LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Ubirajara, de José de Alencar


Edição de Referência:

Editora Ática, Série Bom livro,  São Paulo, 1998

 

 

"Todos cantam sua terra/
Também vou cantar a minha"

 

ÍNDICE

 

 

UBIRAJARA

 

ADVERTÊNCIA

 

O CAÇADOR

 

O GUERREIRO

 

A NOIVA

 

A HOSPITALIDADE

 

SERVO DO AMOR

 

O COMBATE NUPCIAL

 

A GUERRA

 

A BATALHA

 

UNIÃO DOS ARCOS

 

NOTAS
 
 

 

 

 

Ubirajara: Senhor da lança, de Ubira - vara, e jara - senhor; aportuguesando sentido, vem a ser lanceiro

 

Com este nome existia ao tempo do descobrimento, nas cabeceiras do rio São Francisco, uma nação de que fala Gabriel Soares - Roteiro do Brasil, cap. 182.

 

"A peleja dos Ubirajaras, diz esse escritor, é a mais notável do mundo, como fica dito, porque a fazem com uns paus tostados muito agudos, de comprimento de três palmos, pouco mais ou menos cada um, e tão agudos de ambas as pontas, com os quais atiram a seus contrários como com punhais, e são tão certos com eles que não erram tiro, com o que tem grande chegada; e desta maneira matam também a caça que se lhe espera, o tiro não lhe escapa; os quais com estas armas se defendem de seus contrários tão valorosamente como seus vizinhos com arcos e flechas, etc."

 

Desta arma e da destreza com que a manejavam proveio o nome de bilreiros que lhes deram os sertanistas, significando assim que tangiam suas lanças com a agilidade e sutileza igual à da rendeira ao trocar os bilros.
 
 

 

ADVERTÊNCIA

 






 

Este livro é irmão de Iracema.

 

Chamei-lhe de lenda como ao outro. Nenhum título responde melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições da pátria indígena.

 

Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade, há de estranhar em outras coisas a magnanimidade que ressumbra no drama selvagem a formar-lhe o vigoroso relevo.

 

Como admitir que bárbaros, quais nos pintaram os indígenas, brutos e canibais, antes feras que homens, fossem suscetíveis desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da criação?

 

Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, senão de todo o período colonial, devem ser lidos à luz de uma crítica severa. É indispensável sobretudo escoimar os fatos comprovados, das fábulas a que serviam de mote, e das apreciações a que os sujeitavam espíritos acanhados, por demais imbuídos de uma intolerância ríspida.

 

Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por longo trato de séculos, queriam esses forasteiros achar nos indígenas de um mundo novo e segregado da civilização universal uma perfeita conformidade de idéias e costumes.

 

Não se lembravam, ou não sabiam, que eles mesmos provinham de bárbaros ainda mais ferozes e grosseiros do que os selvagens americanos.

 

Desta prevenção não escaparam muitas vezes espíritos graves e bastante ilustrados para escreverem a história sob um ponto de vista mais largo e filosófico.

 

Entre muitos citarei um exemplo. Barlaeus referindo as justas que se faziam entre os selvagens para obterem em prêmio de seu valor a virgem mais formosa, não se esqueceu de acrescentar este comento - finis spectantium est voluptas.

 

Narrados com este pessimismo, as cenas da cavalaria, os torneios e justas não passariam de manejos inspirados pela sensualidade. Nada resistiria à censura ou ao ridículo.

 

Por igual teor, senão mais grosseiras, são as apreciacões de outros escritores acerca dos costumes indígenas. As coisas mais poéticas, os traços mais generosos e cavaleirescos do caráter dos selvagens, os sentimentos mais nobres desses filhos da natureza são deturpados por uma linguagem imprópria, quando não acontece lançarem à conta dos indígenas as extravâgancias de uma imaginação desbragada.

 

Releva ainda notar que duas classes de homens forneciam informações acerca dos indígenas: a dos missionários e a dos aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de acordo nesse ponto, de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam assim a importância da sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da crueldade com que tratavam os índios.

 

Faço estas advertências para que ao lerem as palavras textuais dos cronistas citados nas notas seguintes não se deixem impressionar por suas apreciações muitas vezes ridículas. É indispensável escoimar o fato dos comentos de que vem acompanhado, para fazer uma idéia exata dos costumes e índole dos selvagens.
 
 

 

O CAÇADOR

 






 

Pela margem do grande rio (1) caminha Jaguarê (2), o jovem caçador. O arco pende-lhe ao ombro, esquecido e inútil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba (3).

 

Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando do caçador.

 

Jaguarê não vê o tímido campeiro, seus olhos buscam um inimigo capaz de resistir-lhe ao braço robusto.

 

O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador também despreza o jaguar, que já cansou de vencer.

 

Ele chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fogem espavoridos quando de longe o pressentem.

 

Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrível para vencê-lo em combate de morte e ganhar nome de guerra.(4)

 

Jaguarê chegou à idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela glória do guerreiro.

 

Para ser aclamado guerreiro por sua nação é preciso que o jovem caçador conquiste esse título por uma grande façanha.

 

Por isso deixou a taba dos seus e a presença de Jandira (5), a virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa.

 

Mas o sol três vezes guiou o passo rápido do caçador através das campinas, e três vezes como agora deitou-se além nas montanhas da Aratuba (6), sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.

 

A sombra vai descendo da serra pelo vale e a tristeza cai da fronte sobre a face de Jaguarê.

 

O jovem caçador empunha a lança (7) de duas pontas, feita da roxa craúba (8), mais rija que o ferro.

 

Nenhum guerreiro brandiu jamais essa arma terrível, que sua mão primeiro fabricou.

 

Lá estaca o jovem caçador no meio da campina. Volvendo ao céu o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.

 

O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer longe nas cavernas da montanha.

 

Respondeu o ronco da sucuri na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao desafio do caçador.

 

Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.

 

A copa frondosa ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e o tronco gemeu até à raiz.

