LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em
meio eletrônico
Tentação, de Adolfo Caminha
Edição de base:
Biblioteca Nacional – setor de obras digitalizadas
A Raul
Pompéia, o mais original e correto escritor brasileiro de seu tempo.
Capítulo
I
– Ora, sempre vamos ao Rio de
Janeiro, ao grande e espetaculoso Rio de Janeiro! – exclamou Evaristo, pousando
o chapéu, com ar de triunfo. – É como lá diz o outro: – quem espera... Eu nunca
me enganei com o Luís... nunca!
Saíam-lhe em jorro as palavras,
num tom quente de vitória, de aclamação, de regozijo.
Adelaide não o compreendeu logo,
e, sem o compreender, exultava diante da intempestiva alegria do marido, com os
olhos nele, ansiosa.
– Que é, homem de Deus, que
foi... Que mistério!
– Nada, filha, nada; estamos
aqui, estamos no Rio de Janeiro – ouviste? – no grandioso Rio de Janeiro!
Ela sorriu com um muxoxo:
– Brincadeira!
– Brincadeira? Telegrama do Luís
Furtado. Um emprego no Banco Industrial...
– Que é do telegrama? –
perguntou Adelaide, arredando o cabelo dos olhos e com o mesmo sorriso de
incredulidade.
– Cá está, no bolsinho; recebi
quando menos esperava.
E, desdobrando o papel:
– “Emprego Banco Industrial
garantido. Venha. – Luís."
Foram entrando ambos para a sala
de jantar – Evaristo um pouco apressado.
– Tu não imaginas – ia ele
dizendo, sem se voltar para a mulher – , tu não imaginas como estou alegre! No
Rio de Janeiro a coisa é outra! Um homem adquire relações, ganha fama e, quando
pensa, tem sua economiazinha... Quem vai ao Rio, ipso facto, vai à
Europa. Ora, digam lá para que me tem servido a carta de bacharel? Para nada,
para coisíssima alguma! Bacharel em província é objeto de luxo e eu estou farto
de misérias!
Adelaide, meio triste,
perguntou-lhe se queria jantar.
– Por que não? Imediatamente.
Hoje é?...
– Terça.
– Domingo há vapor e eu tenho
muito que fazer. Hoje mesmo, acabando daqui, vou telegrafar ao Luís. Manda
botar a sopa.
– Jesus, que sofreguidão,
Evaristo! Ao menos tira o paletó.
– Qual paletó! É daqui para o
Telégrafo e amanhã, se Deus quiser, os jornais dão notícia da minha ida ao Rio.
Um emprego no Banco Industrial do Rio de Janeiro é papa-fina. Já ouviste falar
no Banco Industrial?
– Não.
– Pois é um excelente emprego –
um empregão!
Adelaide pediu o jantar à porta
da cozinha e veio sentar-se à mesa.
Eram pobres, de uma pobreza
honesta e limpa. Moravam nos arredores da cidade, num lugar chamado Coqueiros,
onde a vida era quieta e ninguém os ia incomodar nas horas de descanso. Assim
que desciam as primeiras sombras da noite, caía todo o bairro numa extraordinária
mudez, num silêncio de aldeia feliz, cortado, apenas, em noites de lua, pelo
choro melancólico dalgum violão boêmio que passava dizendo histórias de amor...
A própria estação do trem era um pouquinho longe da casa em que moravam.
Evaristo, porém, tinha suas
ambições e não podia contentar-se com aquela vida de jesuíta. O Rio de Janeiro
atraía-o para as grandes lutas, para cometimentos estrondosos, que o
celebrizassem dalguma forma. Rapazes, seus conhecidos (o Luís Furtado era um
deles) viviam muito bem na Corte – formados, gozando de nomeada na advocacia,
no magistério; outros, que nem sabiam o bê-á-bá do direito, elogiados na
literatura, na imprensa, em tudo! Luís Furtado, por exemplo, Luís Furtado, ele
o conhecia desde criança, desde os bancos colegiais, quando ambos cursavam o
Liceu; eram amigos, amiguinhos como dois irmãos. Pois bem, Luís Furtado não
tinha nenhum preparatório, fora péssimo estudante de latim, na aula do Padre
Lustosa, de francês, e mesmo da língua de Camões; no entanto, estava muitíssimo
bem colocado no Rio – podia-se dizer que era dono de jornal, influência
literária e quase capitalista! E ele, Evaristo? Formado, bacharel em direito,
autor de muitos escritos, no entanto era aquilo: duzentos mil-réis – uma
vergonha – casa em Coqueiros, e, quanto a futuro, temos conversado!
– É ou não é verdade o que eu
digo? – perguntava ele à mulher.
Esta confirmava: “– Não dizia
que não; mas o tal Rio de Janeiro, o tal Rio de Janeiro...”
– Invenções, minha mulher,
invenções da gente que não tem o que fazer. O Rio de Janeiro não é, nem nunca
foi bicho-de-sete-cabeças. Eu leio jornais e sei bem o que aquilo é. Você verá
com os próprios olhos. Falam muito nas francesas do Largo do Rocio, nos
teatros, na jogatina. Ora, isso em toda parte há; o vício está no sangue do
indivíduo; quando o homem tem de ser coisa ruim, o é no Rio de Janeiro, na
Patagônia, em Paris... no inferno! Compreende agora que não me vou atirar ao
luxo, ao pagode, à bandalheira. O que eu quero simplesmente, exclusivamente, é
fazer pela vida, ganhar algum dinheiro, prosperar, com os diabos!
Adelaide, rapariga dócil, de
coração meigo como o coração das pombas, ouvia tudo, e, em extremo confiante no
marido, achava que o que ele dizia era a pura verdade. Mas não deixava de o
aconselhar que pensasse bem, antes de tomar uma resolução. Nada de vexame, para
depois não haver arrependimento.
– Que arrependimento!
Arrependido estou eu de já não ter metido ombros a uma viagem. A província não
bota ninguém pra diante. Vamos à Corte, vamos melhorar. Por que não hei de ser
feliz, eu, que trabalho como trabalho, por quê? Faça de conta que comprei um
bilhete. A vida é simplesmente uma loteria: questão de felicidade.
Evaristo tomou um gole d'água,
para rebater a sobremesa e ergueu-se, palitando os dentes.
– Então, sempre queres ir à
cidade? – perguntou Adelaide sem se mover.
– Imediatamente. Vou telegrafar
ao Luís e espalhar a grande notícia!
– Mas não te demores, Evaristo;
olha que fico só neste subterrâneo...
– Nada, não me demoro nada: é um
pulo.
E o futuro empregado do Banco
Industrial do Rio de Janeiro, depois de acender um cigarro, largou-se, numa
precipitação de médico que vai a chamado urgentíssimo.
– ’“Té logo, ’“té logo!
Que pressa de homem! – sorriu
Adelaide, ouvindo bater a porta da rua. – Que desespero!
– Nhô Varisto nem quis jantar! –
acrescentou a cozinheira se aproximando.
– Tira a mesa, Balbina. Sabes
que vamos para o Rio de Janeiro?
– Rio Janeiro, nhá Delaida! Onde
é isso?
Uma terra muito boa, muito
bonita, onde mora o Imperador...
– Ah!... Rio Janeiro...
E a preta velha ficou a olhar o
teto, a olhar, com a mão no queixo, muito admirada.
– Rio Janeiro... E a velha
Balbina agora tem de procurar casa?
– Não sei; o Evaristo é que há
de dizer...
As duas mulheres, a velha e a
moça, trocaram um olhar vago, um olhar quase sem expressão, mas onde havia uma
sombra de tristeza. Balbina compreendeu, àquela simples notícia, que ia ficar
abandonada no seu rancho de negra velha, sem ganhar dinheiro, sem
emprego, sem ocupação – ela, que estimava tanto “nhô Varisto” e “nhá Delaida”,
e que estava tão bem naquela casa! Adelaide, por sua vez, compreendia a
tristeza de Balbina – pobre criatura quase octogenária, que eles ainda
conservavam por amizade, por gratidão. Balbina fora escrava do pai de Evaristo,
falecido há anos. Adelaide compreendia e ficava-se também a pensar no destino
da velha, com uma ponta de saudade, quase com remorso de a deixar. Porque
Evaristo absolutamente não podia levar Balbina – uma mulher idosa, coitada,
muito boazinha, mas muito velha, sem forças mesmo para resistir.
Entretanto, a meiga senhora não
quis precipitar as coisas. Mais vale uma esperança tarde que um desengano cedo.
Deu a notícia por lealdade e calou-se.
À noite voltou o marido, cerca
de nove horas, com um embrulho debaixo do braço, o colarinho imprestável de
suor, às carreiras.
– Cá estou! – disse entrando. –
Agora é arrumar os baús e tocar! Amanhã os jornais dão a minha ida, isto é,
amanhã estoura a bomba!
Evaristo chamava “estourar a
bomba” ao efeito que a notícia havia de produzir entre os seus inimigos, que
não eram poucos.
– Que embrulho trazes aí? –
perguntou Adelaide, curiosa.
– Um paletó de alpaca para a
viagem.
Adelaide cruzou as mãos,
meneando a cabeça.
– Oh, homem vexado! Nem que
fosses embarcar amanhã...
– Não há tempo a perder, não há
tempo a perder. Faça-se logo o que se tem de fazer!
– Quando há vapor?
– Domingo: o Maranhão. Hoje
é terça, não é? Quarta, quinta, sexta e sábado, apenas quatro dias para os
preparos de viagem. Nada!
– E a Balbina? – inquiriu Adelaide.
– A Balbina fica... não há
remédio. Que vai ela fazer ao Rio? Nada de criados, por enquanto; as despesas
são muitas e eu não posso arcar...
O coração de Adelaide comoveu-se
ante aquele decreto formal de Evaristo. – Pobre da negra: tão boazinha...
– Que queres? É a vida. Ela que
procure outra casa. Está livre, está senhora de si.
E foram-se recolher, à hora
acostumada, sempre falando na viagem, no embarque, nas despedidas – Evaristo
arquitetando planos, construindo castelos, lembrando uma coisa, outra...
Daí a quatro dias, com efeito,
embarcava o futuro representante do Banco Industrial. Foi um acontecimento, em
Coqueiros, a ida de “dona Adelaide” para a Corte, um verdadeiro acontecimento,
porque todos a estimavam, todos queriam bem a ela, mesmo os estranhos, que só a
conheciam de vista.
Balbina chorou a noite inteira,
sem deixar o cachimbo, que lhe pendia dos beiços trêmulos, fungando e
resmoneando. “– Só os abandonaria, quando eles, nhô Varisto e nhá Delaida,
dobrassem a esquina...”
– Deixe estar, Balbina, deixe
estar que hei de lhe mandar umas coisas do Rio – consolava Adelaide. – Também
você já não é mulher para sair dos seus cômodos.
– É, nhá Delaida, é assim memo.
E a velha enxugava os olhos com
a aba do casaco.
– E, nhá Delaida, é...
Um carro de aluguel esperava os
viajantes, enquanto Evaristo, pingando suor, concluía umas arrumações no fundo
da maleta, e Adelaide, assoando as lágrimas, em toilette de gorgorão,
abanava-se na sala de jantar.
– Pronto? – perguntou de repente
o bacharel.
– Eu estou pronta... respondeu a
esposa, devagar, numa voz comovida.
E, daí a pouco, a velha Balbina
se atirava aos pés de Adelaide, chorando, soluçando, agarrando-a
espetaculosamente pelas pernas, numa dolorosa cena de lágrimas e exclamações.
– Deus a leve, nhá Delaida... vá
com Deus!... Não lhe hei de querer mal, não, minha filha...
Adelaide – aquele coração terno
de ave mansa – chorava também, um choro mudo que pungia.
– Basta, basta! – interrompeu
Evaristo, limpando a face magra. – Acabem com isso...
No fundo, ele também estava
comovido, e homem nervoso, não podia ver outra pessoa chorar.
O boleeiro perguntou para dentro
se era só a caixa de chapéu, a maleta e a gaiola...
– Só – respondeu Evaristo.
Adelaide embarcou aos olhos
curiosos da vizinhança, que tinha o ar compungido, depois embarcou Evaristo,
ouviu-se um – adeusinho! – e o carro estremeceu.
Balbina, em pé no meio da rua,
levava ainda uma vez a aba do casaco aos olhos.
...Foi assim que o bacharel
Evaristo de Holanda se desenterrou de Coqueiros – “humilde e saudoso lugarejo
de província” – como depois mandava dizer, em carta aos amigos.
Figurava a Corte do Império uma
terra legendária de aventuras e de muito dinheiro, onde, com algum trabalho, qualquer
homenzinho podia fazer fortuna em poucos anos, ou, quando mais não fosse,
galgar posições, eminências cobiçadas, conquistar nome – celebrizar-se.
Devorava os jornais do Rio, na biblioteca; lia tudo quanto na grande capital se
publicava em prosa e verso; não era estranho ao movimento literário, aos
saltos-mortais da política, às artes; interessava-se, como republicano, pela
saúde do monarca e pelos escândalos mais ou menos ruidosos da Rua do Ouvidor;
enfim, o Rio de Janeiro era, a seus olhos estáticos de provinciano, a
quintessência da civilização – Paris em ponto pequeno.
Formado em Direito, casara aos
vinte e oito anos com uma rapariga órfã, chamada Adelaide – essa de coração
meigo como o das pombas – que o amava desde o primeiro ano do curso e que o
vira certo domingo numa festa de igreja. Adelaide era pobre, mas isso o não
demovia de suas boas intenções: queria exatamente uma moça pobre, que o
idolatrasse. Ele também nada possuía, mesmo nada: estudara à custa de um
parente do Rio Grande, que lhe estabelecera parca mesada até que recebesse o
título de bacharel. Antes, porém, do último ano acadêmico, pôde arranjar (a
gente sempre se arranja...) um emprego, não muito rendoso, que conservou, a
despeito da inútil carta doutoral, renunciando, com extraordinária isenção, à
esmola que lhe vinha todos os meses do Rio Grande. – “Era tempo de se
libertar!”
Não consultou a ninguém sobre o
casamento; um belo dia soube-se que o Holanda, filho do finado juiz de direito,
estava casado com uma moça pobre, mas “bonitinha”...
E estava. Casou sem ruído, sem
luxo, indo logo morar em Coqueiros e acabando por achar aquilo muito fora da
civilização, incompatível com a sua natureza irrequieta de homem que não veio
ao mundo para morrer obscuro “num lugarejo humilde de província...”
Luís Furtado é que lhe metera na
cabeça o Rio de Janeiro. – “Por que não te mudas para o Rio? – escrevia ele. –
Uma coisa é a gente viver na província e outra coisa é respirar numa atmosfera
civilizada. Sei de mim que estou muito bem, muitíssimo bem. Dou-me com o João
Alfredo e com os principais personagens da política fluminense. Minha mulher
está gorda e não quer saber de outra vida; diz que o Rio de Janeiro é um
paraíso (expressão dela) e que tudo o mais, que não for o Rio de Janeiro, no
Brasil, é caboclada, é selvageria. O Raul, meu filho mais velho, botei-o no colégio,
no Internato Meneses Vieira, por insuportável. A Julinha é que está um encanto,
uma delícia! Já fala, já diz mamãe, papai, bala, totó... Não imaginas. É
uma graça ouví-la chamar – diabo, diabo, diabo! Enfim, meu Evaristo, a
nossa casa, em Botafogo, se não é um palácio, também não é uma choupana...
Vamos entrar na estação lírica.”
E concluía instando para que o
amigo fizesse um sacrifício, abandonasse aquela vida de província, trocando a
monotonia de Coqueiros pela Rua do Ouvidor, pela civilização, por um chalezinho
em Botafogo.
Evaristo ficava triste, mordia a
ponta do bigode, passava a mão na cabeça, refletindo, parafusando, oscilando
entre o presente e o futuro, entre a quietação provinciana e o tumulto de uma
cidade grande cheia de movimento e de sensações. ’“Té que um dia, não obstante
os ingênuos receios de Adelaide, optou pelo Rio de Janeiro e escreveu a Luís
Furtado, autorizando-o a arranjar-lhe um emprego decente, é claro.
Meses depois Luís Furtado
comunicava-lhe a sua nomeação para o Banco Industrial.
O Maranhão chegou ao Rio
num domingo luminoso e calmo. Adelaide enjoara horrivelmente, sem sair do
camarote, sem gozar dos aspectos da viagem, numa indolência estúpida, com a
cabeça a doer, os olhos mortos de fadiga, debaixo dos lençóis, muitíssimo
pálida. Oh, aquele maldito cheiro de azeite e de alcatrão, que vinha da proa,
dava-lhe tonteiras, embrulhava-lhe o estômago, causava-lhe arrepios de náusea!
Sempre meiga, porém, não se queixava, não se revoltava contra o marido, que, em
parte, era o culpado. Bem que estavam tranqüilos na província!
Evaristo foi de uma solicitude
incomparável, de um carinho extremoso. Ela nunca o vira tão amável, se é que se
podia ser mais amável do que ele sempre fora. Todos a bordo notavam que “aquele
moço de paletó de alpaca amarela” trazia os criados numa roda-viva, ocupava-os
a todo instante, e era só abrindo e fechando o camarote, subindo e descendo
escadas, numa azáfama. E entravam bandejas e saíam bandejas com iguarias
especiais, com limonadas e frutas, e Evaristo ainda achava que era pouco!
Os passageiros desconfiavam de
tanta dedicação e piscavam-se os olhos e sublinhavam risinhos de instintiva
malícia. Não era possível que fossem casados! Qual casados! Donde saíra aquele
exemplo de marido?
E falava-se baixinho no camarote
nº 16 e no moço de paletó amarelo. Um caixeiro-viajante, que só
andava de binóculo a tiracolo e sombrero de cortiça, afirmou que no camarote nº 16 ia uma senhora tísica; uma
ocasião vira-a, de relance, no fundo do beliche, muito magrinha, coitada, quase
a morrer... Outro passageiro dizia que era a mãe do “paletó amarelo”, uma velha
doente de reumatismo.
Quando o Maranhão largou
ferro, Adelaide estava pronta para desembarcar. A primeira pessoa que Evaristo
viu da tolda na lancha do Arsenal de Guerra, foi o seu inestimável amigo Luís
Furtado.
– Não é ele, ó Adelaide? –
perguntou, indicando um sujeito alto, de cartola e sobrecasaca, muito aprumado
na lancha.
Adelaide conhecia-lhe o retrato.
– É ele, sim, creio que é ele...
Nesse instante Luís Furtado
acenava para bordo com o lenço; reconhecera o amigo; e de ambos os lados
trocaram-se sinais de boas-vindas.
Horas depois rodava um carro
para Botafogo, conduzindo Evaristo de Holanda, a mulher e Luís Furtado.
A residência deste era uma
excelente casa de dois andares, vistosa, olhando para o Corcovado, nas
imediações do cemitério de S. João Batista. Morava no primeiro andar; o segundo
era ocupado por uma família estrangeira de vida misteriosa.
Furtado quis mostrar que inda
era amigo do seu amigo, hospedando-o em casa, acudindo-lhe às primeiras
necessidades. Ele, que se gabava tanto de altas empresas no Rio de Janeiro, que
dizia-se “muitíssimo bem colocado”, na praça e na sociedade fluminense, que
falava no Lírico, em personagens eminentes da política contemporânea, despiu a
vaidade que ostentara de longe para com Evaristo, e agora fazia-se pequeno, sem
importância, “humilde secretário do Banco Industrial”.
– Modéstia... modéstia – opunha
Evaristo, batendo-lhe amigavelmente na coxa.
Adelaide sorria.
Enquanto o carro rodava para
Botafogo, iam os três conversando, abrindo-se, dizendo novidades, perguntando
pelos amigos. Os três, não, porque Adelaide não falava, não dizia nada – com um
ar ingênuo e tímido.
Luís Furtado provocou-a:
– Vossa Excelência que acha,
minha senhora: Evaristo fez bem ou mal vindo ao Rio?
Ela sorriu ainda, mas respondeu:
– Nem bem, nem mal... –
voltando-se para o marido e catando um fio de algodão que brincava na roupa
dele.
– Esta minha mulher é uma santa!
– gracejou Evaristo.
– Acredito, pois não! acredito –
confirmou o secretário. – Na minha opinião, todas as mulheres são umas
santas...
– Oh, isso não! – exclamou o
outro. – Mais devagar... Mulheres conheço eu de gênio infernal, capazes de
vender... Judas!
– Qual! – duvidou Luís com uma
ponta de ironia.
Certo é que ele achava qualquer
coisa de puro no rosto sereno e meigo de Adelaide, uns longes de pintura
religiosa, uma translucidez mística e evocadora, qualquer coisa, enfim, que não
sabia determinar. Olhava-a de banda, enquanto dava atenção a Evaristo, como se
quisesse gravar bem, na memória, aquele estranho tipo de brasileira.
O carro parou. Tinham chegado.
– É aqui – disse Luís.
E, rápido, adiantou-se para
oferecer a mão a Adelaide.
A rua estava, como de costume,
silenciosa, muito banhada de luz, na calma do meio-dia.
– Papai! Papai!
Era o filho mais velho de Luís,
o Raul, que anunciava, berrando, as suas férias do domingo.
– Não é preciso gritar, meu filho,
oh! – advertiu o secretário. E para Evaristo: – Cá está o meu Raul. Hoje, como
é domingo, veio passar o dia em casa com a mãe
– Um homem! – exclamou Evaristo.
– Que idade tem?
– Nove anos... Não é, meu filho?
– É, sim, papai; ainda vou fazer
nove.
– Um homem!
Foram subindo a escada do
sobrado.
– Aqui moro eu desde 882.
– Boa casa, muito boa, tem
quintal?
– Um quintalão! Hás de ver.
Em cima, no primeiro andar,
houve um rumor de passos precipitados, corridinhos na ponta dos pés, e de vozes
falando baixo.
– D. Sinhá está aí, papai,
comunicou o Raul.
– Bem, bem...
Entraram para a sala de visitas.
– Nada de cerimônias – pediu
Luís Furtado. – Vocês agora é como se estivessem na própria casa. Vai chamar
tua mãe, Raul.
O pequeno saiu correndo.
Adelaide, contrafeita, risonha
por delicadeza, mas, em verdade, bem fora dos seus hábitos, ia notando
intimamente, sem expressão de surpresa no olhar, a perspectiva do início
carioca. Enquanto esperava a mulher de Furtado, abstraía-se na contemplação dos
objetos que a cercavam agora, cada um dos quais era uma novidade para ela.
Imobilizava-se, retraída, quase esmagada pelo aspecto luxuoso e confortável da
mobília, dos quadros, das tapeçarias que ornavam a sala do secretário. E aquilo
dava-lhe uma volúpia de bem-estar, uns arrepios de gozo calmo e de
independência honesta que estava um pouco na massa do seu sangue.
... Foi interrompida nas suas
reflexões por D. Branca, esposa de Furtado, que vinha entrando acompanhada de
outra senhora mais moça e do Raul.
– Oh!... – fez aquela, numa voz
que não era bem de surpresa.
– Ainda te lembras da Branca, ó
Evaristo?
– Como não? – disse o bacharel,
erguendo-se para cumprimentar as duas senhoras. – Lembro-me bem. Está um
pouquinho mudada, está...
D. Branca dirigiu-se a Adelaide,
e beijaram-se.
– Sua senhora inda é muito moça!
– observou a esposa de Furtado para Evaristo. E apresentando a companheira: –
Esta é uma amiga nossa – D. Sinhá, filha do desembargador Lousada...
Raul, de mãos pra trás no meio
da sala, não perdia palavra, remoendo ocultas intenções brejeiras.
Todos se sentaram, menos ele, e
a conversa prolongou-se através dos costumes, da moda e da política.
As duas senhoras estavam em toilette
de verão, cada uma com o seu leque fantasia. – D. Branca um pouco gorda, mas
ainda frescalhona, parecendo mais moça do que realmente era; a filha do
desembargador muito derretida, encobrindo, sob densa camada de pó de arroz, a
pele salpicada de sinaizinhos indeléveis, uma rosa Petrópolis no seio;
costumava passar os domingos em casa do “Sr. Furtado”, um dos bons amigos do
velho Lousada.
Evaristo achou-a pedante e feia;
Adelaide também, na sua mudez obstinada.
A propósito do Raul, que mereceu
a atenção dos circunstantes, veio a Julinha nos braços da ama. O pai adorava-a,
e tomou-a logo, num alvoroço, numa grande festa de beijos que ela – o diabrete!
– repugnava, esperneando.
– Como achas minha filha? –
perguntou o secretário erguendo a menina alto, nas mãos.
Evaristo, lisonjeiro, fazendo
graça para a criança, achou-a muito parecida com D. Branca, muitíssimo
parecida! Os olhos, então, eram os de D. Branca!
Adelaide, ao contrário, achou
que ela “tinha ares do Sr. Furtado”. O secretário exultou, porque, na verdade,
Julinha era uma criança linda, muito rosada, muito loura, de olhos vivos e
angelicais.
– Quem é aquele homem, minha
filha?
A pequena encarou Evaristo, sem
responder.
– Quem é? – tornou Furtado. –
Olhe bem para ele... quem é?
Julinha amuou, desconfiada, e
abriu a chorar.
– Ta, ta, ta... não foi nada,
não foi nada! É o Evaristo, minha filha – o Evaristo!
– Menina! – ralhou D. Branca.
Mas a pequerrucha debatia-se com
os pés e com as mãos, numa cólera rubra, num desespero: – Diabo! diabo! diabo!
Todos riram, todos gostaram da
assombrosa precocidade!
– Saiu à mãe – explicou Furtado,
agora com um ar bonachão de pai que tudo perdoa aos filhos.
D. Branca não protestou, e a
menina foi conduzida para dentro. Falou-se depois nas acomodações da casa.
Evaristo e a mulher iam ocupar um quarto nos fundos, defronte da sala de
jantar, vizinho à área: um bom quarto espaçoso, forrado e com bico de gás.
– Tanto incômodo! – murmurou
Evaristo.
– Qual incômodo!
D. Branca entrou em
familiaridades com Adelaide, franqueou-lhe a toilette, mostrou-lhe o álbum
de retratos, o vestido de seda com que fora ao último baile no Cassino, uma
jóia que a princesa lhe dera no dia de seus anos...
– A princesa?...
Sim, eram muito amigas, o
próprio imperador podia-se dizer que era amigo do Furtado; até lhe prometera uma
comissão à Europa. Sim, a princesa, por que não? A princesa dava-se com muitas
famílias no Rio de Janeiro, não tinha orgulho, apertava a mão a todos... Boa
senhora! A mulher do desembargador Lousada era dama do Paço, tinha
intimidade com a imperatriz; por intermédio dela é que D. Branca se relacionara
com a princesa.
D. Sinhá confirmou: – “A mamãe
era dama do Paço...” Entraram ganhadores com a bagagem, que foi recolhida ao
novo aposento de Evaristo. Raul tomou conta da gaiola dos pássaros, onde
refulgiam asas de corrupião e de xexéu. Evaristo disse logo que o
corrupião era do Furtado: podia garantir a espécie; o xexéu, ele
trazia para o diretor do Banco.
E nesse andar escoou o domingo,
com grande tristeza para o Raul, que no dia seguinte voltava ao colégio,
pensando no corrupião.
Os hóspedes recolheram fatigados
da viagem, morrinhentos de calor e de cansaço.
Adelaide, principalmente,
queixava-se de uma dor na cabeça e de “confusão nas idéias”.
Evaristo, para a consolar, disse
que também estava com a cabeça a arder. Trataram de se agasalhar na cama fresca
e cheirosa a sabão. Da janela do quarto via-se luz no segundo andar, e não
poucas vezes ecoava embaixo, no fundo escuro da área, o som de uma cusparada.
– Então, Adelaide, que achas do
povinho?
– Que povinho?
– Da Branca e do Furtado...
Assim... Não se pode adiantar juízo.
– E a tal D. Sinhá? Oh, mulher
feia!
– Credo! – murmurou Adelaide. –
Feia e pedante.
– É verdade: feia e pedante.
– Fala baixo...
– Viste, ao jantar, quando ela
abria a boca?
– A mãe é dama do Paço.
– Que estás dizendo!
– É. Dão-se com a família
imperial.
Adelaide respondia com os olhos
fechados, morta de sono, às perguntas do marido. Ele é que não tinha sono,
encantado com a sua nova posição, ruminando programas de vida, conjeturando
sobre o futuro, sobre o dia de amanhã.
E corria os olhos nos móveis do
quarto, no lavatório de ferro, no saco de roupa, no cabide, nos menores
objetos, como quem duvida de uma situação nova.
– Era, então, verdade que estava
no “grande” Rio de Janeiro!
O que é a gente se decidir! o
que é ter-se coragem!
Meio acordado, meio dormindo,
viu a casinha de Coqueiros, na província, entre árvores, a Balbina, caída aos
pés de Adelaide, à hora do embarque..., o Maranhão, onde ia um
rapazinho, estudante, que tocava flauta, e o Furtado acenando para bordo...
Capítulo
II
D. Branca era mulher que, ao
simpatizar com uma pessoa, não admitia restrições, e Adelaide, fosse pelos seus
bonitos olhos, fosse pelos modos – que ninguém os tinha mais acentuadamente
provincianos – caiu-lhe nas graças, merecendo um lugarzinho no coração dela.
A esposa de Evaristo ficou
sendo, em pouco, uma das melhores amigas da esposa de Furtado, com
extraordinária satisfação para este, que não ocultava a simpatia que lhe
inspirava Adelaide.
Naquela casa de Botafogo viviam
todos como se constituíssem uma só família, como se Evaristo fosse irmão de
Furtado e D. Branca irmã de Adelaide, intimamente unidos, querendo um o que o
outro desejava, não se contrariando em coisa alguma. De manhã iam os dois
homens para o Banco, à mesma hora, depois do almoço, e ficavam as duas na bela
e encantadora harmonia de irmãs que se prezam, lendo, costurando, trocando
confidências na sala de jantar, enquanto não chegavam os maridos – o Raul no
colégio e a pequena com a ama.
Evaristo, por seu lado, ia
conhecendo o Rio de Janeiro, inclusive a famosa Rua do Ouvidor, que ele
pitorescamente alcunhava de “beco da perdição”. Não gostava da Rua do Ouvidor;
aquele zunzum de abelhas que desciam e subiam num movimento contínuo, aquela
vozeria estéril dos cafés e das portas de loja, punham-no de mau humor,
enchiam-lhe os ouvidos, irritavam-no, desequilibravam-lhe o sistema nervoso, ao
mesmo tempo que faziam-lhe confusão no cérebro habituado à vida calma e
refletida de homem honesto. – “Evidentemente nascera provinciano e havia de morrer
provinciano” – dizia.
– Mas é um engano – opunha
Furtado – é mesmo uma grande tolice! O homem, para ser homem às direitas,
carece de lutar, de sofrer as pequeninas misérias sociais... A natureza humana
quer movimento, quer emoções... quer vida, enfim. Todos nós somos uns
aventureiros que andamos à cata de filões de ouro...
Evaristo argumentava, porém, que
não dizia o contrário, que tudo aquilo era uma grande verdade, mas que ninguém
podia ir de encontro à natureza. Era o primeiro a reconhecer os benefícios e as
incalculáveis belezas da civilização; mas também não havia negar que a título
de civilização, emitia-se muita moeda falsa, muito princípio errado – muita
bandalheira!
E ficavam-se a olhar um para o
outro.
O secretário do Banco Industrial
conhecia o Rio de Janeiro de um extremo ao outro e gozava mesmo de muito boas
relações na sociedade fluminense, não tanto quanto mandara dizer em carta a
Evaristo, mas gozava. Além do desembargador Lousada, seu vizinho tinha outros
amigos de alta posição na Corte, e era verdade que a princesa surpreendera D.
Branca com uma jóia no seu trigésimo aniversário. A herdeira do trono ficara
estimando a esposa do secretário desde uma célebre noite no Cassino Fluminense.
Essas relações, porém, não excediam às praxes aristocráticas, guardando-se, de
lado a lado, o máximo respeito, como convinha à fidalguia imperial da ilustre
senhora.
Também era verdade que Luís
Furtado uma vez – primeira e última – conferenciara com o imperador no Paço e
este lhe prometera rendosa comissão à Europa; mas decorriam semanas e não se
realizava a imperial promessa.
Entre políticos, banqueiros e
titulares, havia sempre um que era amigo de Luís: o deputado Ismael
Pessegueiro, de Alagoas, moço muito bem preparado, conservador até à raiz do
cabelo, baixote na estatura e no falar; o visconde de Santa Quitéria, diretor
do Banco Luso-Brasileiro, cuja fortuna se avaliava em muitos contos de réis
fora à casa de residência – vistoso palacete que só se abria nas grandes
festas; o comendador Pinto, outra fortuna considerável, português, que se
fizera a custo de muito trabalho e que encanecera no Brasil..., e outros
personagens de elevada hierarquia.
Quanto a jornalistas e poetas,
conhecia-os quase todos; um por um, desde o redator-chefe do Comércio do Rio
(“O Times brasileiro”, na opinião de Furtado), até o Valdevino
Manhães, diretor da Revista Literária e autor de muitos livros, de
muitíssimas obras, entre as quais o poema herói-cômico Juca Pirão, paródia
ao I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias.
Evaristo já os conhecia também –
de longe uns, outros mais familiarmente. O Valdevino Manhães, ou o Dr.
