos ruins. O mundo lhe existia apenas pela audição. Fechara os
olhos. Acariciador, refrigerante como o ruído do mar, borbulhava-lhe o
fervilhar da folhagem. Um galho arrastava na telha, em compasado vai-vem.
Pós-se a descompor os ruídos. Aquele mais grosso é do sapotizeiro... E aquele
chiado saboroso... chega parecia passarem-lhe um braço de veludo pela
cintura.., era do bambual do vizinho... E aquele outro, chia também, cicia... a
modo que os cabelos se lhe enrolavam no rosto... Ah era das palmeiras do Chico
Pinto. Agora ia caindo tudo, que diabo, o vento podia carregar os telhados...
Passou... Foi como um empurrão... Estavam puxando água na cacimba... Lá a
Benedita gritou com a madrinha; que se amolassem... Ai, aquela esfregação
bolia-Ihe nos seios, a arrepiava.., basta, basta, senão ela caía na risada...
tamarindeiro, basta de se esfregar no telhado assim, vá se espojar no diabo que
o carregue... Cantou um dorminhoco...
Está um bando de sanhaçus nos pés de mamão... Vai passando uma carroça pela
rua, mais outra... Lá um com-boieiro gritou... oboi... O tio Raimundo passou
assobiando... Que coisinha bonita, meu Deus, como isto é fino e delicado, como
é bom para... canta mais uma vez, assam fininho, vim-vim.., quase é fim-fim...
É vim-vim que ele canta, não é vem-vem. Quem lhe dera aquele passarinhozinho
para ela devorar num beijo, para meter no seio, para enfiar pelos ouvidos e
cantar-lhe no cérebro.
Foi abrindo os olhos.
A água estendia-se na banheira
de cantaria, quase abarrotando. Os respiradores triangulares, fronteiros, no alto da parede, cada um parecia conter um olho ao meio.
— Ah?! Espera, dia dos
trezentos diabos!
Despiu o casaco
e entupiu um dos buracos,
o outro, e o terceiro,
que eram todos próximos, com a saia. Agora sim, podia
estar em camisa, e mirar-se no espelho da água.
Via-se por diversos modos, no espelho horizontal. Mirava-se deste lado, daquele, estirava uma perna, um braço,
enrolava estes.., descia um pé cerceando a água, sem feri-la, e via a perna invertida... Admirou-se em várias posições, diretas e inversas... Com os diabos! Tinha
de despir-se, e varejou
com a camisa para o banco. Intentou ver-se em projeção horizontal, mais ou menos paralela com a flor da água... Se o João Batista espiasse agora gritava-lhe:
— Devassa!
Desequilibrou, e caiu na água.
Foi ao fundo. Era raso, naturalmente.
Por felicidade não se machucou
muito... No tornozelo apenas, na borda do tanque, uma pancadinha, que assim
mesmo doía como uma canelada. E retorcia-se gostosamente com a dor. Diabo! Isto
a fazia rir e a fazia chorar. Não sabia que existia dor e prazer ao mesmo
tempo.
E os ais catupeavam aos
inflamentos, ao arfar daqueles venerinos selos metidos na água. O que mais
tempo ela deixava fora eram as espáduas, corcovada que estava para diante,
apertando o pé machucado. O cabelo, parte boiava e parte pregava-se em desordem
naquela polpa de ombros que emergiam como em luxuoso decote de vestido. Não se
lhe viam, ao todo, os braços, colados ao corpo, e cortados, pelo lume de água;
e o sombrio louro do sovaco no aderir das carnes, mal denunciavam-se por uma
deliciosa linha terminando semelhante a comissura dos lábios fechados,
semelhante a um beijocável e apetitoso cantinho de boca.
Foi estirando-se,
desenrolando-se, como uma cobra, e mergulhou rapidamente; agitou-se; depois foi erguendo-se até
assentar à beira do tanque, de pernas
cruzadas. Branquejou-se, de pé, sobre a borda, quase com a fronte
nas telhas, com a espuma do sabonete; pulou para o chão, entrou a se desensaboar,
tirando água com uma cuia. Instantaneamente aquela palpitante imagem envolvia-se numa redoma de água;
como um roupão ao despir-se, a água
descia no
mesmo instante. Improvisava-se de novo
o cristal
da redoma, e de novo caía, descortinando o pêlo todo, a gaze da idealizada
vestimenta. Em derredor, tudo molhado. O sabonete,
pela metade.
Novos mergulhos, e nova temporada de molho
e de movimento. Era bom que a banheira desse campo à natação. Não sabia nadar, mas com aquele pendor de peixe, aquela natureza instintiva e rudimentar nadaria como as alimárias, sem ensino. Começou a arrepiar-se.
Fartara a
sede de toda aquela pele crivadinha invisivelmente de poros e de desejos.
Saía demoradamente da água e de uma carreirinha, como
se houvesse agora muito
pejo e vergonha da sua nudez,
foi acostar-se ao
cabide, pondo os pés sobre um pequeno estrado, puxou a toalha, cobriu-se por diante, do seio
aos joelhos, encolhida, cíngindo-se com os braços, como uma estátua de Vénus. Surpresa.
Tremia de
gosto, de propósito, infantilmente, com os joelhos e com os beiços, a si mesma
exagerando o frio. Saturada de água. Uma lesma arrastava-se na parede úmida, e uma rã fazia raco-raco debaixo
do beiral. Entrou a escutar novamente a música da ventania.
Espremeu
os cabelos, enxugou-se o quanto pôde, e encolhidinha, como se lhe fugira todo o calor orgânico e sensual, meteu-se na camisa. Então empertigou-se. Podiam v@-la. Não lobrigavam mais que o roliço dos braços, o coxim do decote, e o início das pernas. Agradável sensação percorreu-a, quando as formas se acharam protegidas pelo morim cheiroso a trevos, enxutinho e quente.
E passou a mão cariciosamente pelo relevo das formas. Torceu os cabelos
na toalha, sacudiu-os, passou-lhes o pente.
Sentou-se no mocho, e
descansando o tornozelo na coxa, esfregou os pés, e meteu-os nos tamancos.
Ei-la de pé, e avança nos respiradouros, donde safa o casaco e a saia.
Prontinha agora. Sente-se bem-estar, e acha a vida muito boa. Para complemento,
devia ser noiva do Visconde e sair com ele pelo braço a percorrer o quintal,
readquirindo calor, em um suave exercício depois do banho. Compreendeu então um
ameno viver de senhora honesta, com o seu maridinho, amizade, amor, afeição,
confiança, respeito. Um raio de graça divina entrara-lhe. Por que não a
desposavam-na?
E mais quem a queria? Daí, agora, ou Viscondessa, ou...
nada.
E o corvo do remorso peneirava
sobre ela. Arrependimento? Impossível. A estrela que cai não volta. Casarem-na
iludindo a boa-fé de um homem de bem? Este a repudiava. Com um sem-vergonha que
a aceitasse conscientemente? Metia nojo. Antes a queda completa. E nesta angústia,
encarava mudamente o céu através da folhagem.
Mãe Zefa estava prestando contas.
Apuraram-se tantas patacas e tantos vinténs; tirando a sua vendagem, ficava
livre tanto. Fabiana dizia-lhe uma graça, que ela recebia mostrando a clara
dentuça na mucosa das gengivas, e daí, antes de ir para casa, um quarto no Beco
das Trincheiras, vizinho de frege-mosca, esfumarado, dava uma prosa na cozinha.
Vamos a saber das novidades.
A mais forte, naquele dia,
foi-lhe cochichada pela Honorata que estava areando um tacho: Angela com
antojos!
— Sinhá viu?
— Inda não. Quando ela souber... Ai, ai! Eu nem sei.
— Quê? abrejeirou a Mãe Zefa. Zangar? Sinhá zangar porque a moleca está de bucho?
E donde sinhá terá
escravo, senão assim? Como é que eu fui cativa
e você ainda é, comade Norata, senão pro mó do pecado?
— E quem será o pai, Mãe Zefa?
— perguntou a Antônia, assando castanhas no fogão.
A preta arrebitou os beiços.
Antônia, com o rosto
afogueado, revolvia as castanhas com o cabo da colher de pau, e ficou
imaginando. Ardendo, as castanhas
figuravam uma forja de ferreiro assoprada pelo fole. O óleo da preciosa
amêndoa do
caju fazia explosões lindíssimas,
produzindo uma chama clara e forte, sem
fumo quase. Remexia-as, para assar bem; retirava as prontas, completamente negras, que largavam a fumegar. Deitava-lhe mais, das cruas, e a cada
uma espipava uma explosãozita. Acabada a tarefa, amontoavam-se
à beira do fogão, as prontas, com pontinhas de brasa e esfumando até esfriar.
Mãe Zefa não
respondia quem era o pai da criança...
Antônia desconfiou.
— Por isso é que Ângela
gostava tanto de ir lá!
Coitadinha da moça
branca, estava com o coração denegrido instantaneamente.
Horrível! que sorte, que desdita, que desventura! Rival de uma
cabra reles! De uma
negra cativa! E ao derradeiro fumozinho que escapava do carvão
das castanhas torradas parecia fazer uma pergunta com os olhos pasmos.
O tio Raimundo entrava naquele
momento com os seus regadores, o ciscador, a pá e a enxadinha de jardim.
— Siá Toinha, quer que eu
ajude a quebrar?
Aquela voz de homem fez-lhe bem.
Era assim como uma proteção, embora de um miserável preto.
— Obrigada, tio Raimundo, eu mesma quebro.
E segurando a castanha,
coraçāozinho alargado e de carvão, entre o polegar e o índex da esquerda,
batendo-lhe com um caco de telha, Antônia fazia abrir-se em bandas a noz e
aparecer a delicada amêndoa ro-liça, do jeito de meia lua, alva e corada,
metida numa casquinha de pele como uma ninfa da borboleta; e sacudia-as num
prato. Alguma provocadora a mais, ela descascava e mastigava ali mesmo. Acontecia
vir uma queimada, que ela guardava para lavar as mãos, ou alguma chocha que era
repudiada. Eram as amêndoas de caju para lardear bolos de carimã, que em casa
estava um rebuliço como em dia de farinhada na roça. Pães-de-ló, bolinhos, bolo
de arroz, bolo de milho novo, canjica, assim só à véspera de um noivado. O
acelero e o açodamento em que a Fabiana punha os mais! O tio Raimundo,
forneiro, ia deitar a lenha e acender o forno ao fundo da cozinha. Ângela, a
batedeira de ovos, a preparadeira das massas como ajudante da senhora. O
moleque Joaquim reduzia as espigas de milho, sentado no chão, com um ralo
dentro de um alguidar de barro vidrado. Fabiana, de avental branco e touca, e
mangas arrepanhadas, metia as mãos na bacia da massa de bolos. Um padeiro suarento.
Até aos cotovelos, tinha o branco da carimã.
Maninha, o único
serviço que
fez, foi untar de manteiga as formas, e isto a poder do muito chamar-se por
ela. Não vê! Trabalhar em manjares para os anos do Afrodísio Pimenta! Aquilo não é homem que se aprecie.
O Centu, este sim, escrevia-lhe. É verdade que friamente,
no amado costume, com um
desamor brutal;
mas sempre era um homem sincero e bom, e já agora era impossível deixar de se lhe amar. A menina
acreditava não sei em quê, a resignação lhe
imbuía fé e esperança rija.
A cartinha era lida, relida, decorada. Consultada. Cheirada.
Beijada. Ai que se é feliz! E detrás de sua cabeça
um espírito vinha dizer que por baixo
das palavras que se vêem costuma haver outras, encantadas, que é onde fica
a realidade. Como habitualmente, estava ora na sala, ora no gabinete.
Ler bastante, e fazer progressos no piano. Censurava a si mesmo
o pouco interesse que, de certos meses, tomava pelos trabalhos domésticos. Uma vez que timbrava
em desposar o primo, era dever seu aplicar-se aos misteres de um lar. Mas sentia
uma repugnância invencível pela mãe, pela Antônia, Deus lhe perdoasse, e pela Ângela. E mais, que fazer?
Conversava com o pai, taramelava com os fâmulos, descarregava o bom humor de donzela
bem nutrida, era como as outras, na Igreja,
no Colégio, nalgum passeio. Não fora mais ao Clube. Efetivamente não freqüentava a sociedade.
Saía com a mãe, a visitas da civilidade. Diante de gente de fora, mostrava-se
prazenteira com a Fabiana. Birra contra birra. Assim como ela aguardava o advento do Centu, a mãe
emperrava na segurança de que ela e o Afrodísio viriam
finalmente a querer-se.
No seu contínuo raciocinar, o Osório entendia ainda que esse fenômeno que se passava no entendimento da sua mulher
havia de ser assim um
espécie de
paixão retardatária, tardia,
extemporânea, como atas em agosto, pelo Afrodísio; ou assim uma coisa assemelhável à paixão
de um padre por Nossa Senhora.
Para engendrar inglesias de lógica e de filosofança ninguém como o desembargador!
— Que então, bolava ele, ela, vivendo na filha, casando esta com o dito, apazigua-se.
E coroava as suas deduções,
muito ancho da sua capacidade, exclamando sozinho no gabinete:
— Não tem nada, é uma nevrose! Vamos ver em que isto pára. Rédea frouxa, doutor Osório; o cavalo sabe o caminho.
Disse isto em voz alta, e a
filha, que parara o piano naquele momento, foi a empurrar-lhe a porta,
perguntando pelo brando: — Me chamou, papai?
Encontrou-o de pé,
em atitude de químico analista, que ele aprendera do boticário, quando era morto e vivo lá.
— Então, me chamou,
ou não? — alçava a menina a voz,
segurando na porta, com a cabeça para dentro.
— Hein?
— Me chamou? Arre!
— Não. Eu não te chamei... foi aqui...
uma pessoa na rua, talvez... Enfim, já que vieste...
Enlaçou-a pelo
pescoço como se fora moça com moça, e beijou-lhe na testa. Pegou-lhe
na mão, bei°ou, e levou-a sobre o coração:
— Isto é o coração do Doutor Osório, não é? O teu maior amigo, não simplesmente por ser teu pai; que é erro pressupor-se infalivelmente que a paternidade ou a maternidade
são acompanhadas, como o sol com a luz, da amizade real e verdadeira como eu a compreendo. O laço
carnal é muitas vezes motivo de suspeição, não é? Uma coisa
muito física, muito sujeita aos sentidos, e portanto a achaques. É o caso de empregar-se
originalmente o baliro, adjetivo sadio: pais doentes de nevrose, por exemplo,
devem conhecer-se, e ter bastante bom senso para entender que são incapazes de
um amor sadio para com os filhos, quero dizer, um amor sem preconceitos, sem
crises, em pleno desenvolvimento...
— Creio eu, porém, que você
não está com isso...
— Também eu...
— E então? Parece que está
hoje tão namorado da sua filha? — É verdade. O meu amor é grande realmente para
contigo. Sentaram-se de frente um para o outro, à escrivaninha.
— Faça o favor de não me
namorar tanto, senhor! Estará de nevrose? e sorriu como criança.
— Não. Isso não é comigo. Passa a tua mão
pelo meu rosto, anda, pela minha
fronte, e
pelo meu crânio, que a tua pureza se me filtre na alma. Assim... Mais, ainda
mais... Deixa beijar-te essa
mãozinha adorada.
— Porém, não me dirá, o que é
que você quer assim tão caidinho? Quererá pedir a minha mão? Entenda-se com a
Dona Fabiana, a esse respeito.
— Que inspiração! fez ele
saltando da cadeira. Dá-me um abraço, tu adivinhas, é justamente sobre isso que
eu te queria falar. — Sobre isso? O quê?
A menina conhecia quanto o pai era desazado para com ela, principalmente
quando tomava um copo de cerveja. Se fazia simplória, a fim de entrar mais suavemente por aquele crânio de rábula, e fazer o pai discorrer com
lhaneza e
sem solavancos.
— O Visconde me deu a entender
que te desposará!
A Maninha sentiu nesta notícia, que aliás não era de estranhar, como que a maior surpresa da sua vida. Não pôde responder.
Nem convinha. Abaixou os olhos, assaltadíssima de pudor, e de susto;
sentiu repentinamente
um mal-estar impossível de exprimir. Abandonaram-na pensamento e memória.
As palavras do pai caíam-lhe
pelas ouças como setas seguidas, ou pedras lançadas sucessivamente ao fundo soturno de um poço. Um peso queria
tombar-lhe do crânio para os olhos, um pranto se acochava nas órbitas como a água na máquina
hidráulica, as entranhas e os pulmões pareciam comprimir fortemente os músculos cardíacos.
— Eu não sei o que dirás, continuava o pai, fazendo uma contração de choro. Pelo meu gosto... Por seu lado, a Fabiana foi quem
armou tudo isso! Positivamente, respirou ele, assoando-se e empertigando-se, positivamente, o homem não te pediu
ainda; entretanto, deu a entender. Percebi que ou casaria contigo ou ficava solteirão.
— Papai, aquilo é um infame! explodiu a menina. Ele sabe perfeitamente que é mais fácil casar com o negro Samango do que com
ele! Canalha! Vilão! Réprobo!
— O que é isso, minha filha?!
— Perdão. la sendo
inconveniente... Já agora, porém, que abri a boca... Ah! você
não avalia o que eu tenho padecido... fez ela cobrindo enfim os olhos com as mãos.
— Leio nos fatos, filha.
Calculo.
— Não digo nada, porque, enfim, a religião, a sociedade,
enfim porque a mamãe é minha mãe. Eu já disse na cara dela: não caso, mamãe, não caso, não caso! E foi diante da alcoviteira
Mãe Zefa
e do João Batista. O Afrodísio sabe disso;
ora, com toda certeza. E ele...
la acrescentar que ele
devia era receber a Antônia em casamento, se é que era "homem". Já a Ângela, punha-se de parte, era cativa, e ele cabra. la dizer mais que lhe
adivinhara o plano; fazer presente da Antônia num maço de dinheiro,
ao coitadinho do João Batista; e quanto a ela Maninha, como seria judiada, sendo feita mulher
de semelhante indivíduo!
Porém calou-se. E choraram,
sem quê nem pra quê, o pai sobre o peito dela, ela sobre o peito do pai.
— Jeová devia ser coisa muito ruim, porque isto foi feito à imagem e semelhança dele! — blasfemou o Osório,
abanando a cabeça.
Mariinha soltou-se de súbito, como o animal que, assustado, fareja e escuta no ar. O pai tinha-se erguido, frio, acalmado, filósofo.
— Não blasfeme. Deixe esse defeito do sexo forte! Se não tem forças para sofrer, aprenda com as mulheres.
A noite o desembargador foi
cumprimentar o Visconde, que fez anos. Muitos amigos, tudo homem, como em uma
sessão maçônica. A mesa, ali pelas nove horas, presidida pelo Excelentíssimo
Presidente da Província, o desembargador ez ao Visconde um brinde campanudo e
entusiasta. Foi o mais li: onjeiro toast que o anfitrião recebeu por aquele
aniversário.
Ângela passou a noite fora. Andou ruando. Tinha saído com licença, gostosamente concedida pela Fabiana, para sambar
com os escravos do Visconde.
No outro dia estava e andava por tal modo a rir que parecia uma
sem-vergonha.
— Tu não me dirás até
quando vais
com esse desmancho, criatura? gritava-lhe a Benedita.
O certo é que ambas
caíam na
gargalhada,sem saber por amor de quê.
Isso de riso e choro entre mulheres é assim mesmo. Benedita estava
tirando c
almoço, no fogão, de manga
arregaçada, empunhando a colher de pau. Arrastava a caçarola, e ordenava
para Ângela que fizesse
rogo "essa farofa". A outra não
sabia orde
estava a manteiga.
— Pois tu não a trouxeste
neste instante, mulher? Diabos te leve! — E agora! — fez a cabrocha num muxoxo.
— Anda buscar a chaleira de
água fervendo! O senhor quer almoçar cedo!
A cabrita foi pegar a
chaleira, pisando duro com os calcanhares e mexendo com os quartos e com os
cotovelos.
— Sai daí arrebitada! — gritou-lhe a Benedita
com desprezo; e virou a cara para não dar demostração de que estava estourando para rir.
Ângela embicou a água fervendo para um prato fundo, aplicou-lhe manteiga a dissolver, e entrou
a
resfriá-la um tanto, com a colher. Temperou com
cebolas e
coentro, e deitou farinha aos poucos até formar um engrolado.
Ambas, ela e a farofa estavam fresquinhas
e quentes.
Uma vez, isto antes de
conhecer ao Pimenta, Ângela quase afoga-se gargallhando assim, mesmo à cara da
Benedita, com grande desapontamento para esta, que enraivecia já, com as suas
feições sangradas e roxas de sífilis:
— De que tu te ris,
grandíssima cachorra? — berrou a cozinheira. Ângela curvando-se ao peso do
acesso nervoso, amparando os peitos com as mãos, buscando fôlego, respondia-lhe
no cacarejo do riso:
— Estou rindo.., da tua
cara...
E perdia-se de novo na
vascolejo do riso.
Por isso é que as companheiras
a chamavam sem-vergonha
e lhe queriam bem. Naqueles bons tempos em que o Afrodísio lhes
era ainda desconhecido Antônia fazia-lhes
companhia e nessas ocasiões de destempero de riso e fala era-lhe
tolhida, à loura, por pouco mais a um nada. Para proferir
a primeira palavra repetia a primeira articulação uma récua de vezes, e a sílaba
sumia-se
na catadupa convulsiva carregando o pe-dodo inteiro. Pronunciava palavras que explodiam ao inflar das bochechas, e delas que eram um gaguejamento. A fisionomia, upada por
momentos, vinculava-se como as coxas de um menino
gordo, vascolejava, e os olhos vazavam lacrimejo
exprimido, o suor acudindo a flux do corpo todo, e as ventas entupidas.
Baba-te, desesperada! gritava-lhe a Fabiana. Já estás com o demo no couro, Antônia!
Ângela sempre teve forças e boas disposições para o serviço,
habilidade,
e quando queria, ninguém manipulava
melhor pitéu. Se, porém, amanhecia trombuda, ai meu Deus que desadoro!
Era um dia
de juízo. Tudo malfeito,
alinhavado, escaldado, sem apuro, sem jeito, por modos que lhe diziam:
"Deixa isto; vai-te embora." Olhava então fixamente, abaixava os
luzios, metia-se no canto, julgando-se inutilizada, e quando davam fé estava
embiocada com a cabeça escondida nos braços, de cócoras, derretendo-se ao sol
do despeito.
— Ai gentes! Acudam esta
manteiga! Olhem mingau pra Neném! E a dona Fabiana, cantava numa toada popular:
"A gente do Cariri
Tem olhos, não tem pestana;
Lá vem o carro cantando
Cheio de olhos de cana".
Mãe Zefa, a bem
dizer, criara Ângela, e Antônia. A loura tinha
lá os
quindingues dos brancos. Se lhe davam os pruridos
maternais,
que sói acometer as estéreis, principiava Mãe Zefa a narrar como Angela nasceu, que todo mundo
viu logo ali uma neném como não havia de brancos. Bonitita, gordita, vivinha, com umas manchas roxas nas nádegas, com uns bugalhos de gente grande e um choro dengoso de matar.
Esmiuçava anedotas da infância da cabrinha, abstendo-se discretamente de falar na mãe dela, que era uma coisa triste, pois fora uma negra ruim, ladra, muito atirada ao mundo, pelo
que, embarcou para o sul.
Antônia viera, da casa do pai,
ainda pequenita, e assim era beijocada por todas as donzelas da vizinhança,
tão rechonchuda era; nos frenesis,
chegavam mesmo a fazer-lhe judiações. Parece que as moças cada uma delas tinha para si que a Nini era sua, arrancada de suas entranhas pelo milagre de uma conceição supositiva, como em vadiação de bonecas.
Naquele dia imediato ao aniversário do
Afrodísio, Ângela
teve de suportar um par de bofetadas que lhe atirou a senhora: Dissera-lhe um desaforo
por cima do ombro.
— Espera que te abaixo o
fogão, cabra! Estás com muito gás! E foi-lhe aos beiços, que o sangue espirrou.
Mãe Zefa entrou com as suas funções apadrinhadoras, com o seu valimento perante a
sua ex-senhorinha, e a
coisa aplacou-se.
— Tome cuidado com essa cabra,
Zefa! persurou a senhora. Olhe que um dia eu mando surrá-la no tamarindeiro,
de fundo para cima! E há de ser pelo Chicão!
A cabrocha estremeceu de horror e de medo.
A preta idosa entrou a sermonear que uma pessoa cativa não é como os forros, uma
criatura deve trabalhar para ser boa, ou ao menos fingir, senão adeus carta de alforria. Quem quer pegar galinha não diz chõ. E citava exemplos, entre os quais deslumbrava sempre o seu, uma história enjoada, muito longa, que era ver umas
páginas do Fios Sanctorum. Uma santa mártir aquela senhora idosa, de cútis negra, e dotada
por uns braços de travesseiros!
Para narrar, sentava-se comodamente, na cintura do pilão
deitado, passava o xale, e começava por
aqui assim:
"Minha filha, quando eu era molequinha, lá nos Inhamuns...”
E entravam peripécias muito honrosas,
patéticas, enxameadas de nomes de senhoras moças, de doras, de mães b. ancas,
de sinhazinhas, de Seu Comandante Superior Fulano, Seu Vigário Padre Chiquinho,
negro velho mestre Antônio, bons invernos, maus verões de um rol de vezes,
gado morrendo, cavalarianos de Pernambuco, e coisa, e loisa: vendida para a
Capital, prestes a dar a volta do Mucuripe, escapando por se ter valido aos pés
de Dona Sicrana que lhe goderava as aptidões; depois, a viver de cozinheira e
engomadeira, o mialheiro de barro; é muito no finzinho o dia da alforria, em
que não falava sem regar-se de lágrimas de alegria, que eram uns diamantes
naquele carvoedo!
Ângela, amuada a um canto,
escutava. Assova-se, expelia as últimas sombras do choro, assim como quem
sacode os cabelos depois de um banho e daí, encaminhava-se para o serviço,
impressionada por coloridos projetos, disposta a labutar como a legendária Mãe
Zefa. Havia de ser bom. Chegar a velha, toda limpa e livre. Ria
instantaneamente, e reperguntava à crioula isto e aquilo de quando ela era
Anjinha. A preta lembrava-se então com saudade de quando aquele corpozinho
tenro de bode novo, andava de mão em mão os beiços violáceos e a boquita vermelha
como pimenta.
Contudo, a Fabiana era mais
mãe para
aquela gente
"que quando
não salta, berra", do que mesmo para a própria filha.
Como certas amásias que
se apegam mais
ao seu homem, tanto
mais ele
surra-lhe, a matuta não podia largar aquela amofinação, aquele hábito de danar-se ao menos uma vez por dia
com as pessoas de casa, e em compensação, de aparvalhar-se por igual medida. Acontecia
mesmo, sem transição sensível, saltar, do furor, à parvoíce; um certo gênero de bondade, esse.
Viera da Prainha, tarde, com a Antônia,
onde foi confessar-se com um santo lazarista.
Com pouco, atroava na camarinha, o abrir dos gavetões puxados pelos seus
braços empoados, e quem a conhecesse tinha-a agora em imagem com o seu afogadilho de seda preta e o seu pente de
tartaruga, e na mão,
enrolado como luva de sapateiro, o rosário de vidro, de crucifixo e verónica de ouro.
Em camisa e saia, abeirou-se
da cama, tirou os sapatos, de couro de lustro e fivela, as longas meias pretas, e bradando pela Angela.
Com a porta entreaberta, expunha ao ar,
posto no outro joelho, o pé direito, congesto, com os seus calos abugalhados, e repassava, à guisa de serrote, a meia por entre os dedos suados:
— Gentes!
Mode coisa que
estou com um
bicho... proferiu, fitando as carnes do pé.
E chilrou:
— Ângela!
A cabrocha ia cair de novo em
graça, depois da rusga do bofetão.
— Ângela! Vem cá minha filha!
Por debaixo de seu
dedo grande
parecido com uma cabeça de calangro, havia realmente um pontículo azulado, numa rodinha lívida.
— Cabra dos trezentos diabos! Olha se o assoalho tem espinhos!
O olho do pulgo, já
tapuru, se
lhe arregalava cínico na pele aquecida e vermelha, com um prurido insuportável. A dona repuxava o dedo ofendido, escangotando-o como se faz ao
pescoço de
uma galinha que se quer sangrar. Pespegava-lhe dedadas acariciadoras de saliva, e coçava infantilmente.