 

O caçador repousa à sombra de sua lança.

 

* * *

 





 

Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.

 

Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco flexível.

 

Ergue-se Jaguarê.

 

Seu olhar ardente voou, sôfrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.

 

Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.

 

Pela faixa cor de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos tocantins, senhora do grande rio, cujas margens ele pisava.

 

A liga vermelha (9) que cingia a perna esbelta da estrangeira dizia que nenhum guerreiro jamais possuíra a virgem formosa.

 

A corça veio cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da jovem caçadora que a seguia de perto.

 

A virgem reconheceu o cocar da nação que na última lua chegara aos campos do Taari (10) e da qual os pajés tinham dado notícia.

 

- Guerreiro araguaia (11), pois vejo pela pena vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente; se pisas os campos dos tocantins como hóspede, bem-vindo sejas; mas se vens como inimigo, foge, para que tua mãe não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.

 

- Virgem dos tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Ele pisa os campos de teus pais como senhor. Tu és sua prisioneira. Não que vencer a corça tímida seja glória para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que ele espera.

 

- Se o veado te der a sua ligeireza, jovem guerreiro, ela não te servirá senão para ver o rasto de meu pé antes que o vento o apague.

 

A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa campina. Após ela se arremessou Jaguarê que muitas vezes vencera o tapir.

 

Mas a virgem dos tocantins corria como a nandu no deserto, e o caçador conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar.

 

Travou do arco e o brandiu. A seta obedeceu-lhe, pregando no tronco do açaí a faixa que flutuava ao sopro do vento.

 

- A filha dos tocantins tem no pé as asas do beija-flor; mas a seta de Jaguarê voa como o gavião. Não te assustes, virgem das florestas; tua formosura venceu o ímpeto de meu braço e apagou a cólera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.

 

- Eu sou Araci (12), a estrela do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação tocantim. Cem dos melhores guerreiros (13) o servem em sua cabana para merecer que ele o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por esposa. Vem comigo, guerreiro araguaia, excede aos outros no trabalho e na constância, e tu romperás a liga de Araci na próxima lua do amor.

 

- Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais onde Jandira lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo da virgem. Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna à taba dos tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores araguaias, os desafia ao combate.

 

- Araci vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ela guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virgem do sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.

 

A virgem disse e desapareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo ligeiro da formosa caçadora, como o guaxinim que rasteja a zabelê.

 

Quando ela desapareceu o jovem caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.
 
 

 

* * *

 





 

Do outro lado da campina assoma um guerreiro.

 

Tem na cabeça o canitar (14) das plumas de tucano, e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.

 

E um guerreiro tocantim (l5). De longe avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias.

 

As duas nações não estão em guerra (16); mas sem quebra da fé pode um guerreiro, cansado do longo repouso, oferecer a outro guerreiro combate leal.

 

Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma seta, mensageira do desafio.

 

Respondeu o guerreiro disparando também uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.

 

Então os dois campeões caminharam um para o outro com o passo grave e pararam frente a frente.

 

- Eu sou Jaguarê, filho de Camacã, chefe da valente nação dos araguaias, que vem de longe em busca da terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama do caçador; ele quer um nome de guerra, que diga das nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; se não, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape (17)  virgem de Jaguarê.

 

- O caraíba guiou teu passo ao encontro de Pojucã (18), o matador de gente, guerreiro chefe(19) da terrível nação tocantim, que enche de terror as outras nações. Há três luas, desde que fugiram espavoridos os bárbaros tapuias (20), que Pojucã não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucã se compadece de tua mocidade e consente em combater contigo. Terás a glória de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.

 

- Jaguarê agradece a Tupã (21) que te fez um grande guerreiro e o chefe mais feroz da grande nação tocantim, Pojucã, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos teus e o terror das outras nações.

 

Os dois campeões recuaram passo a passo até que se acharam a um tiro de arco.

 

Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram um contra o outro brandindo o tacape.

 

* * *

 





 

Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuosas no remoinho da Itaoca.

 

Dez vezes as clavas bateram, e dez vezes volveram para bater de novo.

 

Os animais que passavam na floresta fugiram espavoridos, como se a borrasca ribombasse no céu.

 

Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.

 

- O ubiratã (22) é forte; mas há outro ubiratã que lhe resiste. Como o braço de Pojucã é que não há outro braço. Já viste, jovem caçador, o veado nas garras da jibóia? Assim vais morrer.

 

- Se tu fosses a cascavel que somente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria seu caminho. Mas tu és a jibóia feroz; e Jaguarê gosta de estrangular a jibóia. Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.

 

Pojucã estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cingiu os lombos do guerreiro.

 

Cada um dos campeões pôs na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da mata.

 

Ambos, porém, ficaram imóveis. Eram dois jatobás que nasceram juntos e entrelaçaram os galhos ligando-se no mesmo tronco.

 

Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem agitá-los; e eles permanecem quedos pelo volver dos tempos.

 

Um pajé que passou na orla da mata viu os lutadores e esconjurou-os pensando que eram as almas de dois guerreiros presos no abraço da morte.

 

Já a sombra se desdobrava pelo vale fora e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.

 

Por fim afrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu adversário. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.

 

Conheceram que podiam lutar corpo a corpo, a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.

 

- Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação tocantim. Mas Pojucã não consente que haja na terra quem resista a seu braço. É preciso que tu morras, Jaguarê, para que ele seja o primeiro dos guerreiros que o sol alumia.

 

- Pojucã, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber se tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, ele quer que tua derrota seja a sua primeira façanha.

 

Disse e arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas caminhou outra vez para Pojucã.

 

- Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue ela vai beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.

 

* * *

 





 

Pojucã repeliu a lança que o jovem caçador lhe apresentara.

 

- Jamais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversário desarmado; nem Pojucã precisa da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucã basta para te prostrar.

 

- O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão à corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta, e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejá-la.