Condicional, estava no número destes; fora-lhe apresentado uma noite, no
jardim do Teatro Santana. Baixo, pequenino, metidinho a crítico, um bigodinho
quase imperceptível, sempre de lunetas – era conhecido por Dr. Condicional, porque
nunca dizia as coisas em tom afirmativo: tinha sempre um mas..., um talvez...,
um se..., quando criticava obras alheias. Ninguém para ele era escritor feito,
nem mesmo os consagrados: todos haviam de ser grandes poetas,
grandes romancistas, grandes homens..., se continuassem a estudar. Outra
mania de Valdevino Manhães era falar na sua viagem à Europa. – Oh, em Lisboa
merecera os maiores elogios, as mais belas referências de quanto jornalista
sabe terçar a pena (terçar a pena era uma de suas frases
prediletas). O poeta João de Deus...
E ninguém o interrompia, ninguém
dizia palavra enquanto ele comentava João de Deus e o Chiado.
O novo escriturário do Banco
Industrial não confiava muito no Valdevino. – “Se todos os literatos do Rio de
Janeiro fossem como o autor do Juca Pirão, a literatura brasileira tinha
de pedir licença à Câmara para andar de quatro pés” – dizia ele a Furtado.
E Furtado, surpreendido:
– Pois olha: é o crítico da moda
hoje, no Rio de Janeiro.
– Prefiro o visconde de Santa
Quitéria ou mesmo o comendador Pinto, que ao menos têm juízo para ganhar
dinheiro...
Foram andando.
Uma tarde conversavam os dois
sobre a vida na Corte, sentados à janela, quando o hóspede do secretário
lembrou-lhe que era tempo de procurar casa e de instalar-se definitivamente com
Adelaide: – uma casinha barata, um cômodo, qualquer aposento, inda que fosse
nos “subterrâneos da Cidade Nova”.
– Qual instalar-te! Daqui não
sairás enquanto formos amigos – respondeu Furtado. – Minha mulher gostou muito
de D. Adelaide – vivem muito bem, dão-se perfeitamente... Podemos chegar a um
acordo nas despesas...
– Não, isso não! Vocês têm sido
muito incomodados... isso não!
– História, homem! Incomodados
têm sido vocês naquele quartinho... Mas a Branca falou-me que os do segundo
andar estão procurando casa... Uma bela aquisição para vocês o segundo andar.
Evaristo levou o dedo à boca,
refletindo, e apertando os lábios:
– É... assim bem...
– Pois então? Esperem um pouco
mais... não há vexame...
D. Branca aproximou-se, com o
braço na cintura de Adelaide.
– Ó Branca – disse Furtado , –
não é exato que os estrangeiros de cima vão se mudar?
– É sim. Andam em procura de
casa. Por quê?
– O Evaristo, que lembrou-se
agora de bater a linda plumagem, inda que fosse, diz ele – para os subterrâneos
da Cidade Nova!
– Qual, Sr. Evaristo, qual!
Adelaide está muito bem. A Cidade Nova é um lugar infecto, um horror! Esperem
pelo segundo andar.
– E o aluguel? – perguntou,
interessado, o rapaz.
– Oitenta mil-réis, filho!
oitenta mil-réis... não é dinheiro.
– Não é dinheiro, para os
capitalistas...
– Oitenta mil-réis, nunca foi
dinheiro.
– Eu, por mim, não me mudava...
– ousou discretamente Adelaide.
Evaristo arregalou os olhos:
– Oh! então já vais gostando do
Rio!
– Não desgosto...
– O Sr. Evaristo quer conversar
– disse, rindo, a esposa de Furtado. – Vamos a tocar um pouquinho de piano...
A tarde estava calma. Crianças
brincavam na rua, enchendo-a de alvoroço, em toilettes de verão. O
desembargador Lousada passeava no jardim, com o seu indefectível gorro de seda
bordado a retrós, enquanto a mulher e a filha, sentadas à porta, abanavam-se de
leque. Dezembro morria numa explosão de sol. A família imperial estava toda em
Petrópolis, gozando as delícias de um clima pregoadamente aristocrático, os que
não podiam sustentar o luxo de Petrópolis, a vida fidalga de Petrópolis, os
hotéis de Petrópolis, corriam para o ar livre da rua, em trajos brancos, ou
para a janela das casas, num alvoroço de formigueiro incendiado.
À parte o clima, na estação
outonal, a vida em Botafogo tinha qualquer coisa da vida em Petrópolis, era
como um prolongamento do high-life, cuja sede firmara-se na antiga
colônia alemã. Falar na Cidade Nova a um morador de Botafogo, era o mesmo que
cair no ridículo e no desprezo de uma sociedade que não admitia plebeísmos
sentimentais, nem alusões de mau gosto... Cidade Nova, isto é Saco do Alferes,
Gamboa, preto-mina, lenço no pescoço, violão, maxixe... e outras belezas
de igual jaez. Tudo isso era contra as boas normas de um povo civilizado e
muito principalmente contra os brios de um homem que vive na mesma atmosfera de
Sua Majestade o Imperador! Botafogo odiava a Cidade Nova como quem repugna um
meio asqueroso.
Os aristocratas que não tinham
podido acompanhar o monarca a Petrópolis bufavam de calor, e, à porta dos
jardins ou à janela, iam refrescar o sangue, os pulmões, como o desembargador
Lousada. Ao anoitecer, recolhiam à frescura do linho, pensando na volta das
andorinhas imperiais.
D. Branca executou ao piano uma
valsa de Strauss, para Adelaide ouvir. Tocava bem, na opinião de vários
professores ilustres; já se exibira em concertos de primeira ordem.
Quando as tardes eram demasiado
quentes, iam os dois casais arejar à praia, onde passeavam famílias numa
liberdade encantadora, trajando garridamente suas roupas de verão, sem luxo,
sem cerimônia, parando à sombra das árvores, em grupos, vendo deslizar em
pequeninas embarcações de recreio na água cintilante. Que bom! Adelaide
examinava tudo com essa curiosidade infantil dos recém-chegados, comparava as toilettes,
as fisionomias, lendo histórias mundanas no sorriso dos rapazes e na
franqueza das raparigas, que se entrecruzavam piscando os olhos à vista dos
homens sérios. Como tudo aquilo tinha um encanto particular! Como tudo era novo
para ela! Sentia na alma um remoçar impetuoso, uma vontade de possuir jóias com
que se enfeitar, com que realçar a sua beleza, e toilettes de luxo, à
última moda, e essências caras, embriagantes, e tudo o mais que seus olhos
viam, desde que ela pusera os pés no Rio de Janeiro.
D. Branca enchera-lhe os ouvidos
de tanta coisa, meu Deus! de tanta história! – Que no Rio de Janeiro as
mulheres timbravam em se apresentar cada qual mais bem vestida; que Botafogo
era o bairro da aristocracia e do bom gosto; que o luxo nada tinha com a
honestidade de uma senhora, desde que ela se portasse bem..., ao menos
aparentemente; que, enquanto se era moça, devia-se gozar, levar a vida rindo,
passeando, nos bailes, nos concertos, nos teatros; que os homens eram muito
egoístas; enfim, Senhora D. Branca despertara nela um sentimento novo, que lhe
abafava toda a nostalgia da província e deixava-a oscilando, remoendo, entre a
vida simples e calma de burguesinha honesta e a vida tumultuosa de mulher
elegante e adorada nos círculos aristocráticos de uma cidade como o Rio de
Janeiro.
Enquanto Evaristo aborrecia-se –
ele, que falava tanto da província: “porque a província era o statu quo, a
imobilidade, o abandono” – ela deliciava-se agora, em plena Corte, em pleno
Botafogo, cheia de vida e de ambições, a exemplo de D. Branca e de outras
senhoras, que, sem desprezar os maridos, gozavam quanto podiam, vestindo-se
bem, trajando com elegância, ostentando beleza e mocidade aonde quer que se
apresentassem. Nos primeiros dias estranhara o Rio, achara tudo falso, tudo
superficial, tudo para enganar os olhos. Agora, não: tudo impunha-se ao seu
espírito como um dever, como uma necessidade lógica e humana.
E sempre que ia à praia, sempre
que ia a um teatro, a um passeio, voltava triste, desalentada, com uma dor no
coração... Não poder “como as outras” ostentar o frescor dos seus vinte anos,
aparecendo nas rodas elegantes, de braço com o Evaristo – ele todo nobreza,
todo modernismo, aristocraticamente enluvado; ela chique, numa pompa de rainha,
um sorriso à flor dos lábios – os dois em carruagem aberta ou num camarote do
Lírico! Oh, não poder gozar, como as outras mulheres que ela via, deslumbrada e
abatida, da sua pobreza honesta, da sua triste posição de mulherzinha dócil, de
esposa exemplar!
Aquilo ia calando em seu
espírito, onde um princípio de orgulho feminino brotava ocultamente.
Evaristo ganhava pouco ainda, o
essencial para se ir mantendo com alguma independência, sem dever a ninguém.
Era inimigo de contrair dívidas; um alfinete, que comprasse, havia de ser pago
logo, na ocasião mesma do negócio; por forma que o dinheiro do Banco, o
ordenado, ia-se num abrir e fechar de olhos, para a mão do homem da venda e
para o bolso do alfaiate. Ele próprio conservava a roupa que trouxera da
província; não tinha luxo, nem jóias de valor. Afinal não passava – como dizia
– de um pobretão mísero, empregado subalterno. D. Branca podia luxar, aparecer
– não era admiração; o Luís ganhava tanto como oitocentos mil-réis, fora a
renda das apólices que possuía no Tesouro e de umas açõezinhas do Banco
Industrial. Onde, pois, a admiração? Nenhuma. Feria-lhe também o amor-próprio
de marido extremoso ver Adelaide, a sua Adelaide, com os mesmos vestidos, com o
mesmo chapéu, sem um brilhante, uma jóia de ouro, envergonhada no meio das
outras. – Mas... que se havia de fazer? Por isso é que desejava ter uma casinha
na Cidade Nova, “um albergue”, de cinqüenta mil-réis, longe desse rumor de
etiquetas e ostentações. Um dia pra diante, quando pudesse – muito bem! alugava
um chalé em Botafogo e Adelaide não tinha de que baixar a cabeça às exigências
do high-life. Por enquanto a palavra de ordem era – economia, muita
economia!
De resto, o procedimento de
Adelaide para com o esposo não mudara. Evaristo continuava sendo o mesmo
Evaristo, bom e leal, por vezes de uma ternura lânguida, quase pueril, achando
muita razão em tudo quanto ela dizia, tratando-se como noivos.
D. Branca estranhava que eles
ainda não tivessem filho, ao menos um morgado para dar que fazer à
mamãe...
E aconselhava banhos de mar no
Flamengo: – por que não experimentavam os banhos de mar no Flamengo? Um
filhinho era indispensável a um casal...
Evaristo ria e jurava, rindo,
que no mês seguinte iam começar os banhos ali mesmo na praia de Botafogo.
A propósito de filhos, a mulher
do secretário anunciou o batizado da Julinha no primeiro domingo de janeiro. Ia
fazer uma festa sem – cerimônia,
entre pessoas de intimidade.
Evaristo recebeu a notícia com
um – oh!... de surpresa. – Muito bem! muito bem! Era preciso batizar a
menina... Ele, se tivesse filhos, batizava-os ao nascer.
E com ironia:
– Temos, então, a princesa?
– Como, Sr. Evaristo?
– Digo: a princesa há de
comparecer à festa.
– Qual o quê! Pensa o senhor que
a princesa anda se exibindo assim?
– Pensei.
– Vai ser a madrinha de minha
filha, por procuração; isso bem...
E Evaristo, sempre irônico:
– O imperador é o padrinho...
– Não senhor, não senhor... O
padrinho é o Lousada, o velho Lousada. O imperador já é padrinho do Raul.
– Onde estamos nós metidos,
Adelaide! exclamou o bacharel, arregalando os olhos. Tudo aqui é principesco,
minha senhora!
D. Branca compreendeu o debique,
mas atalhou risonha:
– Tudo aqui não é principesco,
não senhor! Não queira fazer pouco...
– Eu, fazer pouco? Oh, não se
lembre de tal coisa! Principesco é uma maneira de dizer.
– Ah! o senhor é republicano?
– Republicano não: democrata.
– Pois está muito bem arranjado
com a sua democracia!
Furtado, que estava lendo o Comércio
do Rio, saltou:
– Quem é democrata – o Evaristo?
– Eu, sim...
– Democrata enquanto não
conheceres bem o Rio de Janeiro...
– Por quê?
– Ora, por quê! Porque o Rio de
Janeiro em globo é monarquista e quem diz monarquista diz aristocrata.
– Não é razão. Se o Rio de
Janeiro em globo (quero dizer o município neutro...) é monarquista, eu posso muito
bem sair um republicano às direitas.
Furtado abriu numa gargalhada
estridente.
– Aonde vens pregar essas
teorias, meu caro? Na Corte do Império, e o que é mais, em Botafogo! Ilusões da
academia, rapaz, ilusões de estudante de retórica!
– Não senhor, que o partido
republicano está ganhando terreno aqui mesmo, na Corte, às barbas d'El-Rei!
Fala-se na ida do velho à Europa; o velho está doido, já não pode governar, e o
resultado é que...
– É que estás a dizer tolices...
A monarquia está guardada por sentinelas da força do barão de Cotegipe, do
visconde de Ouro Preto, do João Alfredo e de outros... Cada um desses homens é
um obstáculo contra qualquer tentativa de assalto às instituições.
Chegou a vez do bacharel rir,
mas rir com gosto, dando pulinhos na cadeira.
– O Cotegipe! (e ria). O Ouro
Preto! (tornava a rir). O João Alfredo! No momento psicológico voam todos, como
aves de arribação, para Petrópolis! Desaparecem como por encanto, somem-se na
noite do medo...
– É o que pensas. A opinião é
deles, o povo não permitirá que eles sejam desacatados.
– O povo! – exclamou Evaristo
com voz de trovão. – A que chamas tu povo?
– À população do Rio de Janeiro,
à população do Brasil – a treze milhões de almas que adoram o imperador!
– O povo brasileiro não se
envolve nisso, meu Furtado; se fôssemos esperar pelo povo, estávamos bem
arranjados.
– E então?
– E então, é que a força
armada...
— Basta de política, basta de
política, Sr. Evaristo. Ó Luís, por favor, continua a ler teu jornal –
interveio D. Branca. – É favor!
Adelaide correu a tapar a boca
do marido com a mão espalmada: – “Não senhor, nada de política!”
E continuou-se a falar no
batizado da pequena, sem alusões à princesa, nem ao monarca. A esposa do
secretário disse que tinha mandado fazer um vestido para estrear nesse
dia – uma toilette simples, de um tecido novo, muito usado em Paris, que
A Notre Dame recebera...
Adelaide mordiscou a pelezinha
do beiço com tristeza. – Um vestido novo, chegado de Paris!... E ela como se
havia de apresentar no dia da festa? Oh, com o seu vestido de provinciana, de
mangas compridas e babados! Que vergonha, Santo Deus! O melhor vestido que
possuía era o de gorgorão, com que embarcara..., mas estava fora da moda e da
etiqueta. Antes nunca tivesse vindo ao Rio de Janeiro...
Quase não dormiu, essa noite,
pensando no batizado. À hora de recolher, Evaristo achou-a triste, com um
arzinho de choro, descobrindo mesmo uma lágrima vagarosa na face dela. Mas não
disse nada. Adelaide continuou a se despir à meia-luz do gás, e rolou na cama
silenciosamente, de rosto para a parede.
– Ó Adelaide!... – chamou
Evaristo, já desconfiado.
A mulher não respondeu.
Adelaide! tornou ele,
aproximando-se.
– Que é?... choramingou a
rapariga, encolhendo-se.
– Olha...
Ela não se moveu.
– Olha!
Mesma posição, mesmo silêncio.
– Olha cá uma coisa.
– Que é?
– Estás chorando?
– Não...
Mas pelo tom da voz, conheceu
bem que alguma coisa havia no coração de Adelaide.
– Como não, se te ouvi soluçar?
– Eu?!...
– Exatamente. Queres ocultar-me
algum desgosto?
E devagarinho, como para não
acordar uma criança, o bacharel foi-se inclinando no leito.
– Vamos: é a primeira vez que
choras em minha companhia, depois que estamos casados.
– Nada... lembrei-me da Balbina.
— Da Balbina? Homessa!
Falavam muito em segredo,
cochichando, ela de costas para ele. A casa estava toda no escuro. Furtado e a
mulher não davam sinal de vida.
– Que tens tu com a Balbina? –
tornou Evaristo. – Não é má a lembrança! Como se a Balbina fosse tua mãe!
– Mas lembrei-me.
– Se me não dissesses, eu não
acreditaria, palavra de honra!
E admirado:
– Chorar com saudades da
Balbina! É curioso, é singular!
Os inquilinos do segundo andar
apagaram a luz e um relógio bateu meia-noite.
Involuntariamente, por causa de
Adelaide, Evaristo adormeceu pensando na Balbina, a negra velha de Coqueiros,
sem atinar com a significação da lágrima que vira na face da esposa.
Certo é que a amiga de D. Branca
recolhera com o pensamento no batizado da Julinha. Quis desabafar, dizer tudo
a Evaristo, suplicar-lhe que trouxesse um vestido novo para a festa de D.
Branca, rogar-lhe, pelo amor de Deus, que fizesse um pequeno sacrifício... Mas
não teve ânimo: podia parecer uma exigência, uma falta de atenção, e ela nunca
abrira a boca para pedir a Evaristo um grampo, quanto mais um corte de fazenda!
Não era por vaidade, nem por orgulho, nem por capricho – é que tinha obrigação
de se apresentar à aristocracia em trajos de mulher educada e não com um pobre
vestido fora da moda, sem elegância, mal cosido, mal ajustado ao corpo –
horrível!
No outro dia Evaristo, inda na
cama, interpelou-a sobre o acidente da véspera, gracejando, rindo, na melhor
boa-fé, longe de adivinhar o que se passava no espírito de Adelaide. – Chorar
pela Balbina – ela! Que extraordinário coração, que alma cândida!
– Chora-se até pelos animais,
por um gatinho, por um cachorro, por um pássaro que a gente criou!...
E Adelaide, ocultando
ingenuamente o desgosto que a pungia, lembrou ao marido o fato de ter ele
chorado a morte de uma patativa, antes de vir para o Rio de Janeiro.
O bacharel não disse que não,
mas afirmou que o caso era diverso e que entre a patativa e a Balbina preferia
a patativa.
E a lágrima da jovem senhora
caiu no esquecimento como todas as coisas deste mundo.
Ela, porém, via se aproximar o
domingo do batizado, cheio de tristeza, maldizendo a nova situação em que a
colocara o destino. Positivamente Evaristo não enxergava além das grosseiras
necessidades da vida doméstica e não via que uma dona de casa no Rio de Janeiro
tinha a obrigação de ser, ao mesmo tempo, uma dama elegante, uma senhora
distinta, com todos os requisitos para figurar num sarau pomposo ou em qualquer
parte aonde houvesse aristocracia e luxo... Como é que ela, vivendo na casa de
um homem fino, de um capitalista, vivendo entre pessoas de “tratamento” em
Botafogo, ia-se apresentar aos olhos de D. Branca, aos olhos de D. Sinhá e da
mulher do desembargador, aos olhos de uma gente fidalga, na sua humilde toilette
de provinciana pobre? Todo o mundo havia de reparar e dizer mal. No entanto,
com qualquer dinheirinho comprava-se um vestido sério, novo, que
ao menos aparentasse... A própria D. Branca lhe dera a perceber que se obtinha,
no Rio, muita coisa de alto valor por “preços baratíssimos...”
Oh, aquela festa, domingo,
tirava-lhe o sono! Que belo, se caísse uma grande chuva, um aguaceiro medonho,
de alagar a cidade inteira, de deixar tudo quanto fosse rua na lama! Quem dera!
Ficava transferido o batizado ou ninguém ia à casa de D. Branca, e ela, então,
ela, Adelaide, não tinha de se envergonhar, de baixar a cabeça a estranhos.
Mas – nem de propósito! – fazia
um tempo claro, azul, luminoso, adorável, como os belos dias de primavera, sem
o menor sintoma de variação barométrica, sem nuvens na limpidez cristalina das
montanhas.
E a jovem esposa de Evaristo
perdia-se em cogitações de toda a ordem, moralmente abatida no seu orgulho, na
sua vaidade latente de mulher nova que se vê roubada nos seus direitos à
partilha dos gozos. Lembrava-se, por uma natural associação de idéias, de que
D. Branca lhe dissera certa vez: “O homem é egoísta e finge não compreender as
necessidades da mulher, quando se trata de um vestido novo ou de uma despesa
extraordinária. A mulher é obrigada a pedir, a reclamar, a dizer o que precisa,
o que lhe falta.” Ela pedir a Evaristo? Pedir o quê? Uma toilette para o
batizado da pequena? E a roupa que trouxera do Norte, um enxoval quase
completo, inda que fora da moda? Que havia de dizer? Que razões apresentar a
ele, que sempre a conhecera pobre e refratária à etiqueta e ao luxo? Não, não
tinha coragem, nem queria, com uma exigência descabida, molestar o grande
coração de Evaristo.
Esperou, resignada, abafando
impulsos d'alma.
Em casa de Luís Furtado,
naqueles dias mais próximos à festa, era este o assunto obrigado de todas as
conversas. D. Branca, principalmente, cuja loquacidade contrastava com a
moderação dos inquilinos do segundo andar – não fazia outra coisa senão remexer
nas gavetas, polir os móveis, expor os cristais, num açodamento, numa
impaciência que lhe dava ares de inseto doido. Queria tudo nos seus lugares,
para quando chegasse o domingo. Mandou afinar o piano, lavar a casa de um
extremo ao outro, inclusive o quarto dos hóspedes e o escritório de Furtado, no
rés-do-chão, substituir as cortinas da sala de visitas; enfim, toda a casa
ficou pronta com quatro dias de antecedência para receber o desembargador
Lousada e alguns convidados “sem-cerimônia”. Era pouca gente: o Visconde de
Santa Quitéria, o Dr. Condicional, dois amigos quase íntimos do secretário, o
Loiola, tesoureiro do Banco, a viúva Tourinho, muito boa senhora, também rica e
prendada, o Xavier, do Jornal de Notícias, e um ou outro rapaz, de
intimidade.
Evaristo caiu das nuvens.
– Minha mulher – disse ele à
esposa – temos grosso forrobodó! Esta gente chama festa sem-cerimônia a
uma reunião de altos personagens que se divertem aristocraticamente. Com que
vestido te vás apresentar?
– Eu?... O melhorzinho é o de
casimira cinzenta, não falando no de gorgorão...
– De casimira?.
Evaristo levou a mão ao queixo e
fitou os olhos na mulher em atitude contemplativa.
– Que dizes?
– Não sei... – respondeu
Adelaide com indiferença.
O bacharel agarrou-se aos
bigodes, repuxando-os com a língua, mordendo-os, como se empacasse na resolução
dalgum problema de direito.
– Aonde nos vimos meter! –
dizia, passeando no quarto. – Aonde nos vimos meter!
– É o teu grandioso e
espetaculoso Rio de Janeiro!
Evaristo sorriu da ironia, e
continuando a passear:
– Há um remédio...
– Qual?
– Fazer um negócio com o
Banco...
– Negócio?
– Sim, levantar um pequeno
empréstimo.
Noutras quaisquer
circunstâncias, Adelaide o aconselharia que não, como já o fizera uma vez na
província; mas D. Branca acenava-lhe de longe, no seu espírito, “que não desse
uma nota, que não fosse tola.”
– Que dizes? – repetiu o
bacharel.
– Não sei...
– Pois eu sei: vou falar ao
Furtado. Achei a incógnita da equação. Isto de dever, todos devem mais ou
menos; a questão é pagar.
Com duzentos mil-réis, sim, com
duzentos mil-réis, arranjava-se tudo: uma toilette para Adelaide, uma
calça de casimira, e... e charutos.... O vestido, comprava-se feito, numa
modista.
Entraram em acordo, ele e a
mulher, sobre as despesas, fizeram cálculos à ponta de lápis, rabiscaram papel
até quase meia-noite. Adelaide já agora também pedia a Deus que não chovesse.
Era uma ótima ocasião para se apresentar às amigas de D. Branca, ficar
conhecendo a viúva Tourinho, a esposa do desembargador e outras senhoras do grand
monde fluminense.
Evaristo falou, com efeito, ao
secretário, no próprio Banco, acerca do empréstimo, alegando razões de ordem
doméstica. – Era mais um grande favor ao “amigo Furtado...”
– Queres um conselho de amigo?
pergunta Luís.
– Não contraias empréstimo ao Banco.
O Banco foi criado para altas transações financeiras, e... e o diretor é um
homem... um homem...
– ... um homem de têmpera
antiga, velho e rabugento. Espera aí um bocado...
O secretário levantou-se, abriu
um cofre de ferro, que estava no gabinete de trabalho, e contou duzentos
mil-réis.
– Toma lá, sou eu quem tos
empresta sem juros e sem prazo. Restituirás no fim do mês... daqui a um ano,
daqui a um século...
– Isso não! interrompeu o marido
de Adelaide. – Vim pedir ao Banco e não quero que te sacrifiques por minha
causa. Isso não!
– Toma lá, homem, não sejas
menino. Eu que tos empresto, é que tenho absoluta confiança em ti – que diabo!
– Qual confiança! Isso já não é
ser amigo, é ser pai!
– Pois quero ser teu pai – dá-me
essa honra.
Riram e o bacharel guardou as
notas na algibeira da calça, com um movimento discreto e reconhecido. – Ora,
muito obrigado, Sr. Luís, muito obrigado!
– Cavalheiros somos, na carreira
andamos... – disse enfaticamente, com um sorriso, o fidalgo de Botafogo.
Às quatro horas iam os dois no
mesmo bonde a caminho de casa.
O bacharel entrou radiante, com
um estranho fulgor na pupila. Adelaide acompanhou-o ao quarto.
– Sabes o que é isto? – foi
dizendo com a mão espalmada no bolso.
E, antes que Adelaide
respondesse, tirou o dinheiro, erguendo a mão em triunfo.
– Quanto? – perguntou a rapariga
com aquele risinho ingênuo que lhe era muito natural.
– Vinte!
– Vinte? apenas vinte?
– ... notas de dez!
– Ah!...
Evaristo, então, narrou, palavra
por palavra, o diálogo entre ele e Furtado, no Banco, e não ocultou o seu
entusiasmo pela “generosidade” do amigo, que ainda uma vez se revelara “digno e
correto!”
– Belo homem, o Luís!
– Eu também acho... – murmurou
Adelaide.
– Olhe que me colocou, deu-me
hospedagem, trata-nos à vela de libra, e agora... duzentos mil-réis, para pagar
amanhã, no fim do ano, daqui a um século!
Adelaide aprovou com a cabeça o
entusiasmo do marido.
E na mesma tarde, ao anoitecer,
foram ambos dar um giro à Rua do Ouvidor.
Capítulo
III
Luís Furtado era homem de
meia-idade, alto, robustez física invejável, pele rósea e conservada, bigode
negro, tratado a brilhantina, olhos negros e comunicativos, um pouco lânguidos,
talvez por afetação, talvez por temperamento.
Belo, verdadeiramente belo,
ninguém o diria sem risco de profanar o ideal antigo da beleza máscula; no
entanto, podia dizer-se dele que era, na acepção moderníssima, um bonito
homem. A convivência na Corte dera-lhe tintas de nobreza ao rosto largo de
provinciano setentrional. O Rio de Janeiro, com o seu maravilhoso poder de
cidade cosmopolita, afinara-lhe a cútis e a educação. Davam-lhe doutor, mas,
em verdade, nunca pusera os pés numa academia; os preparatórios mesmo, ele os
não completara; e como no Rio de Janeiro, na Corte, toda a gente é doutor,
ninguém punha dúvida no fictício diploma de Luís Furtado.
Mas a qualidade característica
do secretário do Banco Industrial era o amor às mulheres, uma tendência notável
para as conquistas de boudoirs, para o livre câmbio de afeições
delicadas, para o culto imoderado de Vênus. Esse fraco, longe de o
desprestigiar no conceito das rodas aristocráticas, tornava-o ainda mais
querido de um e outro sexo, que viam no esposo de D. Branca, um homem de bom
gosto, entendido em essências finas e em cotillons. Quem é que, em
Botafogo, não o admirava, quem? Chegava-se até a dizer, num exagero, que era a
alma do bairro!
O casamento não lhe tirava a
liberdade de homem que se governa; cumpria seus deveres conjugais; nada faltava
à mulher, nem aos filhos, todos em casa o estimavam; queria, portanto, sua
liberdade; “a melhor coisa que Deus deu ao homem”. Tinha idéias definitivas,
absolutas, sobre o casamento e opunha-as a qualquer moralista indiscreto que
lhe fosse criticar os atos.
D. Branca nunca se agastava com
ele, nunca lhe fizera a menor objeção no tocante às suas aventuras
donjuanescas. Quando alguém, homem ou mulher, os queria intrigar e levava ao
conhecimento dela fatos particulares da vida do esposo, a ilustre senhora tinha
sempre um risinho de incredulidade: “– O Furtado era um bom marido e um bom pai
de família. Os invejosos é que o queriam desmoralizar.”
No entanto, conhecia o gênio do
Furtado e uma ocasião surpreendera-lhe no bolso do paletó uma cartinha de
mulher, muito cheirosa e dentro da qual havia um amor-perfeito já desbotado
como essas flores raras que se eternizam entre as páginas dos álbuns. D. Branca
sorriu e devorou com os olhos a misteriosa epístola, em verdade bem misteriosa,
porque nada tinha de indiscreto senão o caráter visivelmente feminino da letra.
Nunca se vira maior laconismo, nem tão cautelosos dizeres numa correspondência
de mulher. Assinavam as iniciais B. F. – "Branca Furtado!",
pensou com estranheza e admiração.
E tornou a colocar o papel no
bolso do marido, respeitosamente. Era um segredo e ela não tinha o direito de
violar segredo a quem quer que fosse.
Outra ocasião deparou com o
retrato da cuja. – “Sim senhor: uma mulher esplêndida! O Luís tinha
gosto para mulheres...” No dorso da fotografia, em cartão imperial, a seguinte
dedicatória:
Ao Luís
– B. F.
Petrópolis,
18....
– Petrópolis! – exclamou D.
Branca. – É gente fina... (e com uma ponta de despeito) esses homens... esses
homens!...
O retrato voltou ao lugar onde
estava, sem um arranhão.
Impossível haver mais liberdade
e mais confiança entre marido e mulher.
O procedimento de Luís para com
D. Branca era igualmente recatado e tudo fazia crer que a víbora do ciúme não
lhe mordera ainda o coração de esposo. Compreendiam-se um ao outro, e, quando
em um casal, a mulher compreende o marido e o marido compreende a mulher, não
há mais bela instituição que o casamento. Ninguém peca por aceitar a vida como
a vida sempre foi – tal a filosofia de D. Branca, e com pequenas restrições, a
do secretário.
Dizer que se não amavam? Erro
gravíssimo. Adoravam-se quase, e, em certos momentos, era como se fossem noivos
em plena lua-de-mel. Segredos da alma humana...
Uns olhos cobiçosos e
apaixonados como os de Luís não podiam, decerto, ver indiferentemente um rosto
lindo de mulher. Foi o que se deu com relação a Adelaide, a meiga esposa de
Evaristo de Holanda. O secretário viu-a no dia da chegada e admirou-a
intimamente, com olhadelas furtivas e traiçoeiras, enquanto o carro rodava para
Botafogo. Ria, e o seu riso tinha um tique muito delicado, muito nobre, muito
fino, de cavalheiro gentil, que se aprimora numa cortesia de salão. E, era a
todo o instante – “vossa excelência”, a todo o instante uma frase elogiosa e
comedida e mais uma perguntazinha discreta que Adelaide respondia com o natural
embaraço de quem chega a um lugar estranho e pela primeira vez ouve linguagem
desconhecida.
O que logo provocou a atenção da
jovem esposa de Evaristo foi um grande anel de brilhante que Furtado trazia no
dedo – uma pedra enorme, de primeira água, cujas facetas se multiplicavam à
vista incisivamente, como um prisma, quando ele erguia a mão morena para cofiar
o bigode.
No outro dia, ao almoço,
Adelaide estava com um vestido branco de cassa e Furtado achou-a mais
comunicativa e mais bela. A toilette de gorgorão dava-lhe uns ares de
respeito, que não iam bem com a frescura primaveril do seu rosto; e aquela
mudança de vestuário, aquela nonchalance obrigou-o também a mudar o
tratamento de “vossa excelência” que tantas vezes repisara na véspera. Evaristo
mesmo já lhe havia observado que estavam “em família”, que deixasse o “vossa
excelência” para pessoas de cerimônias, do contrário não se entendiam, nem
podiam estimar-se como bons e velhos amigos.
E entraram todos na mais ampla
intimidade, no mais belo convívio doméstico e na mais franca harmonia. – Era
pena que o andar superior não estivesse desocupado, oh, era pena! – lamentava o
marido de D. Branca. – Uns estrangeiros que ninguém sabia donde tinham
vindo!...
Mas, no íntimo, desejava que os
estrangeiros não se mudassem nunca; ele assim estava mais perto do seu novo
ideal... Em casa ou no Banco, uma só preocupação enchia-lhe o espírito: –
Adelaide. Como e por quê? Mistério! E a vida o que é senão um grande e
tenebroso mistério?