O marido entrou-lhe pelo quarto:
— Que é isto, Fabiana?
— É um bicho, homem. Vê se mo tiras!
— Ora! Até eu gosto
quando eles me entram!... Filha, a gente deve temer é aos
bichos que
não enxergamos. Tu vens da Igreja?... Eu quero que arranques o bicho é à Ângela e à Antônia!
— Sai daqui — fez a mulher,
disfarçando um arrepio de pavor. Já te afiancei que é isso
calúnia...
— Calúnia? Aquilo é que são verdadeiros tapurus, minha dona! O tempo aí vem.
— Pões tua alma no inferno.
— A tua deve estar no seguro,
pelo que vejo.
— Mas, ó Osório, tu não
eras tão falante nem atrevido assim?!
O marido olhou-a,
pelos óculos. Teve pena. Amava a mulher, o tratante.
— Estás insuportável! Me contrarias assim de pé pra mão,
como se
eu fosse a pamonha da tua filha que só escuta o que tu dizes! Toma cuidado! Olha que me gabo de não ser boa!
O marido, em atitude
joco-séria, apontou-lhe para o pé:
— Senhora, lembre-se que está com um bicho!
— Bicho, bicho; repetiu ela com desdém. Bicho vejo que tu és! Hás de lucrar muito
com essa cara descabelada!
— O serviço que lhe
posso prestar pelo momento, galanteou, é examinar
esse odorífero extremo da sua torneada perna, e descobrir escrupulosamente
o que há no seu martirizado dedinho.
— Vai-te, homem, que estou em graça de Deus. Não me faças pecar!
— Sim, oh cândida e pura alma confundida
com a minha! — pero-raya ele,
já na
porta. Eu te deixo a sós com o cruciante
inseto parasita.
A dona estirou-lhe, com um gesto de despeito, um — vá bugíar — que acompanhou o velho juiz pacato e sorridente, pelo corredor afora.
Com pouco, a porta afastou-se, e Ângela assomou, com o seu vestidinho de riscado
e o avental escuro. Osório veio atrás, com ares de noivo, lépido e dormente.
Angela agachou-se, desenfiou um alfinete, e aplicou atentamente os seus belos olhos
castanhos nos dedos secretores do chulé da ilustre senhora. Com a mão
esquerda intumescia a residência do pulgo chucha-dor, espremendo a carne.
Daí, tão airosamente esgarafunchou, pachorrenta e amorável,
com uma aplicação de míope, que, ao cabo de instantes, se retesando sobre os joelhos dobrados debaixo do colchão dos quadris,
patentou aos quatro ângulos da camarinha, na ponta daquele
alfinete que tantas vezes mordera o pecíolo de flores, um
carocinho
alvo, invisível quase:
— Eis aqui o buxo! — bradou.
Ali estava o tormento
da matrona, dado à luz, morto, como a cabeça do gigante
na ponta
do alfanje do menino Davi. No dedo
ficara apenas um buraquinho muito bem feito. Angela tirou cerume do ouvido com a curva de uma grampa e entupiu
a ex-residência do parasita.
A senhora chupou um suspiro de satisfação, mas não se atrevendo a enfiar
imediatamente o pé na chinela, saiu pulando num pé só, a alcançar o cabide para tirar
a roupa de casa. Acenou à Ângela que se retirasse, e disse que queria à noite
lavar os pés com cozimento de malva, por mó de umas coceiras.
O marido, em paletozinho de seda e calça parda, foi assentar na mala de pregaria.
Sempre que, em
certas disposições de espírito, presenciava em meia
nudez o corpo da mulher,
subia-lhe ao nariz o extinto aroma e a sepultada sensualidade de dos bons tempos... Ela disse-lhe:
— Faça o favor de sair, senhor desembargador.
Ele não respondeu. Olhava-a.
— Como vai o buraco do bicho?
— fez ele, com indiferença.
— Coçando.
— Há de sarar. Não vá
esfregar o pé que apostema.
— Não preciso de lições,
agradeço os seus cuidados.
— Realmente, para essa
espécie de
parasita, é dispensável a intervenção da medicina.
Há, porém, uma outra que, saído o bicho, não há cera de ouvido, nem de moral, nem
de religião...
— Há o dinheiro,
senhor doutor! Há o dinheiro, que sara a honra, senhor
desembargador! arremeteu a sertaneja
indignada.
— Sim, o dinheiro que salva as almas à míngua de virtudes.
— E que faz os burros
botarem cabrestos nos doutores! Há o dinheiro, senhor doutor, que faz os bacharéis
pobres casarem com as matutas ricas, desmioladas!
— Safa! que eu não
esperava por este momento lúcido, minha senhora.
— Assim é que eu entendo
— findou ela, encolhendo os ombros, com um ar de fereza insuportável.
Ele torceu a cara e escarrou
detrás do baú. Levantou-se:
— Ponto final. Vossa
Excelência pode, quer e manda. Sabe, porém, em quem não manda? Na minha filha.
Simplesmente isto.
— Veremos, fez ela
enfiando a saia. Veremos.
Depois de uma pausa:
— Deus me perdoe, meu
Deus, já nem me lembrava que vou comungar amanhã! Credo! Padre nosso que
estais no céu, santificado seja o vosso nome...
No oratório uma
fitinha de sol, caída no meio das bentas imagens, traspassava resplendores
ricamente cravejados, e essa luz, descendo por um biquinho de telha arrebitada,
imergia ali supersticiosamente, pelos vidros quietos. Zimbório e colunas
estavam de um negro empoeirado ao de leve na cocoruta, onde, como uma ventoinha
de torre, campeava um anjo de latão empunhando uma estrela radiosa.
Havia ao pé do
criado-mudo um trinque desocupado, servindo apenas para dependurar a azelha de
uma sacola de americano, parecida com uma bolsa de confraria, abarrotando roupa
suja.
Entre as estampas da
parede, coloridas, uma faixa de sol, da telha de vidro, banhava a Santa
Bárbara, com a palma do martírio semelhante a um olho de palmeira; o São Roque,
de cabeça a tiracolo, apontando para um cão a lamber-lhe as chagas; e a Santa
Rosa de Lima, ao pé da roda de dentes que a serrou
Fabiana passeou um
olhar por aquilo tudo. Compenetrou-se de estar em graça de Deus, repetiu o ato
de contrição ajoelhada ante a cômoda.
"Senhor meu Jesus
Cristo, Deus e homem verdadeiro, por serdes Vós quem sois, tão bom e digno de
ser amado...
Abriu, depois, as
portas, adotando um arzinho meditativo. O dia, invadindo o aposento, desfez a
fantasmagoria das réstias no oratório, e as estampas da parede expunham-se agora
no simples qualificativo de litografia de carregação metidas em caixilhos
envernizados, com vidraça por diante.
Fabiana saiu pensando
se não haveria um santo advogado para o mal de bichos, visto como os há para de
garganta, o de madre, o de olhos, espinhela caída, quebranto etc. etc.
Há tanta gente
cambada!
Afrodísio, à janela do
seu mirante, às 11 horas de um dia ardente e ventilado.
O céu deliciosamente
azul, e mais um azul extasiante, pairando por cima da cidade, querendo
abocanhá-la. Muito ao longe, recortava-se no ocidente, um grupo de pequenas
montanhas, sob os vapores informes. Debaixo da janela, espalhava-se pelas
telhas um punhado de flores murchas.
Ventava pouco. Ardia o
sol ao contacto dos seres. Do meio de um quarteirão subia o corpo de um
castanheiro antigo, e aquela enorme fronde refrigerante, para onde convergiam
os euros, aquele palácio vegetal, bebia os olhos saciados do Afrodísio. Que
boa vida a das aves que volitam, sem haveres, sem teres, sem devedores nem
dívidas, sem casa, sem roupa, a agitar-se no azul e no verde livre! Mas o
chumbo e a gaiola? Boa vida seria não viver! Não! replicava o homem a si mesmo.
Em um universo onde há uma rapariga do saber da Antônia, não há sofrimento que
se não suporte, não há dor, não há gemido.
As edificações
levantavam a fronte umas por entre as outras, aninhando uma população de
milhares de almas, de cuja existência subia o ruído apenas.
Do acervo de telhados,
avistava-se, nalguns pontos, a arborização das praças. Transeuntes
amesquinhados com a distância. Numa paragem, dentre o vermelho da coberta
abrolhava um mirante caiadinho. Em trechos de fachada bordavam-se gradis de
varandas. Se devassava, no quarteirão, ao poeiramento solar, uma zona de
quintais sulcada de muros paralelos aqui e ali ocultos pela vegetação, num
horizonte de tetos de ásperas angulosidades e reentrâncias. A luz aplicava-se
como uma rapariga pechosa em não perder um pontozinho a sombrear ou a
iluminar, e o embeiçamento das telhas era uma série indefinida e sucessiva de planos
inclinados e confusos pelo conjunto, embicadinhos. Ora pareciam canutilhos,
ora umas telas encrespadas, frisadinhas, onde se poderia bordar
gigantescamente com o retrós da xantofila e da clorofila das árvores, com os
fios de ouro do sol, com a seda escura das sombras, e com os salpicos da
plumagem dos pássaros, e debruar com o arminho das nuvens, e enfeitar assim o
manto azul da cidade.
Daí, o Visconde
imaginava-se no silêncio da sala de visitas, em cujo âmbito seria justiça que
Antônia viesse a dominar. Encamisada, pelas horas de luar, a vidraçaria
aberta, em alvíssimas rendas perpassadas de fitinhas cor-de-rosa, como seria
romântico. Ele devia tê-la como esposa, ali, onde as cortinas transpareciam
levemente arregaçadas, meio velando os pudores do recinto, presilhadas em
maçanetas de doirado fusco. Os elegantes consolos negros, sobre o mármore das
lápides em branco, seriam uns túmulos insaciáveis a encher de cálidas
recordações. Antônia rolaria nos tapetes onde correm árabes a cavalo
perseguindo corças; veria o invisível
arfar dos
ramalhetes nos jarros cor de creme,
ouvindo o
tlimtlim dos pingentes tocados de luar e de brisa no grosso candelabro que desce dos florões do estuque.
De dia, havia de arrastar o longo vestido branco, fazendo sala, e das paredes forradinhas de verde com colunas de trigo
dourado, e dos grandes espelhos beirados de caixilhos de talha,
que sorriem de luz, e da vidraria de cristal, e de tudo, manaria um fino sabor de nobreza.
Nos devassamentos de sol matutino, como um gato mimoso de nariguinho de pitanga e lacinho ao
pescoço prendendo um guizo, ela deitaria nas alfombras empalidecidas.
Ostentaria valor inestimável, fronteiro ao dela, o retrato que ora
inda existia entre as duas janelas; despenhado para o espaço, habitando numa moldura vistosa, em grande uniforme de galo pimpão de crista
alevantada,
oferecido pelos oficiais da guarda
nacional ao Ilustríssimo Senhor Coronel
Comandante Superior, naquele tempo Afrodísio
Pimenta Carne-Viva,
pelos seus merecimentos e amor à pátria.
As pupilas da pintura,
muito abugalhadas
haviam de estar pregadinhas constantemente,
nas do retrato da Antônia. E a esposa, tarde viria dar bons dias ao sol, e cedo
bateria as
portas e almejava boa noite às estrelas.
III
Em uma de suas cartas indagava
o Centu se já estava concluído o Passeio Público, e lastimava de que a Mariinha
lhe escrevesse com uma sovinagem de agiota. A morena sorriu com isso, pois um
tal queixume era pródromo de uro seguro triunfo. Papocou-Ihe uma cartapácio que
era ver uma brochura, com o destino calculado de revelar-se pessoa engraçada e
de chiste. Para documento de que esse rasgo de expansibilidade não era
extemporão nem leviano, tinha para si que as palavras do ma-cebo cancionavam
assaz a independência e a dignidade do seu afeto de mulher de siso. Empregou
expressões notoriamente simplórias e ingênuas, e de propósito andou a
despropositar.
Lembrava-se da Ângela?
Aquela cabrinha
airosa e espevitada que era
com a
Antônia o ai Jesus! da Mamãe? Pois pegou a ficar ruim, mal ouvida, e pediu para pagar semana, até que uma tarde, muito
pimpona e
bem vestida, veio com dinheiro para se forrar. Isso há cerca de seis meses. Dera à luz na semana
passada, em uns cafundós do Beco das Trincheiras, donde se dizem coisas que moça
não pode ouvir. Mamãe estava arrependida de a ter alforriado,
porque ficou sem a cria.
O tal de Afrodísio pouco
ia lá em casa, apesar de que mamãe chegara a pontos
de me sacudir
nas ventas que eu casava com
ele e por força ou por vontade.
Eu tive uma raiva! Ora você já não viu? Ela obriga a ninguém
lá o quê! Porém resolveu não dar cavaco. É como se não fosse comigo.
Devia responder como a Antônia, que também
queriam casar à força com o João Batista.
— Diabo é quem quer!
Daí a Mariinha
fartou-se.
Mas não disse o que desejava. Entretanto, o primo veio ao Ceará antes do que se pensava. Arribou ali pelo meado de novembro, achacado de beribéri. Um gáudio para a Dorzinha! Mas a princípio, quando o pai mostrou-lhe o telegrama do Pará, em
que o rapaz dizia Sigo
doente Fortaleza, ela sentiu na alma um
profundo gemido. Imaginava-o morto nos seus braços, e ela,
como a Senhora da Soledade,
Riste, chorosa, inconsolável, desejava realmente sete espadas que a transpassassem
para o outro mundo. Sonhou que morriam ambos, e iam para a mesma sepultura. Era daquela natureza o sonhar-se
feliz, mesmo na maior desgraça.
Mas qual! O Centu desembarcou
andando, apenas arrimado à bengala.
Trazia um terno de casimira cor de café, paletó curto, e chapéu de palhinha.
Parecia um caixeiro de mercearia. Caminhando devagar,
firmando
o bastão a cada passada, as pernas muito moles, bambeando
ao mudá-las, e envergando o tronco para trás
ao assentar o pé, era mesmo de provocar o riso. Mas a Mariinha, que estava na janela,
quando ele apontou na esquina, teve um ímpeto de dor. Que pena! Como
ele foi,
e como ele vem!
— Eu bem dizia! Vê-lo assim
exposto aos olhares indiscretos, com uma moléstia que faz o andar tão ridículo.
As janelas eram altas, e ele de longe conheceu
a casa pela
frente de azulejo, e pelos dragões de cobre da cornija.
Abriu um sorriso quando sentiu o olhar da Mariinha, e achou logo um encanto
extraordinário num pedaço de braço nu que ela debruçava na janela. E que mãos,
que pareciam entrar-lhe por dentro e remexer na bagagem
do peito, examinando, pesquisando tudo, a ver se havia algum afeto estranho!
Parecia não fazer caso de si,
e era toda olhos para ele. Notou-lhe bem a vista úmida de comoção. Passados
mais de dois anos, sem esperar, o acaso de uma moléstia! Quando enfrentou com
a janela, a menina ergueu-se na carreira para esperá-lo na porta da sala. Não
se conteve. Ao subir os três degraus da entrada, desceu e veio ajudá-lo.
Pegou-o pelo braço, apertando.
— Que Cireneu que é você,
Mariinha!
— Podes dizer, concluiu o Osório, que o ajudava
pelo outro lado, tendo-lhe tomado a bengala. Disto
é que eles se fazem. O melhor Cireneu para o nosso Calvário é uma boa mulher.
Mariinha corou.
Na sala, o doente sentou-se, tomando
fôlego. Deu um assobio de satisfação, e um ar de bem-estar:
— Agora sim... isto é outra coisa...
Caramba, estou cansadíssimo.
— Toma um cálice de vinho?
— Obrigado, sorriu o mancebo,
com a cabeça reclinada no espaldar da espreguiçadeira.
— Faz favor
de tomar o vinho! repetiu
a menina.
— Coragem, menino, isso não é nada! animava o Osório.
— Ora, fez o doente enfadado e
cansado. Eu bem sei. E mesmo... agora já posso morrer!
— Não! assustou-se a Maninha. Agora é que você
há de viver direito!
— Quem mo garante?
Ela respondeu num olhar.
Seguiu-se entre os dois uma
fase de combate. Encontrando-se de novo, expandiram-se mais familiarmente, e
ardentemente, e cada qualestava curioso, vexado, excogitando por meios
indiretos, por ver se o ou-o era ainda aquele dantes, se não sobreviera alguma
erva daninha, se a afeição revigorou na saudade... e à medida que a dúvida
ia-se desfazendo, a certeza apertava as duas almas num abraço ideal e
infinito.
Mas em qualquer atitude em que a menina se pusesse
agora, estava
sempre gravada no cérebro do moço a primeira, o modo como
ela estava à janela. Pintara-se imediatamente, na imaginativa do engenheiro,
uma tela de altíssimo preço, as cores inextinguíveis, eternas como sói parecer o sentimento. Ao rosto moreno, de uma luz como viram os Bunyan e as Teresa de Jesus, nos geniais
arroubos místicos de amor divino e de glória celeste, rimava a polpa esculpida dos braços de manga
curta, e
o primor das mãos, mãos que falam, com unhas que provocavam beijo. Não era preciso mais. Para entrançar de uma
feita os fios esparsos de um afeto, e torná-los uno,
e sagrar o amor
em paixão, bastava aquele caráter de aparição,
simplesmente, e a doença em breve desaparecia da carne para uma outra aferrar-se no espírito.
— Que vida que eu sinto na sua
presença, Mariinha!
A menina, sentada no sofá, brincando com as bolotas da almofada,
perguntava-lhe traços gerais da viagem, e do território amazônico. Os dias de enjôo, o tratamento de bordo,
com um disfarce de admirável sensatez. Ficou
falante, como o não era senão raramente. A alegria assoberbava em idéias e em verbosidade.
— Enfim, o que me trouxe
de lá? inquiriu docemente, com uma especiosa melodia de canto de ave.
Muita coisa, que eu mesmo nem sei. São de nomes todos indígenas... amanhã. Tenho um vocabulário, que organizei, com as explicações que pude
colher.
— Trouxe alguma coisa do que
levou?
Ele esteve em não compreender.
— Já sei que ficou por lá...
Com a surpresa de ter
entendido, subitamente ele bradou:
— Trouxe, trouxe. Pudera não!
Tal como foi.
— Direitinho?
— Direitinhozinho.
— Queira Deus!
O pai entrava sempre no
cavaco, se havia brecha para uma sentença.
Veio um moleque, tirou as botinas ao doente, e mudou-lhe as meias
que estavam úmidas da jangada; ao passo que a Maninha acordava o piano, aquele saudoso piano dos primeiros tempos do enlevo.
Virou-se, depois de um longo trecho, para o primo, que sonhava com os olhos
no forro:
— Sabe? diz ela argentinamente, batendo nos ombros
do piano,
este era o meu confidente. Misturadas
com as frases da música
ele ouvia coisas...
Mal não acabava a palavra,
a donzela corria a mão novamente pelo teclado. Havia propositalmente
estudado um repertório com a perfeição que era acessível, para exibir à chegada
do primo.
Peças que, lá no seu ver, diziam o que ela
não podia nem sabia, que apenas
sentia confusa mas intensamente.
— Gostou deste pedaço?
— Mas muito! É pena que eu não
entenda dessa arte, nem conheça os autores.
— Isso agora é outra coisa.
Eu quero é assim mesmo. O meu professor, Mr. Benoit, diz-me sempre: É melhor a senhora
tocar um pequeno número de peças, boas e bem, do que pedantear em
conhecer, tocar, e discorrer sobre muitos autores, que, a falar franco...
— Não deve ser tão fácil...
—Pauca magna... ia
sentenciando o Osório.
Quando a Fabiana chegou, ali
pelas sete da noite, com a Antônia, do mês das almas, que se fazia no Santo Cruzeiro,
tendo saído de casa antes do jantar e andando não sei por onde, ficou
desapontada por ver o sobrinho instalado em um quarto, comunicando com o
gabinete, e mais o Osório, que por esse modo abandonava a câmara nupcial. Teve
ímpetos de perguntar se a sua casa era rancho de comboeiro ou de paruara. Se o
senhor seu marido estava autorizado a meter em casa um rapaz solteiro, cujos
costumes não eram conhecidos, que andou por esses mundos de meu Deus, com toda
casta de gente. Se...
A Mariinha, porém, fez um jogo diplomático e fino:
— Mamãe, o primo Centu, sabe? Coitadinho, teve um ataque!... aqui
— Pobre rapaz! fez a Fabiana
comovida. Fizeste bem, filha. Ele jantou? E o que é que ele trouxe para o
Visconde?
— Mamãe, ele jantou, mas coitado...
— Deitou fora?
— Tudo! Já veio o doutor. Disse
que foi do abalo... Mas não há perigo. Diz que o beribéri faz isso mesmo.
— Pois sim. Quando eu acabar
de mudar o vestido, vou vê-lo. Previne-o, hein.
— Papai está lá. Estão lendo as folhas de hoje.
— Que trazia ele para o Visconde!
repetia a
matrona.
O Centu experimentara um grande alívio estirando-se na rede, enfronhado num chambre de chita adamascada. Não devia estar com as pernas dependuradas. A fisionomia, chupada, mostrava uma placidez feliz; a barba crescida
esculpia-lhe uns tons cadavéricos. A cabeleira, em melenas para as frontes e sombreando
por trás das orelhas, dava idéia de certos retratos de poetas. Parecia um alucinado. Entre
os supercílios negros, como a maré quando começa a picar, nascia verticalmente
o indício de uma ruga que espraiava, entretanto, pelo moreno da testa, um ar de
respeito e viril.
A Fabiana entrou com um ar taciturno; e logo que foi pondo-lhe os olhos
se lhe representou perfeitamente nele o cunho de família, esse timbre, essa afinação, para o qual nem sempre se tem ouvido; essa espécie de segredo que desaparece
na indiscrição das formas e na diversidade das educações, das convivências, dos meios de vida, dos climas
e dos alimentos. Um traço, um vezo no olhar, uma particularidade vocal, uma especial disposição das juntas, ou de certos músculos, um chiste, o mor das vezes, em condições como aquela,
dificilmente percebível como a primeira
estrela que
ao pôr do sol aparece e perde-se no lato azul.
Fisgaram-se as simpatias
da carta. Justamente o contrário dera-se cem a Maria das Dores, que apreendera não o primo, sim o homem, de um salto, com as oposições e semelhanças.
O mal e o
estudo haviam carcomido ao Centu uma boa parte do superficial,
do adiposo, do adquirido;
e a sua natureza vinha a lume, como o solo das
aguadas, na evaporação de dezembro. Firmou-se com os cotovelos na rede, e sentou-se para tomar benção a tia
Fabiana, que levou-lhe aos lábios o dorso da destra
rechonchuda e aromatizada com água da Colônia. O Osório
parou a leitura do jornal,
que era de vante a ré uma
verrina contra
o seu amigo Afrodísio, fazendo rir ou indignar.
Maninha gostava de estar ouvindo, por ser outra quem era, apesar da visível reprovação do primo àquela degradação
intelectual da sua gleba.
Com um gesto maternal, a Fabiana, sentada num baú, interrogava ao sobrinho sobre o seu mal e sobre a sua vida, sobre o que ele trouxe para o Visconde,
e acabou penalizada pelos sofrimentos dele; entusiasmada pela sua altivez
nativa, e
pelo amor arraigado que ele demonstrava para o que fosse útil e bom. Mas não deu a entender.
Receosa, porém, das idéias livres do primo, a Maria das Dores adiantou-se a mentir à mãe, na presença
deles, obrigado a confirmar que se havia confessado e comungado em Manaus, que não
perdia missa toda vez que a celebravam
onde lhe fosse possível
alcançar. Aumentou que o moço andara duas léguas em canoa, rio acima,
para ouvir a missa de um missionário boliviano em uma povoação do Rio Madeira.
O pai, de mão no queixo, deixava cair o jornal, e encarava
o cinismo daquela alma incapaz de proferir
uma inverdade e que assim descaradamente engendrava mentiras; e com
uns olhos compridos e seguros na filha,
exclamava consigo mesmo:
— Que artimanhas, que veneno
de serpente, não trazem estas pombinhas no biquinho de coral!
Mas coitadas, elas entendem que o seu grande interesse
é isso, é
o amor. A Fabiana levou longe
a parlapatice com o rapaz. Que histórias não contou ele! Deu notícias de muitos
conhecidos dela, pessoas que haviam tido com quê, e hoje em dia andavam por
aqueles mundos como seringueiros, uns enriquecendo, outros se desgraçando a
mais. Por fim, vieram a topar em assuntos de familia, e então a matrona tomou a
palavra para desfiar as intérminas proezas dos seus.
O avô dela, compadre da rainha, por procuração. Um teu avô, preso para o Limoeiro, em Lisboa, no tempo das milícias. E amontava dados
de nobreza.
Mariinha julgava aquele o dia mais feliz da sua vida. Não
sabia o
que fazer.
— Quanto mais se vive, mais se aprende, repetia-lhe o pai acendendo o gás do gabinete. O rancor de tua mãe
pelo Vicente
é porque eles nunca estiveram assim
entrelaçando os espíritos peito a peito. Praza a Deus que aquilo
não seja fogo de palha.
A gravidade marcial, fazia-o, com efeito, antipático; hoje viam-no descascado. Nem todos tem o dom de ser logo impressionados
pelo simples
efeito da presença.
O Centu não ceou, porque pegou no sono, e o Osório não consentiu acordarem-no. Quando, porém, ao alvorecer, o tio se ergueu da rede, e enfiou os pés nas chinelas de trança, ele já estava, embrulhado na frescura dos linhos, com a vista grelada para o dia que olhava, pelos interstícios do telhado.
O médico ordenara mesmo que o doente ficasse num quarto de telha vã, conquanto o Osório, também entendido em Medicina, se opusesse; mas o médico
era o responsável, e o desembargador,
submetendo-se, proferia:
— Vejo que isso de medicina é como as senhoras mulheres: há de toda casta.
O Centu acordara com a idéia
vaga, se estava ainda a bordo,
ou em terra.
A paisagem amazônica, alfombrada de rios; as florestas pantanosas e silentes, o vai-vem
dos aventureiros com a sensibilidade embotada pela gana; as barracas dos seringueiros cearenses, sempre com um roçadinho ao lado, com um traço de cultura, com um indício de gente; a flora e a fauna inclassificadas; as belíssimas parasitas, e os gigantes vegetais; a abundância de caça e de pesca; o ócio e o mal habitando
o mais esplêndido eldorado; depois
o Pará, com o seu afã
mercantil, o seu pó vermelho, e a sua portuguesada e
caboclada e o seu forasteirismo; depois o.oceano; o Maranhão, tradicional e rotineiro
e velho e culto; e mais oceano; e enfim,
o moreno colo das dunas aparecendo no azul, como um pedaço de cútis numa abertura desabotoada, e a cidade natal, risonha,
clara, cheia de sol e de amor; e na janela, quando ele dobrava a esquina da rua, a Mariinha, com a pompa de seus braços e
a sinceridade e o amor seus olhos, na sua fala, nos seus lábios,
no menor gesto... Palavra como ele não queria levantar
da rede, para não espantar aquela bruma crepuscular de sonhos verdadeiros.
Teve uma discusão com o tio,
se devia tomar banho frio ou não. O tio que não, ele que sim.
— Pelo seguro não tome.
— Eu sei que não faz mal.
Agora estão empregando...
— Sujo não mata ninguém. Tome
banho morno.
— Mas eu apeteço é frio.
— Pois não toma... oh Mariinha!
A menina já estava na sala, a ler. Acordara, naquele dia, às cinco horas, vestira-se ao espelho, deitou essência nas mãos e no rosto, pó-de-arroz, abrira
as janelas, e recebeu
os bons dias da primeira
claridade do sol, repassando as cartas do primo, ainda
as de
Baturité, a balançar-se donairosa na cadeira.
Agora é
que aquelas expressões valiam deveras.
Como era bom o ter sofrido tanto!
Quase quatro anos,
desde que o Centu chegara do Rio. O pai repetia:
— Oh Mariinha!
Ela penetrou no gabinete.
Estavam os dois de pé, o Centu com a toalha de banho ao ombro.
— Achas que o teu
primo deve tomar banho frio?
Ela, depois de tomar-lhe a
benção, apertou indiferentemente a mão ao mancebo, voltando para o pai:
— Não senhor. Depois ele tossiu de noite.
— É uma ligeira bronquite, desculpou-se o rapaz.
— Embora. E encarando-o
fixamente: Não deve tomar banho frio!
— Está bem, fez o moço, com
uma cariciosa resignação de leão domado.