 

O chefe tocantim (23) cruzou os braços.

 

- Toma a lança, Pojucã, se não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará desarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaia, o grande Camacã.

 

O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê que travou-lhe dos pulsos, e outra vez os dois campeões ficaram imóveis.

 

A noite veio achá-los na mesma posição. Três vezes cessaram a luta, e de novo a travaram. Mas afinal se convenceram que nenhum derrubaria o outro.

 

Então Pojucã disse:

 

- Guerreiro araguaia, é preciso acabar o combate. A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até a margem do rio. Aquele que primeiro chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.

 

* * *

 





 

Assim fizeram os dois campeões. Chegados à margem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo ímpeto da desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucã.
 
 

 

* * *

 







 

O guerreiro chefe enrista desdenhosamente a lança e caminha para Jaguarê. Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para imolar a vítima.

 

- Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já, se quisesse, ele te houvera ferido com tua própria mão.

 

- Abandona a glória do guerreiro, que não é para ti, nhengaíba. Pojucã te concederá a vida e te levará cativo à taba dos tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.

 

- Cativo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguaias para ajudar as velhas a varrer a oca.

 

Arremessou-se Pojucã avante e desfechou o golpe; mas a lança rodara e foi o chefe tocantim quem recebeu no peito a ponta farpada.

 

Quando o corpo robusto de Pojucã tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê d'um salto calcou a mão direita sobre o ombro esquerdo (24) do vencido, e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:

 

- Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencível que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucã, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes dele.

 

- Se meu valor, que serviu para aumentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucã sofra mais um instante a vergonha de sua derrota.

 

- Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás à taba dos araguaias para narrar o meu valor. A fama de Jaguarê precisa de um prisioneiro (25) como o grande Pojucã na festa da vitória.

 

- Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo que se tua arma traiçoeira feriu-me o peito, o suplício não vencerá a constância do varão tocantim, que sabe afrontar as iras de Tupã e desprezar a vingança dos araguaias.
 
 

 

O GUERREIRO

 






 

Retumba a festa na taba dos araguaias.

 

As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria (26).

 

Toda a tarde o trocano reboou chamando os guerreiros das outras tabas à grande taba do chefe.

 

Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacã, o maior chefe dos araguaias.

 

No fundo da ocara, preside o conselho dos anciões, que decide da paz ou da guerra e governa a valente nação.

 

Os anciões, sentados no longo jirau, contemplam taciturnos a geração de guerreiros que eles ensinaram a combater, e têm saudades da passada glória.

 

Suspenso em frente deles está o grande arco da nação araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.

 

É a insígnia do chefe dos guerreiros, a qual Camacã, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda conserva, pois ninguém ousa disputá-la.

 

Ei-lo, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao invencível tacape, ele dirige a festa.

 

De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros, colocados por sua ordem: primeiro os chefes das tabas; depois os varões; por último os moços guerreiros.

 

Vêm depois os jovens caçadores que já deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas proezas a honra de serem admitidos entre os guerreiros.

 

Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude não lhes consente ainda a robustez, que tamanho esforço demanda.

 

Todos invejam a glória de Jaguarê, que ontem era o primeiro entre eles, e hoje ali está disputando a fama aos mais valentes guerreiros.

 

Por detrás da estacada apinham-se as mulheres, que segundo o rito pátrio não podem ser admitidas nas festas guerreiras.

 

De longe acompanham silenciosas, com os olhos, as velhas aos filhos, as esposas aos seus guerreiros, e as virgens aos noivos.

 

Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus; mas não ousam murmurar uma palavra.

 

Entre elas está Jandira, a doce virgem, cujos negros olhos não se cansam de admirar Jaguarê, seu futuro senhor.

 

Já lhe tarda o momento de ver aclamar guerreiro ao jovem caçador, para ter a felicidade de servi-lo como escrava na paz, e acompanhá-lo como esposa ao combate.

 

* * *

 





 

No centro da ocara ergueu-se Jaguarê.

 

Defronte dele, Pojucã, no corpo que a ferida não abateu, mostra a grande alma, serena em face dos inimigos.

 

Camacã troou a inúbia para ordenar silêncio e o filho começou:

 

- Guerreiros araguaias, ouvi a minha história de guerra (27).

 

"Depois que Jaguarê sofreu as provas do valor, partiu para conquistar um nome famoso.

 

"Deixando a taba, viu o falcão negro que despedia o vôo para as águas sem fim, e Jaguarê disse:

 

"O falcão negro é o valente guerreiro dos ares; ele será a fama do guerreiro araguaia que atravessará as nuvens e subirá ao céu.

 

"Então Jaguarê marcou o vôo do falcão negro e seguiu por ele.

 

"O sol despediu-se e voltou; uma, duas, três vezes. No último sol Jaguarê encontrou um guerreiro da nação tocantim, senhora do grande rio.

 

"Guerreiros araguaias, quereis saber qual foi o campeão que Tupã enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?

 

"Ele aí está diante de vós.

 

"É o grande Pojucã, o feroz matador de gente, chefe da tribo mais valente da poderosa nação dos tocantins, senhores do grande rio.

 

"Vós que o tendes aqui presente, vede como é terrível o seu aspecto, mas só eu que o pelejei conheço o seu valor no combate.

 

"O tacape em sua mão possante é como o tronco do ubiratã que brotou no rochedo e cresceu.

 

"Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de sua mão e foi obrigado a despedaçá-lo.

 

"Os braços de Pojucã, quando ele os estende na luta, não há quem os vergue; são dois penedos que saem da terra.

 

"Seu corpo é a serra que se levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo Camacã, o pode abalar.

 

"Pojucã era o varão mais forte e o mais valente guerreiro que o sol tinha visto até aquele momento.

 

"Foi este, guerreiros araguaias, o herói que ofereceu combate ao filho de Camacã; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu que havia encontrado um inimigo digno do seu valor.