Luís coçava a cabeça, atordoado,
impaciente, fechando os olhos como para ver melhor no fundo da sua alma, e quer
os fechasse, quer os abrisse, tinha diante deles a imagem de uma criatura
excepcional – anjo e mulher – e essa criatura tinha os olhos de Adelaide, a
boca de Adelaide, o sorriso de Adelaide! Como resistir à tentação, ele, que
julgava a mulher uma força divina, um poder acima de todos os poderes humanos e
acima de todos os preconceitos sociais? .
E nesse filosofar à-toa, nesse
monologar do cérebro, perpassava também o riso bom de Evaristo, a alma simples
do amigo, cheio de confiança e de um otimismo às vezes ingênuo. Furtado
espancava uma imagem para deliciar-se com a outra, com a dos olhos meigos e
sorriso angelical...
À noite, fora de horas,
acordava, abria os olhos num êxtase sonâmbulo – enquanto a mulher se
imobilizava – e punha-se a fazer cálculos, a maquinar planos de general em
véspera de batalha. – Como havia de ser isso? Como havia de ser aquilo?...
E, no outro dia, eram os mesmos
olhares, as mesmas finezas, que Adelaide já não estranhava, por virem donde
vinham. Não padecia dúvida que o Sr. Furtado era um cavalheiro de educação e
ela achava muito bonito um homem de educação... Os modos do Sr. Furtado, quem é
que os não apreciava?
Ao almoço e ao jantar,
longamente discutiam assuntos caseiros e D. Branca via-o quase sempre de bom
humor à hora das refeições, dizendo pilhérias, mostrando-se entendido em
matéria culinária e em coisas de boudoirs, improvisando anedotas,
gracejando, servindo à mulher e ao Evaristo, para poder servir a Adelaide, fito
único dos seus olhos e da sua imaginação.
À noite escancaravam-se as
janelas da frente e jogava-se à luz do gás amortecido por causa do calor. Nos
jogos de parceria, Furtado sentava-se defronte de Adelaide, tocando-se os
joelhos, a pontinha dos pés, em torno da pequenina mesa de charão colocada ao
centro da sala, e divertiam-se horas e horas, num tête-à-tête voluptuoso
e calmo, perturbado, às vezes, por uma gargalhada geral que irrompia uníssona
das quatro bocas.
Evaristo chamava aquilo, aquelas
reuniões familiares “uma pândega”, sempre melhor que as da Rua do Ouvidor: mais
honesta e menos tumultuosa.
– Inda havemos de fazer um
piquenique no Jardim Botânico! – disse uma noite o secretário.
– É verdade, é verdade! –
aplaudiu, com entusiasmo, D. Branca.
– Vamos um dia, um domingo, ao
Jardim Botânico!
– À Tijuca não seria melhor? –
lembrou Evaristo, que ardia por fazer um passeio à “tal Tijuca”.
Mas Furtado apontou
inconvenientes de ida e volta: – era muito longe a cascatinha, lá onde o diabo
perdeu as esporas, enquanto que o Jardim Botânico ficava perto e era mais
elegante. Depois, com o tempo, ir-se-ia à Tijuca...
– Em primeiro lugar – concluiu
Evaristo – é preciso que esses estrangeiros do segundo andar ponham-se ao
fresco, vão para o diabo que os carregue!
E ficou assentado que num belo
domingo iriam os dois casais ao Jardim Botânico, em piquenique.
Antes disso, porém, havia o
batizado da Julinha. Estava tudo pronto como para uma grande recepção de
aniversário: vidros, móveis, tapetes, cristais, o serviço da copa, o buffet,
uma quantidade enorme de garrafas, mesa lauta sobre à qual via-se toda a
baixela da casa e vasos com flores naturais e altas pirâmides de doce, pondo
manchas na brancura da toalha, e em cada prato um buquezinho de violeta
arranjado especialmente pelas mãos de D. Branca; e em toda a casa, desde a sala
de visitas até os fundos da cozinha, um ar alegre de interior holandês, um ar
festivo e risonho, cheirando a flores como a atmosfera matinal dos jardins.
Viam-se em todo aquele esmero, em toda aquela simplicidade grega – na
composição de um vaso, no arranjo dos buquês – o zelo aristocrático de D.
Branca e o gosto não menos aristocrático de Luís Furtado harmonizando-se nas
menores coisas, traindo-se a cada hora. O papel da sala de visitas parecia mais
novo; os quadros destacavam-se, muito nítidos, numa bela disposição ornamental
de galeria pobre; o piano sofrera uma mão de óleo e guardava ainda o cheiro da
fábrica, de costas para a janela, reluzindo como um espelho; as cortinas
pendiam frouxamente das armações de ouro... Enfim, na alcova esponsalícia de D.
Branca estava o berço de Julinha todo em festa, ao lado da grande cama de
casal. Para aí é que deviam convergir os olhares do desembargador e da mulher,
especialmente destes, porque D. Branca entendia que ser dama do Paço era
merecer as atenções devidas à própria imperatriz; além disso, o velho Lousada
tinha, mais do que ninguém, direito a essas atenções como padrinho da pequena.
D. Branca esforçara-se por dar ao berço um aspecto luxuoso e sereno, para que
se não dissesse que ela, no meio das suas ostentações, pouco amor tinha aos
filhos. E conseguira-o, sem desprezar um ou outro conselho quer de Adelaide,
quer de Furtado, quer mesmo de Evaristo, que também fora chamado a dar sua
opiniãozinha.
– Eu nunca tive filhos, minha
senhora... – protestou ele.
Mas a esposa do secretário
alegou que era justamente por ele nunca ter tido filhos que lhe pedia a
opinião.
E, agarrado por um braço e pelo
outro, o marido de Adelaide lembrou, espirituosamente, que se devia colocar na
cúpula a seguinte inscrição: Este filho é o último da prole... – o que
fez rir muito a D. Sinhá do desembargador, a ela só, porque os outros não
acharam graça na idéia.
O leito de Julinha era todo de
uma madeira escura e sólida, como ébano-da-índia, e custara um dinheirão ao
Furtado. Imitava o casco de urna pequena gôndola com a proa recurva e estreita.
Sobre ele caía fartamente uma nuvem de rendas, abrindo-se para um e outro lado
e quase tocando o chão. A cúpula era um verdadeiro trabalho de arte, muito simples,
mas curioso, representando uma coroa ducal com embutidos de marfim. No alto do
cortinado, um grande laço de seda azul com franjas de ouro...
Ao todo seis carros, inclusive a
berlinda, em que ia a pequena nos braços da ama e a mulher do desembargador. As
outras eram ocupadas sucessivamente pelo funcionário do governo e D. Branca,
pelo Furtado e o Raul, pela viúva Tourinho, pelo tesoureiro do Banco Industrial
e a esposa, e o último carro por dois amigos do secretário, rapazes do
comércio.
D. Sinhá não quis ir à igreja,
deixando-se ficar em companhia de Evaristo e de Adelaide nas suas toilettes de
pouca cerimônia, esperando a volta do batizado – “que era uma grande
maçada vestir-se toda de luxo somente para ouvir o latim de monsenhor Teixeira;
logo não estavam vendo?...”
Caíam as primeiras sombras da
noite quando um rodar de carros anunciou o regresso da Julinha com todo o seu
acompanhamento. Encheram-se as janelas de curiosos que queriam ver a criança, e
um ligeiro alvoroço percorreu, como um frêmito de novidade, aquele trecho do
aristocrático bairro. – É o batizado! é o batizado! – exclamaram vozes
alvissareiras; e os carros, um a um, foram parando na mesma ordem da saída, com
a mesma distinção, e um a um foram-se apeando os convidados, primeiro os
cavalheiros, depois as senhoras, risonhos todos, numa onda invisível de
essências. À porta da casa, tapetada de folhas, houve um murmúrio, destacando a
voz de Furtado:
– Entrem, meus senhores, queiram
ter a bondade...
Seguiu-se o jantar – “um
banquete de príncipe!” na opinião de Evaristo. Adelaide foi apresentada à viúva
Tourinho e ao Loiola do Banco, houve brindes ao dessert, todos acabaram
tratando-se familiarmente, esquecendo o vestido de seda e a casaca, e a própria
Julinha que, depois de um berreiro infernal, adormeceu com a serenidade de um
anjo.
Era noite quando Luís Furtado
ergueu-se para levantar o último brinde, o brinde de honra à “Sereníssima
senhora D. Isabel, princesa imperial e herdeira presuntiva do trono do Brasil!”
O champanha espumava nas taças de cristal e os hip! hip! hurras! estrondearam
em toda a casa.
– À Sereníssima!
– À herdeira da coroa!
– À imperial madrinha da Júlia!
E, todos de pé, esvaziaram as
taças.
Furtado observou, então,
limpando o bigode, que na sala estava mais fresco.
– Vamos, desembargador... Ó
Evaristo, dá o braço à D. Rosa.
D. Rosa era a mulher do Loiola.
O bacharel, estranho a etiquetas, muito filósofo, como dizia o secretário, deu
dois passos à frente e recebeu amavelmente a mulher do tesoureiro.
– Muito obrigada, Sr. Evaristo,
muito obrigada! – repetiu a gorda matrona.
– Oh, minha senhora...
E, em procissão, desfilaram os
convivas pelo corredor. No alto da escada do segundo andar ocultou-se, rápida,
uma sombra de mulher. Instintivamente o desembargador ergueu os olhos,
baixando-os logo.
Furtado ia na frente, guiando os
amigos, de braço com a ilustre dama de Sua Majestade a Imperatriz.
Agora é que a sala de
visitas tinha um aspecto nobre e luxuoso, ao reflexo das serpentinas e do
grande candelabro de cristal pendente do teto. Quadros e bibelôs, o piano e a
mobília, o espelho de primeira ordem, rodeado de arabescos, a estante de
música, as tapeçarias, as cortinas, o papel do forro, tudo resplendia e dava
uns tons de alta nobreza ao conjunto.
Adelaide, sempre tímida, vinha
de braço com um dos rapazes do comércio.
Sentaram-se todos, rindo,
palrando, o tesoureiro com a face congestionada, a mulher idem, ambos muito
gordos; a mulher do desembargador com o seu ar indefectível de nobreza pouco
comunicativa, querendo parecer mais moça do que na realidade era, assestava de
vez em quando o lorgnon de tartaruga, que pendia-lhe de um correntão de
ouro, e punha-se a observar uma estampa do imperador, que havia na sala, entre
dois consolos, enquanto o velho Lousada falava com a viúva Tourinho acerca dos
últimos incômodos do monarca; o secretário instalara-se entre Adelaide e D.
Branca e respondia prontamente às perguntas que lhe faziam, ora um dos rapazes,
ora D. Sinhá, ora o tesoureiro do Banco, ora o próprio desembargador,
interrompendo a conversa com a Tourinho, e volvia-se freqüentemente para a
esposa de Evaristo. O bacharel divertia-se a gabar os trajos de Raul, dando-lhe
palmadinhas no ombro.
E pouco a pouco ia-se tornando
maior a familiaridade.
– E o Santa Quitéria? – lembrou
Furtado com ar de desgosto. Ele, que é um dos meus bons amigos, faltar ao
batizado de minha filha!
– E o Dr. Condicional? – saltou
Evaristo. – Ainda ontem disse-me que vinha.
– Faltaram todos: o Santa
Quitéria, o Pinto, comendador, o Condicional, o Xavier... todos, enfim!
– Todos não! – protestou o velho
Lousada, sorrindo – eu aqui estou com minha mulher...
– O desembargador é gente nossa,
é de casa – emendou Furtado.
– E eu também sou de casa? –
perguntou maliciosamente a viúva.
– V. Exª., com a sua bondade, é
de todo o mundo!
– Alto lá, meu amiguinho! –
sorriu a boa senhora. – De todo mundo é que não.
E quis saber o que é que o Sr.
Furtado entendia por todo o mundo.
Furtado explicou-se
razoavelmente.
Nisso pára um carro à porta.
Todos os olhares volveram-se para a entrada da sala. D. Branca e o secretário
ergueram-se. Mas, antes que se aproximassem da escada, já o Raul anunciava
indiscretamente que "era o Dr. Condicional!"
– Oh, o Manhães! – acudiu
Furtado.
– Eu mesmo, caro amigo, eu
mesmo. Venho dar-lhe os parabéns pelo glorioso dia!
Movimento nas cadeiras; leve
sussurro.
– Ah, esse é que é o autor do Juca
Pirão? – fez um dos rapazes do comércio.
– Sei que não vim de bonne
heure... – tornou o literato dirigindo-se para o grupo, consertando a
sobrecasaca. – Em todo o caso, antes tarde que nunca!...
Apresentações, cumprimentos, e o
Dr. Condicional, dando jeito ao pincenê, sentou-se. Trazia um grande buquê de
violetas na lapela.
Novo carro parou quase
imediatamente. Furtado, que se ia acomodando, ergueu-se outra vez. Outra vez o
Raul adiantou-se para anunciar, agora com toda a discrição e respeito, “o Sr.
visconde de Santa Quitéria!”.
– Oh!
A exclamação foi geral.
– O visconde de Santa Quitéria!
– Logo vi que não faltava! –
disse Furtado.
E D. Branca teve um
movimentozinho de surpresa muito especial, exclamando também: – Oh!
Era, com efeito, o Visconde de
Santa Quitéria, o grande capitalista, diretor do Banco Luso-Brasileiro.
Bem que todos tinham ouvido
parar um carro!
Pelo menos naquele instante,
ninguém se lembrou do ilustre poeta que acabava de entrar. A chegada do
visconde enchia a todos de surpresa e de alta consideração. Entre a poesia e o
capital – preferia-se o capital, tanto mais quanto o diretor do Banco Luso não
representava simplesmente um capitalzinho de alguns mil-réis. Não. O Santa
Quitéria tinha fortuna para mais de seis mil contos!.
O ilustre personagem estacou à
porta, fez um cumprimento geral com a cabeça e entrou, muito correto, admirável
de mocidade e de frescura. D. Branca recebeu-o no meio da sala com o mais belo
dos seus sorrisos.
Era um perfeito cavalheiro, o
visconde. Residia ora em Petrópolis, quando já não suportava o calor na Corte,
ora no seu rico palacete das Laranjeiras, pelo inverno chuvoso e nublado. Para
as transações da Bolsa tinha escritório na Rua da Alfândega, onde ocupava uma
saleta de frente e uma alcova com toilette de mármore e outros objetos
indispensáveis ao asseio de um homem. Idade média (pouco mais de quarenta
anos), muitíssimo conservado, sem um fio branco na cabeça, olhos vivos, todo
ele irrepreensível, tinha fama de beleza entre as mulheres, que o admiravam,
não tanto pela fortuna, mas especialmente pela correção do trajo e pelo
estranho conjunto das linhas fisionômicas. Muita gente achava-lhe pontos de
semelhança com Luís Furtado, que se orgulhava disso, que era uma honra para
ele, uma grande honra! Por duas vezes o tinham saudado na Rua do Ouvidor
julgando cumprimentar o Santa Quitéria: Sr. Visconde!... – e ele correspondera
delicadamente. Era um engano que o honrava.
O visconde descera de Petrópolis
na manhã daquele dia para não faltar ao convite do secretário.
– Dou-lhe os meus parabéns –
disse ele a Furtado. E voltando-se para D. Branca, antes de sentar-se: – Peço
licença a V. Exª., para um presentezinho à pequena, uma simples lembrança.
D. Branca, humilhada, recebeu a
dádiva do banqueiro, que este entregou dentro de uma caixinha de veludo grená.
Era uma jóia de ouro e brilhante, uma linda medalha para pescoço.
– Oh, Sr. visconde!...
D. Sinhá quis logo ver o que
era:
– Veja, mamãe, veja que bonita!
A dama de honra de Sua Majestade
a Imperatriz tomou, cautelosamente, o brinde, assestou o lorgnon e
achou, com efeito, lindo, muito lindo!
A jóia correu de mão em mão,
arrebatando um – oh! – de cada boca. O Dr. Condicional lembrava-se de ter visto
coisa semelhante na vitrina do Farani.
D. Branca não se esqueceu de
apresentar Adelaide ao visconde.
– "Sua amiga Adelaide,
esposa do Sr. Evaristo de Holanda, comprovinciano e amigo de Furtado..."
E a conversa continuou animada,
picante, com um acentuado caráter de brasileirismo, entrecruzando-se as vozes,
as opiniões, os ditos espirituosos.
O Dr. Condicional, que se
sentara ao lado do desembargador, fez a apologia do Instituto Histórico, do que
o velho magistrado era membro, discorrendo sobre os últimos trabalhos do barão
da Corte Real, apresentados ao Instituto, e sobre os progressos da geografia e
das letras no nosso país.
Lousada inclinava a cabeça para
ouvir melhor, e saboreava os elogios de Valdevino Manhães como quem escuta uma
música voluptuosa, uma vaga harmonia encantadora, os olhos entrecerrados, meio
adormecidos, a boca imóvel, serenamente imóvel...
De repente estalava uma risada e
ele abria os olhos, com um sustozinho, pigarreando.
– E V. Exª. já apresentou algum
trabalho, Sr. desembargador? – inquiriu, por delicadeza, o poeta.
– Ainda não, meu amigo, ainda
não, mas tenho pronta uma refutação aos Irmãos Pinzón do conselheiro
Lisboa.
– Uma refutação?
– Exatamente, umas notas sobre
os primeiros descobridores da América, uns documentos importantíssimos, que
valem toda a fortuna dos Rothschilds...
O visconde de Santa Quitéria, ao
ouvir falar nos Rothschilds, deitou o rabo do olho.
– ... Calcule o senhor que os
fenícios, muito antes de Pinzón, numa época remotíssima, andaram no Amazonas...
– No Amazonas, desembargador? –
repetiu Manhães com espanto.
— Pois não, no Amazonas...
admira-se? Quanto mais se eu lhe disser que os Cananeus andaram na Paraíba do
Norte! Pois é a pura verdade. Encontrei na biblioteca de Sua Majestade um
fac-símile de inscrições fenícias descobertas numa pedra da Paraíba.
– Mas, então, Colombo não
descobriu a América?
– Não senhor... Colombo não
descobriu coisa alguma...
E o desembargador, pausadamente
e circunspectamente, explicou a magna questão do ovo de Colombo.
– E o senhor, tem escrito muito?
– inquiriu depois ao êmulo de Gonçalves Dias.
– Oh, muito. V. Exª. não
imagina! O pior é que no Brasil ainda não há editores. V. Exª. decerto conhece
o meu poema...
– Qual deles?
– Eu só escrevi um poema até
hoje...
– Ah!... Como intitulou?
– Então V. Exª. não
conhece? – insistiu o literato com surpresa.
– Homem, eu, para lhe falar a
verdade, em matéria de verso, só conheço os Lusíadas, que tenho em casa.
Valdevino Manhães deu um jeitinho
ao pincenê, verificou que as violetas estavam na lapela, e, como se acabasse de
ouvir uma horrorosa blasfêmia, uma heresia medonha, exclamou, fitando os olhos
do magistrado:
– Só os Lusíadas?!
– Só os Lusíadas.
Nesse instante aproximava-se um
criado oferecendo sorvetes em conchazinhas de porcelana, e um ar frio inundou o
ambiente.
– Só os
Lusíadas! repetiu o poeta, estendendo a mão à bandeja.
Parecia-lhe incrível,
extraordinário, fora de toda a verdade, que um membro do Instituto Histórico do
Rio de Janeiro, autor de uma memória sobre os irmãos Pinzón, desembargador da
Relação, não lesse os poetas do seu país. Era incrível. Mas o que ele
estranhava ocultamente é que o desembargador não houvesse lido a paródia do I
Juca-Pirama, que tantos elogios merecera da crítica nacional.
As outras pessoas ouviam
interessadas o visconde de Santa Quitéria, bebendo-lhe as palavras,
religiosamente fitos nos seus olhos.
O Dr. Condicional, porém,
animado pelo desembargador e fingindo prestar atenção ao Visconde, imobilizava
os olhos sobre a esposa de Evaristo. Subitamente a presença dela o atraíra como
um clarão que de repente se abrisse, mais forte que a luz do gás.
Ainda não havia reparado! Como é
que se achava ali aquela mulher e ele – cego! – não lhe fizera as devidas
cortesias? O que mais o impressionava era o ar triste de Adelaide, o tom
magoado do seu rosto, a expressão recolhida e meiga dos olhos dela... Pobre
senhora! Talvez algum drama íntimo, talvez algum desses episódios
"lutuosos" de família, talvez... – quem sabe? – alguma dor oculta
pungindo-lhe a ignorada existência... E à sua imaginação vinham casos de
adultério, romances de amor infeliz, tragédias em que os maridos matavam as
esposas, num formidável acesso de loucura; – suicídios por amor; namorados que faziam
saltar os próprios miolos e raparigas que ingeriam veneno... horrores do
coração humano! – e repetia mentalmente, sensibilizado por uma vaga apreensão
que o punha nervoso: – “Aquela senhora tem o que quer que seja!...”
Valdevino Manhães carregava de tintas
sombrias o rosto de Adelaide, o rosto e a alma – embalado por seu natural
pessimismo que ia até a negação de Deus e do Bem. Explicava tudo pela fatalidade, e não podia ver
uma pessoa triste que não dissesse logo: “Aí vai um desgraçado!” No fundo desse
pessimismo havia, entretanto, uma compaixão pelo sofrimento alheio – compaixão
que ele calculadamente escondia “para se mostrar superior às fraquezas
humanas”.
A natural expressão do rosto de
Adelaide fazia-a mais triste do que na verdade ela estava; seus olhos nunca se
abriam completamente; eram olhos meigos, de uma vaga melancolia serena e
cismadora, olhos recolhidos, quase mortos, onde às vezes brilhava, como por
encanto, um reflexo de alegria, olhos contemplativos, olhos ideais... Naquele
momento a esposa de Evaristo, dominada pela palavra do banqueiro, via diante
dela, como um estranho fantasma, a Corte Imperial, desde o monarca, com a sua
longa barba branca de rei Davi, carregando o pesado manto de arminho e ouro,
rodeado de áulicos e cortesãos sob uma grande cúpula majestosa, até o último
lacaio dando-se ares de fidalgo, indo e vindo pelos corredores na sua libré
carnavalesca de súdito fiel e servo obediente.
O assunto do visconde era a
doença do real personagem, a grave moléstia do imperador. Todos o ouviam em
grande silêncio e com grande respeito, por se tratar ainda uma vez do homem
para quem o Brasil inteiro voltava-se naquele momento da vida nacional. A
aristocracia brasileira, já ouvindo falar em república, e zeloza das suas
posições e dos seus créditos, temia um desastre político, um assalto ao poder,
naquela hora de tristeza, quando na verdade que os médicos tinham aconselhado
ao chefe da nação um passeio à Europa, uma vilegiatura em Spa ou em Cannes...
– E a imperatriz, como deixou o
senhor a imperatriz? – perguntou a mulher do desembargador, inclinando-se para
o visconde.
– A imperatriz, minha senhora, é
aquele mesmo coração, aquela mesma brandura: diz que há de morrer onde morrer o
velho... Uma santa!
– Mas, quando pretende embarcar
a família imperial? – interrogou Furtado.
– Por enquanto nada está
resolvido. Sua Majestade não quer precipitar uma viagem dolorosa, tem saudades
do Brasil.
– Coitado!... – murmurou D.
Branca, sem tirar os olhos do capitalista.
– E ninguém sabe, afinal, qual é
a doença do imperador! – disse o velho Lousada.
– Não é coração? – atalhou a
dama de honor.
O visconde, muito
respeitosamente, pediu licença à nobre senhora para dizer que não, que o Sr. D.
Pedro II estava com uma glicosúria...
– Glicosúria? Que é glicosúria?
– Diabetes...
– Creia o senhor que ainda não
compreendi...
– Diabetes... glicosúria... –
fez o visconde atrapalhado, esfregando-se os dedos.
– Enfraquecimento cerebral,
minha mulher – explicou Lousada convictamente.
– Não é bem enfraquecimento
cerebral; o enfraquecimento, segundo ouvi dizer, é um dos múltiplos sintomas da
diabetes... – emendou o banqueiro. – A glicosúria é... é uma doença dos rins.
– Açúcar na urina, homem, creio
que está muito bem dito açúcar na urina! – opinou o Dr. Condicional
interrompendo as suas reflexões poéticas para emitir juízo científico.
– É... – confirmou friamente o
Visconde.
– Pois eu já ouvi dizer por um
médico ilustre que Sua Majestade sofre de um esgotamento nervoso... – falou o
secretário.
– Em francês surmenage, isto
é, excesso de trabalho mental... – explicou ainda uma vez, com um ar pedante, o
literato.
As indiscretas e bruscas
explicações do Dr. Condicional causaram má impressão ao Visconde, que perguntou
baixinho a Furtado “se aquele moço era doido”.
Os últimos incômodos do soberano
interessavam mais à população fluminense que a alta ou baixa do câmbio ou que a
queda estrondosa de um ministério em peso. Na Rua do Ouvidor, na Bolsa, nas
secretarias de Estado, nas redações de jornais, todo o mundo comentava a
diabetes do monarca, citando pareceres de alta valia, recordando feitos
ilustres do segundo imperador, como se o homem já estivesse nas ânsias da
morte, discutindo o caráter da enfermidade, que, para uns era diabetes, para
outros lesão cardíaca, para outros ainda, esgotamento nervoso, e, finalmente,
para um grupo de cortesãos, um ligeiro incômodo dos rins. E ninguém
acertava com o verdadeiro mal que se apoderava lento e lento do imperial
organismo. O governo, escrupuloso por demasia quando se tratava do chefe da
nação, ficava mudo ante a curiosidade do povo, sem dar à Câmara o gostinho de
lhe responder às sucessivas interpelações. Deputados e senadores erguiam a voz
no seio do Parlamento, inquirindo sobre os “fatos que alarmavam o país inteiro”
e quer o presidente do Conselho de Ministros, quer o Secretário do Império,
diziam simples e laconicamente que “Sua Majestade estava em pleno gozo das suas
prerrogativas e das suas faculdades”. Mas o grande caso é que os boatos enchiam
as ruas, comunicando-se, num furor de incêndio, a todas as casas, a todos os
arrabaldes e a todas as províncias. Falava-se mesmo na ida do imperador para a
Tijuca e daí, se não melhorasse, para bordo de um vapor estrangeiro. Que ia
fazer Sua Majestade na Tijuca – ele que só arredava o pé da Boa Vista para
Petrópolis? O clima da Tijuca era quase o de Petrópolis: que ia ele fazer ao
alto da Tijuca?
Multiplicavam-se as dúvidas e os
comentários. Os barões e os Viscondes, que se sentiam incomodados, apregoavam
logo a sua diabetes, o seu enfraquecimento nervoso; e a palavra surmenage,
até então pouco vulgarizada, tornou-se uma palavra à moda, um vocábulo
chique para exprimir dor de cabeça, indisposição nervosa e até impurezas do
sangue. Todo o Rio de Janeiro era uma grande surmenage...
O visconde de Santa Quitéria, ao
cabo de meia hora, reconheceu que as notícias de que fora portador involuntário
enchiam de tristeza os convidados de D. Branca, e, um pouco no ar, um pouquinho
sem saber o que dissesse, ele, o gentleman, o correto homem de salão,
nunca supérfluo, nem amigo de contrariar o próximo, bandeou-se para Adelaide.
– V. Exª. tem gostado da Corte?
A esposa de Evaristo acordou da
abstração em que mergulhara e respondeu timidamente, com um leve suspiro:
– Sim, senhor... muito!
– Ah, naturalmente! A Corte é
hoje um dos centros mais aristocráticos do mundo. Nas províncias, em geral, não
se faz idéia do que isto é...
D. Branca interveio:
– Mas ainda não foi a
Petrópolis, senhor Visconde.
– Oh, então é preciso ir, é
preciso fazer um passeiozinho à cidade dos reis... – tornou o banqueiro
afetando um sorriso.
– Lá isso concordo – apoiou
Valdevino Manhães, às voltas com o pincenê. – Petrópolis é o complemento do Rio
de Janeiro, ou antes, do município neutro.
Evaristo quis dar um aparte; mas
por prudência, engoliu a expressão. Ia desgostar o Santa Quitéria com uma
alfinetada na monarquia. Para quê?
Já era tarde. O calor sufocava.
Não se ouvia uma pisada na rua. Tudo quieto. Longe, para os lados da praia,
tilintavam as campainhas dos bondes. Os dois rapazes do comércio tinham-se
erguido para fumar um cigarro à janela. – “Como estava escura a noite!”
murmurou um deles. O gás da sala dava uma luz preguiçosa, uma claridade
de antecâmara. O piano, sempre aberto, esperava que alguém o fosse animar com
as teclas muito alvas, muito novinhas.
O primeiro a retirar-se foi o
visconde. Tinha cumprido o seu dever. Pedia licença...
Luís Furtado acompanhou-o à
porta da rua, embaixo.
E aquela noite, que devia ser de
festa e de regozijo pelo batizado da Julinha, acabou como todas as noites que
não são de festa, nem de regozijo – tristemente, quase lugubremente.
Quando todos saíram, Luís
Furtado abriu a boca num grande bocejo, que estrondeou na casa e acendeu um
cigarro, cantarolando.
Capítulo
IV
Quando, um belo dia, Evaristo
chegou da rua, soube que os estrangeiros do segundo andar tinham-se mudado, sem
dizer que espécie de gente eram, nem para onde iam.
– Com efeito! – exclamou,
surpreendido. – Nem que se estivesse esperando a volta de D. Sebastião...
Ah!... Eu já estava resolvido a alugar o palacete do Friburgo!
– Agora, sim, senhor – disse
Luís, batendo no ombro do amigo e rindo para Adelaide – agora vão dormir
folgadamente na sua cama de casal, vão se regalar!
– Queres dizer, então, que
passávamos as noites de olho aberto, no nosso belo quartinho? Estás muito
enganado. Nunca dormi tanto, e a Adelaide melhor um pouco.
– Não se segue, porém, que
deixem de almoçar e de jantar conosco...
– Em primeiro lugar, um exame
nos aposentos; depois, trataremos do almoço e do jantar.
– Já andamos por lá – disse D.
Branca espevitadamente. – Sabem o que encontramos?
– Algum menino pagão... –
adiantou-se Furtado.
– Algum fac-símile de inscrições
hebraicas para presente ao desembargador?
– Sério; vejam se podem adivinhar
– insistiu a esposa do secretário.
Os dois homens puseram-se a
pensar em qual teria sido o misterioso encontro das duas senhoras...
– Não sei – disse, por fim, o
marido de Branca.
– Nem eu... – imitou Evaristo.
– Um irrigador de Ermarck, por
sinal bem novinho.
– Que diabo quer isso dizer? –
perguntou o bacharel com assombro.
Adelaide não se pôde conter e
abriu numa risada sonora e gostosa, ocultando o rosto nas mãos. D. Branca, ante
a ingênua pergunta de Evaristo, ria também para outro lado, enquanto o
secretário justificava a ignorância do amigo dizendo que o aparelho de Ermarck
ainda não era bastante conhecido no Brasil e que, por isso, o Holanda tinha
toda a razão... E acrescentou com ironia:
– São muito maliciosas as
mulheres!
Mas Evaristo não descruzava os
braços, estatelado, vendo as duas senhoras rir.
– Então, é que já sabes o
emprego do irrigador, Adelaide!
– Eu?
Novo acesso de riso sufocou a
esposa do bacharel, como se lhe estivessem a fazer cócegas.
– Sabem que mais? – disse afinal
Evaristo. – Os ingleses, que deixaram o irrigador é porque o irrigador não
presta! Vamos ao que interessa.
Já Luís Furtado galgava o primeiro
degrau da escada que ia ter no segundo andar. Evaristo, Adelaide e D. Branca o
acompanharam, todos risonhos, a falar dos ingleses.
Eram trinta degraus estreitos,
que subiam em curva, gemendo sob os pés, iluminados por uma grande clarabóia de
vidro.
O andar superior compunha-se de
uma sala de frente, alcova, corredor e dois quartos menores que a alcova,
comunicando-se. Havia também um terraço com grades de ferro, onde se erguia uma
espécie de quiosque para o water-closet.
O secretário começou a inspeção
pela frente. As janelas estavam abertas, deixando ver a praia de Botafogo; a
enseada, não muito longe, o Pão de Açúcar e os morros de Niterói dando um
aspecto grandioso e selvagem à baía. À direita, erguido a prumo, o perfil negro
do Corcovado atraía os olhos, em linha reta para o alto, como um dedo enorme de
gigante apontando o azul sereno. A vista alcançava, depois, outras montanhas, e
entre elas, o cemitério de São João Batista, salpicado de túmulos brancos, numa
simetria pitoresca e lúgubre. Àquela hora, distinguia-se grupos de pessoas,
grupos negros em marcha, sumindo-se e aparecendo entre os mausoléus.
À esquerda, telhados e hortas.
O secretário não gostava de
olhar o cemitério: recordava-se tristemente da última vez em que lá fora enterrar
a ilustre senhora, bela mulher, cujo nome o Rio de Janeiro todo conhecia... Não
gostava, não gostava de olhar o cemitério...
D. Branca estava aflita por
chegar aos fundos; queria surpreender o marido de Adelaide com o irrigador de
Ermarck.
– Que achas? – perguntou Furtado
ao amigo, relanceando os olhos no aposento.
– Bom... bom – murmurou o
bacharel. – Vamos cá!
E dirigiu-se aos fundos da casa,
inspecionando o teto e o papel do forro.
– Vocês aqui estão muito bem –
tornou o secretário.
– Muito melhor que na Cidade
Nova – acrescentou D. Branca.