Fabiana fez preparar
a água morna, em uma grande bacia de arame, no seu quarto. Pôs uma
tábua sobre
o tijolo para botar os pés, e despejou água-de-colônia,
na água, e depôs na cadeira um sabonete do mais caro.
Mais tarde o barbeiro, a escambou
o hóspede. E então o Centu ficou apresentável, com o cabelo curto, o rosto liso disfarçando a magreza. Passou o dia de blusa parda, com os canhões e gola
azul, e calça branca. Em vez de boné, punha o chapéu
de palha, quando, à tarde, foram a espairecer no quintal.
Antônia, a bem dizer, não
existia agora naquela casa. la ficando ronceira, e alguma coisa esquecida.
Todas as noites vinham o
Afrodísio, e outros a prosear com o hóspede, cujo nome começava a ser
pronunciado nas rodas políticas, à vista do favor que o governo lhe dispensava.
Uma noite, quando a convalescença o permitia já, dançou-se algumas quadrilhas e
polcas— pela primeira vez em casa da Fabiana — com seis pares, porque estavam
aí umas vizinhas, curiosas por travar-se com o doutor engenheiro.
Este era uma rocha para todas.
Tocou, ao piano, um rapaz, antigo companheiro de casa do Centu.
Não foi sem visível tremor que
o oficial recebeu no seu braço o de Maria das Dores, que foi o par da segunda.
Ela parecia estar dizendo — Agora sim!
Os seios dela chofravam
positivamente na carne dele, com uma doçura e uma intimidade confiante; e, de
lado, ela, mais baixa que ele, deitava-lhe um constante olhar risonho e úmido.
Foi quando conversaram direito.
— Eu queria poder
magnetizá-lo!
Sério e melancólico, o Centu respondeu:
— Mais ainda?
— Sim, eu queria vê-lo
magnetizado, que era para saber da verdade real! Ler o seu caráter em
esqueleto.
— Como então? — fez o moço
com ar ofendido.
— Queria sim.
As últimas duas palavras ela
as proferiu com ardor desusado e infantil. Entrou a quadrilha.
Aristocraticamente, ele pegou-lhe na mão, em arco, e avançaram até o meio;
recuaram, e tornaram a avançar. Queria evitar o galope. Fizeram balancez, e não houve jeito; galopavam
todos, inclusive o desembargador que era o vis-à-vis.
Teve de suportar aquele braço ideal oprimindo-lhe o ombro, com uma força e um
vigor... Não resistiu, porém. Parecia que o beribéri lhe aparecia de novo.
Finda a primeira parte,
sentaram-se. Estava incapaz de dizer uma palavra. Apreendeu que até a bronquite
se repetia.
Ignorava, até ali, que a
matéria, a carne, possuísse aquele filtro, aquele domínio, todo estranho, que o
encandeava. Não supunha que a aproximação dele com a prima, assim tão conjunta,
influísse até no cérebro, e no organismo todo. Virou-se para a menina e
desculpou-se.
— A agitação ainda não me faz bem, Maria das
Dores.
— Pois dancemos devagar... O que é que você está sentindo?
— Positivamente — fez o rapaz
apalpando o próprio corpo, não estou sentindo nada.
— E então?
— Estou-me alienando, me sinto estúpido...
—Muito obrigada, muito
obrigada, senhor, exclamou a morena, balançando com a cabeça verticalmente.
— Por quê?
— Ficou assim, é porque...
estava a dançar comigo, já sei, já...
— Ora: isto só se
responde com uma gargalhada. É pena que não esteja aqui o Seu Lucas, que eu
mandava dar uma por mim.
— Por isso não, eu
empresto uma. Quer?
— Pois me empreste lá.
— Isso queria você!...
Fique sabendo que estou zangada. Ficamos mal.
E acabada a quadrilha
não falaram mais um com o outro.
Ficar mal! Em um namoro tem-se
os doces efeitos de uma ausência. Maria das Dores, ficara com a sensibilidade
de uns olhos que estão sempre a visionar, uns olhos para os quais uma centelha
toma o brilho de um raio; e com susceptibilidades de uns ouvidos para os quais
um mosquito zoa como uma trombeta. Bem que o Vicente não a magoasse, Maria
entendeu que sim, e torceu o rosto. Contudo, arrependeu-se de negar-lhe a palavra,
quando o moço perguntou, humildemente, se estava de feito zangada. Não podia
voltar atrás. Ela não podia expelir aquele humor, pois era uma coisa alheia à
vontade, domínio da carne. Como a folha do maricá, quando a noite desce, assim
murchou a alegria do mancebo. Desgraçada lembrança de dançar-se naquela noite!
Como iria dormir, ele para quem a morena já fazia parte dos órgãos essenciais
da vida?!
Já pelas onze horas tentou as
pazes novamente, pedindo-lhe que tocasse um trecho do Guarani. Não se atrevendo ele a falar de frente, ela envesgou-lhe
um olhar malcriado e estendeu-lhe a pontinha da Un-gua, muito entre os dois
lábios.
— Desaforo! — rosnou
ele.
Caminhou para a janela,
a desafogar-se com o ar frio.
Debruçado para a calçada deserta,
desferia em devaneios cevando-se na sua paixão. Ora, ali estava uma coisa que
entendem por desaforo, mas que ele tinha na verdade pelo gesto mais adorável do
mundo! A lingüinha de fora!... E descia às demonstrações, como em uma sabatina
escrita de matemática.
Espairecia para o longo dá
rua, onde a iluminação ardia solitária, diante dos beirais e das cornijas
desaparecidos na terra.
Realmente depois dos mistérios
de um olhar, nem o riso, que malda; nem o suspiro, que é piegas; nem o muxoxo,
que é chulo; nem o pranto, ue finge; nem os arrufos, que magoam; nem os acenos,
que matos têm olhos; nem um beliscão; nem um beijo cavalheiroso e fidalgo nas
costas da mãozinha... só um deitar de linguazinha por entre os beiços cálidos
de amor! Que arrebite, que chiste, que melodia não cantou aquela rubra ontinha
de língua que ela quisera morder à larga!
Estava disposto a tomar a
língua como entidade, para a estética doseu uso; a entregar esse órgão
rubicundo aos carinhos da Ciência e do Belo.
Entrou a apostrafar, pregando às estrelas, surdo aos rumores da sala:
— Não tenhas sido compreendida, veio da liberdade feminina; tu que desoprimes, imediato auxiliar das lágrimas! A tua forma é a da chama, a tua cor é a das partes mais sensíveis do ser, a tua morada
inacessível! És tu que proferes aquilo que faz o nosso ímã — a palavra! Sem ti, que seria o beijo? Estás fora do regime do toucador,
a moda não te estraga.
Em ti reflete a saúde as suas intermitências És a aurora do coração. E o Mestre
(referia-se
a Jesus Cristo) escolheu a tua forma para infundir a ciência
nos Apóstolos...
Virou-se. Estava a seu lado o desembargador:
— Que temos? fez este
mansamente, com a sua fala de orador.
— Estava aqui a descansar...
Receei sobrevir a tosse...
— Qual! Isto está que nem um
tronco de aroeira!
A Fabiana aproxima-se também. Perguntou se já eram horas de descansar; não sacrificasse a convalescença. O sobrinho, que não,
poderia permanecer acordado a noite inteira;
mesmo não tinha sono absolutamente; se fosse deitar não pregaria olho.
— Então, batia-lhe o velho no
ombro, sigamos a um pouco de cerveja. E enfiaram para o interior.
Diante da bass, provocado
pela boa prosa do tio afim, sob
a influência
do recinto, quase a sós, naquele tabernáculo de família, para ele
de um raro conforto, nem assim, o Vicente estava inconversável. O pobre não sabia disfarçar; aprendera muito, mas do coração humano, e da mulher principalmente, não pescava um triz. Para isso, era um ingênuo. Feito na forma do ideal, pelo estudo, ai dele se o acometesse
uma realidade má! O amor o atordoava. Era um recruta. Qualquer mina, ou qualquer
foguetão, o desmoralizava.
Viraram o primeiro
copo, em uma parolice penosa. Maria das Dores passou por eles, para o alpendre, chamando pela Antônia, e nem olhou. Porém, com o rabo do olho, viu-o
perfeitamente, e notou-lhe a fisionomia muito caída. O pai chamou, e cochichou-Ihe:
— Vê o que tem o rapaz.
Ela respondeu alto:
— Ora! É denguice.
E seguiu apressadamente para a sala. Daí a pouco,
entretanto, Maria voltou de novo à sala de jantar,
e desta vez abriu o guarda-louça demorando-se a procurar, certamente, o que não guardara. Aquilo era instintivo. De repente, rolou em cima uma taça de porcelana, e os pedacinhos
espalharam-se no tijolo. A Fabiana acudiu imediatamente lá de dentro, como bom rondante ao apito, ao baque demorado e sonoro:
— Que foi isso, menina?
— Não foi nada... Foi o gato, minha tia, acudiu de lá o Centu.
— Que ladrão! exclamou a
matrona. Eu bem que lhe digo, Seu Osório, que é preciso acabar com essa
gatarrada da vizinhança. Não se agüenta mais, é um desaforo! Lá se vai mais uma
xícara, está vendo, nhor?
— Deixa irem todas, Fabiana, é
preciso proteger aos louceiros. Também! Homem; que esta!
Mariinha roçou por trás do
Centu, e repreendeu-o ao ouvido:
— Não lhe pedi favores, já
ouviu?
O moço foi arrebatado
ao sétimo céu por aquele sopro que lhe acariciara nas ouças. Que coisa!
Que afago! E como os beiços dela imprimiram-se-lhe fortemente assim, no pavilhão da sua orelha
mortal!
Daí, foi brotando a fonte da alegria, e o rapaz
se transfigurou. Espeitou, expandiu-se, o que o tio botava para a virtude
da cerveja. Em ar de uma aquarela catita, mimosita, colorida finamente, que alcance as sutilezas e transcendências de percepção, e apanhe
as radicelas do sentimento e da sensação pelo corpo adentro, e repuxe, e arranque
o gozo, pregava-se-lhe
diante ainda o gesto da Maninha deitando-lhe a língua:
— Vá bugiar. Vá as favas...
Brejeirice e cavilação.
Ela estendia-lhe o mento,
cãozinho a farejar, e abrindo um pouco os olhos a um presto arregaçar das sobrancelhas, os beiços fastavam, despontavam
uns dentinhos, a polpa
rubicunda e viva estirava-se para fora, num relâmpago.
Apresentava-se o cortejo
das idéias. O purpurino molusco, de um sangüíneo de papoula
ao sol,
se recolhia à concha bucal. Os lábios tinham ligeiro
congestionamento, com a momice rápida.
A vista faiscou. Vibrou no ar mais uma seta.
Aquele músculo sanguinolento, glutinoso e brando,
retesara como um arco. Entretanto, melhor cola não existia para pregar
duas almas. É fender a conjuntura, o pudor
castiço do
beijo. Há nisso um sabor de sangue. Amor tem o seu quanto de fera. O pulmão
'recebendo o hálito de outro, nesse envenenamento vai uma ventura. Uma saliva derreter-se na outra! Amor tem o seu quê de criancinha em aleitamento...
O Vicente se achava, a bem
dizer, curado. Principiavam as chuvas de janeiro. la entrar um ano de fartura.
O oficial apresentou-se,
pronto para o serviço, à Presidência da Província, que o mandou adir ao
Batalhão; e no mesmo dia, retirando-se da casa do tio, apesar das instâncias
deste e da mulher, foi habitar a sua antiga república
da Feira Nova, e de lá enviou aos pais da Maria das Dores o solene pedido de
casamento. Era impossível resistir por mais tempo! Assegurou-se de que a
rapariga era sã de alma e de corpo; ficava transtornado, quando lhe estava
junto, entendeu que a natureza aprovara o conúbio.
O Visconde, era um grande amigo
seu. Nunca pretendeu casar, disse-lhe ele, e havia, por indiretas, desiludido
completamente a Dona Fabiana, que por isso lhe ganhou embirrância, passou a
enjoá-lo de dentro, e até fazia-lhe, atualmente, pirraças que, enfim,
desculpava. A resposta do desembargador foi um abraço muito apertado,
prolongado, que deu quase
Depois daquela noite, não se dançou mais em casa da Fabiana. Aquilo era uma gente que vivia num estreito círculo, e não aproveitava a boa existência trabalhada e divertida da Fortaleza. A Maninha era por isso mesmo alguma coisa matuta. Se freqüentou o Clube,
foi levada pelo pai e pela curiosidade, poucas vezes, quando havia baile em que o desembargador,
pela sua nova condição de amigo do Visconde, era
figura obrigada. O Osório,
então, aparecia todo formal, de casaco, em verdadeiro magistrado, que mede as palavras e não muda um pé sem a devida justeza.
Não levava era claque, alheio a essa
francesia. Punha a sua jaca e metia botinas de bezerro, engraxadas como a sua consciência, que isso
de pelica e polimento
era para janotas. O guarda-sol não dispensava, e nem a boceta de rapé, de grossa prata
esculpida; para fungar uma pitada, afastava-se, porém, como se fora fazer
outra coisa, tirava a luva, e servia-se;
quase sempre acompanhado por outros, no conluio
daquele vicio-zinho que ele se arrogava como prerrogativa dos pensadores e dos homens
de responsabilidade.
Acertou de haver um baile,
oferecido a um presidente demissionário, poucos dias depois de ser concedida
ao Centu a mão da prima. O expresidente era o Doutor Benedito Xabregas, um
juiz de direito que arrancaram de Goiás expressamente para a comissão de
administrar a incompreendida província dos Cariris, do Jaguaribe e do
Baturité, do cangulo e do camurupim, da rapadura, da vela de carnaúba, das
atas, do caju, do hércules Filgueiras, do turbulento Padre Verdeixas, do oxalá,
do samba e da seca. O Doutor Benedito, a quem os estudos somente de livros e os
processos haviam proibido tocar sobre a verdade das coisas, não agüentou
repuxo. Confessou a si mesmo não possuir a precisa coragem para campear em
cavalo passarinheiro como a gente, doCeará, e obteve demissão, passando as
rédeas para a mão conhecedora do i? Vice-Presidente, o São Galo.
Maria das Dores foi a esse
baile, com o seu decote, os seus braços nus e o seu porte donairoso. A Fabiana
seguiu-a, no gorgorão e nos adereços do ouro antigo. Primeira vez em que a
mulher do desembargador ia a função mundana. Depois de estar dentro, a
fisionomia tomou a mesma expressão de prazer que na missa cantada ou em outra
qualquer solenidade religiosa de lavar o peito. A mesma sugestão, o mesmo
gozo, o mesmo sol de satisfação fazendo cintilarem os mesmos círculos de ondas.
Assim como, de joelhos, aderindo com o peso das suas carnes ao assoalho do
corpo da igreja, sentia-se ir subindo com a enorme Senhora da Assunção do
retábulo do altar-mor, assim naqueles modestos salões de província, que lhe
pareciam deslumbrantes a mais, a dona, sentada, entretida com outras senhoras
idosas, no vão de uma sacada, julgava estar dançando igualmente, ao impulso da
orquestra e daquele ar excepcional.
Voltou para casa muito ancha e
gaiteira, fazendo outra idéia dos homens e das coisas.
Entretanto, mesmo nessa noite,
Antônia pôs-se no bredo.
Era ao entardecer. Mariinha
todo o dia só falou no baile; "porque o baile, porque eu saio cedo do
baile, porque eu só danço a segunda quadrilha", etc. etc., bem que tudo
isso não fora senão o ensejo de gozar da festança ao lado do noivo.
O alvoroço que se apossa dos
moços ao preparar-se para uma festança, que chega a tirar-lhes o apetite, a
festa pela festa, isso não era para a Maria das Dores, que não se pertencia
mais; Antônia passara a semana macambúzia. Naquele sábado esteve revistando a
sua roupa, os seus cacaréus, e olhava-os silenciosamente, compridamente, como
se lhes soluçassem um adeus. Via-se-lhe bem um pensamento fixo a demoniar
pelos cabelinhos das pestanas, e de vez em quando, parando, como o beija-flor —
depois de mil revôos, entre os supercílios dourados. Amostrava as comissuras
dos lábios ligeiramente caídas, em ar de tristeza. Cada passada, lhe parecia
ser a última.
— Algum dia tornarei eu a
pisar neste mesmo tijolo em que estou ainda por hoje assentando o sapato? Onde
irei eu bater? Onde me levará a Mãe Zefa? Eu não irei para a Rua das
Trincheiras! Antes morrer!... Para o Outeiro? E meu pai, e minhas irmãs?
A madrinha Fabiana embirrava
hoje em dia cruelmente com Antônia, por causa da sua terminante recusa de
casar com o João Batista. Olhe que isso foi uma batalha! Casa, não casa,
encurralaram a rapariga, amofinaram, ela dizia sempre que não, que não, até que
puseram-na de parte, conveñcidos do baldado esforço; mas a Fabiana tomou a
recusa como afronta sua autoridade, e passou a detestar a afilhada. Esta chorava
lágrimas de sangue, vendo, a urdir "toda essa infâmia" a mão oculta e
fria do Afrodísio, com, Mãe Zefa por lançadeira. Resolvera fugir. Sair daquela
casa, fosse para onde fosse, à toa mesmo. Perdida, perdida meia, perdida toda.
Faltava-lhe a educação
que lhe desse uma norma, que a sustentasse, e propusesse-Ihe
melhor saída daquele aperto. Ao cair da tarde esteve
com a
Dorzinha, no quintal, a sua Bem-Bem de outrora. Manifestava um — "ar demudado", um timbre doce, de violino, uma estranha e pálida frouxidão fisionômica, um abatimento flagrante. A Mariinha isso passou desapercebido; se estava toda Centu! Por
tudo, via-se,
entretanto, que vinha à tona, a loura, o gravado afeto, que ela possuía, pela casa e pelas pessoas da Mariinha. O seu rosto estava
despedindo-se amargamente da outra, que passou com ela naquela tarde um tempão e tagarelou
sobre o seu próximo casamento.
E Antônia olhava demoradamente
o céu por entre as árvores. Sentia-se o poente incendiado. Havia, para cima,
um enorme cúmulo esponjoso, com uma parte azulada e outra vermelhenta, como o
ferro apanhando o ar ao sair da forja. O grande tamarindeiro avistado por todas
as cozinhas do quarteirão, expunha ao sol moribundo as suas entranhas crivadas
de bages, com um aspecto quase fulvo, sem frondes, por modo que via-se o céu da
outra banda.
A Fabiana esteve também no quintal, papagaiando mais a liberta
Angela, que
veio vê-la com a intenção de passar-lhe
uma finta. Nas longas tardes preguiçosas, a Fabiana,
não habitando em sobrado, donde avistasse os últimos inundamentos do dia por cima dos telhados
entremeados de verdura,
espargia a alma ao sussurro das frondes semelhantes ao marulho de águas,
sentada no
quintal, em uma cadeira, com uma perna
sobre a
outra, ouvindo conversa nem que fosse do molequinho que trazia o tição para atear o cachimbo.
Acercou-se
da Maninha e da Antônia. Estava de boa maré;
e eram as suas horas de bom humor, no género,
as melhores do mundo.
Quando as
pretas viam-na assim, regalavam. E todos em casa procuravam
entrar-lhe pelas portas da alma, como se fora num palácio encantado. Era um gosto vê-la, no quintal, cercada dos seus
inferiores, à vontade, expansiva como a galinha choca espojando-se na cinza. Na verdade,
uma cadela rabugenta como a Fabinha, era de ver quando se transmudava
em um carneirinho cândido que comesse pétalas
de rosa. Era o efeito
surpreendente, embora esperado e costumeiro, do romper da aleluia,
quando caem dos altares e da vidraçaria da igreja
os véus negros, rasgados pelo dia crepitante, ao vôo dos pombos alvos de fitinha
ao pescoço, ao delírio das campainhas, ao troar da fortaleza, ao repicar da sinaria, ao alegro
da orquestra e das
vozes. Mostrou-se agradável a Antônia, por modos a esta vacilar
na sua timbrada résolução de pôr-se ao fresco.
Estavam em troça, numa clareira formada pelas papoulas,
espirradeiras, independências e jasmins corais; a matrona
assentada no tabuleiro de um carrinho de mão, e as demais, na areia lavadinha pelas
chuvas recentes começada a forrar-se de zinhos tenros que a Mariinha apanhava
para os preás. Aqui furava um carreiro por baixo das roseiras, ali uma vereda
meandrava; acolá, ao pé do muro aninhavam-se boas-noites e maravilhas, ao fim
de uma estrada. Salpicavam-se de florículas as romeiras escarlates.
Todas achavam Angela descarnada e amarela. Estava uma mulher. Notavam-se nela as mamas caídas,
o corpo imitando ao de homem, as maçãs
do rosto aguçadas, e o pescoço fino. Viera pedir para alugar-se à senhora, que não aceitou-a.
— Então, sinhá, me empreste
dez tostões.
— Antes isso.
Dera em beber, a cabra. Tinha ido já à polícia.
Muito faladeira, entreteve a Fabiana debulhando mil histórias, de casas conhecidas,
a dizer de gente branca e fina cobras e lagartas;
e com isso engabelava todas as vezes. A Fabinha então!
que para puxar por um enredinho estava
só! — embora tivesse de confessar ao padre que pecara murmurando contra o próximo. As gargalhadas
da
Fabinha retiniam, e pareciam comunicadas até as plantas. Esmiudava mais, e
a escangalhada risada da Angela ia com a dela num concerto pândego,
e quem as ouvisse de longe, imaginava
antes umas lindas raparigas brincando
seminuas à beira de uma lagoa. Antônia dizia
lá uma ou
outra palavra, sorria apenas, e entrava a escrever com um pauzinho na areia. Maninha erguera-se, avessa àquelas histórias
onde a
suinez da alma foçava implacavelmente na miséria dos outros.
Realmente, na fase em que ela estava, só aprazia o otimismo, o puro, o ideal, o divo.
E entrou por debaixo de duas goiabeiras entrelaçadas sobre as quais formava um manto a ramada de uma passiflora. Maninha sumia-se
nesse caramanchel. O pé de maracujá deixava cair alguns tentáculos, como que procurando mais braços
de goiabeira. No lado
por onde
a morena entrou, o teçume da fronde da trepadeira formava cortinas salpicadas de flores violetas, cujos órgãos representam os martírios da Paixão,
e de pomos redondos, lindos globos verdes, lindos globos
amarelos, como feitos de aérea
porcelana, inúmeros, pendentes, a agitar-se de manso, à brisa, nos Pecíolos, entre o escuro do interior da moita
e a líquida luz solar onde chalram os ventos.
As duas mirtáceas quase
sucumbiam, presas, na rede, como o leão de
Era para aí, para a sua antiga
Bem-Bem, e para as flores do maracujá que a Antônia dirigia atenção agora. Avistava no imo do caramanchel a cútis
viva do tronco de goiabeira,
como braços e pernas a nu, apenas denunciados por uma claridade coada e esmeraldina. Em outros tempos, a loura gostava de trepar-se
ali, e trazia no regaço goiabas de vez, e maracujás de que fazia ponches.
Mariinha, oculta na capelinha vegetal, fazia rolar para o seio da Antônia maracujás maduros, de um lindo amarelo flavo e de um perfume arraigado e aguçoso. Ficou absorta, ali dentro, como criança,
trepada na
goiabeira, e emaranhada na rede de ramos. O amor
fazia-a
contemplativa. E sentia um vago prazer no seio das árvores, ali sem horizontes, como num
caldeirão de serra, sob a cortina azul do céu
veiado de
vermelho crepuscular, olhando o frisadinho dos telhados, e os muros
paralelos dos quintais tufados de verdura. Uma pitangueira aparecia
nas frondes
leves dos dedais-de-dama. No quintal vizinho, dois meninos, a pedradas, perseguiam
calangos quase lesos que andavam a lambiscar formigas. Um outro descia de um sapotizeiro com
uma gaiola de alçapão.
Mariinha lembrou-se de que era
o dia do baile, e desceu apressadamente:
— Mamãe, você não vai também?
— É cedo, são seis horas,
menina. Espera.
Antônia sentiu um horrível
aperto no coração, ao lembrar-se por sua vez que havia deliberado fugir naquela
noite, fosse como fosse.
Às oito e meia
horas, com efeito, a loura para um lado, e o carro da família Góis para outro. Saiu vestidinha, como
quem vai à novena, com a grande cópia de vinte mil-réis no bolso, parte que reservara dos bons tempos e parte de engomados e trabalhos
de agulha, que foi ajuntando.
Abeirar-se-ia
da irmã viúva, contava-lhe tudo, e, forjando com ela uma qualquer tramóia, ficaria em casa do pai, na santidade da família. Seria isto para eles até uma felicidade, visto como ela era forte, ensinada e trabalhadeira.
Dobrava assustada as esquinas. Assaltava-lhe o mal-estar de quem
houvesse praticado um crime. Certa de que ninguém a tinha
por fugitiva, parecia-lhe entanto que todos
apontavam-na com o dedo:
— Lá vai ela!
Os dias que passou quase
amucambada,
puseram-lhe rabuge na alma; e a Mãe Zefa a repetir que aquilo era mandinga! A fuga estava sem jeito, e ela continuava na sensação aflitiva do momento em que ia
pondo o pé fora da casa. Poderia
assassinar o filho quando nascesse, praticar
um infanticídio, e ficaria sempre honrada, e na casa de seu pai, apesar de mendigo. Mas se descobrissem?
E teria coragem de esmagar a carne da sua carne? Esmagar a si?... O crime trouxe-lhe à mente a cadeia. Entendia agora pelo claro a situação
daquelas mulheres estioladas, de pele rugosa,
sem cor,
que ela vira uma vez na prisão,
quando fora
comprar sapatos com a Madrinha; compreendia a condição daqueles encarcerados a bater sola e a coser sevilhas abrindo
largamente os braços para os lados! Ah! Os presos,
porém, estão bem; livres dos olhares perseguidores dos que enxergam sem ver, dos olhares
que a imaginação cria por
centenas; os visitantes olham para os presos compassivamente, simpatizadores, com a sorte dos infelizes.
E Antónia
como que ria nervosamente, em falsete, de si consigo, de naqueles
tremendos instantes de reflexão, achar a prisão superior à liberdade. Lutava por dominar-se, porque enfim, bem diz o mundo: quem morre é que se vai.
E largou a espancar,
com um azorrague de idéias picarescas a boa companheira de todos
os momentos, a consciência,
a sublevação natural do ser. O seu nariz
mergulhava no bafo aquecido da própria carne, e no costumeiro
odor de
rosas metidas no seio. Os dentes
desejariam trincar um braço musculoso, e a língua
coser-se com outra língua
numa fervura de amores... O beiço arregaçar-se-ia como se ela houvera
emagrecido; e o olhar havia de afundar um pouco; as maçãs do rosto
ficariam da cor da manga madura, e as orelhas, cujo desempenho é nulo em lirismos; provocariam contudo novas mordeduras. Assim é que ela quisera amar!
Estavam apagando o gás, porque era hora da lua sair. O empregado, encostando o topo da escada
na cruzeta de cada combustor, subia ligeiro, e com o rosto junto ao
bojo de vidro que lhe
iluminava o boné de galão encarnado, torcia a torneira, e a sombra caía
repentinamente. Os dois cordões paralelos da iluminação iam perdendo foco por foco, e o escuro ia vagarosamente engolindo o claro. As luzes
que perfuravam o sombrio,
de alguma sege, de algum
sobrado longínquo, avermelhavam.
Era sombriamente lírico esse luar mortiço. Das lojas, alargavam para o meio do calçamento
línguas acesas entre línguas de escuro, travando-se, no esbatido, mortos sobre vivos clarões, pálidas sobre escuras sombras. Ouvia-se o mais leve ruído, como nas noites úmidas. Um grilo era bastante para encher o quarteirão comercial da Rua da Boa Vista. Os caminhantes
iluminavam-se e apagavam-se, ora
sim, ora não. O menor foco irradiava, espesso
como uma estrela. A cidade parecia edificada sobre águas. A visão
era restrita e apertada.
Numa confusão de idéias que
por momentos fizeram esquecer a sua desesperada e resolvida situação, a
fugitiva sentou-se na calçada do edifício da Assembléia, cuja enorme
corporatura mal aparecia no morto luar. Tinha diante de si o movimento noturno
da Feira Velha. As árvores da praça, alevantando-se defronte da loura,
pareciam-lhe fímbria de uma floresta infindável, por debaixo da qual os
distantes lampiões dos tabuleiros de doces, de quitandas e das barraquinhas da
feira, tinham pronunciado quietismo, como facho de pescadores fora de horas.