 

"Ele vos contempla, guerreiros araguaias. Se alguém duvida da palavra de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim, chame-o a combate e saberá quem é Pojucã."

 

O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador à multidão dos guerreiros; mas nenhum ousou aceitar o desafio.

 

* * *

 





 

Pojucã alçou a mão em sinal de que desejava falar; todos escutaram com respeito o herói, ainda maior na desgraça.

 

- Guerreiros araguaias, ouvi a voz de Pojucã, vosso inimigo, que afronta as iras dos fortes e despreza a vingança dos fracos.

 

"Pojucã, guerreiro chefe da grande nação tocantim, jamais encontrou guerreiro que resistisse à força de seu braço invencível.

 

"Mas Tupã, cansado de ouvir celebrar em todas as festas o nome de Pojucã, como vencedor, emprestou sua força a Jaguarê, o maior guerreiro que já pisou a terra.

 

"Eu que senti o ímpeto de sua coragem, posso dizer-vos que só o sangue tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão poderoso.

 

"Foi alguma virgem araguaia que vagando pela íloresta encontrou Pojucã, e trouxe no seio fecundo a alma do grande guerreiro.

 

"Seu braço é como o corisco do céu; e a sua força como a tempestade que desce das nuvens."

 

Calou-se Pojucã; e Jaguarê continuou o seu canto de guerra:

 

"Quando a sombra começava a descer da crista da montanha, Pojucã e Jaguarê caminharam um contra o outro.

 

"Toda a noite combateram. O sol nascendo veio achá-los ainda na peleja, como os deixara; nem vencidos, nem vencedores.

 

"Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza do corpo, e na destreza das armas.

 

"Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro igual; pois ambos queriam ser o primeiro.

 

"Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.

 

"Três vezes seu punho robusto a brandiu, e três vezes ela escapou-lhe da mão, como a serpente das garras do gavião.

 

"Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado; e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.

 

"Ele caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos tocantins, o valente dos valentes, Pojucã, o feroz matador de gente."

 

E Jaguarê, brandindo a arma da vitória, bradou:

 

"Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupã.

 

"Eu sou Ubirajara,o senhor da lança, o guerreiro terrível que tem por arma uma serpente."
 
 

 

* * *

 





 

O trocano ribombou, derramando longe pela amplidão dos vales e pelos ecos das montanhas a pocema do triunfo.

 

Os tacapes, vibrados pela mão pujante dos guerreiros, bateram nos largos escudos retinindo.

 

Mas a voz possante da multidão dos guerreiros cobriu o imenso rumor, clamando:

 

- Tu és Ubirajara, o senhor da lança, o vencedor de Pojucã, o maior guerreiro da nação tocantim.

 

"Os guerreiros araguaias te recebem por seu irmão nas armas e te aclamam forte entre os fortes.

 

"Os cantores (28) celebrarão teu nome como os mais famosos da nação araguaia; e Camacã terá a glória de chamar-se pai de Ubirajara; como foi glória para Jaguarê, ser filho de Camacã."

 

Quando parou o estrondo da festa e cessou o canto dos guerreiros, avançou Camacã, o grande chefe dos araguaias.

 

De um salto o ancião alcançou o arco da nação, insígnia do chefe na guerra, e caminhou para Ubirajara.

 

O arco era de ubiratã, grosso como o braço do mais robusto guerreiro; a corda trançada de crautá tinha o corpo do dedo que a brandia.

 

Os mais possantes varões da nação araguaia, a custo, empunhavam o grande arco; mas só um tinha força para disparar a seta: era Camacã, o chefe dos chefes, que dirigia na guerra os guerreiros araguaias.

 

Assim falou o ancião:

 

- Ubirajara, senhor da lança, é tempo de empunhares o grande arco da nação araguaia, que deve estar na mão do mais possante. Camacã o conquistou no dia em que escolheu por esposa Jaçanã, a virgem dos olhos de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apesar da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ousaria disputar o grande arco ao velho chefe, que não sofresse logo o castigo de sua audácia. Mas Tupã ordena que o ancião se curve para a terra, até desabar como o tronco carcomido; e que o mancebo se eleve para o céu como a árvore altaneira. Camacã revive em ti; a glória de ser o maior guerreiro cresce com a glória de ter gerado um guerreiro ainda maior do que ele.

 

* * *

 





 

Ubirajara tomou o arco que lhe apresentava o pai e disse:

 

- Camacã, tu és o primeiro guerreiro e o maior chefe da nação araguaia. Para a glória de Jaguarê bastava que ele se mostrasse teu filho no valor, como é teu filho no sangue. Mas o grande arco da nação araguaia, Ubirajara não o recebe de ti e de nenhum outro guerreiro, pois o há de conquistar pela sua pujança.

 

Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou:

 

- O guerreiro que ouse empunhar o grande arco da nação araguaia, venha disputá-lo a Ubirajara.

 

Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.

 

O trocano reboou de novo, e no meio da pocema do triunfo, a multidão dos guerreiros proclamou:

 

- Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguaias; empunha o arco chefe.

 

Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda zuniu como o vento na floresta.

 

Era a primeira seta, mensageira do chefe, que levava às nuvens, a fama de Ubirajara.

 

Os cantores exaltaram a glória dos dois chefes: a do velho Camacã, que trocara a arma do guerreiro pelo bordão do conselho; e a do jovem Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava tão grande, como fora o pai na robustez dos anos.

 

Pojucã teve o consolo de ouvir seu nome repetido muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.

 

Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação araguaia, desde os tempos remotos em que os progenitores deixaram a grande taba dos Tamoios, seus avós.

 

Quando os nhengaçaras entoaram o canto do triunfo, vieram as mulheres com vasos cheios do generoso cauim e apresentaram as taças aos guerreiros.

 

Jandira suspirou; ela era virgem, e como suas companheiras, não podia aparecer na festa dos guerreiros.

 

Sentiu não ser já esposa, para ter o orgulho de encher de vinho espumante, por ela fabricado, a taça de seu herói e senhor.