– Ao menos estão em Botafogo.
O corredor ia sair na área,
forrado em todo o comprimento, claro, fresco e iluminado pelos reflexos da
clarabóia.
Percorreram tudo até o
quiosquezinho do terraço, que o bacharel comparou poeticamente a uma “casa de
pombos”.
– Agora venha ver, Sr. Evaristo,
venha ver o que os ingleses deixaram – insistiu de novo D. Branca.
– Tolice de minha mulher,
Evaristo!
– Não, não, tenha a bondade, Sr.
Evaristo, tenha a bondade. Quero que o senhor veja...
A um canto do terraço, entre o
quiosque e o gradil, estava uma espécie de cilindro cor de cobre novo, com uma
das extremidades em forma de funil donde saía molemente, quebrando-se em
curvas, um tubo estreito de borracha.
– Isso o que é? – perguntou,
inclinando-se, o bacharel.
As duas senhoras abriram outra
vez na risadaria, cabeceando, agarrando-se como duas colegiais.
– Branca! – advertiu Furtado. –
Olha que o Evaristo não é menino de escola...
E segurando o amigo pelo braço o
foi levando para dentro do corredor.
– Isso é uma das grandes
invenções do século, meu amigo; veio com a descoberta do micróbio parasitário.
Falavam baixo, com hipocrisia de
homens que se querem dar ao respeito. Mas D. Branca ouviu ainda um oh! de
exclamação que o marido de Adelaide não pôde abafar.
Estava escurecendo. Já o sol
mandava o seu último adeus à terça-feira com uns restos de claridade
crepuscular.
Tanto o bacharel como a esposa
acharam que se devia tratar logo da mudança, ou antes da instalação, porque
Evaristo inda não comprara sequer a cama de casal. – Mudar o quê? Só se fosse
uma rede que ele trouxera do norte, uma rede esplêndida, de labirinto, e os
indiscretos baús de couro..
– Não te faças miserável! –
ralhou Furtado. – Um homem não tem o direito de menosprezar-se. Um baú pode
conter as minas de Salomão!
– O Evaristo vive a gracejar,
Sr. Luís – disse Adelaide. – A mania dele é chamar-se pobre, lamentar-se,
berrar contra quem tem dinheiro!... Isso até desanima.
– Mas, então, que querem vocês que
eu diga? Que ando com os bolsos recheados? que tenho apólices no Tesouro? que
deixei na província uma fazenda de gado? que trago os baús repletos de ouro e
prata? Ora, muito obrigado, minha mulher!
– Não estou dizendo isso...
Aquele – que querem vocês que
eu diga? – referia-se exclusivamente ao marido de D. Branca e a Adelaide.
Esta notou o carinhoso plural e como que sentiu no fundo d’alma um prazerzinho
em se achar na companhia de homem tão educado e nobre. Aquele vocês, dirigido
a ela e ao Sr. Luís, trouxe-lhe um pequeno abalo ao coração, qualquer coisa de
intimamente agradável.
– D. Adelaide não está dizendo
isso – repetiu Furtado. – O que ela está dizendo é que tens a mania da pobreza,
a mania das lamentações...
D. Branca, por seu turno,
observou que o marido tratava Adelaide com muita distinção, muita gentileza;
mas atribuiu à natural bonomia do secretário.
Evaristo é que não observou
coisíssima alguma; dissera vocês, porque achava familiar o tratamento e
porque tratava o Luís por você e Adelaide por você, isoladamente.
Não havia razão para, referindo-se aos dois, proceder doutro modo.
A mulher, porém, descobre
manchas no sol em pleno meio-dia e é capaz de enxergar, com os olhos fechados,
uma agulha num palheiro.
No outro dia, quando Evaristo
voltou do Banco, encontrou o segundo andar mobiliado; cadeiras, mesas, uma
estante para livros, bela cama de casal, guarda-roupa, cabides... o inferno!
Adelaide recebeu-o no primeiro
andar, como de costume, risonha e feliz, mas estranhando que lhe não
perguntasse coisa alguma, rompeu o silêncio:
– Que despesão fizeste!
– Despesão?..
– Sim; quanto custariam as
cadeiras, a cama, o sofá...
Evaristo, em pé, no alto da
escada, julgou que a mulher houvesse enlouquecido e olhava-a, sem compreender
as palavras.
– Que cama? que sofá? que
cadeiras?...
– Que mandaste da rua...
– Eu?!
– Está de muito bom gosto a
cama, Sr. Evaristo – saltou D. Branca. – Felicito-o!
Cada vez o bacharel compreendia
menos o que lhe estava entrando pelos ouvidos.
– De bom gosto?...
– Pois não foi o senhor quem
escolheu a mobília?
– Eu não escolhi nada, pelo amor
de Deus! – nem sei do que se trata...
– Quer nos debicar, Adelaide,
quer fazer surpresa... – disse a mulher do secretário.
– Debicar!... surpresa!... Temos
aqui almas doutro mundo?
Adelaide não quis acreditar numa
brincadeira do marido, tal era a sizudez que ele imprimia às palavras naquela
ocasião. Evaristo brincava, mas conhecia-se logo o seu tom de pilhéria.
– Deixem-me primeiro tomar
fôlego, que eu estou me acabando! – exclamou, dirigindo-se à sala de jantar.
As duas senhoras o acompanharam,
entreolhando-se.
O bacharel encostou a bengala,
respirou com alívio e sentou-se.
– O Furtado inda não veio?
– ’“Té agora, não – respondeu D.
Branca.
– Então, que história é essa de
cadeiras e camas e sofás? Expliquem-se!
Adelaide explicou o caso da
mobília: às duas horas, mais ou menos, tinha vindo um galego trazendo, numa
carrocinha, meia dúzia de cadeiras, um sofá, uma cama de casal, uma estante e
outros objetos "para a casa do Sr. Evaristo de Holanda, em Botafogo".
Não podia haver engano.
– Onde estão esses objetos?
– Lá em cima, tudo arrumado. A
cama é que é um pouco larga...
Pois ele não mandara coisíssima
alguma nem tampouco autorizara compra de móveis ao Furtado. Às duas horas tinha
estado com o secretário no Banco e ele em tal coisa não falara. Salvo se o
amigo inda uma vez queria ser generoso e bom apresentando seu nome a algum
armazém de móveis... Podia muito bem ser isso... Mas, então, dir-lhe-ia
francamente, prevenindo-o com antecedência, tomando mesmo uma nota dos objetos
indispensáveis a um casal. O Furtado, porém, não o prevenira, não o avisara
sequer! Donde tinham vindo esses móveis? de que armazém? de que rua?
– Você compreende que a minha
obrigação era recebê-los – fez Adelaide numa voz humilde.
– Perfeitamente, ninguém diz o
contrário.
– O Luís explicará tudo, Sr.
Evaristo. Havemos de saber quem foi da idéia.
– Corramos um olhar nos tais
móveis – disse o bacharel, erguendo-se.
O pavimento superior da casa já
não tinha o mesmo aspecto desolado e vazio da véspera, com as suas paredes
escorridas, com o seu ar glacial de eremitério. Não. A sala da frente
impunha-se agora aos olhos, convidando à familiaridade, ao repouso honesto, à
leitura de um bom livro. Meia dúzia de cadeiras austríacas, torneadas, o sofá,
cadeiras de balanço, dois consolos, outra mesinha decorativa para o centro...
Na alcova o leito, e o toucador com espelho de cristal e pedra-mármore. Num dos
quartos, o guarda-roupa e os baús (os célebres baús de couro) e no outro a
estante. Assim é que Adelaide dispusera os móveis, em acordo com D. Branca;
unicamente para surpreender Evaristo. Depois comprar-se-iam cortinas e bibelôs.
O soalho inda estava úmido da lavagem.
O bacharel cruzou os braços
diante daquela transformação quase milagrosa.
– Isto não pode deixar de ser
obra do Luís! – disse, risonho. Sim, estava quase convencido de que o Luís
queria pregar-lhe uma peça. Quem, no Rio de Janeiro, se lembraria dele senão o
secretário? Ninguém, absolutamente ninguém. Ele é que o tratava com um carinho
de irmão.
– Você que acha?
– Penso a mesma coisa. Só o Sr.
Furtado...
– No entanto, o Furtado não
arredou pé do Banco!
– As almas é que não foram... –
murmurou, sorrindo, Adelaide.
E enquanto o outro não chegava,
discutiu-se a procedência dos móveis.
O secretário foi recebido com
exclamações e altos brados de agradecimento e jovialidade.
– Está de muito bom gosto a
cama! – repisou D. Branca. – Assim é que eu queria que você comprasse uma...
– E o guarda-roupa! – exclamou
Evaristo.
– E a toilette! – fez
Adelaide.
Mas o homem era como se
estivesse numa casa de orates; fitava um, fitava outro, com ar interrogativo e
surpreso.
– As senhoras estão enganadas...
Mobília?...
– Quem havia de ser? –
interpelou o bacharel, crendo e não crendo na estupefação do amigo.
– Não mo perguntes a mim, que
também não posso atribuir o caso ao meu bodegueiro ou às almas do outro mundo.
– Ora, falemos sério, não foste
tu, mas foi o teu grande coração! – resumiu Evaristo, desapontado.
– Juro-te!
– Não acredito.
– Melhor pra ti...
Ao final das contas, a dignidade
do bacharel teve um ímpeto de orgulho contra “esse misterioso fornecedor
gratuito de móveis”, e declarou positivamente que ia mandar tudo para o
depósito, as cadeiras, a cama, o sofá... tudo! Não aceitava favores de pessoas
estranhas e, de mais a mais, ocultas num criminoso silêncio. Tudo para o
depósito!
Uma gargalhada do secretário
acolheu as últimas palavras de Evaristo, comunicando-se a D. Branca e a
Adelaide, que ia abrindo a boca para lamentar “a sua linda cama de ramagens e o
seu querido toucador de mármore...”.
– Então, vais mandar tudo para o
depósito!...
E Furtado novamente ria, batendo
com as mãos na mesa, inclinando a cabeça, sapateando.
– Impagável o nosso Evaristo!
Simplesmente impagável esse homem com a sua filosofia de algibeira e com os
seus ímpetos!
– Não te rias, que estou falando
sério!
– Por isso mesmo...
E Furtado confessou
generosamente, aprumando-se na cadeira, que os móveis tinham sido comprados por
ele. Não fizera mais do que um dever de amigo.. . Restava saber se o Evaristo
opunha-se à qualidade sofrível do guarda-roupa...
– Qual opor-me! – disse o
bacharel todo humilhado com a fineza do secretário. – Escolheste a dedo!
– Mas não para ser entregue ao
depósito.
– Para o depósito vou eu mandar
os baús de couro e umas velharias do meu tempo de província.
E não se tornou a falar nos
móveis e a estima do bacharel pelo secretário aumentou. Evaristo não perdia
ocasião de gabar o Furtado, exaltando-lhe o coração generoso, a grandeza d’alma
e outras virtudes que ele pouco a pouco ia descobrindo no seu velho colega de
Liceu... Um homem como se não encontravam muitos na terra do egoísmo e da
hipocrisia, nesse Rio de Janeiro fundamentalmente pervertido, onde as traições
contavam-se pelas amizades e ninguém dava crédito senão ao ouro e à
maledicência... Um homem que o recebera no seio da própria família e que,
depois de o hospedar em casa, inda lhe emprestava dinheiro e fazia surpresas
como a da mobília! Era o que se podia chamar um filantropo, um amigo
excepcional!
– Que achas?
Adelaide confirmou os elogios,
mostrando-se reconhecida às boas intenções do secretário, qualificando-o de
generoso, de nobre, de fidalgo, emprestando-lhe todos os caracteres de homem de
bem que não alardeia as ações meritórias que pratica. O Sr. Furtado era um
exemplo de delicadeza e cavalheirismo. – Evaristo não via como ele a tratava?
Interessava-se por ela como por uma irmã; nas refeições, nos passeios, à noite,
quando jogavam. E a mulher também, a D. Branca. Ambos muito amáveis!
– São simpatias... são
simpatias... – explicava o bacharel, acendendo o cigarro, com uma ponta de
vaidade. – Tudo neste mundo é a gente se insinuar... O orgulho mata a
aspiração, enfraquece o estímulo.
De manhã, vinham os dois, ele e
a esposa, almoçar em companhia dos Furtado, como pensionistas dum hotel, e
Adelaide passava quase todo o dia embaixo, na sala de jantar, com D. Branca,
até à hora da segunda refeição, lendo romances, relendo jornais, discutindo
modas, costurando. Uma vida sem preocupações, nem intrigas. D. Sinhá, do
desembargador, é que às vezes ia interrompê-las com histórias de namoro e
bilhetinhos e novidades de Botafogo, sempre muito misteriosa e muito coberta de
pó-de- arroz. Furtado não gostava dela, não lhe achava encanto e
profetizava-lhe horrores!
Que mais podia querer Adelaide?
Que outras ambições podia desejar Evaristo? Perguntasse-lho, e eles não
saberiam responder. Tinham casa, cômodos independentes. boa mesa, boas
amizades, tudo por pouco dinheiro, graças à generosidade do secretário, cuja
dedicação parecia aumentar.
– E o piquenique no Jardim
Botânico? – lembrou Furtado uma bela manhã.
– É verdade, o piquenique? –
repetiu D. Branca.
– Por mim, é quando quiserem –
disse o bacharel. – Ninguém mais do que eu aprecia o campo, as árvores, o ar
fresco, e o perene correr de um fio d'água.
– Você por que não determina? –
perguntou Branca ao marido.
– Tantas manhãs boas para a
gente se divertir!
Furtado marcou o primeiro
domingo de sol. Convidava-se unicamente o visconde de Santa Quitéria. Nada do
desembargador, nem de pessoas estranhas. Havia de ser um piquenique familiar,
uma coisa toda íntima sobre a relva macia, bem longe da entrada do jardim,
debaixo de uma árvore.
– Ao champanha? – perguntou D.
Branca com os olhos faiscantes, numa alegria súbita.
– Ao champanha, sim, ao
champanha. Um piquenique delicado e de bom gosto, como se usa em Petrópolis e
na Europa... Toilettes claras, roupas leves, menu à francesa,
encomendado ao Pascoal!... e que ninguém se lembre de morrer enquanto houver
sol e árvores na natureza!
– Não convidas a Tourinho?
Mas Furtado declarou inda uma
vez que só convidava o visconde, isso mesmo porque devia muitos favores ao
Santa Quitéria.
– Nem ao Dr. Condicional? –
gracejou Evaristo.
Furtado esboçou um risinho,
compreendendo a ironia, e não respondeu.
Eram de uso, então, os
piqueniques no Jardim Botânico. Em se aproximando o calor, o grande parque
enchia-se, aos domingos, de uma população ruidosa e promíscua, de milhares de
pessoas de ambos os sexos, largamente espalhadas, indo e vindo, nos seus trajos
fofos, ao som de uma banda de música oculta pitorescamente sob as árvores; e os
tons claros das toilettes, o colorido gárrulo dos vestuários matizavam a
frescura sombria dos caramanchões, de mistura com o vermelho sangüíneo dos flamboyants.
Risadas estalavam num cascatear argentino que se ia perder nos longes da mata,
ecoando em ondas sonoras de uma cristalinidade musical. No centro da comprida
aléia de palmeiras que vai desde a entrada até o fundo da quinta, um repuxo
esguichava perenemente, caindo em leque numa grande bacia de pedra, rodeada de
mirtos silvestres. Crianças apostavam corridas e juntavam ao som da música a
alegria de suas vozes. Em toda a parte a mesma liberdade comunicativa, a mesma
expansão domingueira. Desde as cinco horas da manhã até as sete da noite, o
Jardim Botânico era como uma grande sala de hotel. Almoçava-se, lanchava-se,
jantava-se ao ar livre, sob os castanheiros, na relva fresca e cheirosa, à
beira dos lagos.
Ao primeiro domingo de abril
realizou-se o sonhado piquenique. A manhã estava radiosa, de uma inefável
limpidez, o contorno das montanhas muito vivo, sem borrões de nuvens,
recortando em ziguezague o azul infinito e puro do céu – manhã deliciosa como uma
recordação do passado ou como uma tela impressionista em que vibrasse a alma
das coisas numa estranha sinfonia bucólica de poema virgiliano... manhã como essas
de que falava a esposa do secretário – boa para a gente se divertir, para a
gente esquecer um pouco as misérias da vida, longe da Rua do Ouvidor e das
mexeriqueiras do bairro... Valia a pena, decerto, aproveitar uma manhã como
aquela, indo entre as árvores, no seio bom da natureza, bebendo a água das
fontes, a ouvir o misterioso segredar dos pássaros e o trilar dos insetos
invisíveis – na Tijuca, no Jardim Botânico, em Petrópolis, em Friburgo, em
Santa Teresa..., onde quer que houvesse frescura e um pouco d'água límpida.
Todos acordaram cedo, a começar
por D. Branca e a acabar por Evaristo, que, à última hora, não se sentia em
condições muito favoráveis a uma jornada no campo; mas, enfim, sempre se
resolveu, depois de tomar uma dose de conhaque com açúcar.
A mulher de Furtado, sobretudo,
não ocultava o bom humor que lhe ia na natureza. Era doida por piqueniques,
ninguém lhe falasse em piqueniques! Ergueu-se às quatro horas, mesmo porque não
dormira bem com o calor, e foi à janela da frente ver como amanhecera o dia,
“se o Corcovado tinha nuvens”... Qual nuvens! O perfil da montanha estava limpo
na meia sombra do alvorecer. Qual nuvens! Daí a pouco o solzinho estava fora e
ela em caminho para o Jardim Botânico, mais o Furtado e a Adelaide e o Evaristo
e o visconde, o simpático visconde, o homem que ela tanto admirava e que em
toda a parte era o mesmo – elegante, correto, generoso como um nababo, fidalgo
até no abotoar a luva a uma dama... Oh, o visconde de Santa Quitéria! Como ela
se ia divertir, naquele passeio ao ar livre, como ela ia gozar! A última
cartinha dele...
– Que horas são?
Era a voz do secretário, inda na
cama, na frescura matinal dos lençóis. D. Branca teve um pequeno susto, um
ligeiro sobressalto.
“Que horas eram? Quatro e
meia...”
Ele, então, bocejou,
espreguiçou-se molemente, coçando-se e tornou a perguntar:
– Quatro e meia?
– Deu agora... Não faças barulho
para não acordar a Julinha.
– Vamos tratando de nos vestir.
– Vamos. Não tarda clarear.
E começaram as abluções, os
preparativos.
No segundo andar o som abafado
de um despertador elétrico fez sinal retinindo embaixo, nos aposentos do
secretário. Ele e a mulher trocaram algumas palavras. Tinham combinado com o
visconde para as seis horas e o visconde prometera não faltar. – Às seis em ponto
estaria na casa do amigo Furtado.
Foi pontual o Santa Quitéria –
questão de mais um minuto, menos um minuto. Vinha chique e alegre, sorrindo ao
aproximar-se da casa do secretário, no seu veston de brim, chapéu de
palha, binóculo a tiracolo e uma pequena valise cor de chocolate.
As duas senhoras correram à
janela e o marido de D. Branca foi recebê-lo à porta da rua.
O visconde apeou nobremente,
murmurou qualquer coisa ao boleeiro, e, risonho, apertando a mão a Furtado:
– Creio que estou na hora...
O secretário respondeu com uma
exclamação venturosa, estirando o braço para o Corcovado:
– Veja que dia lindo!
– Efetivamente! Está
convidativo, está próprio!
E respeitoso, solene, o amável
banqueiro perguntou pela “excelentíssima senhora” e pelas crianças.
– Todos bons, muito obrigado. O
senhor visconde é que tem mocidade para um século!
– Oh, meu amigo... As aparências
iludem... já me vou sentindo cansadinho, graças a Deus.
– Ora, o senhor visconde!
Branca e Adelaide gentilmente o
acolheram no alto da escada.
Evaristo completava a toilette
no segundo andar
– Que dia lindo, senhor
visconde! – fez a esposa do secretário. recuando para deixar passar o Santa
Quitéria.
– Lindo, minha senhora,
lindíssimo!
Tinham todos um ar alegre e
trataram-se com uma familiaridade burguesa, na mais bela disposição de ânimo.
Adelaide, curiosa, quis ver se o
visconde trazia o anelão de brilhante, e os seus olhos procuravam a mão do
banqueiro. Trazia, sim. Era uma das coisas que ela admirava naquele homem – o
anel, uma jóia primorosa, inestimável.
– O senhor seu marido vai bem,
minha senhora?
– Bem, obrigada – respondeu
Adelaide, menos cerimoniosa.
Porque o visconde de Santa
Quitéria em roupa de passeio não tinha ares de fidalgo, como quando se
apresentava de casaca ou mesmo no seu fraque justo e elegante. A roupa branca –
larga e mole no corpo dava-lhe uma feição distinta, mas democrata, uma feição
popular de rapazola que sacrifica o luxo pela comodidade, a moda pelo
bem-estar. Vendo-o assim, a esposa de Evaristo animara-se a lhe responder em
tom quase íntimo de conhecidos velhos.
O criado trouxe uma bandeja com
chocolate e pão-de-ló. Todos se serviram, inclusive o bacharel, que já estava
presente.
Afinal, depois de meia hora de
palestra matutina, e aos primeiros clarões do sol triunfante, a comitiva, em
dois carros, tomou a direção do Jardim.
O visconde fora se reunir à
família do secretário não tanto por delicadeza, quanto por “chiquismo”, para ir
na companhia das senhoras, gozando a amável presença de D. Branca e da jovem
Adelaide. Não queria perder ocasião de se mostrar na altura dos seus
sentimentos e da intimidade com que o tratavam as dignas senhoras. O título de
nobreza, que ele carregava solenemente há dois anos, graças à benevolência do
Sr. D. Pedro II, não o impedia dessas e outras manifestações democráticas. Os
reis também apertam a mão ao povo e também lá um dia esquecem as púrpuras e a
coroa, trocando-as pelo redingote burguês... O próprio imperador já uma vez
desembarcara na Europa, no cais Sodré, de sobrecasaca e guarda-pó, como
qualquer mortal.
Estimava muito o amigo Furtado e
a Sra. D. Branca para não ter orgulhos de nobreza, nem de fidalguia. O seu
paletó branco e a sua calça branca naquele momento significavam intimidade e
também um pouco de elegância. A toilette em harmonia com a estação e com
o gênero de passeio.
Num dos carros ia ele, D. Branca
e o secretário, no outro Adelaide, Evaristo e o Raul. A Julinha fora passar o
domingo à casa do desembargador; D. Sinhá prometeu desvelar-se por ela.
Na frase entusiástica do
visconde “o dia estava lindíssimo!”, o céu, muito azul, parecia o fundo largo
de uma tela desdobrando-se infinitamente por sobre o universo. A Corte
espreguiçava-se aos primeiros ruídos da manhã luminosa. Na plataforma dos
bondes flutuavam bandeirinhas verde-amarelas com a coroa nacional. Os quiosques
de Botafogo tinham o aspecto risonho de pavilhões infantis, embandeirados
também, com os seus galhardetes em arco, sob as árvores, olhando para o mar. Um
cheiro vivo de jasmins inundava a atmosfera, como que aveludando-a
cariciosamente. Principiava a agitação nos cafés e nas hospedarias. O Raul
julgou mesmo ouvir sons de música ao longe e apurou o ouvido: – “Se não estava
enganado...”
Ia para mais de seis horas.
O visconde foi o primeiro a
apear. Todos apearam, numa grande alegria, diante do portão do “nosso Bois de
Boulogne” como dizia o Santa Quitéria.
Furtado indagou logo se o homem
da rotisserie já teria vindo, e lançou um olhar curioso pelas
proximidades do portão.
– Qual! Ainda não veio... Pois
olhem que eu tratei para as sete horas!
O visconde tranqüilizou-o
puxando o relógio, e dizendo que ainda faltavam quinze minutos para as sete.
– Aí vem ele! – descobriu o Raul
com um gesto alvissareiro, apontando para um homem que trazia na cabeça uma
grande caixa de folha em que se liam as inscrições: Confeitaria Pascoal –
Rua do Ouvidor.
– Ora muito bom-dia! – Saudou o
empregado aproximando-se.
– Bom-dia – corresponderam todos
a uma voz.
Um clarão iluminou os olhos
vivos do filho do secretário.
– Já há bocado que estou à
espera de vossas senhorias – tornou o homem da caixa.
– Vá entrando e acompanhe-nos –
ordenou Furtado.
O visconde ofereceu o braço
gentilmente à D. Branca e, com as demais pessoas – ele à frente – ’seguiu em
linha reta para o interior do jardim.
Lá estava, entre as palmeiras, o
repuxo cantando, em fios d'água, a monótona balada das fontes; ouvia-se, de
longe, o ruidozinho da água a esguichar, caindo em arcos para um e outro lado e
confundindo-se quase com o nostálgico farfalho das árvores. O sol, brando e
macio, erguia-se lento, sobredourando as eminências, pouco a pouco iluminando a
espessura do arvoredo e a larga extensão verde que enchia bruscamente os olhos
encantados de Adelaide como um sonho de glória e bem-aventurança. Respirava-se
a frescura das plantas e o aroma fino das trombetas e das rosas, a essência
matinal das grandes árvores e dos pequenos vegetais que acordavam à vida num
banho morno de luz. Pompeavam estranhas florações no recesso da mata e um hino
misterioso parecia levantar-se da natureza ao astro fecundante que ressurgia
com o seu esplendor incomparável de rei absoluto.
Vinham chegando outras famílias,
outros casais, outros grupos, que logo se perdiam no emaranhado das aléias
laterais, e em todas as fisionomias brilhava uma satisfação íntima, um como
prazer novo e especial, um reflexo de imortalidade astral.
O visconde parou no chafariz.
Todos pararam no chafariz.
– É realmente belo! – exclamou o
bacharel com os olhos erguidos em êxtase para a copa das palmeiras.
– A Tijuca é mais solene... –
observou circunspecto o visconde.
– O barulho da cascata é como se
a gente estivesse num ermo religioso... no meio de um deserto... muito longe...
. muitíssimo longe...
– Oh, então deve ser triste
demais... – argumentou o marido de Adelaide.
– Como triste? É encantador! é
poético!
– Falta aqui o Dr. Condicional
para dizer que lembra o Evangelho na selva... – insinuou o amigo de
Furtado.
O visconde achou graça, e,
desdenhoso, carregando a esposa do secretário:
– Um petit-maître,
o tal Manhães!
Todos riram, inclusive o Raul
que perguntou à mamãe o que era petit-maître.
Escolhido o local para o
piquenique, sob um caramanchão agreste de parasitas imitando a entrada de um
túnel e onde havia uma grosseira mesa de pedra, nos fundos do jardim, o
bacharel propôs uma volta, uma grande volta “para abrir o apetite”.
Ninguém discordou da idéia. O
Antônio ficava botando sentido à comida. (Antônio era o criado do secretário.)
– Um vermutezinho não é mau
antes do almoço, oh, visconde... – lembrou Furtado.
– Vá lá um vermute.
– Já tão cedo! – exclamou
Adelaide.
– Pois então!... – fez D.
Branca.
– Cedo para preparar o estômago
– replicou o banqueiro.
– Ah!...
O próprio Furtado tirou da cesta
cálices, uma garrafa intacta que o Antônio abriu com estampido, e bebericaram.
– Agora, toca!
E marcharam, ora a dois e dois,
ora a três e três, por entre os tufos verdejantes, papagueando e rindo, num
começo de liberdade familiar. Aves ariscas voavam pressentindo-os; pipilavam
ninhos na frondosa espessura das ramagens; estridulavam cigarras em desafio, numa
orquestração aguda e uníssona.
Evaristo, no meio de toda aquela
paisagem tropical, de uma riqueza encantadora, lembrou-se da província, e, num
tom solene e misterioso, recitou descobrindo a cabeça e estacando:
– Solidão, eu te saúdo!
Silêncio do bosque, salve!
Lera isso há muito num clássico
português e nunca um pensamento alheio fora tão bem empregado!
– Olhe, D. Adelaide, como se
deita a perder um homem – gracejou o secretário.
Adelaide sorriu.
– Vocês é porque não sabem
glorificar a natureza, vocês é porque não lêem os clássicos! – replicou o
bacharel.
– Mas não te lembras do resto.
– Como não me lembro, se é uma
das páginas que eu nunca hei de esquecer?
E o bacharel, sem receio de
escandalizar o aprumo do Santa Quitéria, berrou para o alto, como se falasse às
nuvens:
– Solidão, eu te saúdo!
Silêncio do bosque, salve! A ti venho, oh natureza; abre-me o teu seio. Venho
depor nele o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida!.
.. Os homens não me deixam; amparai-me vós, solidões amenas, abrigai-me, oh
solidões deleitosas.
– Onde queres tu chegar com essa
desfruteira, oh Evaristo? – interrompeu o outro.
– Quero chegar ao fim da
página...
– Olha que isso é um desrespeito
ao visconde! – segredou Adelaide.
O banqueiro, porém, havia-se
destacado um pouco e marchava com D. Branca, sem se incomodar, no seu passo
lento de garça real. Atrás vinham as outras pessoas. O secretário tinha
absoluta confiança no visconde; até aborrecia-o dalgum modo a sisudez, a
gravidade patriarcal do celibatário. A Branca ia muito bem na companhia dele,
do Santa Quitéria.
Este, enquanto o bacharel
discursava e vendo-se longe de ouvidos perigosos, abriu válvulas ao coração,
baixinho e disfarçadamente.
– Creio que não a posso
esquecer; acordo e deito-me pensando no nosso grande amor... Imagine se
estivéssemos sós aqui.
– Oh!...
Mas deixe estar que ainda
havemos de ser muito felizes... muito felizes.
– Eu bem sei que me ama, bem
sei, mas vi-o outro dia interessar-se tanto pela minha amiga Adelaide...
O capitalista sorriu
benevolamente, como quem perdoa.
– Sua amiga Adelaide é uma
criança... uma menina de ontem... e eu seria incapaz... Oh!... faça-me
justiça...
– Eu não estou afirmando...
– Creia que não me preocupo com
outra pessoa.
– E que tal a idéia do
piquenique? Supus que não viesse...
O banqueiro guardava a atitude
respeitosa e fidalga de quando se exibia nos salões. Ia responder, mas ouviu
passos na areia. Voltou-se: eram as outras pessoas, o Raul, Evaristo, Adelaide
e o secretário, que se aproximavam silenciosamente.
Foi longo o passeio através das
árvores, em romaria bucólica e matinal pelas avenidas do jardim. O visconde
colhia flores dedicadamente para as senhoras. D. Branca, mesmo na presença do
marido, colocou uma na sua botoeira, sempre risonha, sempre afável,
multiplicando-se em gentilezas ao Santa Quitéria. Adelaide, entre Evaristo e
Furtado não perdia o ar ingênuo e melancólico que tanto preocupava ao Manhães
na noite do batizado e que encantava o secretário. Este volvia constantemente os
olhos para ela e de vez em quando arriscava um segredinho inofensivo, uma
pilheriazinha, elogiando-a, gabando-lhe os olhos, a boca, fazendo alusões
amorosas às flores, glorificando o amor livre dos pássaros, lembrando cenas de
romances, episódios do campo... Furtado aproveitava os momentos em que o
bacharel ia, com o Raul, fazer provisão de flores “para enfeitar a mesa do
lanche”.
Os dois já não sabiam onde
colocar flores; levavam grandes buquês feitos à pressa. O secretário achava
muita graça naquela amizade do Raul ao Evaristo.
– Se meu marido é uma criança! –
ralhava Adelaide.
– Uma criança de vinte e oito
anos!... – dizia o secretário.
– Criança, porque não tem juízo,
porque não se importa...
– Deixe-o lá, deixe-o lá... É
gênio.
– Mas não fica bonito, não é
sério.
De novo entravam todos na grande
aléia de palmeiras e de novo chegaram ao caramanchão escolhido para o
piquenique.
Ia para as onze horas. O sol
inundava a floresta e nenhuma nuvem toldava a maciez límpida do céu. Todos
respiraram ao entrar no improvisado restaurante coberto de folhas, rodeado de
árvores e onde se gozava uma frescura deleitosa e aromada de selva.
– Uf! – respirou Evaristo
sentando-se. – Já é andar. Olhem que demos a volta ao jardim!
– Outra dose de vermute – propôs
o secretário.
– Apoiado, apoiado! – murmurou o
visconde fazendo-se alegre.
As duas senhoras conversavam
endireitando as toilettes, revistando-se uma à outra com risadinhas.
O Antônio pusera “a mesa”; uma
toalha muito branca alvejava no pequeno recinto que a luz mal penetrava. Sobre
a toalha brilhavam os talheres de metal branco e os copos de cristal muito
finos, e as flores que o Raul colhera. Ao aspecto risonho da mesa as
fisionomias tomaram uma expressão viva de conforto. – “Era tempo de se ir
comendo qualquer coisinha...” – balbuciou Evaristo ao secretário. Este dispunha
tudo na melhor ordem, falando ao Antônio, sorrindo ao banqueiro, uma atividade
pasmosa de garçon d'hótel.
De dentro da caixa da
confeitaria surgiu primeiro um prato com vol-au-vents e logo seguiu-se o
estampido de uma garrafa que se abre.
– Vamos, vamos – comandou
Furtado. – Senhor visconde. D. Adelaide... Branca... Evaristo... Vão se sentando...
Riram-se todos à falta de
cadeiras. Mas havia no caramanchão, longe da mesa, um banco de pedra, onde se
sentaram as duas senhoras. Os homens comiam em pé.