Entravam-lhe pelos ouvidos toques de piano, passadas de transeuntes, o cobre
que batia na gaveta das tabernas, conversas do lar e das calçadas do Largo do
Palácio.
Pela calçada oriental da praça,
onde despejavam lojas de molhadas unidinhas umas
nas outras,
os passantes, pela mor parte homens sem paletó, e mulheres de chinelo e de xale trespassado,
criados de compras, etc. davam vida à paisagem noturna, que lhe imprimia nos
nervos magoados uma sensação indistinta e poderosa, e um passamento de angústias.
A tremenda sensação do incoercível caía sobre a rapariga como um abutre, dos
penetrais da noite.
Quando sentiu o arrastar desavergonhado das chinelas das "mulheres do portão da feira", quis voltar.
Pois naquilo é que dão
os venturosos dias da paixão realizada? As formas provocadoras da donzela,
que inspiram as Artes,
e endoidecem os Sábios,
podem virar naquilo? Apodrecer no lodo da libertinagem? Madrinha Fabiana, desgraçada madrinha Fabiana!
Veio-lhe à mente, em
visão, o
João Batista, e achou-o desta vez uma criatura estimável e simpática. Ao enxergar o indefinido abismo a que a própria índole podia arrastá-la, não podia ter naquele
momento o
João Batista senão como um salvatério. Pode ser que até o vigor da boa impressão
lhe sugerisse o benquerer.
Desceria a ladeira
da Assembléia, para, atravessando
a Rua de Baixo, subir o aclive
do Outeiro, em rumo da casa paterna? Bateu-lhe fortemente o coração.
Esmoreceu. Era melhor passar a noite com a Mãe Zefa, no tugúrio
da Rua das Trincheiras, pedir-lhe adjutório; ir à missa de madrugada na Sé, e de lá, se encontrasse a irmã,
bem; se não, seguiria até o Outeiro, pois a hora
matinal é
própria de passeios a arrabaldes.
Sondaria. Diria primeiro que ia passar o dia; e ficava, com umas partes de comer caju e tombanças. De noite pretextava doença, e ficava ainda.
Porém, quando viesse o portador da madrinha?
Não havia ainda pensado nisso! Que cabeça
desmiolada! Pois com certeza a Fabiana deitaria
precatória por todos os cantos e recantos da cidade
e subúrbios; e para o mato,
e para o sertão, e para as serras, até descobrirem a fugitiva.
Mas agora? Era tarde!... E viu,
como na noite, no pretume da Mãe Zefa, a sua salvação. Quando mais não houvesse, perderia a vergonha, a aceitar
a casa mobiliada e servida
de um tudo que lhe
havia oferecido o Afrodísio. Boa lembrança. Ele
àquela hora estava... estava... no baile do Clube, que era
político. Se não fora baile político, ele, que não sabe apertar a mão de uma moça não
iria lá por força nenhuma. E a rapariga, aliviada pela adoção de uma
idéia decisiva, internou-se por debaixo
das árvores da Feira, na esperança de aí encontrar a Mãe Zefa, e participar-lhe o feito e o resolvido.
O Afrodísio havia de ser sabedor
por um tudo naquela mesma noite. Aproveitariam uma quadra em que ele descesse ao salão de bilhar; ou a Mãe
Zefa, com as suas imunidades,
penetraria pela escada do serviço, arranjava-se com os criados na confecção do chocolate,
do chá e do café; e daqui
ou dacolá, pegavam sempre o cabra.
A preta não estava na Feira,
porém a Antônia percorreu todos ostabuleiros, penetrou pelo enorme portão de ferro,
para o pátio dos açougues, furou por toda parte, entrou pelo barracão do
peixe, nada.
No pátio interno pairava muita tristeza, apesar do movimento da venda
de miúdos, frissuras e carne morta. Os quartos de bois para o talho do dia seguinte
pendiam dos
ganchos, em todo o circuito, pondo no ar um cheiro de sangue.
A rapariga chegou instintivamente ao portão que desemboca na Rua de Baixo,
onde havia os mictórios e uns mendigos. Voltou com o coração na boca,
assustadíssima!
como se houvesse perpetrado
um assassinato... Estava lá, pedindo esmola, o pai, o cego João de Paula!
Parece que ele a divulgara... E a filha
tapou os olhos e enxugou uma
lágrima irresistível.
A desonra aparecia à mísera como uma doença incurável. Saúde e honra que não voltam mais! Depreciadas pelos que as possuem, inutilmente aneladas pelos que as perdem de todo.
— Não há remédio, meu Santo
Deus, não há cura! soluçava, em suores de agonia, sentada num pedaço de
calçada.escura. Não há jeito! O que não tem remédio arremediado está.
Passada a crise, que foi como um acesso de tosse em
tísico despachado
e confirmado, a cachopa ergueu-se, mesmo como os tísicos,
como se coisa alguma sofresse.
Achava agora em
si a superioridade do cabedal, da matéria-prima. Vira com os olhos, tocara
nalgumas sujeitas que passavam, comparou-se. Era-lhe inteiramente impossível sair assim. Tomou
coragem. O mal daquelas desgraçadas
entendeu que era o ócio, e o desabrimento.
Ruim é aquele que ruim
se faz. E novo hausto
lhe sustentou o ânimo. Andava-se na rua com a liberdade de não
ser conhecido. A luz dos combustores não estava, e ela é que é a fria denunciadora das pequenas cenas noturnas, e a que desmascara as feições
de quem veste o incógnito.
Algumas habitações, entretanto, jogavam-se
reciprocamente efeitos de luz, que era preciso passar depressa, como se a gente fora saltar um riacho.
A cidade estava como no tempo em que não havia
senão o raro lampião de azeite;
uma reminiscência para os velhos, mas uma perturbação para os novos, habituados à luz.
Acontecia passar o vulto negro e ruidoso de uma carruagem que ia para o Clube,
com os seus dois bugalhos de fogo; e famílias à fresca, arrastando chinelas, descerem para o banho de mar,
conversando, rindo, com as toalhas
trespassadas, a roupa meio embebida no luar desabro-chante, com
a mancha escura dos cabelos soltos.
A lua havia subido um tanto,
porém não tinha força ainda para sacudir por cima de uns seres as sombras de
outros seres. Brilhava lá para si.
Antônia perdera-se, indo bater
no Campo d'Amélia em vez de no Largo da Misericórdia. Esse campo onde
manobravam nos dias de gala as espaventosas paradas da guarda nacional,
cobria-se de uma tênue gaze de luar. Ouvia-se o ronrom das ondas, como de um
gato gigantesco. O luar nevoentava os blocos de telhados da Estação do caminho
de ferro. Ao pé das casuarinas afastadas, do cemitério de São Caetano, deslumbrava
a alvura do Morro do Croatá, uma duna que estava a engolir aquele abandonado
jazigo dos mortos de há trinta anos. O cemitério protestante confundia-se no
cimo das casas de palha, onde fervilhavam rumores de samba e uma fogueira no
terreiro. Antônia apavorou-se, e pareceu-lhe que surgia um homem a persegui-la.
Ouviu a corneta da guarda da Cadeia tocar silêncio, beirou o campo, seguindo
uma linha de casas rareadas. Dobrou para leste, enfiando por entre a alta
muralha da prisão, e uma carreira de habitações por acabar; era a Rua da
Misericórdia; respirou faro de cidade. Atravessou a Rua Amélia, e continuou a
derrota, pela calçada da Santa Casa. Descobriu a iluminação do Clube, com embandeiramento
pomposo; no silêncio, como um bando de gralhas, espavejavam os derradeiros
compassos de uma quadrilha.
— Está animado, disse
ela consigo.
E procurou, para tomar
fôlego, o
assento de pedra que corre ao
longo da fachada do hospital,
já no
Largo da Misericórdia. O largo era ocupado pelo Passeio, cuja arborização, compacta com o luar, mal denunciava um ventozinho modorrento. Era hora de vir-lhe o sono. Mas não
o tinha. Uma espécie de incandescência dos sentidos não permitia que a natureza a convidasse
para o repouso. A vigília
era, assim, um prazer. Sua vontade era
andar, desfrutar a franquia de ir para onde quisesse.
O seu ímpeto era fazer os próprios gostos, irrefletidamente, imediatamente, sem
apelo nem agravo.
Pensava no último trecho do caminho.
Acabava de seguir
a fachada sul da Misericórdia,
alta como o muro da cadeia, branca, e com uma janelaria acima
da cabeça dos passantes, numa complicação de anteparos de ferro, de vidraças, e de guilhagens, com uns ventiladores na barra, de onde, com o bafio mofento, a modo que escorriam contágios de moléstias ruins; os combustores apagados, pregados na parede, estendiam-lhe, quando passou, o pescoço negro e fino;
do outro lado, enfrentara um correr de quartos de aluguel
módico, habitados por um enxame lodoso de mulheres
decaídas; a lembrança disto reluziu-lhe assustadamente no animo. Sempre que se lhe apresentava à mente o cortejo cínico e mal asseado daquela gente, ela vacilava. Até ali não desciam as suas pretensões herdadas ou adquiridas. Que faziam
aquelas tipas
durante o dia? Esses demônios para que infamavam assim o sexo? Bem podiam ganhar com o trabalho, e viver
com quem quisessem. Pois é possível que haja
amor que
se atole assim na porcaria? Pasmava
em não compreender como uma criatura pode existir assim enclausurada no vício,
sem a liberdade de aparecer
onde bem quisesse e comdesassombro.
Entristeceu. Levantou-se e tocou
apressadamente para o Clube. Na coxia fronteira à porta principal, havia uns tabuleiros estabelecidos, e entre eles
o de Mãe Zefa. Lobrigava-se a escadaria atapetada e luxuosa, com um grande espelho no primeiro
patim. O gradil do Passeio,
detrás dos
vendelhões, com a sua barra cor-de-rosa.
As estrelas salpicavam no firmamento o azul de ardósia, no remanso
do luar a coroa do edifício brilhava com o seu guarnecido franco, e o luar, ganhando força, espalhava por cima uns borrifos de neve!
Das sacadas subiam como girândolas de bandeirinhas;
e para as
cimalhas fronteiras, atravessava o ar alguns cordéis com enormes pavilhões de nacionalidades, de alto a baixo, em estendal, alguns lambendo a fronte dos transeuntes, cadentes, morosos com a brisa; e aqueles
moles panos de lã, variegadamente colorados, davam à vista da rua uma co-participação na festa.
No meio da rua ainda
estavam os
bancos da fanfarra que havia anunciado, com
trechos de
marcha grave, a entrada das senhoras. Nos salões térreos, estalavam maciamente, elasticamente, as bolas de bilhar, estouravam
as bebidas, e tiniam
os talheres. Aí, divulgavam-se nitidamente as pessoas,
mas em cima, era preciso que estas viessem à sacada.
De quando em vez passavam bustos de dançantes, e nas
variações da quinta parte poder-se-ia
reconhecer algum. Maria das Dores, num vestido azul, de colar de ouro e brilhantes, com uma grande caçoleta sobre o peito,
passou muito tempo numa varanda com o pai e o noivo.
Trazia o
penteado simples, com uma rosa. Um
luxo simplório de princesa. Antônia não viu o Afrodísio, e nem a sua protetora conseguiria
abeirar dele, porquanto o palacete
estava todo luz e pompa. Os homens entretidos no achonchego das ninfas do salão,
ou na troça com os demais,
ninguém poderia dar atenção senão à festa. Um grande tédio e tristeza se apossaram da rapariga,
um humor insuportável; e ela
recriminava a si mesma, sentada nas pedras da calçada.
Por que não se conformou com a
sua sorte? Agora, tome!
Não podia estar ali, é verdade, não podia freqüentar os salões, que devem
ser uma coisa muito boa, como nunca vira, mas assim mesmo podia ser que mais tarde com casamento sofrível.., e o quê? Ali estavam
algumas inferiores a ela, em tudo, menos na desgraça... E querem saber? Podia estar lá... Mas aquele seu
gênio era que a atraiçoava sempre... E entrou a analisar
condições de algumas damas do baile. A Francelina, moça paupérrima e que não tinha
lá esses
bons sangues, que servia em casa do Conselheiro
Sucupira, estava dançando. Por quê? Portava-se
bem, e vestiam-na com estima. Quanta asneira, porém, não dizia ela aos moços! Ora, isto é mal de muitas e de muitos.
As Meneses quem eram? Primas de um servente de pedreiro.
O Coronel Fagundes estava dançando com a costureira da mulher.
Via-se empregados públicos de ordem rasa, e caixeiros,
nas águas dos chefes e dos figurões. Magnatas ombreavam afavelmente com
mancebos de humilde condição e faziam cortes indistintamente a qualquer moça.
A reflexão era para Antônia uma piora. Com efeito, ali naquela reunião oficial e aristocrata, se punha
às claras a feição da terra. A sociedade abria lugar para todos. Era questão de decência, de boas relações,
de boa reputação. O abismo
então se abria mais adiante de Antônia.
Entre as mulheres da Feira e
as de certas ruas, que acompanham os congos e o bumba-meu-boi, as que vão para
o sereno do circo de cavalinhos, as que fervilham nos fandangos e no escuso
das novenas de arrabalde; entre mesmo as que tem prédio e dinheiro na Caixa
Econômica, e que entretanto um homem limpo não lhes pode falar em público, à
luz do gás, e a sociedade das mulheres honestas Antônia enxergava um
precipício!
Aquelas não souberam, virgens
loucas, alevantar na fortificação da carne a bandeira da esperança, não
torceram o pescoço ao bichinho do amor logo ao sair da casca, e julgavam que o
correr não cansa, e que o andar não chega. Antes de amarem, caíram na esparrela
da concupiscência.
Antônia sentia a cabeça
desengonçar-se. Mãe Zefa era do parecer que voltasse. Aquilo não se fazia.
Também, não estava assim perdida. Tivesse juízo.
Fugir, pró mó de quê? Deixasse estar, que as coisas se arranjariam
pelo melhor. Havia dois partidos a escolher: ou casar
com o noivo que Seu Visconde
lhe desse ou ir para a casa montada de tudo que ele lhe oferecia na Rua do Rosário. E levantaram
acampamento. A Antônia, em estado de dormência, era um concordar com tudo.
— Eu faço você entrar outra vez na casa da sua madrinha,
e aposto que ninguém
descobre. Quem lhe viu sair?
— Ninguém.
— Pois 'stá direito. Ora, ora.
Então quem será Josefa do Espírito Santo?
Toda confiante, como
confessado para confessar, a menina seguia a preta, vendo nela um ente extraordinário, e sobrenatural. E seguiram, a preta
velha a coxear de um quarto, a exibir de quando
em vez um conselho do repertório do seu
reconhecido senso prático.
Às duas e tanto
rodavam os
carros, findo o baile. As famílias
embrulhavam-se nos manteletes de lã, e rapazes temendo os resfriados punham o lenço ao pescoço abafando a garganta. As seges
não eram muitas. Pela mor parte os convidados iam de pé para casa. Agradável,
pelas
ruas asseadas e desertas, com um luar esplêndido.
O Vicente gozou sonhos cor de
rosa, naquela noite. A sua queda pela Maninha arrastava-o a necessitar agora,
não mais de um simples lance de olhos, nem de palestras, mas de contacto.
Adeus! vocação deapóstolo da Ciência, se é que isso dependia do celibato! Só
uma catástrofe o arrancaria dos braços da prima. Só se dizia bem quando
agrilhoado aos pés da noiva. Guardou no cofre da memória, donde ignorava ainda
que as sensações se evaporam traiçoeiramente ao sabor carnal de quando ambos
saíram de braço dado em pleno salão de baile. Parecia-se nutrido como um
gigante. A sua destra a modo que estava sempre segurando na cintura dela, a
esquerda cruzada com a mãozinha fragrante, cetínea, apetitosa, símbolo da carícia
e do afago. Que cafunés não estalariam, ele com a cabeça no colo dela, os olhos
semicerrados, numa tepidez de carnes mesmo e inquebrantáveis. Sentia no peito
direito, e como eternamente, a doce pressão dos seios dela, que lhe incutiam
sugestões de aromas desconhecidos. O ímpeto era dançar de par constante. Nem cogitava
de leve que o namoro estava dando nas vistas, e que uma velha a conversar com a
Fabiana e outras reformadas, na sacada, franziu o nariz dizendo que estava fedendo a azeite de carrapato e que
outra perguntou se precisava de tijolos
para fazer uma casa. A que a senhora Góis respondeu a sorrir que "eles
tinham licença, ela estava pedida e consentida"; segredo esse que a
cidade inteira já sabia.
Todo idealidades, o Centu
aborrecia-se terminantemente se ouvia falar no positivo, no esqueleto, no real
do casamento.
— Feliz quadra! batia-lhe o
sogro no ombro. São os melhores dias, aproveite-os.
— Oh meu tio, não me filosofe
a esse respeito!
— Olá, meu obcecado, a coisa é
isso mesmo. Quem cega não é a Justiça, é o Amor.
— E o senhor que o diga.
— De cátedra.
O Centu chegou a escrever numa
carta os tópicos seguintes a um dos seus antigos camaradas, casado e habitante
no Rio:
"Com a volta à minha
terra, ou por outra, ao novo encontro com a prima de que te falei, o meu ser
virou outro. Ignorava até então o poderio enorme que a natureza concedeu à
oposição dos sexos. E é tal o efeito desse sentimento em mim, apesar de vocês
na Escola me acoimarem de homem frio e insensível, que de inimigo da Arte, sou
hoje um seu ferrenho apologista. Antes de sofrer a ação transformadora desse
fluido, se bem digo, do Amor, eu considerava a muIher pelo escalpelo, um
animal como outro qualquer. Hoje, porém, vejo que, se a Ciência a encara tão
friamente, a Arte a eleva, se absorve no mistério das formas das sensações e
do sentimento.
"O inverno é isso.
Julgo-me um ente feliz. Podem sobrevir todos os padecimentos. Estou convencido
de que o homem é capaz de ser Deus.
"Mais uma força me trouxe
este novo sentimento: o amor ao torrão natal. Anteriormente o Ceará me era uma
região tacanha, um povo inconseqüente e mal-educado, uma tribo de bárbaros num
território que em remoto futuro seria um deserto líbio. Hoje vejo na minha
querida provincia um país curioso, típico, imorredouro, encurralado na sua
modesta cordilheira circular, lavado com os seus rios de seis meses, nele
nascidos e nele mortos, com os sertões de inverno e seca diferentíssimos, com
as serras cultivadas com os brejais, com os ariscos, as dunas, o céu lindíssimo
e cruel, o oceano amigo, e uma população mal-aventurada, sóbria, nervosa, e
conquistadora pela arma do trabalho, abatida pelo fogo do clima, a lutar pela
vida sempiternamente. A nossa grandeza é toda íntima, e é nos sentimentos íntimos,
do amor à mulher, e à família, que o cearense frui o suco da vida.
"Estou convencido, além
disso, que o homem como força, na tríplice acepção moral, física e intelectiva,
é o resultado do regular funcionamento do seu organismo. O homem só entra em
pleno desenvolvimento de suas aptidões, com o casamento. No domínio sobre a
mulher, na vibração simpática dos dois seres, adquirimos uma força
incalculável, a consciência do nosso poderio, a capacidade de conquistar, de
adquirir, de medrar, a consciência de que se existe, se é. Um Ergo sum mais lato que o de Descartes.
"Poder-se-ia chegar à
mesma conclusão abstraindo da convenção matrimonial. Porém a união dos sexos
como entre os irracionais, naquela pureza, é impossível no homem de hoje,
produto artificial da civilização de séculos sobre séculos.
"Não me venhas com o
ponto de vista econômico. A base da economia é a utilidade. Desorganiza-se
economicamente o casal que não toma a sério o seu ninho...."
E ia a carta por aí além. Havia um tópico em que assegurava ter estado redondamente iludido
quando supunha que o sacerdócio
da Ciência era
incompatível com o culto
da mulher. E exclamava: Mulher! me és necessária como a flor à abelha.
Quase deitou verso, em
seguida a
esse arranco. E ia tudo mais naquele
entono da
paixão.
Antônia passou o domingo como
não esperava. Não viu quando a Fabiana, o marido e a filha entraram do baile,
porque a fadiga muscular prostrou-a logo no sono, e deliberada ao que desse e
viesse, as cogitações não tiveram azo para tê-la
A loura saiu para o banho, tendo armado as feições e a mente contra algum resquício da gorada fuga da véspera. Dos pretos, nenhum parecia a par do acontecimento.
— Graças a Deus! recomecei
bem; faço de conta que hoje é que entrei para esta casa. De feito, saindo a Fabiana, ficou
a casa deserta; cada um tomou para seu lado, aproveitando a noite divertida de sábado; apenas o tio Raimundo, na sala de jantar, conchilando, cão fiel, a beberfumo, julgando que a Antônia estava de incômodos
para a camarinha, ou que havia
acompanhado a dona da casa.
Na rua, inda mesmo algum conhecido havendo notado, não era
caso de espanto, nem de novidade,
em uma cidade onde uma senhora ou uma donzela atravessa livremente, sozinha, ruas e ruas, com desassombro e sem receio.
Ao fim do quintal agitava-se no sol as folhas do Canavedo, e as fiadas singelas do muro
banhavam-se
de sombra de ramadas e de fáculas deslumbrantes. A paisagem rumorejante encurralava-se no quarteirão. Um sopro abatia sobre a vegetação, escoado em regra, de cima das casas, de parceria
com os
luzimentos de um dia vigorosamente limpo. Espalhava-se no ar a vida obscura
das cozinhas.
O moleque Joaquim surrava um tapete, no alpendre, arrancando-lhe a poeira, e o tio
Raimundo, regando as plantas, escutava a conversa desengonçada
de um samangolé que estava à espera
que ele acabasse para irem
à missa do Rosário, que naquele domingo havia sessão da irmandade.
O porco, um baé muito gordo, com umas papadas
ruivas, empinava o focinho
com os pés
de diante apeados na pocilga, grunhindo com um suplicante
olhar para Antônia que passava.
Uma goiabeira esfregava-se no muro,
e provavelmente
deitava para o vizinho
um ramo curioso. Pimpavam
as coisas maiores e mais vivas. No texto de ferro de uma caixa de água que se erguia de outros quintais, girava doidamente uma ventoinha. Hilariantemente caía sobre o tamarindo gigante um vôo de periquitinhos verdes. Um portão
vizinho batia com o vento,
a ranger nas tábuas ressequidas. Vaporavam eflúvios de horta, e de jasmim, com o azedume dos chiqueiros.
O casamento estava marcado para quinze dias depois do baile
do ex-presidente Benedito.
Realizada
a cerimônia, às 8 da noite, na Sé, o séquito de carruagem, desfiando pela cidade, voltou à mansão do Desembargador. Os noivos subiram adiante,
solenemente, seguidos pelos pares de convidados, que surdiam da aglomeração dos carros e de espectadores, que tomavam a rua.
A grande luz dos candelabros, nas salas e cámaras transformadas em
salões, estrepitavam as dragonas
dos oficiais, com os peitos crivados de condecorações, o pano fino das casacas coisés na alvura dos colarinhos e peitilhos, as caudas dos vestidos, o agitar dos leques, os decotes empoados, e o sorriso aristocratizado.
Os noivos estavam em exposição, no sofá, a seus pés aplainava-se um tapete novo, e a um lado e outro as cadeiras eram ocupadas pelas
senhoras e donzelas, como em guarda a honra. A sala retinia da bulha. das conversas e das risadas com medidas. Uma
senhora despachada tomou o ramalhete da noiva e deu nova vida à sociedade, a distribuir os cravos,
que arrancava um por um, pelas moças e pelos mancebos. Outra, pegou o véu
nupcial, e nele ia envolvendo as meninas núbeis, cabeça por cabeça. Antônia
vinha entrando nesse momento, de vestido azul-claro, pálida e formosa; depois
de repelir o filó, dizendo a rir que não tinha fé, as senhoras obrigaram-na a
recebê-lo; e ela debatia-se galhofando que "só gostava de véu preto".
A Fabiana atravessava solenemente a casa, como um bispo, no vigor da seda cor-de-rosa, com um penteado em que despendera uma hora de relógio. Esteve pelo braço do Visconde, por algum tempo, a quem agora parecia
dedicar nova
espécie de afeição. Já nem se lembrava de que o queria
para genro, que para isto
fizera o marido aliar-se-lhe,
que lhe abrira as portas de sua casa, e que aí o Afrodísio só
não fez o
que não quis, encontrando apenas oposição por parte da pertinaz Maria das
Dores,
que, enfim, triunfava. E a matrona botava para a figura melancólica do homem
um olhar, em que parecia dizer:
— Eu é que estava mesmo de jeito
para sua mulher! E suspirou:
Se eu
fora viúva...
Era esse o novo rumo
da sua queda pelo sugestivo Afrodísio, ou fora sempre. Atirara-lhe com a filha, carne da sua carne, esta pendeu para outro,
ficava ela em campo.
O Desembargador conduzia para dentro uns figurões,
a tomarem alguma coisa. A sala de jantar estava preparadinha para banquete, atravessada de um lado a outro
pelo corpo da mesa, posta e profusamente servida. O Lucas tomara conta das
bebidas, muito solícito, fazendo a Ângela, que viera expressamente por amor da sua antiga sinhá-moça
Bem-Bem, sair de um a um com a bandeja
de copos, ou com a licoreira de prata.
A festa acabou cedo. Logo depois da comezaina,
que entrou ali sob as dez.
Também, desde que passou o vapor
brasileiro, a casa dos Góis de Oliveira a modo que
imergiu no escuro. Os noivos
tiveram de
embarcar para o Sul. O Vicente Moura saíra tenente do Estado-Maior, e recebera ordem de seguir prontamente, para uma comissão de colônias
militares para o Paraná. Como timbrava,
cumpriu a
ordem mas levou fortes empenhos
do São Galo e de outros
amigos políticos da província, para o Ministro arranjá-lo na. Corte, onde esperava fazer concurso em uma das escolas superiores, e aí
fazer sede, que, dizia ele agora, do Brasil só onde se pode
morar é
no Rio de Janeiro.
Osório sentiu profundamente a ausência da Maria das
Dores, e
do genro; tal, que entrou a imaginar
em uma licença para ir ao Rio, e arranjar-se também por lá, no quentinho da filha.
Seria nova
embirrância com a Fabiana, que por
certo não se deixaria arrancar do Ceará com duas razões.
Antônia achava-se desmastreada
completamente. Mãe Zefa acabavade arranjar-lhe na sua morada uma entrevista com
o Afrodísio, a desoras; porque de dia ou cedo, a rapariga teimava em não sair
de casa, e declarava absolutamente não mais tornar a pôr os pés no sobrado do
São Galo.
Depois que os noivos
partiram, Osório fez-se acessível, entrava fora de horas, e passava
noites jogando no Clube; fruindo, na vida de rapaz, enchimento para o vácuo moral e nervoso que parecia roê-lo dia por dia. A pouco e pouco, reatou a sua antiga amizade com o boticário Fernandes.
Na noite da entrevista da Antônia, uma noite sem gás, como a do baile, viu casualmente o Afrodísio desaparecer, no Beco
das Trincheiras, à entrada solitária do tugúrio. A parede
sem caliça escurecia cada vez mais a portinha
sem pintura. Um cheiro de lama de esgotos
empestava a coxia, e ao correr do calçamento
havia rumas de tijolo e barro de construção,
gigos, barricas, tabuados de pinho,
caixões, que o cair da noite não permitira recolher aos armazéns. A porta estalou desafinada. O Desembargador não podia lobrigar mais, daí por diante, e foi-se, julgando muito natural aquela espécie de empresa noturna, adequada ao seu viver como de rapaz.
O aspecto do aposento
era esfumarado,
o teto enegrecido de fuligem. Uma teia de aranha, no canto, atravessada
pela
ténue fumaça que procurava uma telha meio suspensa para servir de chaminé, recebia o bafo luminoso da trempe de pedras, onde havia
uma panela de mungunzá. O chão era uma terra socada e desigual.
Uma tapagem
de esteira e estopa separava uma alcova, cujo ingresso era
vedado, à
guisa de reposteiro, por uma antiga manta vermelha, de soldado de polícia,
com queimaduras de ferro de engomar.
A tia Manuela, irmã de Mãe Zefa e co-proprietária,
roncava perto do fogo, embiocada numa tipóia
suspensa por cima da mala e dos trens de cozinha.
Sentiu bater na porta, e empurrar, ergueu-se, descerrou o ferrolho,
e reconheceu Mãe Zefa. A porta fechou-se. E o Afrodísio sentiu-se bem, naquele ambiente sujo.