 

O guincho agoureiro da inhuma ressoava na mata, quando começou a dança guerreira que durou até perto da alvorada.

 

A NOIVA

 





 

Ao raiar da luz no céu, Jandira abriu os lindos olhos negros.

 

Seu canto foi o primeiro que saudou o nascer do dia e acordou em seu ninho a viuvinha.

 

A doce filha de Majé saltou da rede que embalara os sonhos castos da virgem; e despediu-se dela como a jaçanã que deixa a moita para habitar o ninho do amor.

 

A virgem araguaia acreditava ter dormido a última noite na cabana paterna, que essa manhã ia trocar pela cabana do esposo.

 

O jovem caçador que a amava, Jaguarê, fora aclamado guerreiro, e entre todos os guerreiros, o chefe da nação.

 

Como guerreiro ele pode tomar uma esposa; e como chefe pertence-lhe a virgem (29) de sua escolha, entre as mais formosas da taba.

 

Ainda que a virgem tenha um noivo, ou que o pai a destine a outro, se o chefe a deseja, a vontade de Tupã é que lhe pertença.

 

Tupã assim ordena para que os grandes chefes possam gerar de seu sangue os mais belos e valentes guerreiros.

 

Jaguarê antes de ser aclamado chefe já a tinha escolhido, e Jandira não aceitaria outro noivo senão o jovem caçador a quem amava.

 

Ela o espera. Logo que o sol alumie a terra, Ubirajara, o grande chefe, há de vir buscá-la.

 

Então a virgem se despedirá de Majé; e irá armar na cabana de seu guerreiro e senhor a rede da esposa.

 

Ligeira e contente, corre a banhar-se no rio antes que chegue Ubirajara, para quem purifica seu corpo (30) e unge-se com o óleo fragrante do sassafrás.

 

Ela quer que o destemido guerreiro ache seu amor saboroso como o vinho que espuma na taça e ferve nas veias.

 

Tornando à cabana, perfumou de beijoim a larga rede que tecera dos fios do algodão entrelaçados com as penas do guará.

 

Essa rede tinha duas vezes o tamanho de sua rede de virgem porque era a rede do casamento em que devia receber o esposo.

 

Depois arrumou no uru (31) a louça que havia fabricado para o serviço do guerreiro, e que devia transportar à sua nova cabana.

 

Quando terminou todos os preparativos, encostou-se à porta da cabana; seus olhos impacientes chamavam Ubirajara.

 

Mas o guerreiro não vinha, e o sol já tinha subido além da crista da serra.

 

A luz do dia derramava a alegria pelos campos; e a alegria que lhe afogara os sonhos da noite fugia agora da alma de Jandira.

 

Então a filha de Majé partiu em busca do noivo que a esquecera.

 

***

 





 

No mais escuro da mata, vaga o chefe dos araguaias.

 

Seus olhos fogem à luz do dia e buscam a sombra, onde encontram a imagem que traz na lembrança.

 

À noite, quando o guerreiro dormia em sua rede solitária, Araci, a linda virgem, lhe apareceu em sonho e lhe falou:

 

- Jaguarê, jovem caçador, tu dormes descansado enquanto os guerreiros tocantins se preparam para roubar a virgem de teus amores. Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde.

 

Ele erguera-se para segui-la; mas a virgem formosa desferiu a corrida veloz através da campina e desapareceu na floresta.

 

Neste ponto do sonho o guerreiro acordara.

 

Uma estrela brilhante listrava o céu, como uma lágrima de fogo, e Ubirajara pensou que era o rasto de Araci, a filha da luz.

 

A juriti arrulhou docemente na mata e Ubirajara lembrou-se da voz maviosa da virgem do sol.

 

O guerreiro tornou à rede, esperando achar ali outra vez o sonho que visitara sua alma; porém o sono fugira de seus olhos.

 

Quando raiou a primeira alvorada, Ubirajara saiu da cabana e buscou no mais espesso da mata a sombra propícia à saudade.

 

Seu passo o guiava sem querer para as bandas do grande rio, onde devia ficar a taba dos tocantins.

 

É assim que os coqueiros (32), imóveis na praia, inclinam para o nascente seu verde cocar.

 

Ubirajara ouviu o rumor de um passo ligeiro através da mata; de longe conheceu Jandira que o procurava.

 

A doce virgem achara à porta da cabana o rasto do guerreiro e o seguira através da floresta.

 

- Que mau sonho aflige Ubirajara, o senhor da lança e o maior dos guerreiros, chefe da grande nação araguaia, para que ele se afaste de sua taba e esqueça a noiva que o espera?

 

- A tristeza entrou no coração de Ubirajara, que não sabe mais dizer-te palavras de alegria, linda virgem.

 

- A tristeza é amarga; quando entra no coração do guerreiro o enche de fel. Mas Jandira fará como sua irmã, a abelha, ela fabricará em seus lábios, os favos mais doces para seu guerreiro; suas palavras serão os fios de mel que ela derramará na alma do esposo.

 

- Filha de Majé, doce virgem, ainda não chegou o dia em que Ubirajara escolha uma esposa; nem ele sabe ainda qual o seio que Tupã destinou para gerar o primeiro filho do grande chefe dos araguaias.

 

***

 





 

O lábio de Jandira emudeceu; mas o peito soluçou.

 

A virgem conheceu que o amor de Ubirajara retirava-se dela, e que de todo o perderia se o não defendesse.

 

Então escondeu a dor no fundo da alma e chamou o riso a seus lábios, a alegria a seus olhos.

 

Ela sabia que os guerreiros amam a flor da formosura, como a folhagem da árvore; e que a tristeza murcha a graça da mais linda virgem.