– Aqui há ainda um lugar, senhor
visconde – ousou amavelmente a esposa de Furtado conchegando-se à amiga.
– Não, não, minha senhora,
obrigadíssimo; eu faço companhia aos do meu sexo...
– Isso, visconde, isso! –
aprovou o bacharel. – Um homem é um homem!
Vieram outros pratos, outras
iguarias delicadamente feitas no Pascoal, sob encomenda do secretário: uma
esplêndida torta de camarões – regada a Sauterne – ostras e uma bela garoupa
fria e apetitosa, não falando no hors-d'oeuvre, no fiambre, nas
azeitonas muito fresquinhas e muito negras que o visconde colhera com a ponta
dos dedos, e as frutas ao dessert – pêssegos, uvas e abacaxi frappé.
O almoço correu alegre,
muitíssimo alegre, cheio de risos, fermentado pelo Bourgogne e pelo champanha –
um almoço leve, delicadíssimo e substancial, “aristocraticamente fino”, como
ideara o esposo de D. Branca. Evaristo, ao abrir-se o champanha, pediu que não
se fizessem brindes.
– O brinde é a maior tolice do
século dezenove – explicou ele, tragando uma roda de abacaxi. – O brinde parece
até uma invenção do Valdevino Manhães ou de Mr. de La Palisse; eu sou contra o
brinde como sou contra a mon...
Ia dizendo monarquia, mas
arrependeu-se logo, sem olhar para o visconde:
– ... Como sou contra o voto
feminino!
– Eu só compreendo o brinde
quando é de honra, à Sua Majestade o Imperador, à princesa... ou mesmo a um
homem ilustre que se não confunda com o resto da gente.
– Qual, senhor visconde!
exclamou o bacharel depondo o talher.
– O brinde, seja ele a quem for,
é uma das muitas ridicularias da civilização... Não sei como qualificar o
indivíduo que interrompe a boa digestão de uma mesa, de uma sociedade, para, de
taça em punho, levantar um brinde às virtudes de outro, não sei.
Evaristo esquecia-se do batizado
da Julinha em que o diretor do Banco Luso-Brasileiro fizera diversos brindes
entre os quais um a seu amigo Furtado, que por sua vez brindara à sereníssima
herdeira do trono.
Adelaide fez-lhe sinal piscando
o olho, mas o bacharel não percebeu e concluiu dizendo catedraticamente que o
brinde “era uma prova de ignorância e de tacanhez intelectual”.
Todos estranharam aquela
franqueza perante o visconde de Santa Quitéria, na presença do respeitável
amigo de Suas Majestades que ninguém ousava contrariar nas menores coisas.
Furtado disfarçou o mau efeito
das palavras de Evaristo, dizendo alegremente que, para provar ignorância e
tacanhez intelectual, ia brindar à Inspetoria do Jardim Botânico e mais à
flora brasileira.
– Muito bem, muito bem, meu
amigo – fez o visconde erguendo o copo. – O esposo da Sra. D.
Adelaide estava bem para niilista, ao que vejo. Atira-lhe com um brinde à
flora.
As palavras do visconde
mereceram aplauso das duas senhoras. Adelaide e Branca saudaram-no
entusiasticamente.
– Bravo, senhor visconde, bravo
– exclamaram as duas a um tempo.
E Evaristo, esmagado pela
maioria, bebeu também à saúde do Jardim Botânico, “uma vez que o amigo
Furtado e o ilustre senhor visconde faziam questão”.
Beberam, e o champanha, caindo
no estômago farto dos homens e das senhoras, trouxe-lhes ainda mais alegria e
expansão.
A própria Adelaide tinha agora
um brilho comprometedor nos olhos, uma viveza fora do natural, e falava também,
muito risonha, inclinando a cabeça no ombro de Branca. A mulher do secretário
lamentou a ausência da viúva Tourinho; faltava uma senhora para completar três
casais, e a viúva sabia se divertir como gente, era uma bela companhia.
– E o desembargador? por que não
convidaram o desembargador Lousada? – disse o marido de Adelaide, devorando um
cacho de uvas.
– Oh, Evaristo, você ainda come?
– acudiu a jovem esposa do bacharel, cujas faces, ordinariamente pálidas,
tinham agora um ruborzinho quente.
Furtado perguntou, então, se
ainda queriam tomar alguma coisa, e como todos recusassem, propôs novo passeio
através das árvores. Ninguém discordou da idéia. Evaristo, porém, falou ao
ouvido do secretário, que lhe respondeu baixinho, acrescentando alto, para as
senhoras e o visconde:
– Podemos ir, podemos ir; o
Evaristo irá depois...
– Como, irá depois? – perguntou
Adelaide com um arzinho de riso.
– Vão andando, que eu já os
encontro – disse o bacharel misteriosamente. – É questão de minutos...
– Espera por ele, oh Raul –
ordenou Furtado.
E, oferecendo o braço a
Adelaide, à imitação do visconde, que já se apoderara de D. Branca, saiu do
caramanchão.
O número de passeantes aumentava
com o correr da tarde. O jardim ia-se enchendo de famílias e rapazes que
percorriam as avenidas de chapéu-de-sol aberto à luz das duas horas. Os sons da
música chegavam aos ouvidos distintamente na aragem acariciadora que soprava.
Como que esmoreciam os tons vivos da paisagem, num desmaio lento; o sol
esfriava um pouco e o azul tinha agora uma cor poeirada de cinza, como um
espelho que de repente se ofuscasse a um bafejo úmido. Todas as coisas iam
mudando de aspecto à proporção que se aproximava o fim da tarde. Os tons vivos
iam-se traduzindo em tons melancólicos; a natureza, cansada de luz, queimada
pelos ardores do sol, numa indolência outonal, volvia-se para o crepúsculo,
adivinhava a noite. O repuxo central do Jardim entoava a sua ladainha num ritmo
blandicioso de cascata longínqua.
Furtado queria se abrir com
Adelaide agora que estavam sós, dizer-lhe tudo quanto sentia por ela desde que
a vira pela primeira vez, contar-lhe as suas insônias, o muito que a estimava,
a extraordinária simpatia que ela lhe inspirava; mas uma timidez amordaçava-o,
uma timidez de colegial, e, no fundo, um vago sentimento de compaixão pelo
amigo, pelo Evaristo, seu velho contemporâneo do Liceu, cujas qualidades, ontem
como hoje, eram dignas do respeito que se deve a um chefe de família honesto e
exemplar. Além disso, temia qualquer movimento de indignação por parte de
Adelaide; ela talvez o repelisse, dando escândalo num lugar público,
desabafando ali mesmo em face do visconde e de sua mulher, inutilizando-o. Mas
logo esses temores desapareciam e voltava-lhe o ânimo, a coragem de homem
useiro e vezeiro nas pugnas do amor fácil.
E já não pensava no Evaristo nem
nas conseqüências de uma deslealdade infame, trancando o coração ao
sentimentalismo e aos influxos nobres, abstraindo de tudo que não fosse o
desejo criminoso e lúbrico de aumentar o número das suas conquistas. Porque, em
verdade, a presença daquela mulher tirava-lhe o sossego íntimo, arrebatava-o
como a presença de outras igualmente respeitáveis e a quem ele seduzira com os
seus brilhantes e com as suas lábias, triunfando como um general invencível.
Apontava-as a dedo; via-as passar na Rua do Ouvidor e saudava-as feliz e glorioso.
Adelaide sorria-lhe e tanto bastava para que dentro dele se ateasse a chama
rubra do desejo, lambendo-o vorazmente, como uma língua de fogo, queimando-lhe
o coração, escaldando-lhe o cérebro.
Ele então apertava-a contra si,
mordendo o beiço, ameigando o olhar, com ímpetos de explodir numa declaração
formal, absoluta e suprema, como se estivesse de joelhos num confessionário, e
pedir-lhe, pelo amor de Deus, por vida de seus olhos, por tudo! que soubesse
corresponder àquela estima, àquele amor, àquela loucura.
Adelaide ia rindo, muito
satisfeita, não completamente fora do círculo de idéias que preocupavam a
Furtado; de algum modo ela não estava muito longe de preferir o secretário a
Evaristo; iniciada nos segredinhos de alcova por D. Branca, que lhe abrira os
olhos à vida fluminense, tumultuosa e desregrada, na rua como nos salões, vendo
o exemplo de outras mulheres e da própria Branca, Adelaide insensivelmente
ia-se deixando absorver pelo meio que a cercava, embora a educação que recebera
na província, os hábitos ingênuos, a natural timidez, que ainda conservava, não
cedessem logo a um primeiro impulso do coração. Ela notava as delicadezas de
Furtado, via-o quase sempre de olhos cravados no seu rosto como se quisesse
adivinhar o que lhe ia n’alma, guardava o caso da mobília e dos
duzentos-mil-réis e muitas outras provas de generosidade e fineza do
secretário; mas atribuía tudo a um sentimento de amizade para com Evaristo, a
um impulso natural de velho companheiro de escola.
Iam por uma aléia sombria de bambus,
cuja copa unia-se formando um túnel verde extenso, que se prolongava em
ziguezague. Às vezes o banqueiro desaparecia numa curva com a mulher de
Furtado, e o secretário conchegava o braço de Adelaide, numa pressão meiga e
voluptuosa, como se a quisesse envolver de carinhos, o olhar medindo toda a
singeleza do seu perfil, resvalando-lhe na cútis do rosto e caindo
apaixonadamente no pescoço que as rendas do plissê guarneciam de branco.
As palavras dele, ungidas de
ternura, ritmadas pela emoção, Adelaide ouvia-as inquieta, e, instintivamente,
apressava o passo, medrosa, de estar ali sozinha “com um homem!”.
– Como é escura esta avenida! –
exclamou, de repente, erguendo os olhos para a copa dos bambus.
Furtado estremeceu.
– Escura, mas muito agradável,
não acha? – murmurou quase ao ouvido dela.
– Pelo contrário...
– Não diga pelo contrário...
Leia os poetas... A solidão convida ao amor...
Adelaide estranhou aquelas
palavras e calou-se.
O trajo branco do visconde
assomou longe e tornou a desaparecer entre as árvores.
A esposa do bacharel queixou-se
de uma dorzinha de cabeça; o champanha lhe fizera mal.
Ele tranqüilizou-a, dizendo que
o champanha não fazia mal a ninguém; que era uma bebida inofensiva como água...
O vinho do Porto, sim, o vinho do Porto estragava o estômago. Mas não tinham
tomado vinho do Porto...
– Então é do sol.
– E do muito sol que apanhamos.
Eu mesmo sinto um fogo na cabeça, uma quentura no cérebro.
De repente o secretário estacou;
descobrira um pequeno inseto cor de ouro no ombro de Adelaide. Colheu-o na
ponta dos dedos e mostrou-lho.
– Veja que bonito!
– É verdade: lindo!
– Naturalmente confundiu-a com
alguma rosa..
– Que graça, senhor Furtado...
– E então? Admira-se de que eu a
compare a uma rosa?
– Muito lindo! – repetiu
Adelaide observando o insetozinho na palma da mão.
Estavam agora frente a frente
ocupados com a descoberta do coleóptero, ele sem tirar os olhos dela, todo
embebido na contemplação do seu rosto ideal.
– O Evaristo gosta muito de
insetos, vou guardar para ele.
E depositou cautelosamente o
besouro na bolsa de couro da Rússia que sempre trazia, dizendo:
– Que demora de meu marido!
– Anda às voltas, com o Raul.
E no momento em que ela fechava
a bolsa para continuar o passeio, Furtado abaixou a cabeça, num movimento
nobre, e beijou-lhe audaciosamente a mão, oferecendo-lhe, ato contínuo, o
braço.
– Senhor!...
Ia exclamando: – Senhor
Furtado!... – num tom de admiração e de queixa; mas, o insólito procedimento do
secretário gelou-a.
Um beijo!... Faltava-lhe toda a
coragem, toda a presença de espírito, para reagir no mesmo instante, lembrando
ao marido de D. Branca o respeito que todo o homem deve a uma senhora casada.
Penderam-lhe os braços, curvou a cabeça, e em vez de uma explosão de palavras
que demonstrassem a Furtado a sua indignação e o seu assombro, ela deixou que
as lágrimas corressem como pérolas de rosário desfiado. Nunca homem algum se
atrevera a tanto, nunca o seu pudor de mulher fora tão cruelmente magoado como
naquela ocasião e por um homem que devia ser o primeiro a respeitá-la.
– Adelaide... – murmurou Furtado
numa voz suplicante. – Zangou-se?
A jovem senhora não respondeu.
Ia calada, muda, abafando o seu ódio, enxugando as lágrimas. Compreendia agora
os zelos do secretário para com ela, a sua fingida dedicação ao Evaristo;
compreendia tudo...
Mas, ao mesmo tempo, compreendia
a necessidade de ocultar aquele episódio revoltante “para não dar escândalo”,
para evitar a cólera de Evaristo e uma grande desordem, talvez, entre o
secretário e a mulher. Oh, infelizmente era preciso mostrar cara alegre, ainda
que o coração estivesse sangrando... Nunca lhe passara pela idéia que o Sr.
Furtado, um homem que se dizia tão fino, tão bem-educado, abusasse da sua
posição e de um momento como aquele para... para beijá-la, como se estivesse
tratando com uma criadinha de família, sem pejo nem nada! Era muita coragem e
muita desfaçatez!
– D. Adelaide... – repetiu
Furtado aproximando-se dela. – Queira desculpar-me se a ofendi...
A esposa de Evaristo continuou
no mesmo silêncio obstinado, como uma pessoa que de repente perdesse a fala,
indo maquinalmente pela avenida, sem ver as coisas, olhando para o chão fofo
que seus pés iam pisando insensivelmente. De alegre que estava quando saiu do
caramanchão, tornou-se melancólica e indiferente às belezas do jardim e às
fulgurações da luz. Doía-lhe a cabeça com uma intensidade atroz.
Furtado emudeceu também,
penalizado, um pouco arrependido já, receoso de que Adelaide não fosse cometer
alguma imprudência desabafando-se. Mordia o castão da bengala com um ar sério
de quem cogita numa grave questão.
Aventurou nova pergunta:
– Quer que me ajoelhe e peça
perdão? Creia que foi uma loucura de que me confesso arrependido...
Adelaide suspirou levemente,
como alívio, ainda sem responder. Neste instante a música do outro lado do
parque tocava uma habanera saudosa cujo eco ia morrer longe nas montanhas,
penetrado de evocações. O coração terno da esposa de Evaristo encheu-se de
bondade e acordou subitamente da melancolia em que o deixara Furtado. Ela,
porém, não tinha coragem de abrir a boca e dizer uma simples palavra, como se
estivesse na presença de um estranho, de um desconhecido. Queria esquecer a
ofensa que recebera do amigo do Evaristo, acabar com aquilo e continuar a viver
como dantes; o homem às vezes não é senhor de si... Lembrava-se dos favores que
o bacharel devia ao secretário, da extremosa amizade de D. Branca e um
sentimento de gratidão penetrava-a desanuviando-lhe a alma, restituindo-lhe o
bom humor e a visão otimista da paisagem e das coisas... Não valia a pena
zangar-se, amofinar-se por uma tolice, de uma loucura... Ninguém vira o
secretário beijar-lhe a mão, ninguém...; a aléia estava deserta como o interior
de uma gruta longínqua. Para que, então, provocar escândalo? Também não se deve
ser muito escrupulosa... deve-se desculpar, fechar os olhos a estas coisas.
Furtado ouviu um rumor na areia.
O Raul aproximava-se correndo; atrás dele vinha o bacharel em passo ordinário.
– Eh, lá! – gritou Evaristo. –
Esperem ao menos pela gente!
O secretário voltou-se com
Adelaide e riram ambos da filosofia ingênua daquele marido excepcional.
– Já te fazíamos desertor!
– A mim?... Ufa, que já me não
tenho nas pernas!... Desertor?
– Onde andaste há quase uma
hora?
– Vendo as cascatas e os
reservatórios... Pergunta ao Raul!
– Oh, que bonito, hem, senhor
Evaristo? Que bonito, papai! A cachoeira vem de lá de cima da montanha rolando,
rolando como uma chuva...
– Esplêndido! – tornou o
bacharel. – Já não nos lembrávamos de vocês... Que é do visconde?
– Vai lá adiante com a Branca.
– Papai, oh papai! – interrompeu
o menino.
– Que é, meu filho?
– Um homem estava tirando o
retrato da cachoeira, com uma máquina...
– Já sei.
E para Evaristo:
– D. Adelaide é que está com uma
dorzinha de cabeça.
– Melhorei um bocado, já não dói
tanto – disse Adelaide.
– E agora para onde nos
atiramos? – perguntou o bacharel.
– Ao encontro do visconde e da
Branca.
Foram andando os três, mais o
Raul. Saíram na grande aléia das palmeiras, onde se achava o Santa Quitéria de
braço com D. Branca cm torno do repuxo, vendo cair a água em fios dentro do
reservatório.
– Olá, como estão embebidos! –
exclamou o Furtado.
O bacharel, por trás do
secretário, piscou maliciosamente o olho à esposa.
– É verdade, como estão
embebidos! – repetiu Evaristo.
E aproximaram-se justamente na
ocasião em que o Santa Quitéria falava em voz muito baixa no seu escritório na
Rua da Alfândega, onde havia uma alcova, toilette, jarro com flores, et
coetera...
O instinto de D. Branca
advertiu-a da aproximação de Furtado; ela fez sinal com os olhos ao banqueiro e
entraram todos a confabular alegremente.
Estava reunida a troupe sem
faltar uma só pessoa. O Visconde consultou o relógio: eram três e meia.
– Cedo – murmurou.
– Querem tomar alguma coisa? –
ofereceu o secretário. – Um vermute, um conhaque, um copo de água gelada.
Ninguém queria; em todo caso
foram repousar à sombra do caramanchão, enquanto o sol ainda estava quente.
Adelaide aparentava a mesma
fisionomia naturalmente ingênua do costume. Evaristo sempre despreocupado, não
adivinhou, através do seu rosto, a mais leve contrariedade. Já se habituara
àqueles longes de melancolia, que eram a verdadeira expressão do olhar da
esposa. D. Branca notou porém um tom cerimonioso na voz do Furtado, quando este
se dirigia a Adelaide. Desconfiança, talvez, mas notara... e ela que conhecia
bem o gênio do esposo, imaginou logo o fio de uma secreta história de amor...
As cinco horas, nova refeição
desafiava o apetite do bacharel e do Raul, somente deles, porque as outras
pessoas torceram o nariz à galinhola e à maionese de salmão; contentaram-se
parcamente com uma fatia de queijo holandês, um pouco de marmelada e vinho de
Bourgogne. O Visconde acrescentou água de Selters, limpando o bigode com
cerimoniosa fidalguia.
Evaristo e Raul é que não
dispensaram a comezaina e entraram, de rijo, na asa de galinha e na maionese.
– Vocês não sabem o que estão
perdendo! – excitava o bacharel, sem cerimônia, trincando as azeitonas. – Um
bocadinho de maionese, Adelaide!
O Raul achava graça nas palavras
e no apetite de Evaristo e ria mastigando, com um risinho dobrado e sonoro que
fazia os outros rir.
– Então, D. Branca? Mostre ao
menos que é filha do sul!
– Não, senhor Evaristo, muito
obrigada – sorriu corando a elegante fluminense.
– E o senhor Visconde? e o amigo
Furtado? Olha que gente!...
Abriam-se garrafas de vinho. O
Antônio sempre alerta movimentava o quadro, exibindo as suas qualidades de
copeiro que ama o ofício.
– Não vás indigestar... –
advertiu o secretário ao filho.
No mesmo instante Adelaide
recomendava ao marido que “tivesse cuidado com a maionese”.
A luz do sol desmaiava num
crepúsculo cheio de misteriosas palpitações. Descia das montanhas um ar úmido;
o som das cascatas vinha impregnado do aroma da floresta, como se dele fizesse
parte, e evocava, aquela hora, longes de natureza tropical, saudosas ave-marias
da infância... O parque com as suas árvores colossais, com os seus renques de
palmeiras, com os seus túneis de verdura e com as suas planícies de grama, onde
brotavam pequeninos eucaliptos e obscuros vegetais de famílias obscuras da
Índia e do norte da América – o grande parque ia-se revestindo de melancolia e
cada árvore com a sua etiqueta explicativa tinha um ar fúnebre de cemitério...
– Agora podemos ir – disse
Evaristo -, mesmo porque vem caindo a noite...
Dirigiram-se todos para o portão
do Jardim.
Capítulo
V
Adelaide recolheu-se triste
naquela noite; por maiores esforços que fizesse, não podia esquecer a afronta
do secretário aos seus brios de mulher casada, e o que mais a impressionava era
o desplante, o cinismo audacioso com que ele a beijara... – Que coragem de
homem, Senhor! Quase à vista de todos, em pleno Jardim Botânico, num lugar
público! Eis aí quando a gente perde a cabeça e comete uma loucura, eis aí!
Depois falam, depois não dão
razão, e uma mulher vê-se obrigada sofrer os maiores insultos, porque tem medo
de que lhe aconteça pior...
Já há dias notara certas
liberdades de Furtado, certa maneira de lhe falar, de lhe dizer as coisas
baixando a voz, ameigando o sotaque, olhando-a insistentemente; já há dias
notara... mas, palavra de honra como não supunha o marido de D. Branca um homem
sem escrúpulos, um sedutor, um amigo desleal... Pobre Evaristo! nem sequer
imaginava...
E caía-lhe n’alma um desgosto,
uma tristeza, um cansaço da vida, um peso enorme. Oh, quanto mais para dentro
da civilização, mais horrores, mais espinhos, como no interior de uma floresta
de cardos, povoada de insetos venenosos. Homens e mulheres traem-se com a mesma
facilidade com que se juram amar eternamente uns aos outros. Bem lhe diziam na
província que o Rio de Janeiro era um centro de perdição, uma Babilônia de
vícios, bem lhe diziam!... Melhor prova ela não podia ter: o Sr. Luís Furtado,
aristocrata de Botafogo, pai de família, mostrava-se dedicado aos outros para
poder abusar.. E assim era tudo.
O cérebro de Adelaide enchia-se
de considerações, enquanto Evaristo mergulhava num sono calmo e reparador. O
bacharel não esperou pela hora habitual de se deitar, fatigado do passeio, com
uma invencível morrinha no corpo, os olhos ardendo, a vista turva, esvaziou uma
moringa d’água fresca e estendeu-se na cama, na bela cama de casal. “Não era de
bronze para resistir às conseqüências de um piquenique!” E dormia, o Evaristo,
como o mais feliz de todos os bacharéis.
Adelaide é que não podia dormir,
apesar de cansada também. Era maior a preocupação moral que o sono. Ouviu bater
oito horas, nove, dez, onze, meia-noite, e o cérebro a trabalhar, a funcionar
como uma máquina de alta pressão. Chocavam-se nela as mais desencontradas
idéias: ora Furtado parecia-lhe um homem sem caráter, indigno da amizade de
Evaristo ou de quem quer que tivesse um bocado de vergonha, ora
afigurava-se-lhe cavalheiro distinto, com todas as virtudes e defeitos (não há
homem sem defeitos ...) da sociedade em que vive. Ao mesmo tempo que o
condenava por lhe ter beijado a mão, ferindo-a no seu amor-próprio, intimamente
o perdoava, lembrando-se de que talvez ele a amasse deveras e o amor é cego, o
amor não quer saber de razões... Quem sabe? ele talvez a amasse, talvez lhe
consagrasse alguma estima particular e fora de suspeitas criminosas. Beijou-a
porque... porque não teve forças para se dominar...
A consciência, porém, dizia-lhe
baixinho que uma mulher casada, uma mulher que se ligou a um homem para toda a
existência, é objeto que outro homem não deve tocar nem de leve, ainda mesmo a
pretexto de amizade fraternal ou de sagrada admiração; e a esposa que se deixa
beijar por um homem, que não é o seu legítimo marido, tem na sociedade o feio
nome de adúltera. Vinha-lhe, então, um arrepio nervoso, uma sensação de
remorso por não ter energicamente repelido o secretário, mesmo com escândalo,
embora caísse sobre ela todo o ódio de Furtado e de D. Branca; acima deles
estava a sua dignidade e a honra de Evaristo. No meio dessas idéias, e como uma
aparição bendita, surgiu-lhe a figura de Balbina, a preta velha de Coqueiros, e
uma lágrima triste, uma lágrima de saudade embebeu-se no travesseiro da meiga
esposa do bacharel.
Evaristo roncava.
No outro dia falou-se muito no
piquenique; todos tinham gostado imenso. A correção do Visconde, o ar fidalgo
que ele não perdia mesmo entre amigos, a toilette com que se
apresentava, as suas delicadezas mereceram especiais referências de D. Branca.
O secretário não esteve muito
loquaz ao almoço; dava uns apartes tímidos e avançava um ou outro juízo irônico
sobre o passeio da véspera, lamentando as dores de cabeça de Adelaide e a
eterna circunspecção do Visconde. – “Afinal, a verdade é que ninguém se
divertira. Resultado: um passeio de burgueses, um piquenique fúnebre!”
– Fúnebre por quê? – saltou
Evaristo. – Vocês é que não sabem se divertir; eu pelo menos fiz honra à
confeitaria Pascoal e gozei o que há muito não gozava: o aspecto da nossa
natureza, a sombra de uma árvore e a frescura de um veio d’água. Nesta imperial
cidade, onde a vida do rei é o que de mais precioso existe, vale a pena um
homem sair dos seus cômodos para respirar o ar livre do Jardim Botânico ou de
outro jardim qualquer. Nós é que não sabemos gozar o que possuímos. O imperador
absorve o cérebro e o coração deste povo...
– Deixe o velho, Sr. Evaristo,
Sr. Evaristo ... – fez D. Branca. – O imperador é um bom homem.
– Ninguém diz o contrário; mas o
Brasil ainda é melhor que ele...
– Aí vem política! – murmurou
Adelaide, que até aí não dera palavra.
Furtado olhou-a e sorriu; ela
abaixou os olhos gravemente.
O resto do dia passou calmo.
Adelaide subiu, depois do almoço, como às vezes costumava, e foi ler os
jornais. Estava resolvida a mudar-se daquela casa antes que estalasse algum
escândalo.
Mas a insistente idéia de
Furtado não a abandonava e todo o santo dia pensou nele, como num objeto querido,
e nas histórias de amor que lhe contara D. Branca. Como exigir de Evaristo uma
mudança brusca, ela que nenhuma razão podia alegar contra o sobrado ou contra a
família do secretário? Dizer-lhe simplesmente que não estava bem ali era uma
imprudência, tanto mais quanto as suas relações com a esposa de Furtado eram
estreitíssimas e ela sempre fizera grandes elogios à casa e ao próprio marido
de D. Branca. Antes esquecer, antes esquecer tudo e apresentar-se alegre,
fazendo pela vida como os outros, não estorvando os projetos de Evaristo,
aceitando os homens como eles são – desleais e corruptos... Que podia ela só
contra uma sociedade inteira, contra milhares de pessoas? Nada, absolutamente
nada. Homem e mulher vivem conforme a sociedade os obriga a viver, fingindo não
perceberem aquilo que lhes está entrando pelos olhos; a mulher principalmente,
a mulher é um ente nulo, uma criatura sem vontade, uma pobre máquina dos
caprichos do homem. Triste daquela que, instigada pelo amor-próprio, arrebatada
por um movimento de dignidade feminina, rebelar-se contra o jugo do meio em que
vive! Não lhe faltarão apodos, nem grosseiras alusões...
Na sua simplicidade provinciana
a jovem esposa do bacharel começava a compreender o papel inferior da mulher na
civilização, e traçava mentalmente um programa de vida, uma linha de conduta
humilde e utilitária sobre as bases que lhe fornecera a experiência de alguns
meses. O Rio de Janeiro aparecia-lhe agora sob um aspecto novo e convencional.
Furtado representava, a seus olhos, o homem moderno, capaz de todas as
perversões, de todas as hipocrisias, colocando acima da dignidade própria, o
sensualismo, os gozos inconfessáveis, a luxúria sob todas as formas e as
exibições públicas de toilettes à última moda. Notara, no piquenique, a
insistência com que o Visconde de Santa Quitéria se dirigia a D. Branca,
levando-a pelo braço a passear no Jardim, fora das vistas do secretário,
enquanto este, por seu turno, ia maquinando o melhor meio de pôr em prática uma
traição ao amigo... e essas e outras coisas enchiam-lhe o coração de descrença
e de pesar. O verdadeiro – a prudência lho dizia – era fechar os olhos a tudo e
esperar que Evaristo se convencesse da asquerosa realidade... Ela nunca o havia
de trair, isso nunca! Preferia morrer, preferia suicidar-se... Queria-o muito,
orgulhava-se em o ter como esposo de sua alma. Ou a mulher ama o homem com quem
vive e, se o ama, não o pode trair, ou não o ama e, neste caso, é a pior de
todas as mulheres de vida fácil, porque diz hipocritamente que o ama para, à
sombra de um responsável, cometer infâmias. Não, ela havia de respeitar seu
maridinho enquanto Deus lhe desse juízo.
Arrumou a casa, espanou os
móveis, passou uma vista nos jornais e sentou-se entregue às suas reflexões, o
espírito alvoroçado pelo enxame das idéias, num grande silêncio de tugúrio que
nenhum estalido quebrava.
D. Branca, pé ante pé, foi
encontrá-la na cadeira de balanço, a olhar o teto, numa abstração infinita,
rodeada de jornais.
– Boa vida! – exclamou, com um
sorriso afetuoso, a mulher de Furtado.
Adelaide teve um pequeno
sobressalto: “– Oh!... Estava pensando...”
– Estava pensando! Isso é
grave... Cai ou não cai o ministério! O imperador vai ou não vai à Europa?
A outra endireitou-se na
cadeira, passou a mão nos olhos, como quem acorda, e suspirou de leve.
– Olhe que a vida é curta,
menina, olhe que a vida é curta – repetiu a amiga em tom conselheiro.
– E os desgostos são muitos...
– Qual desgostos, criatura! Uma
mulher nova e bonita não pode queixar-se.
E sem transição, D. Branca aludiu
ao piquenique. Adelaide gabou a festa, para não contrariar a esposa do
secretário, recordou o champanha, os ditos espirituosos do senhor Furtado e,
propositalmente, não falou no Visconde.
D. Branca, então, sem estranhar
o silêncio de Adelaide, fez o elogio de Santa Quitéria, enaltecendo-lhe os
modos, “a impecável distinção com que ele tratava uma senhora, a extrema
delicadeza que punha nas palavras e nos menores gestos”, concluindo que o
Visconde era, na sua opinião, “o que se podia desejar de tout à fait chic”.
– Ele parece simpatizar muito
com a senhora.
– Comigo? Oh não, nem diga tal
coisa!
– Por quê?
– Porque não é bom, pode alguém
ouvir e eu não quero – Deus me livre – uma questão com o Furtado ...
O certo, porém, é que D. Branca
exultou intimamente com as palavras de Adelaide. – “Era, então, verdade que o
Visconde parecia Simpatizar com ela... Que lembrança?...”
Ia animada a palestra, quando a
campainha soou embaixo e vozes repercutiram na escada.
Eram os dois amigos que voltavam
juntos do Banco.
À noite ainda se falou no
piquenique, tema inesgotável das conversações daquele dia. Ninguém se lembrava
de outra coisa; o piquenique no Jardim Botânico era a grande novidade, o grande
acontecimento.
Adelaide estava mais expansiva;
trocou algumas palavras, diretamente com o secretário, emitiu opiniões, teve
risos gostosos; enfim, já não era a mesma que D. Branca surpreendera com os
olhos no teto, a pensar e que se conservara silenciosa ao almoço, enquanto as
outras pessoas comentavam o piquenique.
As noites eram mais frescas
então; respiravam-se as primeiras brisas do equinócio das flores, o sol ia
perdendo a intensidade abrasadora e caniculante que afugentara para Petrópolis
e Friburgo os satélites imperiais do monarca. A vida fluminense, por assim
dizer interrompida com a ausência da aristocracia palaciana, voltava a
funcionar, é verdade que sem o estímulo habitual, porque a sabedoria de
Hipócrates ordenava ao imperador uma retirada para o outro continente, e os
olhos do povo e da nobreza cedo começavam a chorar a ida inevitável do augusto
e perpétuo defensor do Brasil. Voltavam tristes as andorinhas de Petrópolis, e
essa tristeza comunicava-se ao meigo rebanho que atravessara dezembro e janeiro
ao sol, enquanto a asa negra da febre amarela estendia-se pavorosa, sobre a
heróica cidade.
Os jornais, numa faina lúgubre,
pediam contas ao governo sobre o verdadeiro diagnóstico da imperial moléstia e
já se dizia por toda a parte que “o rei ia, mas não voltava... – Diabetes ...
glicosúria... surmenage... eram palavras que enchiam a Rua do Ouvidor
subindo e descendo com os transeuntes. – Quem ficava no trono! Quem se
responsabilizava pelos destinos da grande pátria americana? Toda a gente sabia
que era a princesa, mas toda a gente perguntava: – Quando era o dia do
embarque? – e cada boca era uma interrogação e cada olhar uma profecia.