A tia Manuela desenvolveu largo sorriso, e indicou
o pano de baeta que vedava o biombo.
No interior deste, sobre um mocho, ardia uma vela de carnaúba enfiada num frasco. Em uma cama de ferro, cujo lastro exalava
amoníaco e bodum, estendia-se, envolto em camisa alvíssima, um corpozinho louro. A cortina
caiu por detrás do vulto masculino. E transformou-se, à imaginação
de ambos, toda aquela infecta sujeira. Os olhos
da
criaturinha loura abriram-se preguiçosamente, pondo a alma às claras. E talvez
tivesse escorregado a pérola de uma lágrima. Apareceu a fileira dos dentes,
as doces curvas e a provocação
dos beiços e o son-zinho
da sua voz danado e matador. Intumesciam
as rendas do talhe.
O joelho originava dobras graciosas. Ligeira secura repelia do corpo
a espessura
vaporosa da camisa. Os pés,
porventura titilavam nos tornozelos, e nos dedos, a descoberto, e nas unhas
embutidas na carnação corada e nova.
Mãe
Zefa, erguendo-se para beber água, vacilou, e bateu casualmente na paredinha da alcova; o cotovelo enfunou a estopa, o mocho caiu, lá dentro, o frasco revirou com o coto de vela que ninguém reacendeu.
À meia-noite passava uma serenata. A princípio o som era longínquo, dominando unicamente a voz do trovador. A pouco e pouco foi reforçando, e destacadamente se percebia, em
brandas lufadas, a flauta
e o violão. Cessou,
enfim, a modinha;
ouvia-se o rum-rum
dos rapazes,
gargalhadas francas, discussões e pilhérias. Bateram na venda da esquina, estiveram muito tempo, e como lhes não abriram a porta, berraram descomposturas; e saíram modulando uma valsa tristonha e sentimental, que infiltrava nos nervos adormecidos da cidade, àquela hora, uns repassa-mentos de angústia e de saudade, e acordava fantasias na modorra da carne.
Antônia entrou com a Mãe Zefa,
que ia buscar as verduras para a Feira, às cinco da manhã, de lencinho
cheiroso, abanando-se, declarando que esteve muito boa a missa de madrugada.
Fabiana admirou de não ter percebido quando ela saiu, que dizia ter sido às
três e tanto.
O Afrodísio nada adiantara sobre a crítica posição da rapariga. Esta insistira em querer abrigar-se na honestidade da família, de maneira nenhuma aceitaria casa.
Quase desesperada, vendo o
tempo estreitá-la no férreo círculo dos nove meses, deliberou adoecer. A
Fabiana vexou-se, quis mandar vir o médico. Antônia respondeu que bastava o
doutor vir no dia seguinte; em que amanheceu repentinamente boa.
Quem
a salvou da aflitiva situação veio a ser o padrinho. Banhando o rosto, no alpendre, curvo, inundando as faces barbudas, apreciava o fartum da aguardente com que matara a frieza da água. Os punhos da camisa, arregaçados, só queriam descer.
Da bacia de louça, beirada de azul e encarnado, saltavam respingos e flocos. Do lavatório abaixo, cuja tinta estava uma dúbia confusão de manchas, a água escorria, e em derredor estampava-se uma zona de ladrilho molhado. Deu de garra ao sabonete. E breve o seu busto aparecia espumado, como se todo fora cabelos brancos. De olhos fechados, esfregando a cabeça com as unhas, agradavelmente subia a umas regiões ideais, donde se nota serem as conveniências e vícios sociais de uma toleima atroz, garroteando os verdadeiros ímpetos do ser; via famílias sacrificadas pelo
descuro de um
pai, brocadas fatalmente pela ruindade de um dos seus
membros; donzelas e mancebos
adstritos à penúria, sacrificados
à Vaidade e ao Mundo; eachava a civilização corrente muito alheia à superioridade humana e ao sadio prazer que a carne pede com o espírito. Depois de tirar de todo a espuma, com os poros fartos, despejou água do jarro sobre o crânio, como para o lavar bem, o batizar, o firmar contra aquelas idéias importunas, aspirações a um bem impossível, trucidação e desvairamento para quem deve estar sempre calmo e em ação na batalha da vida.
Pelos
intercolúnios do alpendre
gozava do painel
do quintal. Ainda
esfregando a cabeça
com uma toalha felpuda, se achegou do peitoril. Um choro de criancinha supinamente zangada, na habitação vizinha, irritava-o. Mas ele teria netos. E deduzia:
— A felicidade repousa na sábia combinação das dores com os prazeres. Desgraçado o que não sofreu, é como um terreno onde somente o dia se espalha, e não há sombra, e nem cabe noite.
Aprazia-se na perspectiva dos telhados da outra rua, colinas de fino tauá, frisadinhas, confidenciosas como
devem ser todos os telhados.
Alegremente sozinha, arvorada num bambu enxertado na rama de um cajueiro,
debatia-se
em mil variados ademanes
com o vento,
uma bandeira
de lençol de chita, e isto o reportou à puerícia, cujos pormenores, como até
certa distância o foco
luminoso, cresceu de mais em
mais à medida que se avança por outras idades.
Permanecia
no parapeito, como se não tivera acordado ainda. Também a cabeça dele fora submetida a tantas quadros diversos no museu da vida, os seus ouvidos, o seu olfato, a sua epiderme, o seu gosto haviam provado sensações tantas que o diplomavam de mestre para certos casos. Adormentado no país do ideal, se esforçava logo, semelhante a quem de um balão procure alcançar terra. Descer à realidade imediata, a única e jamais desmascarada amiga de todos. Avistou, no quintal, uma escrava
levantando a camisa
a um molequinho, prendendo a cabeça dele entre os joelhos, e aplicando-lhe meia dúzia de chineladas. Revoltou-se, e mais conteve-se por amor da força moral que devem ter as mães e os senhores. Era o tempo que Antônia subia do banho, e tomava-lhe bênção. O padrinho entendido botou-lhe uns olhos, por cima, que pareciam coados através de uns óculos profissionais; disse paternalmente:
— Antônia, isso não vai bem...
tu precisas... mudar de clima...
A rapariga tornou-se como a
flor do algodão.
— É, filha, repetia o padrinho. Isso é caso de mudar até de tudo. E adoçando a sua brutal franqueza: É assim a modo de umas sezões...
Antônia titubeou, mordendo os beiços, com um nó na garganta, enterrada pelo chão adentro, envergonhada
e exaltada por uma
inundação de lágrimas:
— É, inhor sim.
Procurava a rapariga odiar ao
Afrodísio. No fundo do seu coração incriminava-o de ingrato, infame, perverso.
E por quê? Ela não via logo?
Não via?! Ela não via coisa
nenhuma! Quando atirou-se, julgava que se não viesse a casar, que ficaria
vivendo com ele, melhor do que se fora mesmo esposa. Ignorava existir em si
aquele sentimento incubado que somente agora despontava, a sua natural repugnância
pela vida airada, um pudor instintivo, um horror por tudo que não era sagrado à
família.
A rapariga apanhara pelo sujeito um amor
verdadeiro. Beleza e formosura
podem ser da casca,
simpatia nunca. Depois de mulher,
de grávida, preferia,
por isso, morrer, a depravar-se diante dele, a ser apontada na rua como sua amásia.
Aproveitou
a frase providencial do padrinho, e adoeceu deveras com sezões. O Osório propôs à Fabiana que a afilhada passasse umas semanas fora, a ver se aquilo acabava sem
precisar recorrer-se a mezinhas.
— Mas onde?
— Ela indicou-me a casa da
irmã.
Isso por lá é uma miséria que
faz pena!
Se ela quer ir pra lá... que
temos nós com isso?
Pois sim, homem, eu estou por tudo. A Fabiana declinava das suas antigas aspirações, e vivia hoje em boa paz com o seu velho, sonhando com os futuros netinhos, arengando com as escravas e ao mesmo tempo empregando nestas e nos molequinhos boa dose de ternura.
Antônia despediu-se à noite. Chorava de cortar coração. Acompanhou-a Mãe Zefa. A habitação do casal Góis, sem Angela, sem Maninha,
sem Antônia, morreu,
por assim dizer.
A liberta Ângela dera em
beber, a ponto de, por ocasião do recolher do Largo de Palácio, ir empencada
com outras dar com os quartos no xadrez do Garrote, vaiada pela canalha que
piruetava à frente da música.
Osório
pateava às tardes com
o seu antigo
camarada, o boticário
Fernandes; e ambos,
passados na casca
do alho, senhores das
virtudes e defeitos
das influências comerciais, eclesiásticas, e políticas da localidade, comentavam o livro da vida, expendendo na privança coisas que se proferissem à luz da publicidade haviam de valer-lhes apedrejamento.
Narrava
ao amigo o cortejo
de peripécias das suas relações com o Afrodísio, e, ao ouvido, as desgraças de Ângela e da Antônia. O boticário arregalou uns olhos, e persignou-se.
E a conversa continuando sobre o assunto, o Osório chegou a erguer-se, e pegou a deitar filosofia: que o outro ficasse certo do que ele dizia. Um homem que possua os meios e o vigor indispensável para o casamento, e procure em vez da esposa, a meretriz, não podia ser tomado
absolutamente, no problema
da evolução, como uma
quantidade positiva.
Embalde as donzelas núbeis,
como abelhas a uma flor, procuravam-lhe o mel, que não existia. Nesse, o prazer
do sexo, o do homem, não daria em resultado o de esposo e de pai. Esses, o que
eram paraas mulheres, seriam para o resto: saciadores do eu, repugnantes ao seu
modo de ver sentir.
Eu já tinha imaginado quase
isso mesmo, homem! — fez o boticário, fanhoso, e pondo a luneta: Venha de lá
um arrocho de mão, seu canalha.
Se homens superiores, prosseguiu o orador, safando a mão do rijo aperto, soltando as frases num tom abafado, com uma convicção e cólera capazes de trazer-lhe o pulmão à boca. Se homens superiores, foram celibatários, é porque
circunstâncias da vida e da profissão
os forçaram a semelhante sacrifício...
E daí, passava a desmanivar ainda os motivos pelos quais as pretendentes à mão de São Galo, baqueavam
irremissivelmente, fatalmente.
Que as mulheres possuem,
mormente as virgens, salvo nas organizações pervertidas, um inconsciente que
as impele para os homens superiores. Como que desejam ligar sua existência à
dessas criaturas que têm a sedução do ideal...
— Nisso vai a suprema vaidade
inata, interrompeu o outro.
— Concedo. A tendência para
gozar do melhor...
— Parece que o amor, isto é, o amor sentimento, deve ser proporcional à superioridade do indivíduo...
— È assim que Jesus Cristo, acudiu o legista, no prosseguimento da sua tese, o mito do homem-Deus, o virgem, teve a auréola das chamadas santas mulheres. Há nisso
um ecletismo inconcusso, verdadeiro, Seu Fernandes!
— Arre! que desembuchas como um jovem!
exclamou o outro,
levantando-se,
como os dedos
na cava do colete.
Estás me parecendo
um promotorzinho da última
bacharelização.
E daí, o letrado passou a
esboçar um paralelo entre a filha e a Antônia. E assim gastava o Osório as
horas vagas, entre o bom senso do Fernandes e o jogo do Clube, com o respectivo
cortejo da cervejada.
Foi preciso segurar nas
crinas, e tocar com as esporas, aconchegar o corpo à frente, porque a areia
frouxa fugia nas patas do cavalo enterradas pelo chão adentro. O animal
encolheu-se, forcejou e galgou arriba. O cavaleiro, passado o primeiro
instante, respirou a paisagem que o cercava a perder de vista. O espinhaço das
dunas ia, até desaparecer entre a planície e o mar. Uma nuvem gigantesca
alaranjava-se, a partir do ponto onde o sol, como uma enorme moeda de ouro,
caía para detrás das serras longínquas. E assim montado, do alto do Morro do
Moinho, a noroeste da cidade, Osório, pela primeira vez sentia-se abalado por
um panorama da sua província adotiva. O céu lhe parecia muito mais gigante do
que fora até ali. A terra, uma floresta interminável, dando à perspectiva o ar
de uma planície indefinida.
O horizonte era fugidio, e suave até na linha de serras destacadas que ao poente e sul costumam ornar-se de nuvens no tope. A cidade, pertinho, saía como de um lado vastíssimo, bordada sobre um tapete verde, edificada numa
chácara imensa. Para a esquerda,
afundava-se a praia,
e entre ela e o semicírculo ingente do oceano, enrolava-se e desenrolava-se o nevado cordão do quebrar das ondas. Não trouxera óculo de alcance. Também, devia enxergar o seu torrão era mesmo com a força natural dos próprios olhos. Começava a sentir com aquele pó alvinitente, com aqueles matos
retorcidos da encosta
interior das dunas, que o vento
ia aterrando; com os galhos
já meio carbonizados, representantes de antigos bosques, que o mesmo vento exumava no seu giro doidivanas. Batia-lhe na fronte o influxo monstruoso das serranias meio sumidas no crepúsculo amortecido e atentas na vastidão do espetáculo, soltas no horizonte; "porventura
pirâmides milenárias no alto das
quais a Fortuna,
muda e expectante, pousasse
todos os dias,
como o sol fizera
há pouco esperando
que a raça confusa
e sóbria e atrevida que se aninha no vasto daquela planície aparente que sobe insensivelmente sertões
acima, se una,
e cresça, e dé desempenho daquela natureza
ainda não compreendida". A cidade-cabeça desse povo ali está, a taba mestra, o sábio dos morubixabas. Dominam as torres
brancas das igrejas. Há uma semelhança entre os mausoléus que estão ali no cemitério, no sopé do morro, e aqueles outros onde soou agora o dobre do Angelus.
Educado
e vivendo fora dos negócios, o Desembargador, como um missionário que tem na sua religião e no seu refeitório a segurança da sua felicidade intra e extra-mundo, quisera modelar aquela província na fôrma que lhe inspirava o seu aprendimento. A cavalo, no ponto mais elevado dos arredores, isto era pó, e migalhas de mato a viver mais do ar do céu que do suco da terra. Aquela encantadora
planície verde que ia
até acinzentar-se,
não eram searas e nem
fazendas, e dariam
frutos dourados
mas não os frutos do ouro. Aquelas nuvens ricas de forma, de cores, com a frescura das donzelas núbeis, eram
muitas vezes rasgadas pelos ventos Don Juan e Lovelaces. Aquele sol que semeava estrelas pela folhagem inútil dos matagais, um polvo com os tentáculos do calor disfarçado com as ilusões da luz.
Começou
a abismar-se no espetáculo do Poente. De além das serras se estendiam os raios gigantescos do sol pelo céu acima, semelhantes
aos que se pintam
na fronte de Moisés. Uma claridade
fantástica iluminava os corpos
de um lado só. O sentimento retocava-se dos luzimentos verde-louros do Ocaso. Para o Norte, os coqueiros
longínquos, a meio
soterrados, subiam em silhuetas debruadas de um fulgor estranho, e aquilo despertava impressões de leitura de coisas da Africa. As dunas se estendiam como alvos corpos de mulheres; e tinham ondulações de um enorme lençol possantemente agitado.
No plano do oceano, que parecia muito baixo, erravam as pintinhas brancas das jangadas
que se recolhiam da pesca; e quase no Nascente, o vultozinho do farol puxando após si o cabedelo do Mucuripe. No entroncamento
deste, amontanhava-se um
morro, cinzento com a distância
e pela hora, que ameaçava de submersão um povoado, e na perspectiva, roçava por cima da longa mancha verde-escura de toda aquela praia de Mucuripe e Meireles, uma
língua branca a lamber
o horizonte. Era para ali, aquém do compacto coqueiral do Meireles, que a cidade havia sacudido, como um
monturo de fora de portas,
a formosa Antonia tresloucada. O Desembargador tivera um arranco de humanitarismo; montara a cavalo, e fora vê-la.
Daí, atravessara a praia da
cidade e subira a gozar do panorama no alto dos morros do ocidente, donde
sacudiu os tentáculos do espírito na sucção das belezas do mundo exterior, sem
cogitar de que são mais profundas e comoventes as do mundo interior que cada um
traz em si.
Nem
lhe lembrava o terrível
encadeamento de carne, de pais
a filhos, de irmãos, de amigos, de servos, de amos.
Dispunha-se a descer. O caminho ia pelos verdes da planície como uma risca de cabelos mal-repartidos. Os mausoléus do cemitério destacavam-se numa alvura cortante, e uma extensa nesga do morro, cosida no pano verde dos matos de dentro e de fora, fazia ilusão de um lago esplanado entre verduras. Havia
casinhas de palha
e de telha salpicando a extensão viridente.
Seguia
por entre as moitas
do tabuleiro, entre um grupo de lavadeiras da Jacarecanga. E por detrás dele
desaparecia o lombo
do mar, oculto pela enorme trincheira das dunas.
Demorava a palhoça da Binga,
irmã da Antônia, a casada, no Longuinho. Entreaparecia na rama do cajueiral
que subia, do lado de terra, morro acima. Ficava a meio do declive, numa
espécie de patim; e lá embaixo, passava um córrego, no brejal do pequeno vale
anesgado feito pela rampa do Outeiro com o cordão das dunas.
O Osório tinha ido pela Rua da
Alfândega, alagada e frondosa. Enxergava-se lá no fim aquela tira alva, tapando
o horizonte; era o morro em sua parte nua. Aproximando-se mais e correndo a
vista, apareciam lá no alto, os coqueiros soterrados, uns só com a grimpa de
fora, do antigo sítio de um fuão Longuinho, cujo nome imortalizou a areia
inconstante. O marido da Binga, o Pedro Cação, chamava lar ao rancho lar, na fina
propriedade expressiva da linguagem plebéia. Uma construção fácil, e adequada
ao clima. As paredes, de pau a pique entaipados de ramo e de palha. Na coberta,
leve e jungida com cipós, os caibros formavam xadrez com o envaramento — onde
mordiam as cabeças das palhas de carnauba, semelhantes a leques fechados, e
apertadinhos a não deixar sair um pingo de chuva. No interior desse prisma oco,
em constante equilíbrio com a atmosfera, arranchavam marido, mulher, filhos, e
mais que houvesse. A abertura da frente cerrava-se por uma porta de talos de
palmas de carnaúba, e a de trás vedava-se com uma cortina de lona, pedaço de
vela de barcaça. Dois compartimentos havia; um, que servia de sala de visita,
de sala de jantar, de cozinha, e também de dormitório, e outro, com as
prerrogativas de camarinha. Recendia a fumaça e maresia.
O Pedro Cação era lancheiro. Gabava-se de todos os dias no seu rancho botar-se panela no fogo e da mulher ter sempre
saia, casaco e lençol e ourinho, para ir à missa na Prainha, ou para aparecer
na cidade, e dos culumins viverem de barriga cheia, disporem de camisa lavada no córrego, chinelo e ceroula.
Ele mesmo, apesar de relaxado e bicudo
conservava no fundo do baú a sobrecasaca de pano fino, e as calças
pretas do
casamento, e o chapéu alto, que enfiava
pelas novenas da Conceição
ou pelo falecimento de um camarada.
Orgulhou-se com a vinda da Antônia e blasonava meio
mundo que a cunhada
estava no seu
rancho tomando ares, que todas
as manhãs saía para se lavar na maré, que estava engordando, botando
barriga. Omitia,
porém, as visitas do sogro,
o cego João de Paula. Este era mendigo, e sustentava uma filha viúva com uma
ninhada de não
sei quantos meninos.
A filha que o cego tinha
em melhor sorte era mesmo a Antônia. Fazia da loura um ideão. Esperançava um dia ter notícia de que ela,
criada e moldada no bem-estar, fizesse um bom partido, e de que era senhora distinta e esposa feliz. Dispensava que se lembrasse dos seus.
Fizesse ela por si, e cada um com a sua sorte. Fora sapateiro, e cegara
de gota-serena, quando Antônia era ainda criança. Como a mulher falecesse, entregara Antônia neném à madrinha, Dona
Fabiana, que era uma pessoa que cheirava a santo.
No instinto de pai, não deixou de estranhar aquela esquisitice de largar-se agora uma donzela a tomar ares na choupana de um mísero lancheiro chambregado; mas como se falava em banhos de mar, efetivamente era quase na praia e um ponto afamado aquele. Já andava meio
leso, perguntava e reperguntava. A paralisia
a modo que ia
alastrando-lhe ferrugem pelo cofre das idéias. Indagou porque razão não viera
ainda ali nenhuma pessoa a não ser o Desembargador, e aquele mocinho fanhoso, o João Batista, caixeiro do Seu Visconde. Em resposta explicaram que o estado da Antônia não era grave, ela andava era assim à espécie de um passeio. Negócios de mulheres, que homem não entende assim do pé pra mão. Nas vésperas de ir para a cama, Antônia, à boca da noite, sentava-se no limiar da choupana, enquanto os sobrinhos brincavam ao luar, e a Binga escamava o peixe e punha no fogo a ceia do marido, que atirava-se na rede a curtir um derradeiro gole de cachaça.
Naquele
afastamento a rapariga,
sentia renascer a sua antiga
inclinação pelo Afrodísio. Achava-se em uma situação como de namorada ausente, em que os menores incidentes e episódios,
iluminados pela suave constância
da saudade, ressurgem,
um por um, e desaparecem
e voltam, e vão, e tornam, com uma vida e claridade palpáveis; em que se escuta a voz e se vêem os olhos da pessoa amada e ausente... Sofria, como é dado a mulheres, até aos pequenos nadas de uma separação. E na lua clara, diuturna, na fluidez onde os corpos salientam-se úmidos de prata contornados pela penumbra esbatida entre o negro dos recônditos e o brilho do amplo, caía-lhe dos lábios tinta de desejos e negra de dúvidas a tremenda palavra-mistério, dúbio
vocábulo, melhor dicção que há para exprimir
as inauditas
maluquices do amor
e as verdades
impenetráveis da crença.
Aquele cio não lograra ainda o equilíbrio; isto é, não chegara à neutralização
dos dois fluidos contrários, — que traz o tédio; ao
choco emperrado, cuja mezinha são os arrufos, as pequenas
zangas enciumadas; aquela paixão ainda fervia, não passara a fermentação, ainda borbulhava.
A abandonada criatura punha a vista nas estrelas atoleimada, e mirava o firmamento, a disposição das nuvens, o avanço do crescente, que sulcava, góndola misteriosa tripulada por cupidinhos invisíveis, por entre cachopos de neve, rompendo mansamente as águas do céu. Para as bandas da cidade, um pedaço de céu escamento, com uns sombreados, fingia moitas sobre caprichoso dédalo alvadio,
realizando como que a cópia
de uns tabuleiros de praia. Mas o meio da enorme campanha estava nu, num mar fosforescente beirando
regiões sinuosíssimas, variegadas
de aspecto; e notavam-se pontas, baías, calhaus,
restingas, espraiamentos, alvo colo das dunas, rochedos, sulcos de barras de rios da mesma cor azúlea da profundez infinita.
Antônia encarava o novilúnio,
canoa para
ser tripulada por um casal que se quer bem. O luar e a proximidade das matas inoculavam-lhe uma terna e palpitante sensualidade inesgotável.
Isso
de afeições, quando é doença fatal, forçosa, apego de átomo com átomo para constituir molécula, pelo panorama das idéias, ao acordar pela manhã, se conhece logo. O que tem de ficar, a pouco e pouco recebe realidade nos sonhos e imaginárias. O leito e o sonho fazem de simples simpatia belezas
deslumbrantes. O sol matutino
solta uma risada de frade
feliz, risada real, que esmaga
as fricções e ergue as realidades. Havia um n tremor de inocência no verniz da folhagem cintilante e fresca, na bulha dos córregos. E nas areias, ainda úmidas da noite, pelas veredas e pelos morros, e nas águas estendidas, o espírito se prolongava e se arrastava pelo solo e subia com os vapores da mata, e fundia-se no ambiente com a verdade das coisas.
Antónia acordava cedo, com
eletrismos felinos. Vivia em dormência de lua-de-mel. Farejava um vago
encantamento no sexo oposto; que prazer no tato, e na pele toda! A tudo
apertar, em tudo roçar. A manhã lhe trazia um cheiro esquisito de novidade. E
tendo sonhado, topava na natureza inteira aquele mesmo cheiro corpóreo do
ingrato Afrodísio amado. Sentira, sempre, no correr do dia, através das mais
prosaicas ocupações os braços dele, o rosto dele. Um enlevo sensível, real,
vivo, de alucinado!
A uma segunda visita que fez o
padrinho, e desta vez com o Fernandes, a rapariga havia dado à luz pela manhã,
e não ia bem. Francamente, o boticário saiu duvidando que a puérpera
escapasse. Por felicidade ou não, a criança morreu ao nascer. A mãe, porém,
não acreditava! E a altos brados tresvariava que lhe dessem o seu filho! Inda
bem que, naquele deserto, vizinhos não ouviam aquela confissão da própria entendida
desonra. Foi mister, contudo, arredar o pai, que estava no costume de vir ali
todas as bocas da noite.
O confessor, um senhor Padre
Ricord, incubiu-se dessa obra de caridade. Mandou por um criado do seminário
tocaiar o velho no patamar da capela, que lhe desse aviso quando o cego
apontasse, pois ele morava no Outeiro da Prainha, e tinha de descer a ladeira.
Quando veio o cego, o padre
que fingia estar passeando no patamar, esbarrou nele e proferiu em tom acre:
— O senhor. parece que
é cego?
— Sou,
inhor sim.
— Perdão, filho, eu pensei que não o era.
E acrescentou que havia
adivinhado em passar por ali, naquele momento... Recebera de uma pessoa muito
cristã umas esmolas para distribuir por alguns cegos mendigos...
O velho sorriu, pois
infalivelmente
seria contemplado.
— Mas, a mode coisa é que
estou falando é com um padre do seminário?
— Está sim senhor. E é preciso
saber de uma coisa; para receber a esmola vosmecê terá de passar a noite em
oração, por alma de uma mulher, que morreu de parto; se quiser passá-la aqui em
nosso recolhimento.
O cego não quis, tinha de
voltar para casa. Quanto a passar a noite em oração, isso era menos...
— Mas como hei de eu dizer que
vi o senhor guardar a noite piedosamente?
— Entonce é
preciso eu vir sempre...
— A esmola é boa, vale o sacrifício!
— Sacrifício não é nenhum, não senhor. Mas... primeiro eu tenho
de ir lá
embaixo...
— Onde?
— No Longuinho.
— Ver o quê?
— Ver uma filha que tenho lá, uma
que estava doente, a Antônia, que fora criada na cidade na casa da madrinha,
aquela dona que vinha muito ao seminário, muito religiosa, benze-a Deus.
— Já sei, já sei. Não tenha
cuidado...
Ele padre Ricord é verdade que
havia confessado e sacramentado essa menina, mas não era pelo seu estado grave,
e sim por dever de boa cristã. Bem sabia que o Santíssimo Sacramento muitas
vezes servia de remédio corporal.
— Grandes são os poderes de Deus.
— É uma fadiga dispensável, o senhor
descer aí por essa escuridão. A rapariga vai perfeitamente bem.
Às cinco horas tocou a sineta
do seminário. O cego amanhecera de pé. O confessor de Antônia disse missa de
paramentos negros agaloados de retroses amarelos, às cinco e meia, assistida
por ele. Depois de descer do altar, desparamentou-se, fez a ablução das mãos, e
deu ação de graças; consecutivamente, o padre foi ter com o velho, deu-lhe a
esmola, uma cédula de dez mil-réis, novinha, e acrescentou que "a sua
miséria se transformara em riqueza".
— Quem me dera!
— Aos olhos de Deus.
— Ah, isto sim, eu logo vi!
Disse-lhe mais o padre que ele
era muito feliz, pois tinha sido Deus servido.., levar para sua santa glória..,
a alma puríssima... da Antônia.
— Deus olha para você! É um
pai misericordioso.
O golpe foi brutal e à
queima-roupa. O mendigo cegou agora do espírito repentinamente. Embalde o
padre largou
E aparentemente calmo como um
bêbado costumeiro, porém ofegante, queixava-se pelo brando de que estivera de
noite a rezar pela alma de sua filha, para ganhar uma esmola, hein? Ora bolas,
que felizardo!
As últimas palavras foram um
soluço. E saiu de porta fora cuspindo para dentro da igreja uma blasfêmia.