 

- Chefe dos araguaias, Ubirajara, não desprezas Jandira que outrora escolheste para tua noiva. Se então ela era formosa a teus olhos, mais formosa se fará para merecer teu amor. Tu gostavas de seus cabelos (33) negros que arrastam no chão; ela os entrançará com as plumas vermelhas do guará para que te pareçam mais bonitos. Seus olhos negros que te falavam, ela os cercará de uma listra amarela como os olhos da jaçanã. Sua boca, que ainda não provaste, Jandira a encherá de amor para que bebas nela o contentamento.

 

Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os lábios mudos do guer-reiro não se abriram.

 

- Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a flor no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor. Nestes peitos que te pertencem, ela os nutrirá com seu sangue, não menos guerreiro do que o teu; porque é o sangue de Majé, o maior dos anciões, depois de Camacã. Seus braços, que outrora querias para tua cintura (34), não servirão unicamente para te abraçarem, mas também para te servirem. Tua esposa te acompanhará por toda parte, na taba, como no campo do combate; ela cuidará de tua cabana; aprontará as mais saborosas iguarias para seu guer-reiro, e fabricará para ele o vinho, que é a alma da festa.

 

- Jandira é a mais bela das virgens araguaias. Seu amor fará a ventura de um guerreiro valente. Ubirajara não podia achar para si uma esposa mais fiel; nem para seus filhos outra mãe tão fecunda. Mas a noite desceu em sua alma. Só a estrela do dia pode restituir-lhe a alegria que o abandonou. A filha de Majé merece um guerreiro que tenha olhos para a sua formosura.

 

***

 





 

Pojucã sentou-se pensativo à porta da cabana.

 

O semblante, sempre grave, como convém a um chefe, cobre-se de tristeza.

 

A noite que foge da terra, vencida pelo sol, parece recolher-se na alma do chefe tocantim.

 

Não é sua ferida que o faz sofrer. O bálsamo suave da embaíba sara rapidamente os golpes mais profundos; e os varões tocantins aprendem desde o berço a desprezar a dor.

 

E em seu coração de guerreiro que Pojucã sente as garras do Anhangá.

 

O revés de ser vencido e cair prisioneiro, ele o suporta como o varão forte que viu prostrados por Aresqui, no campo da batalha, os mais terríveis guerreiros.

 

A grandeza do vencedor o consola; resta-lhe ainda a glória de ter resistido a um braço como o de Ubirajara, grande chefe dos araguaias.

 

Mas ele esperava que depois de haver ornado com sua presença a festa do triunfo, o vencedor fosse generoso, e lhe concedesse a honra do sacrifício.

 

É o temor de que Ubirajara lhe recuse uma morte gloriosa e o retenha cativo, que nesse momento acabrunha o chefe dos tocantins.

 

Ele, um guerreiro livre, que pisara outrora como senhor aqueles campos, reduzido à condição de escravo (35)?

 

Ele, um varão chefe, que tinha na obediência de seu arco mais de mil guerreiros valentes, obrigado a reconhecer um dono?

 

Ele, que afrontava a cólera de Tupã, quando o deus irado rugia do céu, curvar-se ao aceno de um homem, fosse, embora, o mais pujante dos filhos da terra?

 

Pojucã estremecia quando se lembrava que podia ser condenado a tão grande humilhação.

 

Em seu terror promovia o passo, com o ímpeto de fugir para sempre da taba dos araguaias, onde o ameaçava aquela vergonha.

 

Mas uma força invencível atava-lhe a vontade. Ele não se pertencia desde o momento em que Ubirajara calcou-lhe a mão direita no ombro.

 

Esse era o sinal da conquista, que prendia o vencido ao vencedor; aquele que violasse a lei da guerra, perderia para sempre o nobre título de guerreiro.

 

O desprezo do inimigo o acompanharia aos seus nativos; e a taba de seus irmãos não se abriria para o fugitivo que houvesse desonrado o nome de sua nação.

 

Por isso, na cabana solitária, Pojucã está mais guardado do que se o cercasse a multidão dos guerreiros araguaias.

 

Vela ele próprio em si, porque vela em sua fama.

 

Pode Ubirajara esquecê-lo que na volta o encontrará ali onde o deixou.

 

Nada o arrancará da cabana; nem a necessidade de buscar o alimento para o corpo.

 

Bem-vinda será a fome, se durar tanto que prostre seu corpo robusto, e o entregue ao seio da terra, onde o guerreiro dorme o sono da glória.

 

Além, rompe da selva Ubirajara, que se encaminha para a cabana com o passo rápido.

 

Segue-o de perto Jandira, como a gentil corça acompanha o caçador, que roubou-lhe o companheiro.

 

Descobrindo o chefe dos araguaias, Pojucã encerrou a tristeza dentro de sua alma; e chamou ao rosto a altivez dos grandes guerreiros.

 

O chefe tocantim não queria que seu vencedor se regozijasse de ter-lhe abatido o ânimo inflexível.

 

***

 





 

Quando Ubirajara aproximou-se da cabana, Pojucã tomou-lhe o passo.

 

- Ubirajara, senhor da lança, grande chefe da nação araguaia, não confessaste tu, diante dos anciões das tabas e de todos os teus guerreiros, que Pojucã era o varão mais forte e o mais terrível no combate, que o sol tinha visto até o momento de ser vencido por ti?

 

- Ubirajara o disse. É a voz da nação araguaia.

 

- Desde que tu cruzaste comigo a seta do desafio até este momento, Pojucã, guerreiro varão, e chefe de uma taba na valente nação dos tocantins, mostrou-se pela sua constância e valor digno do sangue de seus avós?

 

- Pojucã o disse, e a fama o repete.

 

- Então, por que Ubirajara, o grande chefe dos araguaias, não concede a Pojucã a morte gloriosa, que os tocantins jamais recusaram a um guerreiro valente, e que somente se nega aos fracos? Já não serviu Pojucã à tua glória na festa do triunfo? Esperas dele que te obedeça como um escravo? Se aviltas o varão a quem venceste, humilhas o teu valor que ele exaltava.