Republicanos, abolicionistas, em conciliábulos secretos, viam na doença do
imperador o triunfo das novas idéias, a conquista da liberdade, a grande
hora da fraternização brasileira...” E reduzido às míseras proporções de
inválido, o segundo Alcântara, bisneto da Sra. D. Maria I, universalmente
conhecido pelos seus versos ao bom povo ituano e pelo seu amor às
letras, que na Europa dava-lhe foros de primeiro poeta do Brasil – O celebrado
amigo de V. Hugo e das canjas do Teatro Lírico ia sulcar o Atlântico para
bem do povo e felicidade da nação, desse povo que tanto o amava e dessa
nação que ele governava há meio século.
Povo e nação volviam os olhos
para a Tijuca à espera de que saísse o augusto enfermo, com o seu préstito de
áulicos e turiferários, humilde agora mais do que nunca, dentro de um cupê
imperial, abatido e tristonho na grande dor que o pungia... Quantas pessoas
ainda não o tinham visto e queriam vê-lo agora no embarque! As ruas haviam de
se encher, as ruas e as praças quando os clarins dessem sinal da aproximação
d’Ele. Oh, havia de ser um espetáculo comovedor, uma tristeza enorme, um pranto
geral nos palácios e nas choupanas, onde quer que brilhasse a fama do seu
queridíssimo nome. Os republicanos mesmo não se conservariam insensíveis.
– Porque – dizia, numa roda, o
secretário – vocês podem negar tudo, menos que o imperador seja querido pelos
brasileiros.
A roda compunha-se dele Furtado,
de Evaristo, de Valdevino Manhães, do deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas,
e do Freitas Camargo, outro poeta, companheiro do Manhães na Revista
Literária.
O tema era a viagem do imperador
daí a alguns dias. Estava-se em fins de maio. Aboletados ao redor de uma
mesinha no Castelões, cada um expunha o seu juízo acerca do monarca e da
imperial viagem à Europa. O secretário do Banco apelava para a
consciência de todos: – era ou não estimado no Brasil o imperador?
Valdevino Manhães, cavalgando o
pincenê afetadamente, e cruzando as pernas com um ar doutoral, lembrou as suas
tradições republicanas e disse que, apesar de nunca ter merecido favor nenhum
do Império, não ousava negar a estima do povo ao rei; mas isso não queria
significar adesão eterna do povo às instituições monárquicas: era um sentimento
pessoal, uma generosidade afetiva, um respeito mesmo às barbas brancas
do velho...
– Engana-se, amigo – interrompeu
o representante de Alagoas calmo, sem se mover na cadeira, fitando os olhos no
Dr. Condicional. – Pedro II enraizou a monarquia no Brasil, e, ainda que tivéssemos
o desgosto de lamentar a sua morte hoje ou amanhã, o Brasil havia de ser sempre
Império do Brasil, nunca uma república. Desejar o sistema republicano para o
nosso país é querer a ruína de uma das maiores nações do mundo. Veja o senhor a
Inglaterra.
– Exatamente – apoiou Furtado.
– A Inglaterra é uma nação
decadente! – berrou o Manhães. – Não há termo de comparação entre a Inglaterra
e o Brasil. O Brasil um país novo, ainda nas faixas infantis...
– Por isso mesmo, por isso
mesmo! – argumentou o deputado. – Os países novos precisam de um freio, como o
indivíduo na infância.
Qual freio, Sr. Doutor! De freio
precisam os burros, e nós somos um povo inteligente, um povo que não precisa de
freios nem de monarcas. A república há de se fazer, creia!
O alagoano, que pela primeira
vez tratava com o Manhães, estranhou-lhe o modo agressivo com que discutia e
não retrucou. Valdevino continuou a falar no meio do silêncio dos companheiros,
não perdendo ocasião de aludir à sua viagem à Europa e ao bom acolhimento que tivera
em Lisboa.
Camargo apoiava tudo quanto ele
dizia por espírito de coleguismo e em atenção ao diretor da Revista. Mas
Valdevino lembrou-se de que se comprometera a jantar no Globo com uns
rapazes, e, estabanadamente, despediu-se de todos. Foi então, só então, que o
Camargo abriu a boca, para dizer que o Valdevino era um idiota, uma besta!
Ismael Pessegueiro olhou Furtado
e baixou a cabeça. Evaristo, mais positivo e menos convencional, estendeu a mão
ao poeta:
– Toque, amigo! O senhor agora
disse tudo o que muita gente pensa e não tem coragem de dizer.
– Um homem que vive a escrever
asneiras e a rabiscar sujidades! Um repetidor de frases ocas! Porque veio da
Europa, entende que é já um mestre, um alto personagem nas letras... Uma
cavalgadura é o que ele é!
– Pobre Valdevino!... – lamentou
Furtado ironicamente.
– Pobre Dr. Condicional! – fez
Evaristo.
– É o que lhes digo – continuou
o poeta. – Quando Ramalho Ortigão aqui esteve, no Rio, a primeira pessoa que correu
a beijar-lhe os pés foi ele, o Valdevino.
– Os pés ou as mãos? – inquiriu
malicioso, Evaristo.
– Os pés... que ele quando adula
é para beijar os pés. Em literatura, como em política, é um rafeiro dos
medalhões...
– Oh!... – balbuciou com um
risinho especial o representante de Alagoas.
– Pode acreditar, doutor! O
Valdevino Manhães é conhecido na Rua do Ouvidor; toda a gente sabe de quanto é
capaz aquele idiota...
O secretário interveio com uma
pilhéria.
– Vocês esquecem-se de que estão
a falar do autor do Juca Pirão... – Belo título de uma obra: Juca
Pirão – continuou Camargo. – Vejam vocês até onde pode chegar a estupidez
humana!
– E é verdade que existe essa
obra? – perguntou o deputado.
– É, doutor, infelizmente é!
Faça o senhor idéia: um livro com o título de Juca Pirão!
O Dr. Ismael carregou uma risada
cheia de sarcasmo.
– Deixem o pobre homem...
suplicou o Furtado. – O Valdevino é uma boa criatura...
– Ouvi dizer que tem a mania do
renome literário, é verdade? – perguntou o Evaristo...
– Mania que o há de levar ao
hospício – resmoneou o Camargo.
– Esses literatos, esses
literatos... – disse com mistério o Holanda.
– Vivem se digladiando! – acabou
Furtado. – Queres mais cerveja, oh Camargo?
– Não, não, merci...
– Doutor, outro copo...
– Obrigado...
– E tu, Evaristo?
– Eu também recuso.
– Então podemos levantar
acampamento.
Ergueram-se os quatro fumando,
com grandes ares de capitalistas.
A Rua do Ouvidor estava num de
seus dias de festiva alacridade, inteiramente cheia, como um rio a transbordar,
tumultuoso, murmurejante e iluminado por um sol acariciador de primavera. Iam e
vinham os habitués de ambos os sexos, numa procissão de toilettes vivas,
num burburinho de festa pública entrechocando-se, acotovelando-se. Famílias
conversavam à porta das lojas, moças e velhas madamas, senhoras de todas as
idades e de todos os tamanhos, rindo, como se estivessem no interior de suas
casas, beijando-se alto, enquanto os pais e os maridos discutiam política à
porta dos cafés, à espera que elas acabassem de “fazer as compras”. Ecoavam
gargalhadas entre os homens. Uma banda de música a tocar polcas e valsas faria
toda aquela gente esquecer-se de que estava na Rua do Ouvidor e cair num grande
bailado ao ar livre. As maiores notabilidades da política, da literatura e das
artes, os mais conhecidos escritores e homens de Estado viam-se ali, em grupos,
à porta do Café de Londres, do Castelões ou do Pascoal, frechando, com o olhar,
o madamismo suspeito e as demoiselles ricas, assistindo ao desfilar tumultuoso
das cocotes, e das condessas, biografando-as uns aos outros com risinhos
de inveterada malícia, observando-lhes o andar, os meneios, a toilette, a
opulência das carnes, como se as quisessem devorar num ímpeto de canibalismo
sexual, acompanhando-as a perder de vista, gulosos, famintos e banais. Moços de
flor ao peito, no rigor da moda, alguns chegados de Paris, iam e vinham, numa
ostentação pedantesca de polainas, de casimiras claras, de coletes brancos e de
frases tolas, cumprimentando à direita e à esquerda, eretos como figuras de
vitrina. Os armazéns de modas enchiam-se; enchiam-se os cafés e as
confeitarias, e o zunzum aumentava de entontecer, dentro das lojas e na rua.
– Sabes quem é aquela, oh
Evaristo? – disse, parando, o secretário. Indicava uma senhora de presença
estranha, muito bem vestida, que ia pelo braço de um cavalheiro, na outra
calçada. Um movimento de ansiosidade propagou-se no trecho da rua.
– Quem é?
– A baronesa de Lima-Verde, uma
das mulheres mais formosas do Rio de Janeiro...
– Oh!... Vai com o marido...
– Isso é o que ainda não está
suficientemente provado.
– Que queres dizer?
– Afirmam uns que o marido, o
Barão, passeia na Europa e que ela, a baronesa... não gosta de andar só...
– Aquele senhor é então o
cunhado, o irmão...
– Qual cunhado, nem qual irmão!
Aquele senhor é sócio de uma firma de capitalistas...
O bacharel compreendeu a alusão
e exclamou, voltando-se para o objeto do diálogo:
– Que estás dizendo?
– Não achas formosa?
– É realmente uma beleza... Mas
então...
– Fecha os olhos, Evaristo,
fecha os olhos... e não queiras saber de mais nada.
Furtado, porém, resumiu em
poucas palavras a crônica da baronesa, citando nomes com um perfeito
conhecimento de coisas. Entre os adoradores da ilustre senhora estava o
Visconde de Santa Quitéria.
– O Santa Quitéria!
– Ele mesmo, e não te admires,
porque outros de maior sisudez fazem a corte à baronesa.
O Camargo e o deputado Ismael
tinham-se despedido. Os dois amigos subiram a Rua do Ouvidor, no meio de
torvelinho geral, afastando-se a cada instante para deixar passar as senhoras,
rompendo a multidão, esgueirando-se com as paredes, esbarrando com os
transeuntes, aos encontrões, às apalpadelas quase.
No Largo de São Francisco um
golpe de ar bafejou-os de improviso, como se saíssem de um túnel.
– Caramba! – exclamou o
secretário. – A Rua do Ouvidor às quintas é um formigueiro! Nunca vi tanta
gente!
– Olha daqui... olha daqui! –
insistiu o bacharel, voltando-se no meio do largo, para a famosa artéria que
regurgitava.
Era um espetáculo curioso. A rua
muito estreita, com os seus sobrados de dois a três andares, com os seus arcos
de iluminação, com as suas bandeiras, tinha o aspecto movimentado de uma
pequena cópia de bulevar em dia de festa. Embaixo a massa negra e compacta,
ondulando como uma procissão vista de longe, e um sibilar de vozes indistintas
como o vago rumor de uma colmeia alvoroçada.
– Queres que te diga o efeito
que isso me produz, oh Furtado?
– ?
– Lembra-me o caos, o
misterioso, o incompreensível, a vertigem dos abismos... o grande nada dos
heróis que dormem...
– Do vasto pampa no
funéreo chão! – concluiu o secretário erguendo o braço numa pose
oratória.
E fitando o bacharel:
– Estás apocalíptico, homem!
Olha, não vás fazer como no Jardim Botânico, onde assassinaste barbaramente,
creio que o Garrett ou o Alexandre Herculano...
– Pois é o que me parece a tal
Rua do Ouvidor, e a comparação, se não é original, tem o mérito de exprimir
exatamente o que eu quero dizer.
E Evaristo dava às palavras um
tom de ironia boêmia sublinhando-as com um risinho cáustico e pérfido.
– Nunca hás de ser coisa alguma,
porque vives a criticar a humanidade, e a humanidade o que quer é que a gente
não veja os seus ridículos e as suas fraquezas.
– Pior! Achas que eu me devo
subordinar aos caprichos da humanidade!...
– Que remédio tens tu!...
– O remédio dos incuráveis: a
paciência...
– Bem, o lugar não se presta a
discussões. Enfiemos outra vez pela Rua do Ouvidor.
– Outra vez?
– Para tomar o bonde de
Botafogo...
Mas uma surpresa estava
reservada ao secretário. Justamente na ocasião em que o bacharel passava diante
da Notre Dame de Paris, deram de ombros com D. Branca e Adelaide.
– Oh!
– Oh!
A mesma exclamativa saiu da boca
de Furtado e da esposa. Evaristo soltou um olá! fino, esganiçado e tão
alto que algumas pessoas voltaram-se com um movimento de viva curiosidade.
– As senhoras por aqui! –
estranhou o bacharel.
– Por aqui! ... – repetiu
Furtado.
– Que grande admiração! E os
senhores também não andam passeando? – opôs D. Branca com um olhar
interrogativo por trás do véu que lhe cobria o rosto.
Adelaide esperou, sorrindo, a
defesa da amiga.
– Nós somos homens...
– Morreu o Neves!
– Íamos ao Banco – disse
Adelaide.
– Com escala pelo Largo de São
Francisco... – atalhou o bacharel.
— Nada de escândalo, nada de escândalo!
– preveniu Furtado. – Já agora...
– Já agora vamos fazer um lanche
ao Pascoal – interrompeu a esposa do secretário.
E os dois casais, bras
dessus, bras dessous, foram andando rua abaixo tranqüilamente.
Eram duas horas da tarde. A onda
de povo crescia; o movimento era cada vez maior nos cafés; ouviam-se
orquestrações de harpa e o pregão monótono de leiloeiros destacando no meio da
vozeria dos transeuntes.
Logo depois do almoço D. Branca
sem dizer nada ao marido, convidara Adelaide para “uma volta na Rua do
Ouvidor”. A tímida esposa de Evaristo, guardando os seus escrúpulos e as suas
conveniências de mulher bem casada, objetou-lhe o desgosto que isso
podia causar ao bacharel.
– Vais comigo, filha, vais com a
tua amiga.
– E o Sr. Furtado?
– O Furtado não ralha, porque
sabe que é perder tempo. É uso no Rio de Janeiro as mulheres saírem sem os
maridos. Uma coisa tão velha! Outro dia fomos, eu e D. Sinhá do
desembargador...
– Outro dia?
– Vocês ainda não estavam aqui;
foi num sábado... Pensas que o Furtado se incomodou? Qual!
– D. Branca! – fez a outra com
um ar medroso.
– Não é nenhuma admiração,
mulher. Metemo-nos no bonde, como quem vai fazer compras à cidade, sem
mistérios, aos olhos de todo o mundo.
Adelaide não se resolvia. “ –
Sair sem Evaristo e logo para a Rua do Ouvidor!... Hum!...”
– Qual um, qual dois, rapariga;
vista-se e vamos, que é meio-dia.
– D. Branca, D. Branca!
– Pior! ...
– ...Mas a senhora se
responsabiliza, então...
– Responsabilizo-me pelo que
você quiser.
– Bem... depois, depois! ...
E Adelaide atraída pelas
cavilações da esposa do secretário (sempre fértil em expedientes), levada mesmo
por um irresistível amor de se mostrar, de se apresentar, de exibir os seus
formosos olhos numa rua tão pública, de ver as suas iniciais num jornal que
descrevia as toilettes da Rua do Ouvidor.
Adelaide correu, lépida, ao
guarda-vestidos.
– Olha, o de rendas, hem! –
lembrou a amiga.
– Sim, o de rendas, é claro...
E daí a pouco um aroma fino, de
sabonete, de pó-de-arroz e de essência de Houbigant espalhava-se em toda a casa
– no primeiro e no segundo andar -; fechavam-se gavetas com açodamento,
farfalhavam sedas e tiniam jóias. D. Branca por um lado e Adelaide por outro,
esmeravam-se nas toilettes como se fossem a um baile ou a alguma
festa de rigor.
– Pronta?
– Pronta... – respondeu a esposa
do bacharel, dando um jeito no vestido, ao mesmo tempo que se revirava para o
grande espelho do toucador.
E saíram de chapéu-de-sol
aberto, uma jovialidade infantil, pelas ruas de Botafogo, a tomar o bonde. Os
passageiros olhavam-nas com esse olhar curioso e indiscreto que às vezes
confunde uma mulher honesta com uma horizontal. Adelaide ia um pouquinho
no ar, um bocadinho gauche, às voltas com a luva da mão esquerda que não
queria abotoar, sempre tímida, em contraste com os modos vivos da esposa do
secretário.
Um senhor de óculos e barba
grisalha cumprimentou-as.
– Quem é?
– Não conheço...
– Nem eu...
D. Branca não se lembrava, ou
fazia que se não lembrava: era um dos titulares de Botafogo, o comendador
Beltrão, dono de uma grande fábrica de cigarros. Não gostava de cumprimentar os
homens de fisionomia idosa. – “Ora, o Beltrão... um velho!”
– E se encontrarmos o Sr.
Furtado? – balbuciou Adelaide.
– Melhor... voltamos em boa companhia.
Mas o pensamento da jovem
senhora estava no outro, no bacharel, no Evaristo. – Que diria ele, depois? Que
ela já o não consultava em seus negócios, que não era a mesma Adelaide, que não
fazia caso dele, talvez... E como explicar a sua ida à Rua do Ouvidor, como
convencê-lo de que D. Branca a arrastava responsabilizando-se perante ele,
como? Os homens não acreditam facilmente nas mulheres, enquanto não as vêem
chorar, enquanto não as vêem de rojo a seus pés... Há dois anos que eram
casados e nunca Evaristo duvidava das suas palavras; mas agora, no Rio de
Janeiro... quem sabe? talvez não as aceitasse logo, como na província. Outras
idéias. O mundo é todo cheio de contradições...
– Vamos voltar? – propôs ela à
amiga.
E ia pretextar uma dor de
cabeça, uma dor no fígado, um incômodo qualquer, mas D. Branca atalhou:
– Voltar? Que idéia! Eu, nem que
me pagassem; meu rico vestidinho há de dar que falar hoje à Rua do Ouvidor.
Voltar por quê?
– Por causa do Evaristo... –
sorriu timidamente Adelaide.
– Ora, minha filha, tenha juízo!
Então você é alguma criança? O Sr. Evaristo é um rapaz inteligente, um homem de
bem, um cavalheiro... Os tolos é que prendem as mulheres, como se elas fossem
escravas. Já lhe disse que me responsabilizo...
– Eu sei, mas...
– Não admito razões. A senhora
vai comigo; quem a leva sou eu. E, em todo o trajeto de Botafogo à Rua do
Ouvidor, uma e outra mereceram grandes elogios, grandes exclamações e vivos
olhares de capitalistas e doutores que, mesmo na faina dos seus negócios, nunca
se descuidam do sexo amável.
No ponto dos bondes houve um
senhor que lhes dirigiu a seguinte frase cheia de ocultas intenções, numa voz
melíflua e carinhosa:
– Como são lindas!
E outro, mais adiante:
– Oh, que beleza!
E ainda outro, já em plena Rua
do Ouvidor:
– Deliciosas!
Tudo gente séria, moços
bem vestidos, de colarinho alto e chapéu de forma e anéis de brilhante.
Adelaide não sabia como pisar,
nem que jeito desse às mãos, nem onde pusesse os olhos, vendo surgir, de
repente, o bacharel e agarrar pela gola do fraque um homem daqueles, e
culpá-la, e dar escândalo! Arrependia-se mil vezes de ter acedido às instâncias
de D. Branca.
A esposa do secretário, num
coquetismo de mulher fácil, abanando-se com o rico leque de plumas, uma
ostentação imperiosa de sedas e gazes resplandecia ao lado da amiga. Todos os
olhares cravavam-se nela, no seu belo porte de mundana, nas suas formas rijas
que o espartilho evidenciava, torturando-a.
– Bela rapariga! – foi uma das
exclamações que lhe chegaram ao ouvido. E ela como que redobrou de altivez,
aprumando-se, garbosamente.
O instinto ou o que quer que
seja levou-a a tomar o caminho da Praça, pela Rua Direita. A mulher tem uma
espécie de faro tão pronunciado e admirável como em certos animaizinhos
de estima. D. Branca ia pelo faro, quando quem lhe havia de surgir? o Visconde,
o respeitabilíssimo Santa Quitéria... Vinha de uma assembléia-geral de
acionistas no Banco.
– Oh, excelentíssimas, folgo de
vê-las! – exclamou o banqueiro estendendo a mão, todo inclinado, primeiro à Branca
e depois à Adelaide. – Andam passeando?
– Andamos passeando... –
murmurou a esposa do secretário.
E emendou logo:
– Vamos fazer umas compras
– Ah!... Está muito bem, está
muito bem.
– O Sr. Visconde já veio de
Petrópolis.
– Sim, excelentíssima; Petrópolis
está deserto... Desde que a família imperial mudou-se para a Tijuca que
Petrópolis está deserto. O imperador embarca definitivamente na próxima semana.
– Para a Europa?
– Exatamente.
E, com um ar compungido, o
Visconde acrescentou:
– Pobre velho! Vossa excelência
não o conhece...
– Por que, Sr. Visconde?
– Porque... porque reputo
gravíssimo o seu estado...
Adelaide prestava atenção à
conversa, olhando o banqueiro, medindo-o de alto a baixo, examinando-o.
– Que está dizendo?
– Gravíssimo... E comigo pensam
os doutores da ciência.
– Pobre velho! – repetiu D.
Branca sensibilizada. – Eu imagino a imperatriz...
– A imperatriz não o abandona;
segue também.
– Coitada! E os príncipes?
– Os príncipes ficam em
companhia da princesa. Pelo menos é o que se diz...
– Um homem tão forte, um
hércules! – exclamou a esposa do secretário.
– As aparências iludem, minha
senhora, e a morte é traiçoeira. Andam, então, fazendo compras?...
– Fazendo umas comprinhas...
– Bem, não as quero importunar.
E o Santa Quitéria descobriu-se,
apertando, com uma delícia enorme, a mão enluvada e fina de D. Branca.
– Recomende-me ao nosso
Furtado...
– Agradecida.
Oh, como ela desejaria prolongar
aquele tête-à-tête, aquele doce encontro!... Mas o movimento era grande
na Rua Direita, e não menos grande a língua do povo.
O banqueiro afastou-se, num
gracioso ademane, e elas, depois de ligeira hesitação, voltaram pela Rua do
Ouvidor.
Novos ditos, novas exclamações.
De um grupo, à porta de uma
confeitaria, saíam estas palavras:
– As mesmas! as mesmas!
E uma chusma de olhares
cobiçosos assaltou-as.
Entraram numa grande loja de
fazendas, trocaram algumas palavras com o caixeiro, moço amável que trazia
sempre a ponta do lenço fora do bolso do paletó, e – obrigada, hem, muito
obrigada!... – saíram.
Foi então que o bacharel
bispou-as, quando ele e o secretário voltavam do Largo de São Francisco, e os
dois casais resolveram-se a tomar qualquer coisa no Pascoal.
A presença de Adelaide àquela
hora na Rua do Ouvidor significava, para Evaristo, uma desconsideração, aos
seus hábitos e às suas normas – um desvio da esposa, uma quebra de respeitos
... Sempre a conhecera tímida, obediente às suas prescrições e inimiga de se
apresentar onde ele não estivesse, e agora via-a na rua mais pública do Rio de
Janeiro, em grande toilette, como uma senhora habituada ao luxo e à
publicidade, que não receia o eco das más-línguas, nem a audácia dos ociosos! É
certo que ia pelo braço de D. Branca, mas a esposa de Furtado... a esposa de
Furtado... a Sra. D. Branca... E enquanto caminhava para o Pascoal, Evaristo,
silencioso ao lado da mulher, como que se empenhava na resolução de problema
difícil. Adelaide merecia-lhe toda a confiança, mas, positivamente, já não era
a mesma Adelaide. Vir à cidade sem lhe dizer, sem o prevenir?... Não, já não
era a mesma...
E enquanto durou o lanche,
enquanto estiveram na confeitaria debicando empadas e sanduíches – o bacharel
manteve-se casmurro a torcer o bigode, a olhar os que entravam e os que saíam,
mais filósofo que nunca, a alma vibrando numa indignação muda e
tenebrosa.
Adelaide compreendeu que o havia
desgostado e cruzou o talher.
D. Branca e Furtado
entreolharam-se com admiração. Era a primeira vez que os viam amuados.
Capítulo
VI
Ia enfim realizar-se a
misteriosa e pranteada viagem do imperador. Na eterna alegria do sol, que
amanhecera esplendidamente luminoso, flutuavam preces ao bom Deus pelo pronto
regresso do monarca. Suspiros de saudade, louvores à boca pequena, exclamações de
inconsolável tristeza erguiam-se nas ruas da cidade, formando uma atmosfera de
vagas melancolias, um como ambiente glacial de apreensões sinistras que a luz
triunfal do sol não espancava. Ia ficar deserta a Quinta de São Cristóvão e o
Brasil sem o imperador, o Brasil sem o Sr. D. Pedro II era como um país
abandonado à aventura dos selvagens... Oh, o homem extraordinário que antes de
ser homem era rei! que tristeza para o povo, que desolação para a Corte!
Ninguém queria acreditar naquela viagem lúgubre como a própria morte...
No entanto, chegava a hora do
embarque. Apresentavam-se as carruagens; não havia tempo a perder.
Às seis horas da manhã o
desembargador Lousada e a mulher, em berlinda especial, abalaram para a Tijuca.
A ilustre dama de Sua Majestade, a imperatriz, ia chorosa, com o lenço nos
olhos, quase muda na sua toilette de seda marrom. O Visconde de Santa
Quitéria, amigo particular do imperador, não quis deixar de cumprir o religioso
dever que lhe impunham a amizade e a gratidão: lá foi também corretamente
encasacado, de luvas pretas. E outros e outros personagens de etiqueta levaram
a sua homenagem aos augustos viajantes.
Luís Furtado entendeu que melhor
seria assistir ao embarque no Arsenal de Marinha com D. Branca e os Holanda.
Mas Evaristo foi dizendo logo que “só costumava ir ao embarque dos seus amigos
e que não transigia com as suas convicções...”
– Não se trata aqui de
convicções, nem de idéias políticas – fez o secretário. – É um dever de todo o
brasileiro levar as suas despedidas ao imperador, ao homem que nos governa há
quase cinqüenta anos e cujas virtudes o mundo inteiro admira...
– Nesse caso vai tu, eu não. O
meu dever, como republicano, é não ir, é ficar em casa ou à minha banca de
trabalho. Nunca recebi favor do Sr. D. Pedro II, nem ele me deve coisíssima
alguma.
– Queres, então, privar D.
Adelaide.
– Não senhor, não senhor,
Adelaide irá se quiser, eu não proíbo...
– Sempre a mesma veleidade
republicana; sempre a mesma tolice! – exclamou Furtado. – Hás de lucrar muito
com essas idéias!
– Não é questão de lucro, é
questão de consciência. Tenho o direito de pensar e de agir como entender.
– Bem; fica-te lá com a tua
consciência, meu Camilo Desmoulins, e depois não te arrependas... Então, D.
Adelaide vai conosco?
– Pode ir...
A jovem esposa do bacharel
tinha, com efeito, muita vontade de ver o imperador, cujas barbas brancas ela
nunca vira senão em retratos; mas o marido era homem esquisito, inimigo figadal
da monarquia, cheio de escrúpulos, timbrando em continuar na Corte a mesma
vida aperreada da província – um incorrigível – e ela respeitava as idéias dele
como se fossem as suas próprias idéias. Resignou-se com um suspiro. O mundo não
se acabava; quando o imperador voltasse da Europa, iria vê-lo...
Furtado, porém, renovou o seu
pedido a Evaristo, obtendo dele uma resposta que trouxe aos lábios da esposa o
mais adorável dos sorrisos. – Que sim – que Adelaide não devia perder o
embarque espetaculoso do Sr. D. Pedro II... ao menos por curiosidade, por
desfastio...
– Muito bem, muitíssimo bem! –
aplaudiu o secretário, risonho, batendo as mãos. Gosto de ver um republicano de
idéias largas como o Evaristo. D. Adelaide agora não tem mais do que ir
preparando a toilette..
E no dia anunciado pelos
jornais, todos, menos o bacharel que os acompanhou somente até à cidade,
dirigiram-se ao Arsenal de Marinha, ponto de embarque do imperador.
A galeota imperial, encostada ao
cais, fumegava, toda pintada de verde e ouro, fria como uma baleia, crivada de
olhares que a contemplavam num êxtase selvagem. Dentro dos muros do Arsenal
passeavam oficiais de Marinha e do Exército, em grande gala, arrastando as
espadas com ar marcial. Viam-se também altos funcionários à paisana, de casaca
e luva, e senhoras em trajo de baile, exibindo o colo num decote pomposo de
rainhas, vestido de cauda, brilhantes no cabelo.
Era intensa a luz do sol, mas o
povo afluía, na rua, dominado pela irresistível curiosidade de assistir à
passagem da família imperial.
Uns queriam ver o próprio
monarca, outros, que o conheciam, não ocultavam o desejo de “reparar bem” na
herdeira do trono, outros nada mais queriam senão lançar os olhos à imperatriz.
O trecho entre o morro de São Bento e a Secretaria da Marinha estava repleto de
curiosos – operários do Arsenal, ganhadores, catraieiros, no meio dos quais
sobressaíam altos chapéus de forma de um ou outro personagem desconhecido que
também se abalava a ver o embarque.
De vez em quando parava um carro
e o povo abria alas, num movimento de exército em revista. Chegavam Ministros e
diplomatas cujos nomes corriam de boca em boca.
Eram já onze horas da manhã e
nada do imperador, nem sinal do augusto viajante.
A essa hora precisamente uma
carruagem estacou no portão do Arsenal e logo apeou o secretário do Banco
Industrial; em seguida apearam duas senhoras: D. Branca e Adelaide.
Furtado ouviu uma voz no meio do
povo: – Mulherão! e, teso, ereto, numa pose de verdadeiro diplomata, disse
qualquer coisa ao porteiro e entrou. As duas senhoras iam na frente com o ar
compungido, silenciosas, lado a lado.
Quase no mesmo instante o povo
agitou-se e mais de duas mil cabeças volveram-se para o extremo oposto da rua.
Vozes exclamaram: – É ele! é ele!
Houve, então, uma balbúrdia, um
atropelo, uma ânsia fenomenal. Cometas estrugiram ao longe e ouviu-se um
estrépito de cavalhada em correria.
Com efeito, era o imperador que
chegava. A multidão abriu caminho, tal as águas do Mar Vermelho para deixar
passar os hebreus, e uma exclamação uníssona, estrepitosa e límpida, vibrou no
espaço:
– Viva Sua Majestade o Imperador
do Brasil!
– Vi... ôôôô!
Dentro no Arsenal, uma música
militar rompeu o hino com entusiasmo belicoso enquanto os vivas continuavam,
fora. – Vi... ôôô! Vi... ôôô!... sucessivamente.
O carro imperial estacou,
seguido de outros carros, e o velho monarca, cumprimentando à direita e à esquerda,
surgiu trêmulo, incrivelmente pálido, os olhos fundos, a barba longa como a de
um profeta da antigüidade.
Compunha-se a comitiva de S. M.
Imperiais, conde e condessa d’Eu, príncipes D. Antônio, D. Luís e do Grão-Pará,
Visconde da Mata, Visconde de Santa Quitéria, um general, um almirante, o
desembargador Lousada e a esposa, e outras pessoas de distinção.
O povo cercou o monarca e quis
beijar-lhe a mão antes dele entrar no Arsenal; mas o velho, todo trêmulo, com
os olhos úmidos, partido de saudade, balbuciou fitando os que o rodeavam:
– Não, aqui não: o sol está
muito quente!
– Viva Sua Majestade a
Imperatriz! – berrou uma voz.
E todas as cabeças se
descobriram e todas as bocas exclamaram – – Vi.... ôôô! num entusiasmo ardente
e apaixonado.
Vozes de comando estrondeavam no
recinto da praça; uma guarda de honra do batalhão naval fazia as continências
ao monarca. E ele, muito amável, muito cheio de cortesias ao lado da Sra. D.
Teresa, a mãe dos brasileiros, ia-se multiplicando em cumprimentos para
aqui, para ali, curvado ao peso dos anos e da traiçoeira enfermidade que o
minava.
Uma onda acompanhou-o
vitoriando-o, aclamando-o de chapéu no ar, aos gritos de Viva Sua Majestade o
Imperador! Viva Sua Majestade a Imperatriz! Viva Sua Alteza a Sra. D. Isabel!
Viva o Sr. Conde d’Eu!
E a música repetia o hino
nacional uma vez, duas vezes, três vezes, confundindo-se com o alvoroço da
multidão.
Por fim um silêncio medroso caiu
aos pouquinhos, amortecendo o entusiasmo e transformando-o num vago pigarrear
abafado e tímido.
A galeota resfolegava e dentro
dela já se moviam homens pressurosos, na sofreguidão de evitar o arrocho e de
se garantirem um lugar cômodo. O imperador do Brasil, com os olhos vagamente
nublados, num grande círculo de homens e senhoras que o queriam ver e beijar,
tinha a fisionomia resignada dos mártires que a lei desterra para longínquos
países, donde não voltam nunca.
Ainda não era chegado o momento
das despedidas, hora trágica dos beijos e das lágrimas. Havia uma ansiedade em
todos os olhares; uma tristeza calada e circunspecta ia dominando os espíritos,
empolgando-os de leve, penetrando os corações vitoriosamente.
A herdeira do trono enxugava os
olhos, muito rubros de comoção e de calor, em contraste com a branca fisionomia
do pai. O monarca repousava numa cadeira que lhe fora oferecida por um velho
almirante de rosto escanhoado. Mas de repente ergueu-se, compungido, e abriu os
braços à filha. Sua Alteza percebeu que o velho ia-se despedir e murmurou:
– Não, meu pai, eu vou a
bordo...