Pobre velho! Ele queria tanto
aquela filha que não tirava esmolas
no quarteirão onde ela
habitava. Dera-a criancinha de peito, pelo muito amor instintivo, à madrinha,
Senhora Dona Fabiana. Dera-a! Morreu! Altos mistérios de Deus. Poderia vir a
fazer um mau casamento; não é assim? E quem sabe ainda? Talvez Nossa Senhora a
tivesse arrancado da borda do abismo! A dor do cego era profunda, porém
iluminava-se pela alma virginal da donzela.
Agora, pai do céu, tirasse-o!
Agora sim. De manhã, quando ele se levantasse, não rezaria mais pela
conservação da sua triste vida... Entendia que a sua existência não tinha mais
razão de ser.
Antônia falecera minutos
depois de o lazarista coloquiar com o cego no patamar da capela. O padre não
esperava que ela morresse tão depressa, e por isso tentara impedir o velho de
ir até lá, para este não ouvi-la gritar no delírio da febre:
— Eu quero o meu filho! Eu
quero o meu filho!
Morta cessava tudo.
Um trabalhador da casa, deu
parte ao João Batista do triste acontecimento, estando ele no bilhar no
"Hotel de France".
Às onze da noite ia para a
casa do Pedro Cação. Seguindo a ladeira da Rua de Baixo, dobrou na Rua do
Chafariz, deserta e úmida, escutando o coro dos sapos e dos grilos. Contornou o
edifício da Alfândega, e sumiu-se na escuridão para o lado do Meireles.
De longe percebia-se haver
novidade na casinha do Pedro. Clareava uma fogueira, para debaixo dos
cajueiros, denunciando a frente da palhoça, e no terreiro havia uns homens,
deitados uns, de pé outros, em grupo, como à espera que se acabasse lá dentro
uma comprida novena, assistida pelas suas mulheres e famílias. Por aqueles
arredores, na quebrada do Outeiro, nos sítios, pela epiderme fria da dunas,
espalhava-se um berreiro de vozes femininas, que o João Batista ouviu ainda
distante. Era o velório. Naturalmente, vizinhança e conhecidos reuniam-se ali,
segundo o costume do povo, fazendo quarto à defunta.
Foi logo Seu Batistinha saudado pelo cabroeiro que velava cá fora. Antes de penetrar na palhoça tomou um gole de aguardente, que lhe ofereceu o Pedro, e acendeu um cigarro,
apesar de não
fumar.
Falou
longamente o lancheiro, digressivamente,
os últimos instantes da cunhada, pesaroso e calmo. Isento de carraspana, naquela noite. Quando
ofereceu a xícara
de aguardente ao
caixeiro do seu
patrão, disse que estava
repunando o espírito.
Na verdade, não tocou
em bebida,senão três
dias depois. Deixe estar que o cabra tinha lá o seu sentimento. Os homens, de camisa e calça, e chapéu de palha, ao revérbero da fogueira, conservavam nas feições um ar
de respeito,
descobriam-se
ao aproximarda porta da palhoça.
Havia dois compridos
bancos de madeira
tosca, no terreiro
do casebre, como se faz para os sambas. Estavam sempre a parolear, lá fora, mas em voz baixa, se acaso gritavam, era por algum que se afastara. Discutiam antigas
passagens, episódios que se deram
em brigas, em divertimentos, nos
fandangos, nas novenas do Mucuripe, e contavam histórias de visagens e de defuntos. Um velhāo robusto, muito dizedor de palavrões e glosador de indecências,
concentrava um grupo em torno do seu cachimbo e da sua prosa corredia e pinturesca. De vez em quando atabafavam uma risada
explosiva. Uns quatro
rapagões —ponta-limpa, jogavam queda de corpo na areia macia afastada. A noite era traspassada pela brisa do mar, de uma frescura impertinente, e o firmamento clareava,
pomposamente. O Caminho
de Santiago, o Cruzeiro do Sul, a Arca
de Noé, o Rosário,
as Três Marias, o Relógio ou Sete-Estrelas, a Mancha do Sul, todo o mapa celeste conhecido e classificado pelo olho do povo, indicavam sem embaraço, tendo o cuidado de não apontar estrela com o dedo, por mó de não nascer berruga.
Ao
longe, ouvia-se a pancadaria de um chinfrim do Outeiro do Seminário; de vez em quando
sobressaía o berro
do trombone.
Mãe Zefa chegava, com o tio
Raimundo, e a Benedita, esta espalhando a catinga sebosa da sua roupa de
cozinheira.
Da porta do casebre apanhava-se a vista do interior, num lance d'olhos. O cadáver estendia-se ao meio do compartimento, sobre uma esteira, escondido por um
lençol branco, e parecia
muito inchado, maior do que era
de esperar. Embora
falsa, uma sensação de mau
cheiro assaltava o nariz
do indiferente, e provocava as glândulas salivares. Ao fundo um xale
azul, novinho em folha, pregava-se na palha, acima da tampa de uma caixa coberta por um lençol de tacos; e aí, dominando a minguada formatura irregular de imagens de santos, alçava na cruz o vulto de Cristo na sua soledade dolorosa, por quem Antônia chamara ao morrer, nu, correndo sangue, mal feito, olhando para a terra, fronte pendida, na muda profundez do Consumatum est. Em
bocas de garrafa,
e palmatórias de flandres, ardiam quatro velas
de carnaúba, e uma de cera branca, sendo esta do Santo Sepulcro. Em outros
pontos da palha
colavam-se pendentes
de argolas diversos
registros de santos
em molduras de cedro.
Tinham feito uma pausa na
cantoria. A tiradeira da reza, uma sujeita idosa e magra, que usava um cocó
muito apertado, ajoelhada com o seu vestido roxo diante da imagem de Jesus,
dizia agora Padre-nossos Ave-Marias e Salve-Rainhas, num afã de orações pela
noite inteira, como se um momento passado sem isso prejudicasse a alma da
falecida. A modo que o Jesus dissera àquela gente da árvore da cruz o Vigilate
et orate. As demais mulheres, sentadas ou ajoelhadas no barro duro do chão,
respondiam. O compartimento permanecia com os seus trastes, o pote no canto
sobre a forquilha de três ganchos, com o coco dependurado pelo cabo;
as malas no pé da parede, uns
cacetes enfiados na palha, as redes enroladas com os punhos enfiados nos
armadores que saíam das estacas, a vassoura de vassourinha, tudo à mão. Apenas
a corda de roupa fora desarmada. Alguém se erguendo, para entrar na camarinha,
ou para sair pela frente ou pelos fundos, ia como se receasse acordar a
defunta.
Mãe
Zefa ajoelhou ao
lado do vulto
branco estendido no chão,
fazendo um enorme pelo-sinal, e orava nos seus grossos beiços. Benedita
deixara o chinelo
na porta, em
mostra de respeito;
não sabia pôr as mãos,
cruzava os braços,
com o estômago
empinado para a frente.
O velho crioulo
Raimundo ficou à entrada,
para ter livre saída
quando fosse lá
para fora juntar-se com os outros homens; dobrado sobre os joelhos ronceiros, segurava no seu bastão como se este fora um brandão aceso,
sério e grave como
um juiz. Lembrava-lhe aquilo um terço, que em casa da Fabiana
era a oração
da noite para a família e escravos, em que a Antônia, com um vestidinho velho, no ajoelhar, este rasgou-se na espádua, e quando ela começou a cantar o hino de Nossa Senhora, a mode que uma niquinha de sua abundante voz se escapava por aquela brechazinha. Quando ela abriu a garganta no Agora lábios
meus, a camarinha de sinhá mó
de que se encheu
de passarinho
e de fulores.
Quem conheceu a aperitiva Antônia não
podia estar ali sem um profundo e entranhado
soluço!
Num caco de telha, ao pé do altar,
fumegava a alfazema.
Ao ruir do mar,
ao bulício das árvores, a sinceridade e simpleza daquela
gente, ao suspirar do vento
na palha, o Batistinha ficava não sabia como, em diverso mundo, arrebatado, como fora, de uma jogatina foliona, à mísera obscuridade de uma câmara ardente, choupana
magramente
alumiada, relicário de uns restos mortais verdadeiramente restos.
Coitadinha, podia ter sido uma esposa! Repugnou justamente aquele que a faria feliz! Morreu! Teve medo de vê-la, receava enxergar naquele rosto, que acendia-lhe a vida, a monstruosidade
da morte.
Não entrou, absolutamente não entrou.
Em todo caso a rapariga fora uma ingrata para quem
fez tudo por ela. Se morreu, foi ainda
porque desdenhou aceitá-lo, até a última. Não gozava o falecimento da sua maior
inimiga, deplorava, sentia, e amava-a tolamente ainda. Adorava agora aquela altivez com que o pisou
Que Seu João tinha uma paixão desadorada pela Antônia. D'esna do ano
retrasado. Ela nem
como coisa. Nunca se viu
judiar tanto com um pobre!...
— E mó de que não se casou?
— Como havia de casar? Apois
si ela repunava ele de mais! Neste mundo hai de tudo!
A vizinha, sacudindo o pano do café, reprovava
em muito o procedimento dela. Ele podia achar outra bem boa. E ao clarãozinho do fogão, desfiaram o assunto, entrando pelas anedotas e casos
acontecidos como aquele.
Pela madrugada, ainda se ouvia de vez em quando o Meu Senhor e Amado, e outros cânticos de piedade popular, como para manter alerta aos que faziam quarto. Muitos ressonavam. Mãe Zefa, Benedita e o preto velho foram embora à meia-noite. A uma hora chegaram uns soldados, da guarda da Alfândega. Estiveram pouco tempo. Tomaram café e cachaça, que era o que eles queriam, e deram boas noites. Ameaçava chuva. Com
efeito depois da primeira
cantada do galo,
caiu um forte aguaceiro.
A pouco e pouco, um estremecimento manifestou-se pela rama das árvores, um vago rumor, agitação ao de leve, como se por sobre eles passassem miríades de insetos. A escuridão incidia do alto, mais espessa e friorenta. O fogo recrudescia, como as chamas da hulha na forja, ao sopro do alcaraviz. Breve, a frondagem aluía-se toda. O palhiço do chão, no vale, andava em vórtice, e o vento sacudia lufadas de areia. Alguns entraram logo, outros afrontavam o meteoro. O Pedro gritou:
— Chuva rapaziada! Venham para
dentro!
— Deixe cair, falou um dos que teimavam em ficar debaixo do cajueiro. Este cá não tem medo daquilo que Deus manda!
Ainda não caíam os pingos d'água; e mais o aguaceiro, estava anunciado pela ventania úmida a rolar de um céu de breu, qual invasão de touros furiosos, e encapelando
o mar, assanhando as árvores, transmudando
o pó em nuvens, arrepiando os tetos, zumbindo nas torres e desembestando na planície, horrisonando mundo
Um
chiado compacto se espalhava
por tudo. Atinando para o que
o cercava, o Batistinha quis disparar para a cidade, porque do contrário pernoitaria as horas que restavam para o dia, com o cadáver da Antônia. Achou-se isolado no meio de tantas pessoas. Temia desmoralizar-se na presença aterradora da defunta. E mesmo a tempestade lhe aprazia, quisera ficar ali fora, molhar-se que nem um pinto nuelo. Dormia, quando passou a primeira desfiada do vento. O Pedro foi quem pó-lo de pé, obrigando-o a entrar; o que o caixeiro só fez depois de acender o cigarro num tição, virar uma golada e armar fisionomia de um certo recolhimento. Antes de pôr o pé na soleira, o primeiro relâmpago abriu e rolou o primeiro trovão.
Tapou-se a porta do fundo
que ficava na barra do vento.
A da frente permaneceu meio aberta.
O Cação fê-lo abancar numa
cadeira que havia. A cantoria engrossou, com a surpresa da tempestade, e de
mistura com as preces de finados, entoou-se deprecatórias a Santa Bárbara e a
São Jerônimo, deitou-se palhas bentas do Domingo de Ramos no braseiro da
alfazema, e rezou-se O Magnificat,
por mó dos raios e coriscos.
Involuntariamente o Batistinha teve de pregar os olhos na falecida. Um
magnetismo! Absorvia-se naquela massa informe, de uma impressão repulsiva, do lençol branco estendido por cima de um corpo frio onde ardeu tanto a carne e onde ardejaram tão limpos desejos dele, coloridos de ideal; esparzia sonhos por sobre o empolamento que ao meio fazia a barriga upada, jazida
de um órgão gerador, mina que poderia ter sido
de brilhantes para ambos;
demorava o olhar no jeito anguloso, de pirâmide, que o algodãozinho tomava cobrindo aqueles pés hirtos, que seriam a primeira
coisa que
ele beijava na noite de noivado, ao puxar-lhe
cariciosamente
as meias, e neles teria mergulhado a fronte chorando de alegria, e neles
teria roçado os seus cabelos altivos, e passaria neles demorado como a apaixonada Madalena com seu belo Jesus. Parecia-lhe
que o pano agitava-se, e que os pés frios da morta iam mexer-se...
Ia de mais em mais a convulsão
atmosférica.
Da abertura da porta, por onde entrava um refrigério de ar frio, longe, no Outeiro, viam-se as pintas de luz dos combustores da Prainha, esbatendo nos azulejos da fachada uma claridade
tristonha e difícil.
O gás rolava pelo tijolo molhado e pincelava umas copas de árvores. Pela força do imaginar, enxergara
o Batistinha, desviado
subitamente da contemplação
da defunta, nas mangas
daqueles lampiões longínquos,
escorrerem as gotas
de chuva em ar de lágrimas abundantes, como as que lhe queriam irromper...
Entretanto,
a Binga, aproximou-se do cadáver da irmã e levantou um bocadinho a parte do lençol que encobria a cabeça, olhou, tornou a cobrir. O seu vulto chamou o olhar do moço novamente para a defunta. Quando inclinou-se que ia pegar no pano, ele estremeceu, e não foi senhor de si. Fisgou a vista cada vez mais, hipnotizado; para fechá-la repentinamente
guardando fotografada no cérebro
a mais horrível impressão que já teve na sua vida.
A fisionomia da morta,
que lhe ficou gravada, repousava sobre um saranhão de cabelos
aloirados. O lenço amarrado para segurar o queixo
ocultava a bela carnadura do rosto, e espremia
para cima a boca arroxeada
deitando um líquido pelos cantos. A lividez da testa e das frontes metia-se a meio nos cabelos
embaraçados; o nariz exagerava o seu belo atilamento; porém o olhar, sepultado nas pálpebras descidas
eternamente,afundia com toda a criatura, e entregava aquele formoso, aperitivo e belíssimo corpo à fria hediondez
do nada.
Apagara
o fogo concupiscente ao coração do Batistinha. Antes, no bilhar,
acabando de perder
três partidas, pagando a cerveja,
com um riso contrafeito sobre as caçoadas dos pirus, que um seu trabalhador
chamou-o de parte e deu-lhe
a nova do falecimento
da rapariga, tivera um
abalo mui diferente daquele d'agora. Lá, ao pensamento, vinha-lhe um rima de sensualidades, que ele afagou. Absolutamente, não
pensava no aspecto
repulsivo de um
cadáver, e o seu
obstinado benquerer, ao
em vez de estirar-lhe
por diante um corpo hirto e álgido, punha-lhe de pé e ao
encontro uma visão angélica de cabelo de ouro e rostinho fresco, voando ao zéfiro a gaze da sua vestimenta,e pensava
correr para abraçá-la, fartando-se no olor embriagante que ela espalhava com uma claridade
sobrenatural. Os companheiros
viram-no
sair com o trabalhador
e gritaram frascariamente que queriam ir também,
julgando o caso
muito outro.
Largou
para a ladeira da Conceição, que ficava por trás da Sé, pois era mais perto do que arrodear pela praia. Chegando,
porém, ao Santo Cruzeiro,
foi tal a impressão
de tristeza que lhe infligiu o aspecto soturno e angustioso daquela enorme cruz alçada, carregadinha de emblemas do martírio, que a idéia de morte saltou-lhe em cima como um
traiçoeiro e feroz
canguçu. Passou-lhe pela vista
uma rede, saindo da escuridão,
levando o corpo
frio, conduzida por dois homens.
Estes andavam de chouto, como os peixeiros quando vão de calão carregado para o mercado, e os acompanhavam outros para ir revesando. Que séquito! Fechou os olhos e sentou-se um momento num dos bancos de alvenaria do patamar! Pior! A rede passava e repassava. Uma coberta de chita vermelha e desbotada pendia do pau, a um lado e outro, à maneirá de cortinado, e escondia completamente o conteúdo como à criança no berço oculta o mosquiteiro. Para não irem esvoaçando as pontas da coberta eram presas
com alfinetes por debaixo, na altura da cabeça, dos rins e dos pés. A rede esticava para baixo, como um saco munido até ao meio. O Batistinha parecia acompanhar
irresistivelmente o fúnebre
cortejo, como o peixe
pelo anzol, e ouvir
a voz dos curiosos:
— Vai morto ou vivo?
— Vai morto, meu irmão! respondia o tropel de homens
descalços, pisando forte no calçamento, ao chouto
costumeiro, abanando com os braços na cadência do caminhar.
E o rapaz encarava o céu
estrelado.
A alvenaria do templo
erguia-se monstruosa e metia na noite o bojo branco
das suas torres. Do coro,
as altas janelas pareciam escoar uns ruídos de cantochão,
vagos de flauta e violino,
e sussurros de contrabaixo.
Passadas de esqueleto, secas, invariáveis,
marcando o compasso, o trabalhar soturno do relógio
da torre do Norte. A modo que, de quando em vez, o sagrado edifício tinha estremeções em sua grande sensibilidade
sonora, e como que a vozeria oca das ondas estava a sair constantemente
daqueles poros de pedra e cal.
Começou
a refletir, o Batistinha, na atribulada posição do momento. A morte da Antônia era uma surpresa.
Como é que um
homem, semelhante a um
ator de mágica,
se acha, de repente, assim de um cenário a outro!
Mola poderosíssima e
quotidiana do desconhecido!
Pôs o caso
E daí, foi ter ao escritório da empresa. Se não cuidasse daquilo bem podia ser que os caboclos do Longuinho, com o tonto do Pedro, fizessem o enterro de rede. Repugnante! Subiriam a íngreme ladeira, em cujo tope se apresenta a capela emendada na janelaria do seminário, e entrando no corpo da igreja despovoada, estendiam o cadáver no soalho, sumido na panaria de algodão e cobertas, com a comprida trave, onde amarravam fortemente os punhos, caída para um lado, à espera que seo padre chegasse para fazer a encomendação...
Foi por isso que ele chegou ao
Longuinho já noite alta.
Estava ele, pois, debaixo
daquela sensação que lhe produziu o semblante da defunta, quando a Binga
levantou a ponta do lençol! Sentia-se hirto como ela. O seu desejo único era,
naquele momento, irem juntos para a sepultura. Para que a vida? Se uma criatura
daquelas fica assim tão horrenda! Por outro lado o seu outro eu, o positivo,
buscava tirá-lo ao domínio de impressões tão dissolventes. E ele olhava, olhava
tenazmente para a noite, através da larga brecha da portinha de talos. Os
focos dos combustores da calçada do seminário cuja corporatura bruxuleavalonge,
não tinham mais uma irradiação sequer. Cerceadas na espessura do ar traspassado
de chuva, denunciavam-se apenas, estrelas perdidas no tenebroso da tempestade.
Barulhava o córrego do brejo, com as águas das ladeiras. O homem gemia por
dentro, caído na desolação, como o pássaro fulminado pelo sol.
Corrido o tempo, o chuveiro ia dando de
si. Via-se já o vento pelas costas. A chuva prolongou, e afinal cedeu. De vez em quando ainda rosnava o trovão, como o sonho agitado de um cão imenso. Fuzilava um
relâmpago frouxo e cansado,
que dificilmente
aclarava o dorso
negro do céu.
As águas superiores já não
regavam. Pingos ralos é que caíam da folhagem, como a cada suspiro depois de um
pranto nervoso. Aos primeiros albores da madrugada, o Batistinha já havia
consumido quase um maço de cigarros.
A luz amarelenta da vela de
carnaúba destacava-lhe metade do rosto, e banhava de um castanho aloirado os
seus cabelos negros. Na parte da penumbra, o cigarro, pendido ao canto da boca,
desfiava uma fumacinha, e de vez em quando lampejava da sua brasinha rubra.
Com uma perna sobre a outra, o caixeiro denotava antes contrariedade pela chuva
traiçoeira, como se tivera de ir para alguma parte. E assim mascarava o
verdadeiro sentimento. Agora estiara, mas as barras vinham quebrando. Já
pressentia-se um clarãozinho no alto do firmamento. Principiava a sentir uma
dor de cabeça, e uma tal qual morrinha nos músculos. Aquela rapariga
arrancara-lhe metade do ser. Ele era uma substância refratária, nisso de amor,
a tudo que não fosse a Antônia. Condenado agora a solteirão. Não devia ter
consentido o cauirismo do casal Góis atirar a Antônia doente para a derradeira
camada social, é verdade, mas pelo seu antigo despeito, queria vê-la descer; e
então viria a dizer-se:
— Sobe! Conhece que eu sou para ti como o Cristo para o Lázaro! Tolinho! Ela o abominava, de índole, por
todo sempre.
Já
as cornetas soltavam as notas da alvorada, no coração da cidade. E aquele toque prolongado e saudoso era para o Batistinha, estatelado ante o cadáver da Antônia, atirado ao chão, de uma pungência atroz. Aquela modulação
longínqua, entrava-lhe agudamente como soprada ali
propositalmente nas suas ouças.
Fingia um exército remoto dos duendes que vinham para os restos mortais da rapariga. O seu coração batia como se ouvira toque de incêndio, e se este fora nos armazéns de que ele era guarda.
A capela da Prainha chamava para
a missa. Começou na palhoça o alvoroto do amanhecer. Os homens foram para o serviço, as mulheres a ver os seus lares. O
Batistinha chegou até
ao trapiche, e aí
ficou, mandou o capataz
abrir o armazém,
botar na beira
da praia o algodão e os couros
que tinham de embarcar; que não perdesse a maré, que era cedo naquele dia.
Uma pontinha de
sol incandescia o
azulejo da torre da Prainha.
Era por esse tempo que o cego João
de Paula esmurrava para dentro da capela uma horrível blasfêmia, e varejava
para o recinto sagrado o lixo de um desaforo, e descia, como se enxergasse, a
ladeira, passo aqui, passo acolá, com a vista do instinto e do inveterado
conhecimento do caminho, a ter mão em casa do genro.
Chegou aplacado. Quando os de
casa viram-no galgar a areia da subida, aparecendo subitamente num cotovelo do
caminho, estremeceram até a raiz dos cabelos. Momentos de ansiosa expectativa.
O velho foi falando por aqui assim, quase sem fôlego:
— Deus dê bom dia...
E como viesse avançando como
se o terreiro estivesse limpo, gritaram:
— Olhe o banco!...
Antes, porém, de findar este
grito, já a Binga estava abraçada com o pai, e, bendito seja Deus, na mais
benfazeja efusão de lágrimas.
Uma circunstância inesperada
acertou de vir novamente pôr em acelero aqueles corações rústicos. O cego
estava resignado. Os olhos límpidos estavam pisados de pranto e de insônia.
Achava arrimo na sua crença, e absorvia-se na fantasiosa contemplação da filha,
vestidinha de branco e toucada de rosas, entrando no Paraíso. Recorria
inconscientemente às impressões da infância, ao que havia lido quando possuía
vista, ao que escutara nos sermões, e formava no impalpável um mundo onde bebia
a consolação necessária ao equilíbrio das suas funções vitais. Se as suas
feições conservavam uma rijeza de pedra, como se a alma dele houvera fugido,
era mesmo pela abstração. Fez queimar bastante alfazema, misturando com
incenso.
Deu-lhe, porém, o destino abraçar
o cadáver, num desses arrancos naturais do amor e da loucura. Um acesso,
paroxismo da primitiva dor ilógica e brutal que o fizera injuriar a casa de
Deus. Conhece que a mortalha é de seda.
— Para que tanta riqueza? fez
ele erguendo-se. Quem arranjou isto?
— É um vestido muito simples,
meu pai, explicou a Binga. É saia e casaco... Foi o melhor que eu achei na
ocasião... É um que a Maria das Dores, de Sinhá Dona Fabiana, deu a ela para a
Semana Santa.
— Então é de seda preta?!
Ninguém respondeu.
— Mas eu queria que a minha
filha fosse vestida de Nossa Senhora da Conceição!
Não havia pano azul. Porém ele
dava. Então para que queria aqueles dez mil-réis novinhos? Oh Seu Pedro! O genro
vinha subindo com um pote de água no ombro. O velho repetiu:
— Seu Pedro?!
— Que é lá!
— Temos de ir à cidade.
— Pronto ao seu dispor. Hoje
não vou ao serviço, o patrão que se agüente. Não é de morrer uma pessoa em
minha casa e eu me largar pro trabalho sem duas razões. Não senhor. Inda tenho
um vintém de meu. Pr'onde quer ir vosmecê?
— Vamos, senhor, depois verá.
O Pedro pôs o chapéu e seguiram. A mulher cochichou-lhe no ouvido. O velho resmungando:
— Pois não deviam ver logo que
a minha filha devia ir com o traje da Santíssima Virgem?
A Binga dizia ao pai que não
fosse, que tudo a terra havia de comer, e que ficava muito tarde, que eram dez
horas. Mas o velho fez ouvidos de mercador, e abalou.
Ela possuía o seu relógio de
parede — uma réstia de sol. E mandou um recado ao Batistinha para que empatasse
o velho até de tarde, e apressasse o enterro. Que doidice, meu Deus! Era
impossível a Antônia ir de Nossa Senhora. Ao menos se o padre não a tivesse
ouvido de confissão... Mas era o diabo! O Padre Ricord não consentiria em uma
falsidade semelhante! Quanto mais que ele é quem ia fazer a encomendação...
O padre reservara para si o
privilégio de pronunciar o derradeiro Requiescat
in pace naquele corpo cuja alma ele arrancara s garras do demônio com o Ego te obsolvo.
Dez e meia. Acompanhado pelo
Cação e pelo Batistinha, que subira para a cidade a toda pressa, ao recado da
Binga, o João de Paula entrava na Estrela do Sul, uma casa da Rua da Palma,
onde se vendiam objetos de enterro e passamanes.
— Me dê oito metros de
cetineta branca e três da azul, um diadema de rainha...
— Que é isso de diadema? obtemperou o caixeiro da loja.
— É para a minha filha que
morreu. Vai de Senhora da Conceição, e quero com diadema.
— Está bem, fez o caixeiro, habituado
e mestre no ofício. Isso arranja-se.
— E quero um papel de arrebique. Estão aqui dez mil-réis.
Dez mil-réis não chegavam. O
Batistinha mandou debitar-se pelo resto, e chamou o colega de parte. Fê-lo
vender fazenda preta em vez de branca e azul, porque ao menos, como era
provável, chegarem tard( e a família no propósito de remanchar, serviria para o
luto. Portou-se ant o outro, como se o cego e o Pedro Cação fossem fregueses lá
da case dos muitos parasitários que tem o Visconde, aos quais ele servia de c
cerone.
Quando estavam nisso entrou o Lucas, de guarda-sol aberto e d opa encarnada, pedindo:
— Para o azeite do Santíssimo.
Reconheceu o Batistinha, e
escancarou-lhe um abraço dos seus
— Oh, meu querido Batistinha!
exclamou, arregalando os olhos admirativamente. Há que tempo que o não vejo em
casa da comadre Fabiana!... Como vai essa força? Abatido, hein? Quer enriquecer
da noite pro dia...
E desfez-se no seu habitual e
pegajoso agradamento de filante. N abraço a espinha dorsal do moço quase sofre
uma avaria produzida pel açoite da bolsa endinheirada segura pelas alças de
prata ao gadanho d reito do andador.
— Conheceram-se, mandem botar!
pilheriou o caixeiro.
O Pedro Cação deitou um vintém
na bolsa, cuja grossa casimira e cartate ia esverdeando do cobre; e o Lucas, na pressa e na inesgotável prosa, estendeu-lhe rapidamente para beijar, como quem sacode um bofete com as costas da mão. O lancheiro dobrou
o joelho direito e planto na custodiazinha de prata esculpida, cosicada no pano da semoleira, um ruidoso
beijo da
sua úmida beiçada.
Cortando a fazenda para aviar ao cego, o empregado fez sinal um outro menor, que despachasse o homem.
O pequeno, puxou um dobrão da gaveta, e atirou
ao balcão.