 

O grande chefe araguaia ouviu sem interromper o prisioneiro e respondeu com gravidade:

 

- Ubirajara não recusa ao bravo chefe tocantim, seu terrível inimigo, o suplício (36), que não negaria a qualquer guerreiro valente. Ele esperava que tua ferida se fechasse de todo, para que o grande Pojucã possa, no dia do último combate, sustentar a fama de seu nome, e a glória de um varão que só foi vencido por Ubirajara.

 

O grande chefe dos araguaias levou aos lábios a inúbia de Camacã; a voz do mando reboou pelo vasto âmbito da taba.

 

Apareceram vinte jovens guerreiros, a quem ele ordenou que chamasse a conselho os anciões.

 

Depois tornou ao chefe tocantim:

 

-  Os araguaias receberam de seus avós o costume das nações que Tupã criou. Eles destinam ao prisioneiro a mais bela e a mais ilustre de todas as virgens da taba, para que ela conserve o sangue generoso do herói inimigo e aumente a nobreza e o valor de sua nação.

 

"É esta também a lei, que os guerreiros tocantins observam em suas tabas.

 

"A mais bela e a mais nobre de todas as virgens araguaias, aquela que se ergue como a palmeira no meio da campina coberta de flores, é Jandira, a filha de Majé, que tem no seio os doces favos da abelha."

 

Travando então do pulso de Jandira, que ali ficara presa de sua vista, levou-a ao prisioneiro.

 

- Recebe-a como esposa do túmulo (37).

 

***

 





 

Jandira, que ouviu espavorida aquelas palavras, quis fugir; porém a mão do chefe araguaia a reteve.

 

- Ubirajara parte, mas ele voltará para assistir a teu suplício e vibrarte o último golpe. Pojucã terá a glória de morrer pela mão do mais valente guerreiro.

 

***

 





 

Ficaram Jandira e Pojucã em face um do outro.

 

- Virgem dos araguaias, Tupã te reservou para esposa do mais terrível dos inimigos de tua nação. O filho de seu sangue será o mais valente dos guerreiros; tu sentirás orgulho por havê-lo gerado em teu seio.

 

- Pojucã, chefe tocantim, Jandira nunca será tua esposa.

 

- Não é Ubirajara o chefe de tua nação, e não te destinou ele para servir de noiva do túmulo ao guerreiro que vai morrer no suplício?

 

- Ubirajara é o grande chefe da nação araguaia; à sua voz cala-se a palavra dos anciões; a seu gesto curva-se a fronte dos guerreiros; à sua vontade obedecem as tabas. Mas no amor de Jandira, ninguém manda, nem Tupã. Jandira é noiva de Ubirajara, e se ele não quiser aceitá-la, o guanumbi (38) a levará para os campos alegres onde repousam as virgens que morreram.

 

- Pojucã não carece do amor de Jandira. Nas tabas dos tocantins, a mais bela das virgens se regozijaria de pertencer ao mais valente dos chefes e de habitar sua rede. Nas tabas dos araguaias, onde nascem guerreiros como Ubirajara, não faltarão virgens formosas, que desejem a glória de ser mãe de um filho de Pojucã.

 

- Jandira seria a primeira, se não conhecesse Jaguarê, o mais belo dos jovens caçadores, que é hoje Ubirajara, o senhor da lança e chefe dos chefes. Pojucã merece uma esposa que nunca tenha ouvido o canto de outro guerreiro, para dar-lhe um filho digno dele.

 

- Os ritos de tua nação não punem a noiva que rejeita o prisioneiro?

 

- Jandira sabe que sujeita-se à morte; mas a morte é menos cruel do que o abandono.

 

- Então foge, virgem dos araguaias; e esconde-te à cólera dos anciões. Talvez mais tarde Ubirajara se arrependa e te perdoe.

 

- Jandira parte. Ela te deseja uma esposa terna e a morte gloriosa.

 

A filha de Majé penetrou na floresta e afastou-se rapidamente da taba.

 

Quando já estava muito longe, sentou à sombra de um manacá coberto de flores e cantou:

 

- Eu fui Jandira, a linda abelha, que fabricava os favos de cera para enchê-los de mel saboroso.

 

"Agora arrancaram-me as minhas asas com que eu voava pela campina colhendo o pó das flores e secou a docura de meu sorriso.

 

"O canto que saía de meu seio era como o da patativa ao pôr-do-sol, quando se recolhe em seu ninho de paina macia.

 

"Agora eu queria ter no coracão uma serpente para morder aquela que roubou-me o amor de meu guerreiro.

 

"Guardei a minha formosura para orgulho do esposo, e inveja dos outros guerreiros.

 

"Agora eu trocaria a flor do meu rosto por um aspecto terrível que infundisse pavor.

 

"Meus seios mais lindos que os botões do cardo, por um peito feroz, e as mãos ligeiras que tecem os fios do algodão pelas garras do jaguar.

 

"Eu fui Jandira, o manacá viçoso que se vestia de flores azuis e brancas.

 

"Agora sou como a juçara (39) que perdeu a folha, e só tem espinhos para ferir aqueles que se chegam."

 

***

 

 

 

Os anciões já estavam reunidos na oca do conselho, quando Ubirajara entrou.

 

Falou Camacã:

 

- Ubirajara, senhor da lança, chefe dos chefes, os pais da grande nação araguaia escutam a tua voz.

 

O grande chefe três vezes bateu no chão com a ponta do arco e disse:

 

- Pojucã, o chefe tocantim, pede a morte do combate; ele a merece, porque é um grande guerreiro e um varão ilustre. Ubirajara concedeu-lhe essa honra, como seu vencedor.

 

- Ubirajara é um inimigo generoso, respondeu Camacã.

 

Todos os anciões inclinaram gravemente a cabeça encanecida para exprimirem sua aprovação às palavras de Camacã.

 

Prosseguiu Ubirajara:

 

- É tempo de escolher para o prisioneiro uma esposa digna de acompanhar em seus últimos dias ao herói inimigo, e de ser mãe do marabá, o filho da guerra.