– Vais a bordo?... Oh!...
– Sim, vamos todos a bordo...
– Conselheiro – disse então o
velho para um homem idoso, fardado de ministro, que conversava com o príncipe
Gastão de Orleans – um abraço...
– Vossa Majestade permitirá que
o acompanhe ao Gironde... – fez o conselheiro dobrando-se.
– Não quero que se incomodem por
minha causa... O tempo é dinheiro...
– Não é incômodo, senhor, é um
prazer e uma obrigação...
– Pois bem, vamos, para não
demorar o vapor...
A essas palavras do monarca, a
onda dos cortesãos agitou-se, trovejou a voz do oficial que comandava a guarda
de honra, tilintaram espadas e uma fila de homens e senhoras marchou, com
solenidade, para a galeota. O cais estava todo negro de gente que tinha ido ver
“o embarque”.
A procissão fez alto à borda
d'água, trocaram-se muitos cumprimentos, D. Isabel levou ainda uma vez o lenço
aos olhos, o conde abaixou a cabeça, de lado, para ouvir um general que o
importunava com perguntas; uma menina de seis anos, vestida de branco ofereceu
ao imperador um buquê de flores artificiais, com dizeres em ouro numa larga
fita verde, e, ao som do hino, os imperiais turistas embarcaram.
Lanchas apitavam, cruzando-se na
baía, defronte do Arsenal. Uma tristeza enorme avassalou todos os corações
naquele momento, e quando a galeota fez-se ao largo e o último adeus flutuou na
asa de um lenço – palpitante, como um coração espedaçado – milhares de
silhuetas brancas emergiram da onda negra dos que ficavam... E uma aclamação
geral, clamorosa e dorida, vibrou na luz intensa, pelos cais, pelas
embarcações, mar adentro, como uma celeuma de vencidos...
Adelaide chorou sem saber de
quê; encheram-se-lhe d’água os olhos; quis falar e faltou-lhe a voz: era como
se nunca mais pudesse contemplar aquela insinuante fisionomia do velho, meiga e
boa, que ninguém ousava desrespeitar.
Estavam à sombra de uma árvore,
ela, D. Branca e Furtado; dali é que tinham visto tudo – os menores movimentos
do imperador e da família imperial até a hora do embarque.
Os olhos da esposa de Evaristo
iam e vinham, de um lado para outro, e pouco a pouco foram-se umedecendo, pouco
a pouco foram tomando uma expressão comovida e inquieta que o secretário logo
percebeu.
D. Branca esticava o pescoço,
erguia-se na pontinha dos pés, a mão enluvada no ombro do marido,
equilibrando-se. Nada lhe escapou à indiscreta curiosidade: viu o desembargador
Lousada e a mulher, os príncipes, a princesa, o monarca e a imperatriz e, por
fim, o Visconde, o Santa Quitéria enfronhado na sua casaca solene, de braço com
uma ilustre dama que ela não pôde reconhecer. O banqueiro levava ao peito um
crachá faiscante, uma grande comenda que a todos causava admiração. – Mas de
braço com uma mulher! Qh, a esposa de Furtado arriou os calcanhares, estremeceu
de ciúme, como se lhe houvessem roubado a mais querida jóia, trincou o lábio
num assomo de desespero, e abanou-se com fúria.
– Vocês não estão sentindo
calor! – disse para Adelaide e o secretário.
– Muitíssimo! – exclamou
Furtado.
– Muito – respondeu Adelaide.
– Oh, eu estou sufocada! Se
houvesse água por aqui...
– Arranja-se – tranqüilizou o
marido. – Queres?
– Quero, sim, tem paciência...
E quando ele afastou-se muito
cavalheiro, para trazer água:
– Viste o Santa Quitéria? –
perguntou D. Branca à amiga.
– Não.
– Que pena! Pois ia de braço...
– Com quem?
– Com uma velha, com uma mulher
horrivelmente feia...
– Sim.
O Santa Quitéria, um Visconde,
um homem tão elegante!
– É para você ver o que são os
homens.
– Não, que há homem de muito bom
gosto! Eu não creio que o Visconde esteja cego...
– Exigências de ocasião,
coitado! ele até acha quase todas as mulheres feias... Pelo menos já o ouvi
dizer.
– É, mas lá ia com uma coruja!
Adelaide achou graça no epíteto
e, sem desviar os olhos da onda de gente que se aglomerava no cais, respondeu
com um sorriso em que se lia toda a tristeza de uma alma ingênua. Não podia
esquecer o imperador com a sua longa barba muito branca, uma névoa no olhar,
inclinado para frente, caminhando devagar, como quem já está marchando para a sepultura...
Tinha os olhos úmidos ainda e ficava-lhe dentro d’alma uma piedade imensa, uma
ternura por aquele velho tão diferente do que ela imaginava...
Um servente aproximou-se com uma
bandeja e água para as duas senhoras.
Furtado vinha com um riso de profunda
ironia nos lábios.
– Este mundo! este mundo!...
– Que é? – perguntou D. Branca
olhando o secretário.
– Adivinha, se és capaz!
– Eu não...
E Furtado cruzou os braços em
atitude de misteriosa surpresa.
– Olhem que a vida é uma
comédia!...
– Explica-te, homem! – tornou D.
Branca, muito inquieta já.
Adelaide tinha uma interrogação
curiosa nos olhos.
– O Condicional, Branca, o Dr.
Condicional, sabes? o grande republicano, o inimigo dos reis, o poeta da Ode
à Coroa – todo empertigado, assistindo ao embarque do imperador, entre os
amigos da casa imperial! – exclamou o secretário num tom de comiseração.
– Ora!...
– Não achas um cinismo, uma
pouca-vergonha?
– Está você a se preocupar com
um idiota!
– Porque, minha mulher, inda
outro dia ouvi o Manhães dizer horrores de Pedro Segundo e agora vejo-o
aumentando o número dos monarquistas!..
– O Evaristo é que havia de se
rir muito – disse Adelaide.
– E com razão, com toda a razão!
– Vamo-nos daqui – interrompeu
D. Branca.
– Vamos... vamos – concordou Furtado.
– Este mundo! este mundo velho!
Já não havia quase ninguém no
Arsenal e fora, na rua. Tudo nos cais da cidade, no Pharoux, no Arsenal de
Guerra, na Lapa, na Glória, no Flamengo... até Botafogo, para assistir à saída
do Gironde. Viam-se grupos de homens e senhoras no alto dos morros, à
luz quente do sol. Prolongava-se o cordão negro dos espectadores até os confins
da Praia Vermelha – extensa linha de curiosos que abandonavam o trabalho, as
oficinas, as repartições na ânsia de ver as últimas despedidas do monarca.
Com as primeiras salvas de bordo
explodiu o sentimentalismo ingênuo do povo. Aqueles tiros ritmados, um após
outro, e logo todo o confuso estourar da artilharia dos navios de guerra e das
fortalezas, numa balbúrdia de mágica, eram como o último adeus, a um general
que se enterra.
Às salvas corresponderam
ruidosas aclamações: – Viôôô! Viôôô!... Viôôô!
E o Gironde singrava
barra fora, numa inconsciência de ave que solta o vôo para a morte... O olhar
da multidão acompanhou-o longe, como se o quisesse levar até o fim da
travessia.
Mas a distância encobriu tudo
numa névoa... desde esse dia ficou entregue o governo à Sua Alteza Imperial
Regente D. Isabel, herdeira do trono.
– Agora é mais fácil arranjar
uma comissão à Europa – dizia Furtado à esposa.
– Por quê?
– Já te não lembras de que a
princesa é nossa comadre?
– Sim... sim... Qual Comissão à
Europa! Estamos muito bem no Brasil!
– Isso hei de ir custe o que
custar! Morrer sem ir à Europa? Não. Morrer depois de ter gozado...
– Bem, mas eu fico...
– Pois fica; é como quiseres.
– O Sr. Furtado deseja tanto
sair do Brasil? – perguntou Adelaide entre admirada e risonha.
– Não é sair do Brasil – é
passear, viajar, gozar um pouquinho as decantadas belezas do Velho Mundo.
– Eu irei depois, quando já o
conheceres – tornou D. Branca.
– Pois sim, pois sim – irás
depois...
Nesse andar chegaram a Botafogo.
Evaristo lia, repoltreado na espreguiçadeira, um panfleto abolicionista que
trouxera da rua. Ao som da campainha, fechou o volume e correu ao balaústre da
escada.
Primeiro entraram as duas
senhoras; Furtado vinha atrás falando ao criado: se não esquecera de dar
alpiste ao canário? se alguém o procurara?...
O bacharel, com o livro na mão,
rompeu de cima:
– Embarcou, o homem?
– Oh!... já vieste?
– Há mais de uma hora. Então,
como se foram?
– Perfeitamente bem.
– O homem sempre embarcou?
-– Por que não havia de
embarcar?
– Está salva a pátria! –
exclamou Evaristo, interrompendo o secretário – Deus o leve, que de monarcas
não precisa o Brasil.
– Evaristo! – ralhou Adelaide,
encaminhando-se para o segundo andar.
– Boa tarde, Sr. Evaristo! –
cumprimentou D. Branca.
– Boa tarde, excelentíssima!
Estimo que se tenha divertido...
– Ao contrário...
As duas famílias recolheram-se
aos seus aposentos.
O bacharel estava de bom humor
àquela hora e tanto bastou para que Adelaide exultasse. Abraçaram-se no alto da
escada, ela muito meiga, com a face incendida de calor, as luvas amarrotadas,
ele todo em roupa branca, o cabelo penteado, em chinelos de couro.
– Então?
– Então é que vi o homem.
– Viste-o?
– Vi... Não te conto nada...
quase chorei...
– O que, minha mulher!
– Quase chorei, sim. Tive pena
do velho, coitado!...
– Oh, coitadinha, quase
chorou!... Faltou o quase, não é assim? E... faltou o quase... E
depois? Não houve quem te socorresse com uma mamadeira?
– Aí vem o Evaristo!
– Sim... uma mulher que chora
por causa do imperador!...
– ... Mostra que tem coração...
– Mostra que não tem juízo!
– Mas eu não te disse que
chorei...
– Faltou o quase...
Houve um rápido silêncio,
enquanto Evaristo acendia um cigarro. As janelas estavam abertas, como de
ordinário. Lá longe os morros e o cemitério.
– Então, viste o homem!
Adelaide despia-se defronte do
toucador. O leito de casal, o mesmo que Furtado comprara no dia da instalação
do bacharel, saltava aos olhos, enchendo quase todo o aposento. Ouvia-se o
tique-taque de um relógio invisível. Cheirava a perfumarias, como se se
estivesse num armazém de modas.
– Ah!... sabes quem foi ao
embarque?
– ?
– O Dr. Condicional...
– O Valdevino Manhães?
– O Valdevino Manhães...
– História, Adelaide!
– Palavra! O Sr. Furtado viu-o
numa roda de homens.
– É possível? – exclamou
Evaristo com um ar incrédulo, fitando a esposa.
– Não juro, porque não vi, mas o
Sr. Furtado...
– O Furtado viu?
– Disse-nos ele...
– Ora, eis aí o que são
republicanos no Brasil! Por isso é que os monarquistas riem de nós, por isso é
que ninguém toma a sério a República!
Adelaide continuava a se despir
tranqüilamente, numa exibição de ombros e de braços, repuxando o colete, as
saias, até ficar em camisa diante do marido que lhe não estranhava a ingênua
familiaridade. Ninguém, senão ele, podia vê-la naqueles trajos simples, quase
primitivos, que a outro homem seriam escandalosos. Ninguém, porque o sobrado
era alto e as janelas davam exatamente para o deserto panorama das montanhas e
para a longínqua tristeza de um cemitério. Demais era tão grande o calor, tão
abafada a atmosfera naquele dia, que impossível se tornava a uma pessoa que
chega da rua fechar-se num quarto.
Oh, como lhe arrepiava a pele o
contato dos ombros nus e dos braços nus com o estreito ambiente, onde sempre
corriam as primeiras brisas da tarde! Uma idéia pousou-lhe no cérebro,
traiçoeira como uma mosca: se Furtado a visse em camisa de renda, o colo descoberto,
os pés nus no tapete?... Se, em vez do bacharel, aquele homem que ali se achava
diante dela fosse o secretário?... Oh, não... nem era bom pensar...
Ele, que ousava dar-lhe um beijo na mão...
– Realmente! – suspirou
Evaristo.
Adelaide olhou-o, já esquecida
de Valdevino Manhães.
– Que é?...
– O Condicional, filha, o
Condicional renunciando às suas idéias políticas! Um homem que vociferava
contra o imperador e a monarquia!
E Evaristo, indignado, pôs-se a
andar de um lado para o outro da sala, com o panfleto abolicionista na mão.
Ultimamente encasquetara-se-lhe, como uma idéia fixa, o programa republicano:
abolir a escravidão e declarar a república brasileira, o governo do povo
pelo povo... Um dos membros do partido já o convidara para sócio e ele se
comprometera a tomar parte ativa nas reuniões do clube. Daí a sua indignação
contra o Valdevino que também apregoava entusiasmo pelas idéias liberais de
Saldanha Marinho e de Quintino Bocaiúva. Não lhe saía da cabeça o poeta da Ode
à Monarquia! Como é que um homem tão depressa abjura das suas
crenças? Como é que se explicava essa pouca-vergonha de um escritor público?
Sentou-se, afinal, e continuou a
interrompida leitura do panfleto. Daí a pouquinho vieram avisar que a sopa
estava na mesa.
Capítulo
VII
Não obstante o insucesso da
primeira tentativa, Luís Furtado não renunciou aos seus projetos de conquistar
o coração de Adelaide, “aquele coração misterioso e duro como uma esfinge de
bronze...”
Nada de precipitar os acontecimentos, nada de escândalos! A
vida é uma eterna luta: ele lutaria... Resistir às tentações do homem quase que
é um dever de toda a mulher. A sociedade aí está de olho aberto para, de
chofre, cair, como um raio, sobre os visionários do amor, os que transgridem as
leis da Moral com prejuízo de terceiro... E a mulher, a pobre mulher é quase sempre
a vítima indefesa – o cordeiro imolado em sacrifício do homem. Resistir, todas
resistem; poucas, no entanto, levam a resistência ao fim.
Adelaide era o que se pode
chamar uma esposa meiga e boa, tinha todos os predicados de uma senhora
honesta... Mas Luís Furtado queria-a justamente por isso, pelas suas excelentes
qualidades de burguesinha não corrompida, que idolatra o marido, que não vai a
bailes, que fecha os olhos à vida mundana e que se faz respeitar em casa ou nos
lugares públicos. O orgulho é tanto maior quanto mais difícil é a vitória, nos
combates do Amor. – Oh, ele o sabia muito bem, muitíssimo bem... O caso de
Adelaide era, além de tudo, um caso excepcional, uma tentação de nova espécie,
e para os casos novos a prudência aconselhava toda a diplomacia, toda a
sutileza... A primeira vez – nada! A segunda vez – nada! Mas a terceira vez...
quem sabe?...
Estas considerações, fazia-as
ele à noite, ao lado da esposa, ou no seu gabinete do rés-do-chão, quando
estava só, ou nas horas do trabalho, no Banco, a dois passos do Evaristo, onde
quer que estivesse, mesmo na rua. E concluía sempre de bom humor, um trecho de
ópera a escapulir-lhe dentre os lábios como uma canção de triunfo: Trá-lá-lá...
trá-lá-lá... trá-lá-lá!...
Ia tudo em casa às mil maravilhas,
tudo inclusive o canário belga que ele tinha pendurado numa gaiola, na sala de
jantar. Depois de Adelaide era a sua preocupação o canário belga; esquecia-se,
a ouvi-lo cantar, pela manhã, antes do almoço, enquanto lia os jornais. D.
Branca, o Raul e a Julinha não lhe davam grandes cuidados. A mulher
encarregava-se dos pequenos. O Raul, esse vivia no colégio.
Quanto aos do segundo andar, os
Holanda, a mesma amizade fraternal, as mesmas relações. Branca e Adelaide
entendiam-se.
Evaristo é que não dispensava
agora uma sortida à noite. Acabava de jantar, envergava o paletó, punha o
chapéu e adeusinho, té logo... – ia assistir às sessões noturnas do Clube
Republicano de Botafogo.
Adelaide habituou-se àquilo, e
para não ficar sozinha no segundo andar, vinha distrair-se embaixo, na
companhia de D. Branca e de Furtado até que o marido chegasse do clube,
ordinariamente às onze horas, quando já não havia vivalma na rua. Nesse ínterim
tocava-se um pouco de piano; jogava-se a dama ou o três-e-sete, conversava-se à
luz do gás, na sala de visitas, ou então na sala de jantar, em torno à mesa
oval coberta com um pano grosso de lã, arabescado.
O secretário ocupava a
cabeceira, como nas refeições, D. Branca à direita e Adelaide à esquerda e principiava
o jogo. – Isso quase todas as noites, quando ninguém os vinha visitar. O
bacharel encontrava-os naquela intimidade, os olhos rubros de sono, disputando
uma última partida, como três pessoas muito amigas, cada uma das quais existe
porque as outras duas existem.
Boa vida! – costumava dizer
Evaristo arriando o chapéu, num tom de adorável bonomia.
– Que se há de fazer senão isto
mesmo? – replicava o secretário. – A política é para os bacharéis; eu prefiro
as cartas.
– Como vamos de república, Sr.
Evaristo? – gracejava a esposa de Furtado.
– Muito bem, D. Branca. E
extraordinário o número de adesões. A idéia prospera e... le monde marche!
– Isso é o que se quer...
– Obrigado, excelentíssima,
obrigado em nome do Progresso... O elemento feminino há de colaborar na obra da
redenção do Brasil...
Uma dessas noites o secretário,
aproveitando a ausência de D. Branca, e, em conversa com Adelaide, aludiu,
indiretamente, ao episódio do Jardim Botânico. – “Nunca mais havia de esquecer
o desgosto que tivera, o doloroso instante que passara...”
Ela compreendeu a alusão, mas
não teve sequer uma palavra em resposta.
Furtado continuou, baixando a
voz:
– No entanto, D. Adelaide, eu
estimo-a, como se fosse minha irmã. Nunca mulher alguma dominou tão
poderosamente um coração. Não quero dizer que a amo, porque... porque seria uma
deslealdade... Que idéia faz de mim? Pensa então que eu não considero as
coisas, que me deixo levar por utopias ou por sentimentos que nivelam o homem
com o animal? O meu estado obriga-me à circunspecção, ao respeito, à sizudez.
Além disso, eu não desejaria para os outros o que não quero para mim...
Adelaide, sempre muda, o rosto
voltado para o piano, batia com a ponta do pé no soalho, inquieta, uma
exacerbação de todos os nervos, quase a romper numa caudal de desespero.
O secretário ia continuar, mas
D. Branca penetrou na sala.
Daí em diante Furtado não perdia
ocasião de aludir ao episódio do beijo com uma insistência atrevida, numa voz
untuosa de padre que aconselha um pecador. Ela ouvia-o – que remédio! – de
olhos baixos, calada, sem exalar um suspiro, sem fazer um movimento, presa ao
chão, como uma estátua. Era a mesma sempre, a mesma mulher fraca, incapaz de
repelir qualquer ofensa aos seus brios de esposa honesta, dócil como um
animalzinho que a gente acaricia, meiga como uma pomba. E esta passividade era
tanto maior porque Adelaide estimava o secretário, habituara-se a vê-lo todos
os dias, a receber favores e finezas dele e D. Branca, a considerá-o quase como
um parente. Romper agora, depois de tantos meses de intimidade, – que
escândalo! Não pensava tampouco em ceder, isso nunca lhe passara pela idéia.
Era toda de Evaristo, toda do seu marido, a quem amava e respeitava abaixo de Deus.
Nada se lhe afigurava tão desprezível como uma mulher adúltera, uma mulher que
pertence a mais de um homem, depois de ter escolhido publicamente um esposo, um
companheiro eterno para as suas dores e para as suas alegrias. Demais Evaristo
nunca faltara com os deveres de homem casado: adorava-a como se adora a imagem
de uma santa; era sempre o mesmo Evaristo da província, o mesmo caráter
bondoso, e reto, confiando nela, sacrificando-se por ela, respeitando-a também.
Lamentava que o marido de D. Branca, “homem distinto e de tão belos modos, de
tão fina educação, tentasse uma coisa impossível, julgando-a capaz de um ato
vergonhoso e torpe!” Lamentava em silêncio, pungida de desgosto, e não raras
vezes umedeciam-se-lhe as pálpebras, quando estava só refletindo nas coisas da
vida.
E tornava a pensar: – Antes
nunca houvesse deixado a casinha de Coqueiros, perdida entre árvores, longe de
tentações.
Mas Evaristo chegava e ela
redobrava de carinhos abraçando-o, como se quisesse pregar-se a ele,
beijando-o, e iam os dois unidinhos por aquele tristonho segundo andar que sem
ele era um deserto.
O bacharel agora vivia para
Adelaide, para a república e para o Clube Republicano de Botafogo. Não pensava
noutra coisa. A propaganda abolicionista entusiasmava-o, porque, dizia ele,
feita a abolição, estava feita a república, e um país de escravos é um país
atrasado. O escravo era ainda o único obstáculo para a realização da forma
democrática no Brasil!
Nas discussões com os amigos ia
buscar no próprio direito romano argumentos contra a escravidão. Um dia o
diretor do Banco Industrial preveniu-o que "ali não era lugar de
palestras"... O diretor do banco possuía fazendas em São Paulo.
Evaristo queixou-se a Furtado.
– Você logo não está vendo que
eu não troco as minhas idéias por um lugar de escriturário! – bradou ele. – A
república há de se fazer, depois da abolição, e tudo quanto é visconde e
marquês vai para a rua!
– Isso devias tu dizer ao
diretor, não a mim... – obtemperou gravemente o secretário. – Por que lhe não
respondeste?
– Ora, porquê! Porque não há
liberdade, porque neste país domina o capital e sem dinheiro ninguém vive!
– Ah! neste caso, meu amigo, é
sempre melhor o empreguinho do que as tais idéias!
Evaristo, porém, ameaçava o
diretor do banco com o novo sistema de governo, e citava episódios da revolução
francesa, repetindo os nomes de Marat, Robespierre e Danton, batendo com o
punho na mesa, erguendo-se na ponta dos pés, num entusiasmo apaixonado pelos
homens de 1789.
Furtado às vezes, por distração,
opunha-lhe argumentos em defesa da monarquia, rebaixando Marat, chamando-o de
assassino, de bandido, apelando para o juízo da história e para as altas
qualidades do imperador do Brasil. Via-se, então, o marido de Adelaide ficar
sem gota de sangue no rosto, desabotoar o paletó, o colete, arregaçar as mangas
e berrar, como um possesso, contra os ministros da coroa, contra o regime
imperial, contra os abusos do Poder!
– Eu lhe peço, Sr. Furtado, pelo
bem que quer à D. Branca: não discuta política com o Evaristo! suplicou uma vez
Adelaide.
Furtado olhou-a, enternecido, e
jurou por todos os santos da Corte celeste, não mais discutir política com o
Evaristo.
De modo que o bacharel agora não
se expandia em casa sobre as deliberações do clube ou sobre os acontecimentos
políticos da última hora.
– Que há de novo? – perguntava o
secretario.
– Nada... – respondia ele com
despeito.
E costumava dizer à mulher, em
tom de solene desdém:
– Esse Furtado é um idiota! Não
tem idéias políticas, não tem convicções! Eu, às vezes, palavra! o aborreço!
Adelaide defendia o secretário:
– “Não havia razão para aborrecer o homem, somente porque ele não era
republicano... Cada qual tem a liberdade de pensar como quer... Isso de idéias
varia.”
– Mas discuta seriamente, prove
como o sistema de governo que defende é superior ao republicano, fale, diga...
mas não se ponha a rir e a insultar os outros!
– Ele não insultou...
– Insultou, sim, senhora; já não
é a primeira vez que tenta profanar a glória de Saldanha Marinho! Não quero!
não admito!
– Olha que ele nos tem feito
muitos favores.
– Reconheço e sou-lhe
agradecido... mas não é razão... Amigos amigos, negócios à parte.
Falavam baixinho para que
ninguém os ouvisse. Evaristo acabava repetindo que ia procurar casa antes de
qualquer rompimento – casa de pobre, casa de cinqüenta mil-réis, na Cidade
Nova, no Castelo, no Morro do Pinto, no inferno!
Adelaide, sempre que o marido
falava em procurar casa, estremecia. Por quê? Não sabia... não sabia por
quê. Era-lhe talvez mais agradável voltar à província, deixar o Rio de Janeiro,
a Corte, as aparências de uma vida fidalga, e recolher a um canto esquecido e
longínquo, onde ninguém a visse... O mundo é muito grande.
– Eu o que quero é estar à
vontade com as minhas idéias! – rematava o bacharel.
Nada o importunava tanto, agora,
como a presença de um aristocrata. A mulher do desembargador Lousada com a sua
luneta de tartaruga e com os seus modos afetados de dama do Paço; o Visconde de
Santa Quitéria, muito enluvado, muito correto; barões e comendadores, que
freqüentavam a casa do secretário – todos o aborreciam. – “Canalha de graúdos!
Corja de mandriões! Visconde... que quer dizer um Visconde? Que quer dizer um
Barão? Que quer dizer um comendador?”
Adelaide pedia, cansava de
pedir, suplicava de mãos postas, que falasse baixo, por amor de Deus! – Ele
moderava o seu ódio aos grandes e punha-se a fumar ou a ler.
Ambos viviam muito preocupados:
o bacharel com a política, Adelaide com a insistência do secretário, sem se esquecerem
um do outro, amando-se como noivos em lua-de-mel. Ela, sobretudo, por uma
extraordinária delicadeza do sentimento, por um nervosismo doentio, não lograva
arredar da imaginação os olhos de Furtado, a boca sensual de Furtado, o rosto
inteiro daquele homem que era como uma tentação do inferno a persegui-la, a
persegui-la... Evitava-o, como se evita um perigo, como se evita um abismo, uma
desgraça... Mas quase não tinha força para reagir, para dominar a impressão que
lhe enchia o espírito, escravizando-a, subjugando-a imperiosamente. Via-o a
todo o instante, mesmo quando ele não estava em casa – via-o risonho, afagando
o bigode, olhando-a com a meiguice de um namorado, com aqueles olhos muito
sedutores, de uma doçura infinita – e perdia de vista o marido, como se já
pertencesse ao outro, ao estranho.
Uma noite em que o bacharel se
demorava até quase uma hora da madrugada no clube, ela só faltou perder o
juízo. Bateu dez horas, onze horas, e o Evaristo “na rua!” Adelaide começou a
ficar nervosa, a concentrar o espírito numa idéia lúgubre... – “Se lhe
houvessem assassinado o marido!... Se algum inimigo... algum ladrão o tivesse
apunhalado às escuras num beco, ao sair do clube?... Que horrível coisa a
viuvez de uma pobre mulher como ela, órfã e desconhecida!”
E seus olhos buscavam Furtado
instintivamente, como os olhos de um náufrago a sombra longínqua duma vela. À
proporção que as horas passavam, confrangia-se-lhe o coração numa angustiosa
crise de desânimo.
A luz da sala de jantar
entibiava-se, parecia ir morrendo aos poucos, uma consumpção lenta.
D. Branca explicou: – “era água
no gás...”
Deu meia-noite. Adelaide tirou
do bolso do vestido o lenço, baixou a cabeça e explodiu num choro nervoso.
– Pelo amor de Deus, D.
Adelaide! Chorando à toa! – disse o secretário.
– À toa, à toa – repetiu D.
Branca.
E tratavam ambos de distrair a
esposa do bacharel, consolando-a, rindo, gracejando à custa de Evaristo:
– O homem está metido com os
republicanos, minha senhora! – dizia Furtado. – Isso de república e como o
espiritismo: põe a gente doida!
– E, depois, ele já não é
criança, Adelaide! – juntava D. Branca. – Você logo não está vendo que a sessão
de hoje foi maior que a dos outros dias?
Mas Adelaide não tirava os olhos
do relógio, o lenço na mão, todo úmido, um ruborzinho na ponta do nariz.
– Ah! meu Deus, permiti que
aquele homem já volte!
– Há de voltar, há de voltar –
por que não?
E o secretário rondava a mesa,
de um lado para o outro, indo e vindo, com o seu ar de fidalgo, calça de
casimira e paletó branco.
Foi então que, pela primeira
vez, Adelaide viu quanto estimava o marido, quanto o idolatrava. Aquela demora
doía-lhe como se o já estivesse contemplando morto no meio da casa, dentro de
um caixão negro com galões de ouro...
Mais um quarto de hora: novo
acesso de choro.
– Menina, tenha paciência que o
homem vem! Adelaide! – ralhou D. Branca.
Com efeito, a campainha retiniu
no corredor e uma alegria súbita iluminou o rosto de Adelaide que ergueu-se
para ver chegar o bacharel.
Evaristo vinha carrancudo,
muitíssimo sério.
– Boa noite! cumprimentou,
respeitoso.
– Oh, Evaristo! – fez a esposa
abraçando-o.
– Oh, o quê?
– Que horas!
– Então, faz-se ou não se faz a
república? – interrompeu o secretário.
– Não posso responder agora;
estou com muito sono... – disse, enfadado, o bacharel.
– Acredito, acredito; vamos
tratar de dormir, que já passa de meia-noite.
Trocaram-se ainda algumas
palavras frias, sem interesse, e os dois casais separaram-se.
Adelaide compreendeu que o
marido estava de mau humor e não lhe fez a menor pergunta, a mais leve
recriminação: tinha-o a seu lado – era o principal. Ele também não disse a
causa da demora, nem falou em coisíssima alguma. Cantarolava baixo,
desafinadamente, enquanto se despia.
Mas Adelaide não adormeceu logo;
ferroava-a uma espécie de remorso, um vago arrependimento de ter pensado, com
insistência, numas tantas loucuras de mulher sem juízo, nem moralidade... ela
“a mais honesta das esposas, a mais virtuosa das donas-de-casas”. Como aquilo
fora, não sabia; o certo é que tinha uma espécie de remorso, uma dor no
fundo d’alma como um ponto negro na brancura da sua consciência.
Duas vezes viu, à luz do quarto,
o rosto tranqüilo do bacharel dormindo e duas vezes teve vontade de o acordar,
simplesmente, para lhe dizer “que estava nervosa”; mas não se animou: preferiu
respeitar o sono calmo de Evaristo. Chegava-se a ele, medrosa, supersticiosa,
sentindo-lhe a quentura do corpo, a respiração ronronada, e encolhia-se muito
franzina, quase a desaparecer nos lençóis, como uma criança. Uma figura de homem
interpunha-se entre ela e o marido, tentadora, chamando-a com os lábios
fechados em beijo, criminosamente, o olhar voluptuoso, fosforescente de desejo,
pousando nela e queimando-lhe as faces.
– Evaristo! Evaristo!
– Há!... Que é?
O bacharel levantou a cabeça,
espantado, os olhos muito vermelhos de sono.
– Que é?... – repetiu.
Adelaide estava diante dele
fitando-o, como se o não reconhecesse. Mas, ouvindo-o falar:
– Nada... uma sombra...
– Que sombra?
– Uma coisa na parede...
– Pois tu ainda estás acordada?.
Ela não respondeu; tornou a
deitar-se, muda, com arrepios de frio, enroscando-se toda.
Foi uma noite de pesadelos, de
sonhos incríveis e de sobressaltos.
Adelaide, pela manhã, jurou
ir-se embora daquela casa, fugir para longe, voltar à província, onde nunca o
demônio lhe sorrira tão de perto.. Em Coqueiros, ao menos gozava tranqüilidade,
ninguém lhe ia meter na cabeça idéias perniciosas a titulo de civilização, nem
era obrigada a luxo e a hipocrisias. E outra vez a imagem da negra Balbina,
como um tipo primitivo de ingenuidade e candura, acenava-lhe do fundo da
memória, recordando-lhe o passado, os tempos felizes de uma existência quase
bíblica, dourada pela esperança e pelo amor... Começava a odiar o Rio de
Janeiro – esse Botafogo aristocrata e imoral, cheio de convenções, onde todo o
mundo era grande, onde não havia pobreza, nem sinceridade, e só se falava no
Lírico, em Petrópolis e vestidos à última moda e passeios a carro e piqueniques
e na família imperial! Já podia ter-se mudado, já podia estar longe de tanta
mentira. A culpa era sua de mais ninguém... Bem feito, muito bem feito!...
Andava-lhe na cabeça um enxame
de idéias; palpitava-lhe o coração desordenadamente; queria, mas não tinha
coragem de falar a Evaristo numa mudança breve, numa retirada escandalosa, que
podia suscitar desconfiança no espírito dele. Era preciso ir pouco apouco
fugindo à tentação daquele homem, evitando-o, mostrando-se fria, de uma
frieza de estátua, cada vez que ele se aproximasse dela, até ir-se embora da
Corte com Evaristo.
E enquanto Adelaide pensava
nessas coisas, sem nada dizer ao marido, o bacharel premeditava o arrasamento
das instituições, ao mesmo tempo que lia, com avidez, os artigos
revolucionários d’A Folha.