O Lucas arrastou o Batistinha,
de mão no ombro, até a porta. contava-lhe uma porção de coisas "do nosso
povinho". Que a Porcin brigou de uma vez com o Afrodísio, e muscou-se para
o Pará, onde ia dar pancas no meio da galegada. Aquilo tinha uma vidinha
esticada com sernambi! Que o tal de Centu, pelas cartas, acuara na Corte, à
medid dos seus desejos, por empenhos do Visconde, e que a sua vida era troc
pernas. Entrou no mundo com o pé direito! Sempre embirrara com aquel mafamede!
Não lhe dava dois anos que o maluco do desembargador não arrenegasse de tal
genro. Eita! Menos disso... Pois até loguinho. Quei bem a gente, que não custa
dinheiro. E foi-se.
— Ora se custa!
obtemperou o moço de si consigo, limpando r lenço a destra que apertara aquela mão que lhe era moralmente nojen como no físico a de um Lázaro.
E ficou de pé, na soleira,
enquanto o colega arranjava o tal diaderr que o velho exigia. O andador seguiu
rua acima, sem chapéu, e de guarda-sol invariavelmente aberto. Quando o vento
dava, aparecia por baixo da opa o lenço de rapé, quase a sair do bolso de trás.
O homem se mexia presto, e de
porta em porta ia gritando familiarmente:
— Pro azeite do Santíssimo.
Pro azeite do Santíssimo.
Isso por aí além. Os três não tardaram em seguir rua acima. As frontarias do ocidente e o rés-do-chão estavam tomadinhos de sol. Apenas uma estreita umbria contrapunha
débil frescura. Eram atraentes aquelas varandas pintadinhas de verde, rindo no limpo
corolamento
das frentes coroadas de platibandas e encasquetadas de enormes telhados vermelhos. Dentre as casas do Nascente,
aparecia a meia corporatura de árvores da Feira Nova, derramando e gotejando sombras para aqueles lados. E eles iam a atravessar
aquele vaivém de pessoas e de coisas, aquele bulício mercantil nos passeios, no empedramento, à sombra, ao sol, ligeiros uns, devagar
uns certos, dentre tudo desafinando o ruído das carroças
como o moer seixos.
Desenganados de que por
ali não arranjava-se o tal diadema, iam de loja em loja, sempre inutilmente. Uma tolice da imaginação do cego.
No mercado não existia tal bugiganga.
O Batistinha, este a cogitar um pouco, para ver se encontrava nalguma
parte. Corria a vista.
As padieiras, os claros
de parede, ostentavam letreiros, tabuletas e amostras. De uma
Ourivesaria se destacava um gordo relógio
alvo, com ponteiros gigantes, e mais longe balanceava
no ar o encarnadão de uma
bandeira de leiloeiro com o dístico: Leilão hoje. Um mastro de consulado esgueirava para o alto, roçando a parede
de uma esquina...
Desimaginado da sua pretensão,
o cego estacou de repente. Resoluto:
— Home, quer saber de uma
coisa? Vamos embora para casa.
Da Rua da Boa Vista,
desembocando na Feira pelo Sul, via-se pela nesga do arruado, abrir a fervura
do Mercado formigando de povo. Os ruídos eram impelidos ou descaminhados pelas
correntes de ar. E já na praça, presenciava-se um fundo de xixazeiros altos a
servir de sobre-céu à barracaria roxo-terra, verde, pintada a cores
extravagantes e sujas. Do minavam os tons da roupa branca. As árvores se
expandiam em cintilações e em sombras.
Não havia meio de o entreter por mais tempo. Opinião
e pancada sua orçavam
pela mesma segurança e rigidez. Contudo, ao atravessar a Feira, sempre tentou ver se achava por aqueles bazares e armarinhos
variegados, que dizem ter de
tudo. Mas chegava a um e dizia: Aqui tem isto?
— É só o que falta, meu amigo,
respondia o afanoso lojista, no seu aprumo.
Tocou o meio-dia, e soaram sinais por defunto no sino longínquo da Prainha. O vento favorecia
a nitidez das badaladas.
O velho gritou para
o Batistinha.
— Oh Joãozinho, se você vem assim remanchando eu largo-me adiante!
E entrou na bodega
seguinte, explicando o que queria. O vendeiro custou a compreender.
— Quem foi que morreu?
perguntou um polícia que acabava de comprar coral para o correame.
— Quem sabe lá?
— Apois foi a se'Antônia, respondeu a Ângela,
cuja vida
era arrastar o chinelo e virar o copo, — aquela que estava lá em casa.
— E tu tens
casa?
— A casa da
dona que
foi minha senhora.
— Ah! eu conhecia essa menina! Bonitona! exclamou o vendeiro com sentimento. Mas com quem havia casado?
O cego entrou na
conversa:
— Não casou com ninguém, meu
senhor!
O Batistinha e o Pedro ficaram do lado de fora, espiando uma briga de galos.
— Não casou? Não casou? repetiu a cabra, insolentemente, de mãos no quarto. E aqueles
sinais são de donzela? Faz favor de me dizer?
Viu-se o cego
revoltado até os ossos. Nesse ínterim o Batistinha havia sido inspirado por uma feliz lembrança, dizendo
ao Cação:
— Ó Pedro! Agora é que me ocorre! Estamos fazendo uma grande besteira. Admira como
o velho não se lembrou
disto!
—Masoqueé?
— É que você já devia ter ido
adiante com a fazenda!
— Como então?
— A fazenda
é preta! Pode-se fazer a roupa.
— Ai home,
é mesmo!
— Pois vai depressa, que assim o velho ao menos
ficará mais
consolado!
E o Pedro largou, um pé aqui e outro lá.
Assim, quando a Ângela meteu-se
a tagarelar com o vendeiro acerca dos sinais, o Batistinha entrava para dar
parte ao velho da resolução tomada e cumprida.
O cego respondia solenemente à liberta: que aqueles
sinais que
estavam ouvindo não podiam ser por
quem ela dizia...
— Juro que são! interrompeu a
cabra; e beijando os dedos indicadores encruzados: — por esta cruz. Ainda
agorinha vim da casa da Sinhá Fabiana. Um raio me parta nesse momento...
O cego passava por todas as cores. O Batistinha pegou-o pelo braço, e com uma voz engasgada, lhe dizia:
— Que tolice! Está vosmecê a
dar trela a uma cabra tonta!
Foram saindo. A
cabra, arroxeada de despeito, gritou-lhes da
porta:
— Cabra tonta eu sei quem é. Quem sabe se tu não
é o pai da criança,
amarelo de
goiana!
O Batistinha voltou e
desandou-lhe um bofete, que a esparrou na calçada. O dono da venda apitou. Mas
o criminoso desapareceu no meio do povo, que se ajuntara num instante.
A cabra erguendo-se no meio
do círculo formado pelo ajuntamento, berrava:
— Anda dar aqui, miserave! Cabra desgraçado! Namorado sem ventura! Tu me deu é porque foi de treição!
E desfiou uma carretilha de
nomes feios.
Entretanto foram aqueles os únicos sinais que tocaram naquele dia. A dúvida entrou no espírito do cego e começou a urdir a sua teia.
Já o cadáver amortalhado, com
a fazenda da loja, e posto no caixão, que repousava em cima de dois mochos, um
filhinho do Pedro, roendo a sua bolacha, nuzinho, torcendo o cabelo a chupar a
língua, chegou e disse:
— Ih que pano preto!
O cego, entretanto, havia dado um último abraço na filha, com uma idéia de nuvem branca em céus de anil!
Tudo perdido! A dúvida fez a
sua postura. Nasceu a certeza. O cego perdeu o tino. Achou em si uma decepção,
como se o despissem na rua, como se o pegassem num furto, como se todos
olhassem-no com espanto e nojo.
Teve força para guardar
silêncio. E não se alevantou do lugar. Pudera! se a vergonha era toda nele!
Todavia, quando menos pensou, estava de pé, saiu daquele ambiente afogadiço e
mortal, com o coração fechado.
Um pai não insulta sua filha
desonrada e morta. Acabara tudo. Assoberbava-lhe um grito enorme de desespero,
iminente explosão, todo ele era um arrebentar. Não podia pegar em nada, e nem
tocar em nada; largou pelo mato adentro, e andava fugindo ao contacto de tudo.
Cada vez que assentava o pé, tirava-o, com uma sensação horripilante. O queixo
lhe apertava, com uma adstringência suprema. E cada molécula do seu corpo era
uma aflição. O coração tomava-lhe fôlego. E via sempre, sempre, a filha, não
morta e estendida na esteira, mas viva, linda, formosa como a Virgem Santa,
resistindo, resistindo.., para afinal desvendar-se por uma vez. Tapava os
olhos. Enxergasse ele com os da carne! E subia-lhe de dentro um arrocho. Caiu,
debaixo de uma moita de pau-ferro entretecida de maracujá-silvestre, com
vontade de não mais se levantar.
Mandara o Joãozinho um homem
após ele, e ficou para o enterro.
O golpe era profundo, o moço
não tinha alma para assistir à dor daquele pai. A Binga rolava com um ataque, a
dar guinchos na rede. Os circunstantes diziam que isto era doença do flato.
As quatro e meia horas da
tarde assomava o enterro no adro da capelinha. Os carregadores vinham ofegantes
da subida. A largas passadas solenes, calcando o pé, a um tempo, os quatro
homens, de boné, jaqueta e calças de lustrim, com um rijo talabarte onde
enfiavam as pontas dos varais que suportavam o caixão, entraram, pendidos para
trás com o peso. Atroou a cadência de muitas pessoas no assoalho, e reboou a
nave deserta. Os convidados abriram para os lados, depois de cada um armar-se
do círio. Sobre uma pobre eça agaloada nas arestas, esperava o caixão a vinda
do sacerdote, ao meio da igreja. Veio um menino acender as tochas dos quatro
castiçais negros que arrodeavam o féretro. Inda houve momentos de expectativa.
Enfim, apareceu pela porta lateral da capela-mor um rapazote de paletó de
alpaca, alçando uma haste negra e alta, encimada por uma aparência de
guarda-sol fechado, de veludo preto com franjas de retrós amarelo, da ponta do
que uma cruz subia com os seus braços duros e crispados. O rapazinho dobrou o
joelho debaixo da lâmpada, e avançou, com o comprido emblema inclinado ao
ombro, indo postar-se atrás, um pouco afastado, de costas para a saída. Veio o
padre, com o roquete, a estola roxa, o ritual, acompanhado por outro menino que
trazia a caldeirinha de água benta; e como se não estivesse ali pessoa viva,
para ninguém olhou. Fez uma genuflexão à cruz, e colocando-se para um lado, leu
no seu livro, rezou o Pater Noster, aspergiu o caixão, não sei o que fez mais,
e foi-se embora. Os carregadores meteram os varais por debaixo do esquife,
suspenderam, tiraram de sobre a eça, enfiaram as pontas no talabarte, e
saíram, envolvidos no pausado tropel dos convidados pelo tabuado soturno.
Da capela, avistava-se a
paisagem dos sítios da praia, e lá por detrás o mar enorme de um azul fino que
provocava desejos de abeberar. Para o Nascente um teçume de coqueiros, e o
cinzento do caminho interior do Meireles. Para o Poente a cidade, amostrando
como a despontar do chão as torres e as platibandas mais elevadas.
Era longe o Cemitério. O
Batistinha não foi além da Rua da Palma. Entretanto, era até andejo. Padecia, porém,
um esmorecimento geral das forças naquele momento, e quisera ficar só, a ver se
poderia consigo mesmo expandir-se, desabafar-se, prantear, imaginar,
endoidecer, morrer, estalar de febre. Meteu-se no quarto, à Rua das Flores. E
depois de dar algumas ordens ao capataz, que o acompanhava, mal este pôs o pé
na soleira, a porta fechou-se.
IV
Chegou a Semana Santa.
Sexta-feira da Paixão a
Fabiana, de braço dado com o Osório, no rigor do traje preto, seguia para os
atos da Sé. Uma com o manual, outro com o binóculo. Em toda cidade havia o
extraordinário formigar do povaréu pedindo esmola
para o jejum d'hoje, como é costume naquele grande dia. A ausência de
sinos, de cornetas, de chocalhos nas cavalgaduras, de tráfico, de toques de
piano, punha a cidade como edificada em cortiça.
O arrabalde invadia a povoação
confortada. Ao longo das calçadas a plebe em turmas, ia de porta
Por seu lado os mendigos de
profissão tinham ciúmes daquele uso. Com que direito o mundo inteiro se
despejava na rua tirando esmola? A População válida tinha obrigação de
prover-se. À miséria é que cabia o direito de caramunhar sem pejo e pelo amor
de Deus, de passar o dia acocorada no portão da Feira, de lamuriar à saída das
festas de Igreja, de tocaiar o povo nas esquinas das praças, de exigir na porta
de cada um. A mendicidade era um direito divino, como para nós outros o são as
antigas monarquias e as novas repúblicas.
O João de Paula percorria a
cidade como um idiota, banzando. Não trazia
uru para
o bacalhau e o feijão, nem o saco da farinha, da bolacha,
da rapadura e de pão
d'ontem.
O Pedro Cação havia chamado
para casa o casco da família, isto é, a cunhadinha nova, a cunhada viúva com os
três filhos pequenos. O cego havia abandonado de todo os seus. Vivia à toa.
Comia onde havia, dormia onde anoitecia, e tomava lá o seu porrezinho uma vez
por outra, Havia momentos em que era impossível abster-se o mais fugitivo traço
de riso daquela fisionomia sem olhar. Estava-se tornando popularmente
conhecido, porque tocava bem a viola. Era o cego da Viola. Aparecia à tarde,
muitas vezes, de gravata, colete, e paletó servidos, que lhe davam; e ao
amanhecer tudo era em lama, se chovia, ou poeira e rasgões. Padecia ataques de
fúria, ou antes, dava-se a isso, quando estava na bebedeira.
O Osório,ao pôr o pé na soleira da Sé, notou-o por entre os soldados que estavam aí
montando guarda. A soldadesca
cercava-o e tirava
prosa. Fazia boas gaiatadas,
que nem uma criança ou que nem um doido, torcia o beiço, batia com os braços em ar de galo que vai cantar, sapateava, contrafazia-se em trejeitos e mogangos, o que lhe rendia sempre
alguns dobrões para a sacola.
Havia naquilo um bom divertimento
para a troça das ruas.
Um
pano enorme, de casimira
cor das opas do Santíssimo, com um sagrado emblema cosicado no meio, velava a abertura da grande porta da entrada, encaixalhada em fortes punhais de pedra lioz. Fabiana despregou-se do braço do marido para poderem romper. Logo adiante da entrada o guarda-vento, envernizado a pincel com roxo-terra, tapava a vista do interior, de alto a baixo. Meteram a mão na pia ostrada à parede, e persignaram-se. O Batistério da direita com o seu Santo Antônio no nicho, estava escancarado para facilitar o trânsito. O casal Góis de Oliveira foi abrindo por entre os homens, numa atmosfera ruim, escurecida pelas colunas atarraxadas que sustentam o coro e pelas esguias, em ordem decrescente, onde repousam os planos escarlavados do coreto. Da nave direita, tomada pelos homens,
foram tomar ao fundo a grande escadaria
em cotovelo que leva à ordem
superior das varandas. No último
degrau, vieram abrir o cadeado,
e a grade deu
franquia a ambos.
A Fabiana meteu a chave na portinhola do seu compartimento, e evidenciou-se o grande espetáculo da igreja cheia. De defronte, e de lá debaixo, do coreto, olhavam para ver quem era. O Osório, ao lado da mulher,que ajoelhava com as mãos no peitoril, corria o binóculo, e fez um ar de satisfação. Descobrira o boticário, ali vizinho:
— Passa para cá, Fernandes.
— Ora, espera.
Ambos deixaram aquela espécie
de camarote de teatro.
— Eu estava para aí,
doido por uma companhia; queria fumar.
— Fumar na Igreja?
— Devia ser permitido, como o teu rapé.
— Mas, fuma-se na torre.
— Pois vamos lá.
Atravessaram o corredor, e, ao
pé do coro, puseram-se a caminho escada acima.
— É íngreme este caracol!
— Olha que aqui podemos
pôr o chapéu na cabeça.
De quando em vez, por uma clarabóia,
aparecia-lhes um jato de cidade.
Por uma de Leste, avistava-se longamente uma tira de morros, como um gigante alvo e nu estirado entre o mar e o verde empoado da planície.
— Oh! Fernandes, aquilo é realmente insuportável: uma senhora não
pode vir cá: repara estes desenhos
pela parede! Que indecência imunda! Bonitos palavreados,
sim senhor.
Na verdade o casamento estava
garatujado a carvão. Eram caretas, nomes feios, e esboços imorais de uma
torpeza crassa.
— Sabe quem faz isto, Seu Osório? São os nossos lindos filhos. Agora não admira. Li eu algures que a infância reflete a sociedade, e que pelo cachorro da casa, e pelos pequenos,
pode-se
concluir o que sejam
os donos. Os meninos borram e quebram as obras de pedra e cal, e vo-cós as do ideal, o Direito, a Lei, a Religião, a Política...
Eram chegados ao meio do caminho. Havia aí um andar
completo. — Homem, deixe-me lá, que é feito do Centu?
— Ai que aquilo está um pateta!
— Ora cá está a sua última
carta. Recebia-a esta noite, depois de assistir ao Lava-pés. Ouve lá como isto
ainda é bisonho.
A carta dizia uma dúzia de puerícias de pai, anunciando que a Mariinha tivera o seu bom sucesso. Perdidinho em amores pelo pequerrucho! No fim, a Manriinha mandava um recado para a mamãe não esquecer as rendas e o labirinto para a camisa do batizado, e que estava muito bom o doce de caju e os queijos que foram. Pedia que visse se era possível mandar um caixote com carne do sertão e rapadura batida.
— E como vais tu com o Visconde?
— Homem... titubeou o Desembargador.
Toma uma pitadinha deste simonte que é excelente...
— Eu uso lá de porcarias!...
Mas, dizem-me que vocês estão de ponta...
— Qual! Comigo ele não se
incompatibiliza. Sou desembargador! O que dizem é que vais abandonar a
política.
— Eu? Agora que os conheço? Absolutamente.
— Os conheces? É mais fácil
apertar muçu dentro da água do que proferir uma palavra segura sobre o caráter
de certa gente! — Que bobo! A coisa é uma pessoa conduzir-se com as mulheres
ilícitas. Os galardoados são sempre os mais remissos, que sabem negar o corpo,
e dar a pancada a tempo, porque os chefes estão seguros do serviço dos
dedicados ao que der e vier. Eu já aprendi a forçar a porta da travessa dos
cérebros e dos corações, mesmo com o teu chefe.
— Cá a minha vontade era
formar o partido republicano.
— Deus o livre, Deus livre o partido republicano o nascer desta degeneração
mercantil!
Se eles enxergassem com os olhos da torre veriam a cidade, pairando pequenina
lá embaixo, como o Gulliver diante do Liliput ou de
Blefuscu. Os sinos, em seus nichos,
estavam com os badalos amarrados, e o Osório batendo na beira do grande com o nó do dedo, fez-se na abóbada da torre uma
ressonância prolongada.
Largaram a parolar
sobre a
terra que se aplainava por aqueles horizontes
adentro. Via-se, nas ruas que o olhar apanhava, um formigamento de pigmeus.
— Este país não será coisa nenhuma enquanto a cidade não capitular
com a roça, formulava o Fernandes. O aumento da capital é proporcional ao despovoamento e abandono
do interior! Isto assim vai à gaita!
O céu azul estendia o seu toldo imenso. E os dois amigos entraram a discutir em voz alta, naquele isolamento de torre. Não se podia
perceber o panorama senão
por nesgas, pelas fenestras dos sinos. Lobrigavam-se indícios da vila de Mecejana, a povoação
de
Arronches, a matriz de Soure, pombinha alva caída nos matos, cerca de três léguas de circuito. O mar, esse era a perder de vista, uma visão gigantesca e indefinível.
O Osório estava confederativo.
O Fernandes, porém, mais às direitas, absolutista. Demonstrava o boticário que
o rei absoluto precisa do braço do povo, contra as cabeças dos poderosos, e
testemunhava com a História. O outro alevantava teorias de liberdade.
— A liberdade faz isto que você está vendo, seu desembargador, estirava o Fernandes o beiço indicando a cidade. Esta província
ser, da
Corte, uma afilhada reles, em vez de uma filha querida. A liberdade faz é consagrar esses parvenus em morubixabas, sem flecha e sem
tacape em trégua permanente com os dois maiores inimigos desta Província, que são a Natureza e a Corte. Você está vendo aquela empena?... Ali, homem! No campo da Amélia.
Aquela empena com andaimes... É uma casa que estou construindo, à custa de rigorosa
parcimônia. O fim dela será cair em mãos da oligarquia dinheirosa. Quem edifica é o pequeno burguês. O grande possui a favila do capital. Não constrói,
nem planta.
Abocanha depois com a hipoteca.
— Homem, isto é muita
afoiteza, seu Fernandes! E que serviço útil
presta você com a sua farmácia?
— Concordo, é um meio de
exploração, como o seu.
E de paradoxo em paradoxo, um
chegou ao fim do cigarro, queteve de reacender mais de uma vez, e o outro a
fungar umas três pitadas atroantes.
O Fernandes, riscando um
fósforo, lembrou-se do cálculo que fizera, das ripas que havia de comprar para
a coberta da casa.
— Hein, homem? Estará certo?
Deixa-me ver... De dez em dez polegadas, um caibro... são cinqüenta palmos...
cinco vezes oito...
E com a pontinha
carbonizada do palito do fósforo escreveu uns algarismos na parede.
Desceram devagarinho, porque
as escadas eram muito
Realmente, obra de sete e
meia, apontou o séquito ao fim da rua.
Provocava uma sensação
peregrina aquele funeral por defunto su-positivo. A cidade profundava ainda
mais o religioso silêncio do dia. Uma cruz negra abria o saimento, com a nívea
toalha que cingira os rins do Morto, de um braço a outro estendida. Vinham
pelas coxias duas intérminas fieiras de irmandades, de vela acesa. O menino da
Verônica espilongava o seu tiple, ao ruído seco e horripilante da matraca, e
três meninos mais, também metidos em filós negros, representando as santas
mulheres, respondiam. Ehu, ehu, Salvator noster. O andor da Mãe
Dolorosa, o pálio solene e munificente, o Bispo com a fronte embuçada de luto,
os sacerdotes cantando, o mover das velas pelo manso, o frio luzir das
baionetas da guarda de honra, o pulsar gemente da marcha fúnebre, o mulherio,
e, atrás de tudo, a tona enorme de cabeças de homens, a descoberto, fronte
baixa, imbuíam estranho recolhimento e compunção.
O grupo encorujado nos balandraus
da Misericórdia, com o pálio roxo, franjado de ouro, pairando sobre o esquife de rendilhadas
de jacarandá através dos quais, a luz dos lampiões
sagrados, se percebia no transparente esfumilho do filó preto, o alvo
corpo nu
de Jesus morto, era de uma arte perfeita, e espalhava por onde ia passando a Procissão
um vago e
plácido sentir de boa morte.
Recolhida a procissão, a
Fabiana, que ficara na Igreja, ouvia, de uma das suas varandas, o chamado
sermão da Soledade, em que o pregador em certo ponto, desenrola ao auditório
soluçante o Sudário sangrento que serviu ao corpo de Jesus. Fabiana chorou o
seu tanto, enxugou o nariz com o lenço bordado, tossicou, escarrou,
desobstruiu-se de manso. E daí tomou o seu carro e foi embora.
Seguiram se os ruídos
valpurgianos costumeiros daquela noite. A tradição e o costume populares iam
cumprir-se na rua, como no templo, a rubrica. Aos devotos estavam suspensos os
gozos da carne, parado o riso, fazia-se treva na alma. No ripanço anônimo da
plebe e rapazio ia entrar o diabolismo, os tumultos, a orgia, a inferneira da
grande pândega do Judas. O arrabalde não dormia. O sítio do Bispo, os quintais
da Rua de Baixo, as chácaras dos arredores, eram assaltados pela troça em grupos,
de calça arregaçada, facão em punho, e chapéu nos olhos. A noite, como no
oceano o ruído das vagas, vibrava de gritaria, de apitos, de golpes de
machado. Em vão a pequena polícia da cidade, abugalhava no escuro dos bairros.
Era um conluio de gente de gravata limpa, disfarçada em canalha, que
atravessava uma rua furtando um judas, uma malta de aracatienses, na serração
da velha, fazendo uma algazarra de arrepiar cabelo, na porta de algum
octogenário, a serrar num barril, e convidá-lo "para morrer, que já era
tempo"; uma noite selvagem, tapuia, apreciadíssima. Serraram o coitado do
João de Paula, e o seu ex-futuro genro estava no meio. O cego idiota, mesmo
receando isso, que é uma noite aquela dos velhos dormirem apavorados,
albergara-se em casa de um padre idoso, venerando e bonachão. Mas foi baldado.
A uma hora da madrugada bateu aí a matilha, e glosou por todos os modos a
iminência da morte para o velho, com cantigas e duetos acompanhando a
azucrinação do serrote cego no corpo ressoante do barril. Desafinado e tredo
vaivém. O João de Paula conheceu a voz do Batistinha.
— Ai como demudas, roda da
fortuna!
Quando Antônia era
viva, que
o Batistinha vivia fascinado, agradava
até ao cachorrinho da palhoça do cego, a todos queria,
às irmãs da Antônia, às sobrinhas da Antônia, a tudo que cheirava a Antônia.
— O mundo vira e revira mesmo
como aquele barril que eles serram!
Por fim o padre-mestre
entreabriu a rótula, botou a cabeça, e amostrando
à luz do gás exterior a sua calva salpicada de cãs,
levantou os óculos, e falou para a motinada:
— Oh! ladrões, como é que vocês insultam desse modo a gente velha? Que é da educação cristã que receberam?
Isso
foi num abrir e fechar de olhos. O bando, ao clarear da rótula, não esperou que aí aparecesse alguém, e debandou a toda carreira, com barris e tudo, a desaparecer na esquina soltando uma gargalhada sufocada e garota.
Voltaram
uma hora depois, e então
o padre, a conselho do mendigo, carregou a espingarda, e o outro abrindo, com tato de cego, uma brechinha do postigo, o reverendo papocou-lhes um tiro de sal. Feriu o Batistinha no ombro. Este soltou um grito de
— Assassino!
E dispararam então numa
tropelia de gado espantado, sacudidos longe pelo medo.
— Assassino és tu e o teu
patrão! gritou o cego, armado de bastão, pulando da porta na calçada, saltando
— Anda infame! Cachorro, ladrão, ladrão! Anda com todos
os Viscondes de São Galo!
Aquela
palavra explosiva ladrão, ele a pronunciava com uma dúzia de aa e rr. A polícia acudiu, tarde.
Pela manhã faltavam galinhas e um peru no poleiro
do padre; A imprensa
e meio mundo levaram a mal terem serrado o padre velho, sem notar que o atentado fora feito
antes ao pobre cego e não a Sua Reverendíssima. Assim, as simpatias convergiram para o dono da casa, e o mendigo,
claro dia,
saiu a continuar na sua missão,
com a
viola debaixo do braço para tanger o rasgado logo ao
depois da
aleluia.
Os dois amigos voltaram aos atos da Sé, glosando as diferentes notícias dos incidentes da noite velha, ora
rindo, ora glosando censuras.
Ao
romper do dia a Catedral
e matriz estava
repleta. À porta, do lado
exterior, o Bispo
diocesano com os padres
paramentados, irmandades,
autoridades, etc. proferia
a benção do Fogo novo, em que acendia-se o enorme círio pascal, conduzido por um seminarista. O patamar estava cheio de gente, e os mendigos clamavam a esmola pelo amor de Deus. Desse belveder apanhava-se quase um círculo do matutino panorama. Não apontava ainda o corpo do sol. O dia, porém, clareava em
diversos pontos o espetáculo
dos Judas enforcados.
Ao longo da Rua das
Flores distinguia-se dois, fora os que, na distância,
confundiam-se nos matos
dos sítios em que os metiam, para além do Campo da Amélia.
O Cerimonial entrou na Igreja. Iam agora benzer
a água. Os dois, porém,
preferiram ficar tomando fresco do lado de fora, porque já conheciam
muito aquilo, e a curiosidade movia-os antes para apreciar o mo vimento exterior da original manhã
de sábado de Aleluia.