A jovem senhora estava emagrecendo,
mas emagrecendo como quem sofre uma lesão oculta, uma doença profunda na parte
mais delicada do organismo. Já era débil, naturalmente franzina, com olheiras
sintomáticas de anemia, o pescoço esguio, o nariz afilado, a voz cansada, de um
timbre melodioso, quase a extinguir-se, uma passividade meiga aos olhos; mas
agora, tudo isso como que ia tomando uma expressão visivelmente mórbida aos
olhos de toda a gente, menos aos de Evaristo, que os tinha voltados para a
política e para os republicanos.
– Não me achas magra? –
perguntava ela ao bacharel.
– Não, a mesma coisa... – dizia
ele fitando-a. – Sempre foste magrinha.
Até que uma tarde, após o
jantar, Adelaide, em conversa com Evaristo, disse-lhe:
– Oh! quem me dera voltar à
província!
O bacharel encarou-a.
– Homessa!
– É o que te estou dizendo...
– Então já aborreceste o Rio?
– Já.
– Pois admira... Inda não há
muito tempo falavas com entusiasmo na Rua do Ouvidor e nos bailes do Cassino...
– É verdade, mas.
– Mudaste de idéia como o
Valdevino Manhães de política...
– Isso mesmo. Há dias que penso
doutra forma. O Rio de Janeiro é essencialmente egoísta e eu não me coaduno com
a vida que temos vivido nele... De repente apoderou-se do meu espírito uma
nostalgia, uma tristeza mesclada de apreensões e de desânimo... um
aborrecimento das coisas que me cercam... Prefiro viver só, bem longe desta
sociedade... lá no fundo da minha província, em Coqueiros, como outrora...
– Estás eloqüente! – exclamou
Evaristo, interrompendo a esposa.
E logo:
– Mas vem cá: desfeitearam-te?
trataram-te com menos polidez?
– Nada... todos me tratam
muitíssimo bem... D. Branca é um anjo... o Sr. Furtado um cavalheiro
irrepreensível... todos, enfim, com quem nos damos, são umas belas pessoas...
– E então, filha? Dir-se-ia que
tens lido os romances de Georges Ohnet ou os folhetins de Montepin... Se a
questão é de casa, se não estás contente aqui – mudemo-nos: sempre foi este o
meu desejo.
Debruçados ambos no peitoril da
janela, iam assim confidenciando baixo, àquela hora crepuscular, frente para a
perspectiva sombria das montanhas que se recostavam numa mudez piramidal e
tenebrosa, como dorsos de dromedários fugindo nos longes de um deserto...
Havia pausas curtas no diálogo.
O cemitério dava uma nota ainda
mais triste à paisagem, àquele recôncavo da natureza, cuja melancolia tinha o
sainete fúnebre da morte...
O céu, porém, o grande céu, numa
impassibilidade mística, sem a dobra ou a franja de uma nuvem, sem o brilho de
uma estrela precursora, vazio e desolado, era como a retratação simbólica do
Nirvana oriental para onde correm as almas dos eleitos de Buda... – misterioso,
inexpressivo e assim mesmo belo!
Uma claridade argentina e
deliqüescente, qual o reflexo para o alto de uma cidade iluminada, emergiu como
os pródromos de uma aurora boreal, no liso descampado que o sol ia deixando.
– Olha aquilo! – exclamou o
bacharel, tocando no ombro de Adelaide.
Ela volveu o rosto à esquerda,
para o lugar indicado, e, sem se aperceber de que já era noitinha, viu o
medalhão esbraseado da lua no nascente, carregando toda a tristeza dos
desiludidos, toda a inconsolável amargura dos infelizes, cujo olhar se embebera
nele desde o princípio do mundo.
E a esposa de Evaristo não teve
uma palavra de admiração, um movimento de surpresa: disse simplesmente, quase
inconscientemente:
– É a lua...
E, com a face na mão, esperou
que o astro bendito dos poetas lhe trouxesse algum remédio às dores, que eram
muitas e profundas...
Mas Evaristo continuou,
distraindo-a:
– Tu estás nervosa, Adelaide,
isso é nervoso, a moléstia da moda... Vamos procurar casa, que é o
verdadeiro...
– Não, não! – interrompeu ela
com um arzinho de amuo. – Daqui, de Botafogo, para a província... para outro
lugar... fora do Rio de Janeiro.
– Com efeito! Muito ódio tens tu
ao Rio de Janeiro!
– Dizes bem: muito ódio...
– Queres, então, decididamente,
voltar à doce vidinha de Coqueiros! Pois olha, não te gabo o gosto. O Rio de
Janeiro sem o imperador e sem os preconceitos da monarquia, o Rio de Janeiro
tal qual sonham os bons republicanos, há de ser uma coisa única! Palavra de
honra como eu não desejava abandonar esta terra, enquanto não visse um homem do
povo governando o Brasil!
– De forma que, se os médicos me
aconselhassem uma retirada...
– Isso é outro caso, filha; a
saúde em primeiro lugar. Mas não me consta que estejas tão doente assim...
– Pois estou... estou muito
doente, muito apreensiva, muito nervosa... já não acho encanto em coisíssima
alguma... Vem-me uma vontade de chorar, uma tristeza no coração...
Evaristo imaginou logo que se
tratava de um primeiro filho. Oh, o seu ideal doméstico: um filho! Ouvira falar
nos múltiplos sintomas da gravidez, nas primeiras manifestações desse estado...
e o nervoso de Adelaide, aquela tristeza, aquela morbidez, não o enganavam...
Era pai.
Um sorriso complacente
arqueou-lhe os lábios; todo ele sentiu-se invadido por uma onda de alegria e de
ternura paternal. Já não estava ali o republicano exaltado, o homem feroz, o
político sem entranhas, o abutre dos monarquistas e dos reis! A simples idéia
de que em breve estaria com um bebê ao colo, nascido do seu amor, um novo e
legítimo representante dos Holanda, fazia-o outro homem, calmo, generoso,
inclinado ao perdão, amigo dos seus inimigos.
Adelaide compreendeu a ilusão do
marido e sorriu também:
– Não... não é o que tu
pensas...
– Não é! Ora, se é...
– Juro-te!
Mas ele, na sua embriaguez, no
seu enleio, na extrema felicidade que o assaltava, respondeu:
– O futuro nos dirá...
Com uma voz tão firme, tão
convencida, que a esposa, mais meiga do que nunca, tornou a sorrir e beijou-o
carinhosamente.
O luar banhava as montanhas com
essa claridade misteriosa que faz sonhar em coisas vagas, intangíveis, etéreas,
que a linguagem humana não define. Todos os objetos que a vista alcançava
pareciam diluir-se, esgazear-se numa neblina luminosa e transparente. Embaixo,
na rua, os lampiões, espaçados, morriam de abandono e de tristeza.
Evaristo acendeu o gás, porque –
“aquilo estava cheirando a ruínas de Pompéia em noites de luar...”
– Ora, até que enfim! – dizia
ele, riscando o fósforo. – Até que, enfim, o muito digno Sr. Evaristo de
Holanda acertou no alvo!
Capítulo
VIII
O Visconde de Santa Quitéria foi
o primeiro a anunciar a chegada do monarca a Lisboa, depois a Paris, depois a
Baden-Baden; recebia telegramas diretos, que lhe enviava um amigo da corte,
igualmente condecorado por Sua Majestade. E no mesmo dia em que o carteiro lhe
entregava o despacho, abalava para Botafogo, dentro do seu cupê de arreios
novos, com a notícia na ponta da língua.
Furtado dizia logo à mulher: –
“Temos novidade!” E D. Branca ensaiava o melhor dos seus sorrisos para apertar
a mão ao banqueiro.
Numa dessas noites (porque era
sempre à noite que o Visconde visitava os Furtado) – numa dessas noites o Santa
Quitéria não encontrou Furtado em casa. O secretário tinha ido à Fábrica das
Chitas visitar um amigo doente –... o que estimei bastante... – acrescentou D.
Branca em segredo.
O Visconde limitou-se a um – oh!
de agradecimento.
Já havia um princípio de
discórdia entre os Furtado e os Holanda. Evaristo e a esposa recolhiam agora
muito cedo, ao lusco-fusco, para evitar discussões com o outro casal, não
obstante o bom gênio do secretário. D. Branca era sempre mais caprichosa e
altiva.
De modo que o Visconde não podia
encontrar melhor ocasião para um rendez-vous amoroso.
Sentaram-se os dois, ele e ela,
no sofá, tranqüilamente, numa familiaridade discreta, como se estivessem nalgum
remanso impenetrável, interdito a olhos e ouvidos humanos. A questão era falar
baixinho, para que as vozes não ecoassem, denunciadoras, além do teto, no
aposento dos Holanda.
Ouvia-se o piano de D. Sinhá, na
casa do desembargador. Mas a rua, como de costume, estava silenciosa.
O primeiro movimento de D.
Branca, depois de sentar-se, foi para entregar ao banqueiro uma carta que há
dias lhe andava no bolso do vestido.
– Leia em casa, recomendou.
Ele tomou o envelope, com um
carinho singular, e guardou-o.
– Mesmo, aqui não teria
encanto...
E entraram a conversar numa voz
sibilada, num tom de reza ou de confissão mal quebrando o silêncio da sala.
Falavam de amor e do último encontro que haviam tido. Ela achava “um bocadinho”
prosaico o escritório da Rua da Alfândega, “um bocadinho exposto”.
Já se tratavam por você.
– Você não imagina – dizia ela –
o sacrifício que me custou!. E os homens ainda falam mal das mulheres...
Ele, então, fazia-se meigo,
derreava a cabeça, sem prejudicar a linha correta do porte, dando palmadinhas
na mão dela, numa intimidade de casal. Tirou da botoeira a rosa que trazia e
ofereceu-lha com uma graça muitíssimo gentil.
Depois, ela pediu licença por um
instante – mandou trazer vinho fino do Porto que o criado apresentou numa salva
de prata.
Eram quase dez horas quando o
Visconde quis retirar-se.
– Agora espere o Lulu – insistiu
D. Branca. – Ele não deve tardar...
– Já se havia demorado tanto! –
retrucou o banqueiro. O amigo Furtado chegava cansado... e não era bonito, não
era correto... E retirou-se.
Quando a campainha deu sinal do
secretário, ia para mais de onze horas. A esposa não lhe ocultou a visita do
Visconde.
– Fizeste mal em o deixar ir.
– Disse que era tarde, que você
vinha cansado...
– E que novidades trouxe ele?
– Que a família imperial chegou
a Cannes. Os médicos receitaram duchas, estricnina e aplicação do gelo ao
imperador.
– Já sei: o tratamento
hidroterápico...
– Isso.
– Todos vão bem?
– Todos; o Velho mesmo tem
esperança de se restabelecer.
– Coitado! Sempre muito amável,
o Visconde!
– Amabilíssimo! Perguntou pelo
Raul, pela Julinha, pelos Holanda... até pelo Condicional!...
Furtado já encontrara a mulher
no val dos lençóis, e, enquanto se despia, ela lhe ia dizendo tudo.
A noite estava fresca: eram os
primeiros dias do inverno que aproximava eriçando a cabeleira das árvores.
Evaristo e a mulher tinham
visto, da janela, entrar e sair o Visconde. O bacharel não se conteve: – armou
o punho indignado:
– Corja!
E recolheu cheio de ódio,
tempestuoso, numa das suas explosões mal contidas de jacobino incendiário. –
“Neste país devia haver uma forca, um cadafalso em cada esquina!”
Quanto a Adelaide, continuava a
abrir-lhe os olhos:
– “Vamo-nos daqui, Evaristo...
Mudemo-nos de uma vez... Abandonemos este Rio de Janeiro, que é um inferno...
uma tentação!”
Furtado não a esquecera, apesar
da discórdia que reinava entre as duas famílias. Era o primeiro a querer que
ela se mudasse, que o bacharel fosse morar em outra casa, longe de Botafogo,
mas não do Rio de Janeiro...
Adelaide cativava-o ainda
irresistivelmente. Nas horas em que os dois casais se reuniam para almoçar ou
jantar, ele sentia afluir-lhe do coração todo o sangue das veias numa pletora
sensual, num gozo abstrato e mudo, que o desnorteava; e ela, como se lhe
percebesse as secretas maquinações e a intensidade do calor afetivo, nem o
olhava sequer...
As refeições eram rápidas agora
– rápidas e frias como o cumprimento de um dever penoso. Trocavam-se
glacialmente os – bons dias! – e quase não se falava mais, quase não se dizia
outra coisa.
O bacharel era homem de
resoluções momentâneas e inesperadas; opunha-se a qualquer idéia da esposa, mas
acabava sempre concordando com ela, e o seu fiat era um decreto
irrevogável.
Adelaide dera-lhe a maior prova
que uma mulher pode dar ao marido de não estar em via de aumentar a espécie
humana, e ele resignara-se. Vendo-a, porém, definhar, emagrecer, e
estranhando-lhe certos hábitos, como o de acordar alta noite, sobressaltada, o
de não comer com o mesmo apetite de quando tudo andava em ordem naquela casa,
e, principalmente, o de amofinar à mais leve contrariedade, chorando às vezes,
como uma criança, quando ele lhe fazia qualquer censura – vendo-a nesse estado
de desequilíbrio nervoso, pensou em chamar médico.
– Por amor de Deus, Evaristo,
não faça tal coisa! – rogou Adelaide.
– Por quê? Não andas doente? Não
te queixas tanto?
– Pelo amor de Deus! O que eu
quero é ir-me embora do Rio de Janeiro, ainda que seja para um deserto!
Arranquem-me daqui, tirem-me deste inferno – é o que eu quero...
Evaristo, meio intrigado com
aquela relutância da esposa, com aquela idéia fixa de deixar o Rio de Janeiro –
ela, que a princípio tanto encanto achava nele – refletiu, tornou a refletir,
sacrificando, nesse duro trabalho mental, as guias do bigode, que lhe não era
muito farto, e optou pelo regresso a Coqueiros. Adelaide queria, não é assim? Fiat
voluntas... Em primeiro lugar estava ela, sua mulher, depois o Rio de
Janeiro.
Franqueza, franqueza... ele
também se dera muito mal no Rio. Hipocrisia, hipocrisia e mais hipocrisia era o
que a gente encontrava. O próprio Luís Furtado e a própria Sra. D. Branca o que
eram, senão uns hipócritas? O Visconde, o desembargador, o Condicional, o
Pessegueiro... tudo uma corja de hipócritas! Adelaide tinha muita razão, muitíssima
razão.
E sempre agitado, esfarelando o
bigode, tomou o primeiro jornal que lhe caiu nas vistas.
– Que dia é hoje?
– Primeiro de maio.
– Ah... Bem; no dia dez temos
vapor para o norte...
– Estás resolvido, então?...
– Mais que resolvido. Não podemos
continuar nesta terra... tu, porque andas com a saúde arruinada, eu, porque
tenho arruinado o espírito... De um lado o corpo, doutro lado a alma. O Rio é
muito bom, sim senhores, mas para quem tem flexível a espinha dorsal e o
caráter. Preparemos a trouxa!
Adelaide ficou olhando o marido,
com um risinho seco e incrédulo à flor dos lábios, a mão no queixo, a cabeça
inclinada numa pose de modelo vivo.
– Por que me olhas com esses
olhos tão admirados? – perguntou o bacharel agarrado ao Comércio do Rio.
– Por nada...
– Já disse: preparemos a trouxa.
Amanhã vou me despedir do Banco e telegrafar ao Rocha.
Adelaide continuava a olhar
Evaristo, sem o compreender, sem compreender toda aquela precipitação.
– Não me venhas com histórias...
– tornou ele.
– Mas...
– Que mas o quê! Para
longe deste inferno! para longe desta porqueira! Vive-se melhor, mais barato e
mais honradamente na obscuridade da província, criando galinhas ou plantando
jerimuns. Estou farto de aturar a pedantocracia de Botafogo e do Sr. Luís
Furtado. Um bacharel em direito vive em qualquer parte do mundo: vou advogar,
vou esperar a República no sertão!
– O que eu quero dizer é que não
te precipites, Evaristo. Façamos as coisas com jeito, sem desgostar a ninguém.
Olha que devemos favores ao Sr. Furtado, à D. Branca...
– Adeus, minhas encomendas! –
disse o bacharel erguendo-se e atirando o jornal para o lado. – Quem te afirmou
o contrário? É verdade que devo muitos favores àquele bigorrilha, inclusive os
duzentos mil réis que me emprestou já lá vai um ano; mas porque mos não cobrou?
Negócio é negócio. Agora, daí não segue-se que lhe devo beijar as mãos como um
cachorrinho de grisette.
– Evaristo!
– Digo e torno a dizer: não sou
um cachorrinho de grisette para andar beijando as mãos a fidalgos!
– Fala baixo!
– Estou falando mais baixo do
que costumo...
E encerrou-se a discussão entre
Evaristo de Holanda e a mulher naquela tarde melancólica demais, ao crepúsculo.
Adelaide não dormiu, pensando na
brusca resolução do marido e em mil e tantas coisas fúteis que aos olhos de uma
mulher inexperiente como ela, e como ela supersticiosa, adquirem estranhas
proporções. Mas no meio de todas essas coisas erguia-se o vulto de um homem, que
não era o Holanda, que absolutamente não se parecia com aquele que ali estava a
seu lado, na cama, e de novo um extraordinário medo apoderava-se dela, um pavor
inexplicável, uma covardia criminosa, que a obrigava a abrir e fechar os olhos
intermitentemente... Era o vulto do secretário... “a tentação”, chamando-a para
o mistério do gozo e para a desonra, num apelo fidalgo de cavalheiro do Amor,
num requinte donjuanesco de volúpia mundana... Sim, era ele, era. Luís Furtado
acenando-lhe com a felicidade efêmera de um instante, ajoelhando-se-lhe aos pés
e suplicando um beijo, uma palavra de amor, um movimento de simpatia... E ela,
inconscientemente, fechava os olhos para o ver melhor, e naquele sonhar
acordada, ia-se-lhe a alma, num vôo rápido e traiçoeiro para o marido de D.
Branca... Depois voltava ao corpo donde saíra, e logo a jovem esposa do
bacharel abria os olhos, trêmula de medo, arrependida como se houvesse
praticado uma ação má.
Naquela noite, mais do que em
todas as outras, Adelaide pensou no secretário. – Amá-lo-ia?... Não, porque
adorava o marido. Talvez acabasse amando-o... Mas o futuro é tão incerto, são
tão incertas as previsões humanas!... Certo é que a imagem dele não a deixava,
por mais que a repelisse.
Amanheceu o dia soberbo de luz.
Evaristo tornou a falar na viagem para o norte. Adelaide disse-lhe que sim, que
ia tratando de arrumar as coisas, e fez um gesto de enfado.
O bacharel vestiu-se,
cantarolando de bom humor, e desceu para a refeição.
– Bom dia.
– Bom dia.
Repetiram-se os habituais cumprimentos
da manhã.
Mais do que nunca o almoço
correu frio. D. Branca estava de olhos duros e passava os pratos com um gesto
de visível apatia. Furtado aludiu, em frases lacônicas, ao último telegrama de
Cannes:
– Sua Majestade
continuava no uso das duchas, – publicado nos jornais matutinos.
Leu alto, para que todos ouvissem, inclusive o bacharel, que fingiu não dar
atenção.
Adelaide petiscava de leve as
migalhas de arroz e os bocadinhos de fritada, baixando os olhos com cerimoniosa
discrição.
Evaristo, por sua vez, guardou o
mais profundo recolhimento, não aludindo sequer à projetada viagem. Ia falar ao
amigo no Banco e lá mesmo ajustar suas contas.
– Vamos? – disse o secretário
tomando o chapéu e palitando os dentes.
– Vamos – respondeu friamente
Evaristo.
E saíram como de costume, agora
menos comunicativos.
Adelaide acompanhou o marido à
escada e, logo que este desapareceu embaixo, porta fora, recolheu ao segundo
andar, numa crise de nervos. Não havia decorrido uma hora depois do almoço,
quando D. Branca ouviu gritos finos de mulher no alto do sobrado.
– É Adelaide, minha gente! –
disse arregalando os olhos para o Antônio que correra.
Os gritos aumentavam, numa
progressão assustadora.
– É ela! é ela! – repetiu a
esposa de Furtado investindo para o corredor.
A ama, com a Julinha nos braços,
abalou também dos fundos da casa, e ela e D. Branca e o Antônio acudiram
precipitadamente, aos encontrões.
O fâmulo do secretário não
esperou pela patroa: galgou os degraus dois a dois, três a três, numa
elasticidade felina de músculos, e, sem guardar conveniências, enveredou pelos
aposentos do bacharel. D. Branca foi encontrá-lo sobrepujando Adelaide que se
debatia no leito numa agitação de todo o corpo, os olhos desvairados, a face
muito pálida, em convulsões histéricas.
– Mas o que foi? o que foi?! –
perguntava, assombrada, a esposa do secretário.
Ninguém sabia explicar, ninguém
sabia dizer o que aquilo era.
– O doutor, minha senhora, o
doutor! – aconselhava o Antônio, agarrado aos pulsos da doente.
A primeira idéia de D. Branca
foi pedir socorro da janela, alarmar a vizinhança, salvar a sua
responsabilidade, mesmo porque não tinha àquela hora quem fosse chamar o médico
ou prevenir a Evaristo. O Antônio era indispensável, a ama não saía à rua, e
ela, D. Branca, estava em trajos muito caseiros para se apresentar a qualquer
estranho. Que falta que fazia o Raul!
A ama, sem largar a Julinha,
desceu em procura do vidro de éter.
– Depressa, rapariga, depressa!
– bradava a mulher do secretário, atônita no meio da casa.
Felizmente Adelaide arriou os
braços, como extenuada, e os gritos foram-lhe morrendo pouco a pouco, dolorosos
e cansados, na garganta.
– Oh meu Deus, que aflição me
faz isso! – imprecava D. Branca.
– Não é nada, minha senhora, não
é nada... – dizia o Antônio numa voz conciliadora. – E bom desabotoar-lhe a
roupa... Foi um ataque...
– Espera, Antônio, espera, que
eu já desabotôo... Não saias daqui.. traze um copo com água.
O copeiro obedeceu, enquanto ela
ia afrouxando a roupa de Adelaide.
Veio o éter, veio a água,
fizeram-se fricções, chamaram muitas vezes pelo nome da doente, a ver se ela
acordava, cobriram-na com um lençol desde os pés até o pescoço, colocaram-lhe a
cabeça nos travesseiros; mas a esposa do bacharel não dava sinal de vida.
– O coração está batendo? –
perguntou inquieta, a ama.
D. Branca encostou o ouvido no
peito de Adelaide.
– Está, sim... está batendo
devagarinho.
– E agora? – quis saber o
Antônio, pronto a retirar-se.
– Agora – ordenou D. Branca –
toma um tílburi e vai, vai, correndo, avisar ao marido dela, no Banco
Industrial. – Sabes onde é?
– Sei, sim senhora.
– Pois vai.
O criado atirou-se pelas
escadas, mais veloz que um andarilho.
D. Branca ficou à beira do
leito, muito nervosa, cheia de desapontamento, velando a enferma.
Adelaide parecia dormir, numa
imobilidade de cadáver, os olhos fechados, a boca entreaberta, mal respirando.
A esposa do secretário
esfregava-lhe a testa e os pulsos, dando-lhe a cheirar éter, enxugando-lhe o
suor que porejava do rosto. De instante a instante mandava um olhar ao espelho
do toucador. – Estava tão pálida!
Afina, Adelaide abriu os olhos
com um largo suspiro que fê-la estremecer toda.
– Quer beber um pouquinho
d'água? – inquiriu Branca.
A esposa de Evaristo não
respondeu; olhou-a, com os olhos muito lânguidos, muito mortos, encarando, em
seguida, a ama, que estava em pé a seu lado. Mas a mulher do secretário
derramou algumas gotas de éter num copo e deu-lhe a beber o calmante.
– Que horas são? – perguntou
Adelaide numa voz débil que lhe saía do fundo do peito com outro suspiro de
alívio.
– Vai para as duas... Descanse,
que o Sr. Evaristo não pode tardar...
Com efeito, o bacharel não
tardou. Para isso é que havia tílburis na praça e boleeiros de encomenda. Subiu
a escada num vôo.
Adelaide estava melhor, muito
melhor, e já se sentava na cama; recebeu-o com lágrimas, atirando-se a ele.
– Mas que foi?... que foi? –
perguntava, aflito, o marido.
A esposa do secretário explicou
tudo; uma crise de nervos, um desequilíbrio... má digestão, talvez.
– Uma crise? Mas não chamaram
médico?
Adelaide continuava a soluçar
com a cabeça no ombro de Evaristo.
– Como chamar médico, Sr.
Evaristo, se não havia por quem?...
– E o Antônio?
– O Antônio foi avisá-lo ao
Banco... ora, o Antônio!
– Deixavam-te morrer, minha
mulher, deixavam-te expirar à míngua! – disse o bacharel transbordando ironia.
– Onde há dinheiro falta piedade... Mil vezes a Cidade Nova!
– Que quer o senhor dizer com
isso? – perguntou D. Branca, ofendida.
– Que quero dizer com isto?
Nada, excelentíssima, absolutamente nada.
– O senhor ofende-nos, a mim e
ao Lulu...
– Eu, ofendê-la? – tornou
Evaristo com um sorriso de escárnio.
– Sim, senhor: ofende-nos, tanto
mais quanto nunca o maltratamos... sua senhora sempre foi muito bem tratada em
nossa casa.
– Perdão, eu não vim discutir.
– Não vem discutir, mas vem
ofender a quem nunca o ofendeu... Isto mesmo hei de dizer ao Lulu...
E a orgulhosa D. Branca Furtado,
num assomo de cólera, que nada tinha de nobreza, embarafustou, resmungando,
escadas abaixo.
– Pro diabo que a carregue! –
explodiu Evaristo.
Adelaide não teve tempo de lhe
tapar a boca. A frase saiu inteira, completa, dos lábios do jacobino.
– Ao dinheiro oponho eu a
dignidade, morra, embora, na miséria! – continuou, afagando os cabelos da
esposa.
E seguiu-se uma cena muda de
carinhos entre os dois.
O próprio bacharel tinha
lágrimas nos olhos.
Capítulo
IX
Naquele mesmo dia Evaristo de
Holanda mudou-se para um hotel no Campo da Aclamação. – “Bastava de
fidalgos...” Não quis levar os trastes, porque – dizia ele – não lhe
pertenciam; recolheu apenas os baús que trouxera do norte, um ou outro objeto
que comprara depois, inclusive um grande quadro de Tiradentes e os livros, meia
dúzia de volumes encadernados.
Quando às seis horas o carro
parou à porta de Furtado, a vizinhança toda chegou à janela. O desembargador
Lousada, com o indefectível gorro, a mulher e a filha também apareceram, D.
Sinhá, branca de pó-de-arroz, falava tão alto que se ouvia dos extremos da rua.
– Só nessas ocasiões aquele trecho do bairro animava-se um pouco; o mais
simples episódio, um incidente qualquer fora do comum dava às casas aspecto
novo de quarteirão em festa, excitando a curiosidade dos moradores,
transmitindo-lhes aos nervos uma sensação especial de alegria, de bom humor e
de íntima aliança entre o corpo e o espírito. Era necessário que um sopro de
escândalo varresse a atmosfera estagnada dos brasões e do preconceito fidalgo
para que o longínquo recanto de Botafogo sentisse um calor de vida, um frêmito
de existência animal nas artérias.
Bastava o rodar de uma
carruagem: todo o mundo esquecia obrigações para satisfazer uma necessidade
imperiosa do espírito e do olhar. As varandas enchiam-se, mil cabeças surgiam
como peixes à tona d'água. Era a avidez do escândalo, a eterna bisbilhotice de
operários e ociosos, de homens e mulheres, acordando para a faina do dizia-se,
para a mistificação do boato.
Um carro à porta dos Furtado!
Ainda se fosse o do Visconde... mas não – não era o cupê do Santa Quitéria...
Talvez alguma visita de cerimônia... Entretanto – coisa notável! – as janelas
do primeiro andar estavam fechadas e não havia ninguém na varanda do
secretário!
A filha do desembargador cravava
os olhos na alta frontaria do sobrado:
– “Ninguém”!
E aquele “misterioso” veículo de
segunda ordem, atrelado com animais de ínfima espécie, causava arrepios de
curiosidade – era como um ponto de interrogação erguido a fidalgos e burgueses
no meio de uma rua sombria.
Luís Furtado passeava de um lado
para o outro, na sala de jantar. Incomodava-o a brusca retirada do amigo, não
obstante as insinuações odiosas da mulher. D. Branca enchera-lhe os ouvidos:
que fora desacatada pelo bacharel, que o marido “da Sra. D. Adelaide” era um
grosseirão; que antes nunca os tivesse admitido em sua casa; que o culpado era
ele, Furtado, homem de muitas facilidades e de pouca experiência...
O secretário ouvia tudo com uma
resignação de carneiro imolado, sem proferir palavra, sem a mais leve queixa.
Não foi pedir explicações ao amigo: esperou os acontecimentos com a mesma calma
de homem que sabe ajuizar dos homens e crê numa fatalidade que a tudo resiste e
tudo domina na ordem moral e nas relações sociais.
O Evaristo era um pancada ele
o sabia melhor que ninguém: para que provocá-lo? Esperava, até que o bacharel
se resolvesse a um acordo, a uma conciliação honrosa para ambos. Nenhum dos
dois tinha a lucrar com um rompimento escandaloso e menos digno de cavalheiros
que se prezam. Imaginava Adelaide sucumbida, os olhos em pranto, o coração
intumescido de desgosto – pobre senhora! – às voltas com um homem de gênio
pirrônicoe macambúzio, sem o necessário equilíbrio para a vida doméstica –
exagerando tudo, revoltando-se contra todos.
Como ela havia de estar
sofrendo, aquela pomba sem fel!
E o secretário do Banco
Industrial forrava-se de uma tranqüilidade assombrosa para não dar a perceber a
D. Branca o pesar, o grande pesar que lhe causavam a história do ataque e
a narrativa do episódio com o bacharel na presença de Adelaide.
Ela, coitada, ela também sentia
muito, a jovem esposa de Evaristo; habituara-se àquele viver, àquela existência
em comum com os Furtado e doía-lhe, agora, como um punhal que lhe enfiassem nas
carnes tenras, o abandono de todas as comodidades, a separação brusca das duas
famílias tão intimamente unidas no princípio, quando ela chegara ao Rio de
Janeiro... E por quê? Por nada, por coisíssima alguma, por um simples capricho,
por uma fatalidade!
Evaristo desceu ao lado da
mulher, guiando-a na escada, todo cauteloso, carregando-a quase.
– Não te despedes?... – lembrou
ela.
– Eu?!
E com uma ironia na voz:
– Queres me debicar...
Adelaide não insistiu: foi-se
deixando levar até embaixo, à porta da rua, como uma convalescente.
O boleeiro abriu, com um
movimento estabanado, a portinhola do carro e ela entrou. Foi como se entrasse
numa prisão para nunca mais sair; tudo escureceu ao redor dela, como se lhe
tapassem a vista com um pano negro; faltava-lhe o ar, faltava-lhe a lucidez do
espírito, fugia-lhe a clarividência das coisas, fugia-lhe tudo! Apenas um
objeto perdurava na sua imaginação; – triste esfinge na aridez de um deserto –
a figura do secretário, mais do que nunca tentadora, numa auréola deslumbrante
que o divinizava, olhando-a, todo voltado para ela, todo dela...
E um golfão de lágrimas, uma
torrente de pérolas brotou caudalosa de seus olhos meigos, ensopando o lencinho
de rendas que lhe dera Evaristo no seu último aniversário.
– São os Holanda, são os
Holanda! – repetiu, espevitada, a filha do desembargador.
E a vizinhança toda repetiu
baixinho:
– São os Holanda...
Furtado, quando soube que o
amigo abalara, não sentiu menos que Adelaide a rudez do golpe, e,
instintivamente, revoltou-se contra a mulher, contra a asa-negra de D. Branca,
origem do desespero que lhe ia no fundo d’alma. Guardou, porém, esse desespero
no mais íntimo do coração, trancou-o a sete chaves lá onde ninguém o pudesse
desvendar, forte como um herói vencido, e apelou para a Fatalidade...
Mas o destino é caprichoso e não
quis que o secretário tomasse a pôr os olhos insaciáveis na miragem que o
fizera sonhar noites inteiras, dias inteiros, na ânsia de um gozo novo.
Embalde esperou, embalde correu
lugares aonde nunca o conduzira a sede de aventuras: ninguém lhe dava notícias
do bacharel. Para onde teria ele ido? Como explicar o eclipse total daquela
mulher numa cidade como o Rio de Janeiro, em que toda a gente se encontrava por
mais que se quisesse ocultar? De que ia viver Evaristo, agora, sem um amigo que
lhe desse a mão? De que ia viver a pobre Adelaide numa época tenebrosa de
empréstimos forçados e de gerais clamores, quando o próprio Banco Industrial
não oferecia segurança?
E enquanto por um lado
apiedava-se do amigo, quase arrependido de o ter deixado ir embora sem rumo
certo no mare magnum da vida, por outro lado reconstruía mentalmente o
episódio do Jardim Botânico, em que fora protagonista a esposa do bacharel, e
sentia extraordinária volúpia cada vez que se lembrava daquele beijo de fogo,
mais precioso que todas as riquezas do mundo e cujo calor como que lhe ficara
impregnado na boca para todo o sempre... Ela o repelira brandamente, cheia de
dignidade, cheia de pudor, fiel ao homem que escolhera para esposo; mas nisso é
que estava o sabor esquisito e fidalgo que lhe ainda permanecia, por um efeito
da imaginação, nos lábios trêmulos...
FIM
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Apoio
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