Na Apertada Hora, uma ladeira de pó escuro ao lado sul da Catedral, havia três Judas, isto antes de morrer o aclive na esplanada
do Outeiro. Nesta, à porta de uma taverna, bem edificado e uniforme casarão da marca
da
Câmara, reverdecia um pompudo sítio, de cujo
meio esgueirava robusta força, da qual o braço esquálido suspendia um Judas, macho, e um Judas, fêmea. O chamado sítio de Judas era uma possível quantidade de bananeiras, de canas com
as lindas palhas verdes, de palmas de coqueiros, a mor
das vezes entrançadas e fazendo
arcada, de
galhos da mangueira, de goiabeira,
e de toda espécie, obtidos no assalto noturno feito ao quintais, chácaras e sítios, representando, talvez, o horto em que se enforcou
provavelmente
o amaldiçoado Iscariotes. Por todos os ângulos
da visão ocular
encontrava-se, perto ou distante, o cadáver pendente de um boneco enforcado, enfarpelado em paletó e gravata, pode ser que para exemplo ao Iscariotes do eterno Cristo que renasce
diariamente nas pessoas dos
mártires da vida, como
obtemperou o Fernandes. Para a prolongada subida do Outeiro da Prainha, dónde o
visionário olho do sol chamejante ainda uma vez subia a derramar a sua
gargalhada e sua miríade candente de farpas, a luz fimbriava em silhuetas um
Judas de fraque com a cara sumida num chapéu alto, sozinho no fundo azul do
céu. Debaixo esgaIhavam ateiras em tòrno de uma alegre choupana. Perto do
Palácio do Bispo, quase na frente, por trás do paredão que serve de assento a
Sé, havia um, cuja máscara era uma cara de ancião, com bigode e pera,
chapéu-do-chile, sobrecasaca de pano fino, botinas de cordavão, calças de
casimira cinzenta, e luvas de pelica, os dedos muito duros, para fora. O vento
agitava-os para um lado e para o outro. Ao espetáculo insistente dos bonecos
enforcados, apoderava-se insidiosamente do Osório a idéia de enforcados de
verdade, em carne e osso.
Foi tempo que rompeu a
Aleluia, com um grande gozo para os corações oprimidos. Foram, ato contínuo,
atassalhados os Judas pela molequeira desenfreada. Só se ouviu, então,
algazarra de repicaria em todas as igrejas, foguetaria no ar, salvas da
fortaleza, tiros de bomba arrebentando as entranhas dos bonecos, um atroamento
enorme e prolongado que parecia agitar até a tolda do firmamento. Estremecera a
lousa do sepulcro. Mais nada. Fumegava de vários pontos o incêndio dos
Iscariotes, e turmas de moleques rolavam pelo calçamento, de cacete em punho,
batendo nos restos esmolambados do suicida em efígie.
Apareceu então por toda parte
o número do Meirinho, folha picaresca, trazendo o testamento, ansiosamente
esperado. No adro da Sé distribuíram-se alguns números, e o Osório muniu-se de
um. O testamento do Judas era em verso, como de costume, deixando uma herança
para cada pessoa geralmente conhecida na cidade, e em estilo mordaz, brejeiro
e linguarudo. Logo que o Osório pegou no periódico, foi intentando para o que a
musa popular dizia de sua pessoa. Botou os óculos, depois de limpá-los no
lenço, e acostaram-se um do outro, lendo à meia voz, e estribilhando com
gargalhadas e comentários cada tirada:
Deixo pra hora da morte Do
Afrodisio carnaúba
A minha forca bem forte,
Para que a seu tempo suba;
Porque em artes de dinheiro
Eu Judas não fui primeiro
E nem ele o derradeiro.
— Ah, ah, ah!
— Magnífico!
— Esplêndido!
O poeta em seguida lançava a
seguinte quadra com pretensões à "palmatória do mundo":
Para o leão que na jaula
Fez a donzela em destroços
Ficam da Antônia de Paula
Debaixo do chão os ossos.
— Continua, que isto
saboreia-se mais que paulada pascal!
Para não haver privança
(Neste país de vivório)
De justiça, ao meu Osório
Fica-lhe a minha balança.
— Ai que esta foi má, hein senhor
desembargador?!
O homem riu:
— Meu amigo, é para todos!
— A cada um toca o seu
quinhão!
— Mas isto assim indigno! Caramba!
O órgão plebeu e frascário ia
de chouto com a sua bagagem de versaria, de léria, de chanças, com o direito e
regalias dos escravos no dia das Saturnais. Do boticário Fernandes, dizia que à
custa de água do pote e casca de pau, que se encontra a valer no Pajeú e na
Aldeota, agenciara do compadre Zé Povinho.
"Um monte de ouro
alto como os Andes."
— Nisto é que dão as
liberdades, Seu Osório! batia ele com o papel, desapontado.
— Homem, não se atrepe, que
isso querem eles. A quem não tem rabo de palha, prega-se, é o que dizem os nossos
amigos. Muito pior do que isso tenho eu lido na imprensa séria. Ora se! Um
horror! De meter à gente uns rompantes, de agarrar na rua um diabo e cosê-lo na
ponta de uma faca. O bacamarte traiçoeiro de detrás das árvores, do sertão,
metamorfoseou-se, mercê do civilizamento, nos duetos, verrinas e diatribes da
imprensa limpa da capital. Não faça caso. A plebe, em nos atacando, está no
gozo de um direito seu.
E daí, desceram o terraço da
Sé, indo a escutar o João de Paula, na embocadura da Apertada Hora, desandando
a violinha, numa taverna de soldados, onde há pouco a turba havia queimado um
calunga.
Consumiu-se mais um mês. As
chuvadas haviam empatado a obra do Fernandes, por modos que só agora houve de
levantar a cumeeira. Estava ele na sua botica, um tanto nos seus azougues, para
dentro e para fora, aviando os fregueses, empestado pelo humor negro das
caseiras. Uma quizila, quando o Fernandes estava com as ditas. Parecia-lhe ser
todo intestinos, e o asco subia-lhe até aos escaninhos das idéias. Helênea
beleza se lhe desvendando ali, Aspásia entre os juizes, ele a con. denaria
ainda assim, e tamanhas incongruências baforavam-lhe as almorreimas pelo
espírito acima!
Se não fora a boa fama
das suas drogas e preparados,
ninguém se
atreveria a pôr-lhe o pé na soleira. Além disso, mercava com unhas de fome. Este último
distintivo deu azo até a anedota de que um roceiro, indo comprar-lhe um purgante de óleo de rícino, pediu
que botasse maiorzinho, que era para gente pobre; ao que o farmacopola respondeu que aquilo não era leite batizado, se queria com lavagem, era ir ao Chico Focinho, que vendia
azeite de
carrapato muito bom para purgar animais.
Agora, ali mesmo, um menino
pedira um vomitório de puaia, e como não trouxesse o dinheiro inteirado, ele
despachou-o:
— Não há de venda.
A sua boa estrela, porém, fez
o Osório ir atravessando a praça. Ele deu fé e gritou:
— Desembargador!
O magistrado olhou em torno de si, procurando donde viera o chamado. A um segundo
apelo fez-se
para lá. Tão depressa entrava o Osório na botica,
o
Fernandes vinha de dentro enfiando o paletó, com o chapéu
atirado à
cabeça. Deu algumas ordens ao
caixeiro, e largaram ambos cidade adentro.
— Quero mostrar-te a obra como
vai. Há de haver por lá hoje a sua pinga e, algum trompaço de mais.
— É não lhes dar bebida.
— Como? se é uso! É de mau
agouro cumeeira sem festa. — Bem sei. Arrotaste contra as credulidades.
— Tolo não sou eu.
Hora sem sombra, a calçada
exalava um calorzinho já, e parecia tinir sobre os tacões. O Passeio
Público aparecia lá ao fim da rua, com a sua massa de árvores barreada pela fita rósea do gradil.
Dele, estendia-se
o céu azul, com umas sardas de neve altíssima.
A safra atulhava a cidade. Os cargueiros
gritavam para as cavalgaduras, a desviar dos combustores no dobrar das ruas, e com estalos de chiqueirador sustentavam o brio da tropa. Nos armazéns
do São Galo estavam a baixo
comboios, e no de açúcar, com a frente roxo-terra e telhado
enegrecido, tudo parecia lubrificado com melaço, as cangalhas e o pêlo
das bestas, o lombo dos trabalhadores, o chão, o pé da parede. O Batistinha, de roupa engomada e lápis em punho
mandava recolher as sacas, e tomava nota das
pesações.
Brilhava, como dorso de enormes lampreias, o meio corpo a nu dos carregadores.
O seu Lucas, de opa verde,
atravessava aquele atravancamento, pedindo numa toada só:
— Para a missa das almas. Para
a missa das almas.
Avistando o Desembargador,
correu-lhe ao encontro, e desancou-o com a sua prosa
familiar e interminável. O Osório não podendo evitá-lo, fez sinal ao Fernandes, e descartaram-se breve do importuno. Continuaram.
E o Lucas
prosseguiu no giro naturalíssimo da sua índole de mosca.
Uns foguetes subiam quase invisíveis no azul, e estalavam lá
em cima uma brasa que se apagava logo, deixando uma fumacinha. A soalheira tremia na vista.
Com pouco, os dois pisavam
no campo
da Amélia, continuação da chapada em que assenta
meia Fortaleza.
Uma risca de mar aparecia em guardapisa ao rés do terreno, e os materiais do Caminho
de Ferro,
com a Estação, atravancavam para aí. Na face poente, o Cemitério Velho ale vantava um belo horto de casuarinas, ao
sopé das areias ingentes do morro do Croatá. E a vista se perdia por
matos e casebres, terras adentro.
Ao longe,
no verde, o Cemitério Novo, com ar de chácara.
— Lá está a obra,
aquelas duas empenas naquele terreno devoluto. Aqui para o Nascente.
— Estás construindo casa do
lado do sol!
— Para família é das
melhores. São vinte mil-réis certinhos por mês. Uma sala, duas camarinhas, sala de jantar, cozinha, despensa e alpendre. Corredor lavado. Quintal de meio quarteirão. Telha vã, e pavimento de tijolo.
Via-se logo os dois enormes panos paralelos de alvenaria em preto, com a frente e os andaimes,
com a viga mestra, e tudo
embandeirado. No meio da rua estendiam-se
compridas linhas de carnaúba, e amontoava-se tijolo branco, e carradas de barro.
O serviço estava parado, com a pagodeira. Três portas de frente. No interior,
o sol, pendido para o lado,
projetava sombra a meio na areia escura, salpicada de bandas de tijolo, e embaraçada
de ripas,
e cordas de poita. Aí os pedreiros, serventes e carpinas faziam correr o copo e merendavam pão,
sardinhas, queijo e goiabada, tudo comprado na venda próxima. Chegava o Fernandes, e a gritar:
— Ó seu mestre, isto vai ou não vai? Acabem com essa borracheira, e linhas arriba! Olhem o inverno que me arrasa
tudo.
E dando com uns milheiros de
telha arrumadinhos ao sopé da parede:
— Estas chegarão? Amanhã vem o resto dos caibros, sem
falta nenhuma. Comprei ripas no Aracati, de carnaúba madura, que acha?
O Fernandes tinha um medo, quando cuidava que a chuva ia derrubar-lhe
os
oitōes. O mestre pedreiro,
afastado do bródio, examinava as linhas que haviam
de subir,
e combinava com os dois carpinas.
— O dia hoje está muito aziago! bradou o amassador de barro,
erguendo-se
do conluio, a palitar os dentes
com um fósforo. Quem ouve ler o diabo daquele
jornal, não sei como tem ainda coragem para trabalhar
num dia destes!
Referia-se a uma notícia que a
Oportunidade trazia, de uma morte no
Caminho de Ferro, ali mesmo naquela praça.
— É por isto que eles não estão alegres como eu esperava! explicou a si mesmo o Osório, que estivera a espiar para uns fundos dos quintais.
De fato, aquela desgraça era o escândalo do dia. O Osório, que não havia pegado nas folhas,
pediu uma que um
pedreiro estava a soletrar.
E largou a ler:
"HORRENDO
ASSASSINATO!"
"Esta noite, estando esta folha já em paginação, espalhou-se o boato de que o trem de carga chegado s onze horas, quando devia chegar s nove, matou friamente a um homem de cor branca, já perto da Estação. Julgando exagerado o boato, pois estávamos longe de acreditar em tanta perversidade
e malvadeza, mandamos
indagar, colher as devidas
informações das autoridades competentes.
"Desgraçadamente
a verdade ainda era mais crua! Um crime espantoso! Estamos dispostos a profligar até a última! É preciso que o governo tome sérias providências, do contrário, daqui a pouco, os trens sairão dos seus trilhos e entrarão pela cidade esmagando aos cidadãos inermes e às criancinhas
inocentes, a mulheres
e velhos.
"A vítima chamava-se João de tal. Era cego,
vejam bem, era cego! Horresco referens... Vivia da caridade pública, e andava por uns sessenta e tantos anos de idade. Julga-se que tivesse errado o caminho, pois ele gabava-se de andar só, quando o trem fatal veio cortar-lhe para nunca mais as doçuras da existência! Chegou a gritar, sentindo-se perseguido pelo trem, e isso com tempo de parar-se ainda o monstro de ferro. Naquele ponto a linha faz uma grande curva, de modo que o infeliz julgando que o trem vinha era em linha reta,
tomava para o lado
e caía justamente no caminho da máquina sem entranhas! O cadáver foi arremessado a uns montes de madeira, em mísero
estado de deformação!
"A autópsia, ou antes o
corpo de delito, foi feito, sendo o cadáver recolhido à Santa Casa, pelos Drs.
Ambrósio e Meneses. Amanhã dá-lo-emos por extenso, se a polícia não julgar que
o governo tem interesse em ocultar essa confissão tácita da sua inépcia. O
maquinista fugiu. Daqui a pouco foge até a Companhia inteira com os materiais e
a Estação.
O infeliz João trajava camisa
de algodãozinho, muito suja, calça preta, muito puída e enlameada, e um velho
sobrecasaco. Não vestia ceroula, tinha um pé calçado em uma botina rota; o
outro andava talvez num chinelo, que não se encontrou. O chapéu não foi
encontrado também. No uru conduzia meia libra de bacalhau e um embrulho de
farinha, e meia pataca no bolso da calça, com um vintém de fumo de Baependi.
Era estimadíssimo nesta cidade, de índole folgazã, e dizem que tocava muito bem
viola e cantava lundus e toadas do sertão.
"Isto não se comenta!
Isto não se comenta! Que fará o governo? Quosque
tandem?"
— E não se comenta mesmo!
suspirava o Osório, numa coita instantânea. O Fernandes, apreensivo por inteiro
com a sua obra, levou o caso à conta dos lucros e perdas no razão da vida.
— São acontecimentos infinitésimos
perante o Grande Todo.
Deixe lá isso, e ande
ver como as linhas vão subir num pronto para ir tomar o seus lugares na coberta. Esse pobre mendigo foi eliminado da equação dos vivos, porque assim devia ser. E o mais não passa de cavilação da sua parte, de jogo do seu jornal, ou de egoísmo de nós todos. Cada um brada contra o desastre, não com
pesar pelo cego, sim por medo de que a si aconteça o mesmo!
O mestre da obra largara a
bater boca açulando os operários para o serviço.
— Acabem com isso! Eu quero
estas linhas todas em riba, hoje mesmo!
E era ralhos a torto e a
direito, como um antigo mestre-escola. De vez em quando borbotava-lhe uma
graça, de que os operários riam, para ser-lhe agradável, porque sempre se deve
achar bom aquilo que vem do alto.
— Tenham paciência. O
inverno aí vem, se a gente não aproveitar a estiada, lá se vai o dinheiro do
homem. Este cá não é ladrão. Se não fosse pro mó disso, não se trabalhava mais
hoje. Mas não hai jeito. Eis! Linhas arriba! Vamos, senhores! Toca!
Breve, roçagando ao fio das
três carnaúbas inclinadas do meio da rua para o cimo da frente, subiam, linha
por linha. Deitavam uma viga ao longo do sopé daquelas três que estabeleciam o
plano inclinado, e sungavam-na, por cordas. Um íntimo prazerzinho para o
Fernandes, que acompanhava com a vista aos menores movimentos, e dava apartes e
votos.
— Puxa mais da esquerda!
— Ó seu mestre, porque razão
não vai logo distribuindo as linhas pelos pontos onde devem ficar?
O outro olhava para o Caminho de Ferro, ali defronte, onde havia expirado o seu compadre João. Assim morreu o pai da sua afilhada Antônia, aos quais ele não foi bom em coisa nenhuma, apesar do seu bom coração.
Agora, se o cego não sucumbira, havia de fazer-lhe muitos benefícios.
E delineava se ante o padrinho
a imagem da sua loura afilhada. E reconstruiu se um passado inteiro.
Abalavam-no as notas dramáticas de todo aquele episódio extinto. Mas como o
demo as tece! Como é que se assiste ao crescimento e educação de uma rapariga,
se a vê cair, apodrecer, esvair no pó, e é-se impassível? Como é que só agora
ele via abugalhava, com uma inspirada e dolorida lucidez de poeta?
Ali pertinho, sobre os trilhos
ainda manchados de sangue fresco erigia-se um castelo de recordações, que
derruíam num sopro. A Antônia caminhava para ele Osório, sem jamais chegar, a
pedir-lhe a benção, com aquelas feições coradas e aquele andar faceiro que lhe
eram naturais em vida, e o pai vagabundeava lá por longe com o seu uru e o seu
bordão. A memória do padrinho se desdobrava e ia representando coisinhas da
Antônia, umas cenas domésticas muito á toa, que entretanto iluminava-se
acentuadamente na fantasmagoria do ideoso, um cacoete porque a repreendiam,
uma ação má que ela perpetrasse, um elogio que mereceu, e o todo aparecia lógico,
explicado, simpático, pela unidade das impressões. Percorriam a rede sensória
do Desembargador os mesmos impulsos inenarráveis que diante do esquife do
Senhor Morto, na Procissão do Enterro.
O mormaço intenseava, porém. O
sol batia mesmo de chapa. Seguro de que o serviço ia a bom correr, o Fernandes
convidou-o a retirarem, que fossem jantar com ele, que há muito não lhe dava
essa maçada.
— Mas é preciso prevenir em casa
a minha mulher.
— Passamos por lá.
E fizeram torna-viagem.
— Ohoi, uhoi! cantavam
compassadamente os operários, trepados no arcabouço de alvenaria a içar as
vigas, manobrando, a puxar por enormes cordas de poita. Era uma interjeição,
ohoi, e o madeiro galgar mais uma braçada acima.
O Osório e o Fernandes
encontraram outra vez o Seu Lucas, zumbindo pela Rua Formosa, de porta em
porta:
— Para a missa das almas. Para
a missa das almas.
Abaixo do cordão das calçadas
se deitava a areia frouxa, ao longo das coxias, misturada de cisco e de folhas das
árvores das praças. O Lucas, por um triz, não foi apanhado, ao atravessar a
rua, por uma carroça escoteira a disparada, cujo condutor, um Apolo no seu
carro de fogo, de pé, roupas ao vento, estalava o relho no pêlo do burro
galopante. O calçamento coleava abaulado embutido largamente por entre as
casarias flamejantes. As ruas trepidavam, rasas de calor, e delas via-se
pedaços abaixados, assim como seios de rede, onde modorrasse um farniente equatorial.
Havia uma salientação geral sob o grande olho do sol, e a vista humana trazia
velozmente os mais imperceptíveis longes. O vento corria no encalce da luz,
adjutoriando-a no hino das coisas; levantava o pó, aba-tia o, limpava aquilo
que ele mesmo inquinara; disparava de cabelo solto e mangas desabotoadas,
apertava contra as vestimentas, esculpia fore s femininas teimando contra as
coisas, e dispersava alegremente pelos arrabaldes; cujos toques se avistavam
pregadinhos no céu, que sorria longe na sua calma antiga.
Da fita das cimalhas esguinchavam os serpentões,
que parecia engolirem o ar
quente, aspirando com as dentaduras
longamente a escâncaras.
As platibandas realçavam
coroando linhas inteiras de habitações térreas e agrupações de sobrados. Os beirais
se empinavam, como derramando goteiras de luz, as telhas embeiçadinhas em
farto aconchego.
O deslumbramento se identificava com as pessoas.
— Arre! bradava o
Fernandes, que a gente parece ter sol dentro de si mesmo!
Em alvos roupões, transitavam
nuvens para o frio clima das serras. Um vôo de pombozinhos, batendo
compassadamente no fresco azul, ia e vinha, amostrando ora o peito ora o leme
da cauda, agitando sempre, quais bracinhos de neve, as brancas asas.
Com a sua opa verde,
o Lucas inda sussurava como
uma enorme vareja:
— Para a missa das almas. Para
a missa das almas.
Verdade, verdade, verdade,
aqueles alegrões de cego, a truanear pela Feira, pelas tavernas, pelas
esquinas, de viola, eram antes fogachos de uma candeia que se extinguia. Não
eram vitalidade, sim irritação. Não existir, mas estertorar. Por isso é que se
lhe não podiam despegar da carranca, as voadas de um riso claro, como umas
asas de garça. Naquele frontispício os caracteres do Lasciate ogni speranza sulcavam chamejantes da
febre derradeira. Planeta que desnorteasse, e entrasse em cambalhotas, a
confundir no plano do equador a linha dos pólos em doidos movimentos, aquele
crânio gelava e incandescia, negregava e fulminava. E como o rojão de artifício
havia rebumbar, deixando após si o silêncio do nada. Mola impendente
equilibrada no gume de um tabique a prumo, ao menor sussurro de uma pancada,
despenharia, como desabam as barreiras de uma escavação. Barragem arruinada de
uma represa, abriria ao primeiro enxurro assoberbante. À primeira idéia má que
se lhe pegasse, Como o estopim da metralha, aquele cérebro havia estilhaçar.
Andava, dormia, desfrutava os seus sentidos e o seu viver, ao passo que sobressaltava
se de que alguma coisa dentro dele não partilhava disto. Era a modo que dois
indivíduos, e não um; aspirando pela vida, com os seus gozos ligados às suas
necessidades, uma força oculta atarraxava-o dorida inação, que ele só vencia
por crises de alacridade; e ficava consigo semelhante a um homem do lado de
fora de sua casa, cuja porta não há jeito abrir. Daí, um mal-estar do inferno,
um suplício que ou acabava ou dava com ele na cova.
Em aquele dia da sua desastrosa
morte, amanhecera com todas as boas disposições. Dormiu em casa do padre velho. Acordou ao ruído acariciador de uma
chuva no telhado, e depreendeu
que iam-lhe quadrando bem os momentos. Afinou a viola, e, à corrida dos canários e de outros
passarinhos presos, harmonizou a alvorada de um baião pelo brando, como se dançassem ali umas sílfides, uns espíritos de donzelas
e de anjinhos, em idealidades de quem não vê com os olhos
perecíveis.
O padre não saiu para
celebrar, por via da chuva, o que rendeu ao cego fazer-lhe companhia no café e
na isca.
Á medida que o sol esquentava,
porém, o João ia ficando ruim de humor.
Costumava acocorar à sombra de alguma árvore da Feira, se não achava uma conversa que lhe sustentasse o ânimo.
Sempre que bebia,
fazia ato de atrição depois de curtir a mona,
porque a
aguardente servia de agravar-lhe a saúde e negregar-lhe o espírito,
passada a
excitação do veneno. Era um contínuo protestar vida chã e regrada, e um incessante desmentido.
Impressionava-o uma
certa alteração que ele atribuía aos próprios
ouvidos. Mouco, isso não estava, com certeza. Que diabo então? E logo esse o ouvido! que com gosto de comer e beber,
constituíam o veículo por onde ao cego se comunicava
a vida
(pois que, desde a morte da Antônia, nunca mais sonhou de amores)! Os ruídos
e sons lhe chegavam, não impressionando, não comovendo,
não arroubando. Porventura não subiriam aos nichos? O João achava-se agora estranho
a coisas que ele
conhecia como as palmas das suas mãos.
Caminhando, pendia um pouco
para o lado, como a galinha a que deu o ar do vento. Semelhava ao pignon das
velhas casinhas de palha em meio s novas edificações.
Ia bolinando, mar
Grande pesar o assaltava,
quando sob as colunas do pórtico da As sembléia, recostado ao grosso umbral de cantaria, fazia por gozar da vida ambiente. Impossível identificar-se com o mundo
exterior, por mais esforços que empregasse! Para o chio
das árvores, para o rodar de uma sege, para o bater
de um saltinho alto, calçada
acima, a vozeria dos passantes, os sons musicais, para tudo
isso, que
anteriormente lhe acendia no cerrado do cérebro
idéias, cores, grisódios, fisionomias, aromas,
delícias até, hoje em dia ele era como
o corpo de um ferido
calcado indiferentemente na tropelia da refrega. A tensão
e a contração dos músculos
no andar,os movimentos da respiração, o trabalho
do estômago e do ventre, iam as vezes como uma locomotiva
desenfreada, ou ficavam em calmaria podre. A consciência teimava em não tomar conhecimento nem
mesmo do trabalho corporal; como
um fidalgo espadachim viveur e sibarita, que abandonasse a direção dos bens ao mordomo, esbanjando as rendas, comprometendo
os imóveis na unha do usurário, e deixando
a soldo da ruína
completa ao mau êxito de um duelo de morte, em que entregasse a vida a um ligeiro pontaço de florete.
Ia o cego, na noite em que morreu, por volta de dez
horas, pela
parte sul do campo da Amélia, calçamento em fora, aproando para o cemitério
Novo, que
era justamente o termo daquela estrada empedrada. Havia espicaçado a viola num
combustor,
a um rompante desasizado. E dera-lhe no destino
ir deitar sobre a sepultura da filha, como coisa que o cemitério não estivesse fechado. Mas havia de pular o gradil, e descer
pela
série de catacumbas ligadas à muralha. Acertaria com a cova da menina, que era bem debaixo de um cajueiro, quarenta passos a contar do fundo
da
capela. Deliberou que faria aquilo dali por diante, todas as noites; era o único
desejo em que ele sentia o voto unânime de toda a sua pessoa. E largou,
batendo com o bastão por aqui e por ali. Perto da linha férrea, tropeçou em umas achas de lenha, e sentou-se. Muito ao longe apitava
o trem.
O homem da agulha, com o seu lampião de cor, ficava-lhe
por trás do montão, de lenha e de estacas de sabiá, descarregadas pela manhã, de Maracanaú. O cego não fazia apreensão ao que ouvia
e no que to cava. O seu
espírito se despregara, e vinha na dianteira do trem, como o servo que foi a buscar uma sege para o amo. No Cemitério Velho as casuarinas gemiam longamente, com um silvo dolente e suave. O mar produzia o atrito
de um tramway gigantesco. O homem da agulha assobiava na sua guarita. Se o João tivera
vista, enxergaria atrás de si, desatando-se
da praça, a bela
iluminação da Rua das Flores, desenrolada cidade adentro, duas cintilantes
cadeias de
elos de estrelas, um lustre de festas.
O trem gritava mais perto,
como se repetisse: Aqui vou.., aqui vou... em longo fôlego, dando a cada vogal
o valor de três ou mais semibreves com ligaduras e com andamento largo. O homem
da agulha viu apontar o farol. Faltavam dois quilômetros somente. Mais perto, o
apito bradou forte. O cego entendia perfeitamente o apito gritar longamente: Já
vou, já vou.
Se destacava o debater do monstro esbaforido, o ranger das junturas, o atrito das rodas, o roçagar das ferragens, correndo por todo ele um
arrepio ao ansiar do vapor escapando pela chaminé, a cada
arranco dos
pistões, a cada impulso dos chavantes. Uma fascinação apoderava-se do cego.
Parecia subir
ao paraíso, ver muita claridade, destacar vultos, reconhecer
fisionomias... Iam-no carregando céu arriba...
Positivamente,
a modo que dois braços
macios e poderosos haviam-no erguido.., ele sustentou-se, como as rodas da
máquina obedecem ao jorro dos cilindros. Fizeram-no caminhar, como a criança
pelo carrinho que ensina a mudar as pernas... O trem internava-se pela cidade,
como um furacão. A cidade adormecia entretanto. Faltava um nada.
O João argumentava equivalente
a uma súcia de demônios; e concluía que não seria mau se atravessasse no
trilho a sua existência acabada. Era apenas uma formalidade, que ele já não
vivia. Podia ser que nem doesse. E depois, era tão rápido... Uma vertigem,
apenas. Parecia que todo mundo estava com os olhos nele, como se ele fora
deitar proeza em um circo. Amigos, desconhecidos, conhecidos, parentes,
inimigos, estavam a admirá-lo, e depois do caso passado, o nome dele ia de boca
O trem vinha quase
FINIS, LAUS DEO.
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