 

Todos os abarés desejavam para si a glória de oferecer uma filha ao prisioneiro.

 

- Ubirajara destinou-lhe Jandira, filha de Majé. Ela o merece por sua formosura e pelo sangue do grande guerreiro que gira em suas veias.

 

- Ubirajara é um grande chefe, disse Camacã.

 

Os anciões aprovaram outra vez com a cabeça; Majé acrescentou:

 

- O sangue do velho Majé não desmentirá em Jandira a fama da nação araguaia.

 

- Não! disse Ubirajara, e todos os anciões repetiram: -Não!

 

O grande chefe tornou com a voz pausada:

 

- Celebrai a cerimônia da entrega da esposa ao prisioneiro. Ubirajara parte; só estará de volta na próxima lua para assistir ao suplicio de Pojucã. Se na ausência de Ubirajara cair na taba a flecha, núncia da guerra, conduzi o trocano ao sitio onde se abraçam os grandes rios e soltai a voz da nação araguaia. Nesse dia Ubirajara será convosco.

 

Os prudentes anciões, com a cabeça inclinada para melhor ouvir, recebiam as palavras do grande chefe e as guardavam na memória.

 

Quando Ubirajara calou-se, Camacã repetiu, ainda mais pausado, as recomendações do filho:

 

- É esta a vontade de Ubirajara?

 

- Tu o disseste.

 

- Os anciões guardaram a palavra do chefe dos chefes? perguntou ainda Camacã.

 

- Ela entrou no espírito dos abarés, como a raiz no seio da terra; observou Majé.

 

- Bem dito; repetiram todos.

 

Ubirajara saiu do carbeto (40); após ele os anciões se retiraram lentamente.
 
 

 

A HOSPITALIDADE

 





 

Na entrada do vale ergue-se a grande taba dos tocantins. É a hora em que as sombras abraçam os troncos das árvores e o sol descansa em meio da carreira.

 

A floresta emudece e todos os viventes se abrigam da calma que abrasa.

 

Ubirajara deixa o escuro da mata e caminha para a grande taba dos tocantins.

 

Quando chegou à distância do tiro de uma flecha despedida pelo mais robusto guerreiro, tocou a inúbia.

 

O guerreiro de vigia respondeu; e o chefe araguaia, quebrando a seta, alçou a mão direita para mostrar a senha da paz.

 

Então avançou para a taba; na entrada da caiçara que cercava o campo dos tocantins, atirou ao chão a seta partida.

 

Os guerreiros que tinham acudido ao som da inúbia, deixaram passar o estrangeiro sem inquirir donde vinha, nem o que trouxera.

 

Era este o costume herdado de seus maiores; que o hóspede (41) mandava na taba aonde Tupã o conduzia.

 

Ubirajara passou entre os guerreiros e dirigiu-se à cabana mais alta que ficava no centro da ocara.

 

A figura do tucano, feita de barro pintado, e colocada em cima da porta, dizia que era ali a cabana do grande chefe.
Mas Ubirajara já o sabia; pois antes de penetrar na taba, subira à grimpa do mais alto cedro da floresta para conhecer o sítio once habitava Araci, a estrela do dia.

 

A cabana estava deserta naquele instante, mas ouvia-se a fala das mulheres que trabalhavam no terreiro.

 

Ubirajara transpôs o limiar e, levantando a voz, disse:

 

- O estrangeiro chegou.

 

Acudiram as mulheres e conduziram Ubirajara à presença do grande chefe dos tocantins.

 

Itaquê passava as horas da ardente calma à sombra da frondosa gameleira, que podia abrigar cem guerreiros embaixo de sua rama.

 

Repousando dos combates, o formidável guerreiro não desdenhava as artes da paz (42) em que era tão consumado como nas batalhas.

 

Assim honrava as fadigas da taba, dando o exemplo do trabalho à família de que era pai, e à nação de que era chefe.

 

Nesse momento as mulheres colocadas em duas filas, com as mãos erguidas, urdiam os fios de algodão, passados pelos dedos abertos em forma de pente. Itaquê manejava a lançadeira (43), tão destro como na peleja vibrava o tacape. Sua mão ligeira tramava a teia de uma rede, que entretecia das penes douradas do galo-da-serra.

 

Quando chegou Ubirajara, o grande chefe dos tocantins, depois de ter rematado a urdidura, entregou a lançadeira ao guerreiro Pirajá que estava a seu lado, e veio ao encontro do hóspede.

 

- O estrangeiro veio à cabana de Itaquê, grande chefe da nação tocantim; disse Ubirajara.

 

- Bem-vindo é o estrangeiro à cabana de Itaquê, grande chefe da nação tocantim.

 

Então o tuxava voltou-se para Jacamim, a mãe de seus filhos:

 

- Jacamim, prepara o cachimbo do grande chefe, pare que ele e o estrangeiro troquem a fumaça da hospitalidade.

 

Os mensageiros já corriam pela taba, avisando os guerreiros moacaras da vinda do hóspede à cabana de Itaquê.

 

Os moacaras, revestidos de seus ornatos de festa, se encaminharam com o passo grave à oca principal, a fim de honrar o hóspede do grande chefe da nação tocantim.

 

Ali chegados, cada um dirigiu ao estrangeiro a pergunta da hospitalidade e deu-lhe a boa-vinda.

 

***

 





 

Depois que Itaquê ofereccu a Ubirajara o cachimbo da paz, e com ele trocou a fumaça da hospitalidade, os cantores entoaram a saudação da chegada:

 

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Ele traz a alegria à cabana; e quando parte, leva consigo a fama do guerreiro que teve a fortuna de o acolher.

 

"Nas tabas por onde passe, e na terra de seus pais, ele conta aos velhos, que depois ensinam aos moços, as proezas dos heróis que viu em seu caminho, e de quem recebeu o abraço da paz.

 

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Ele traz consigo a sabedoria; na cabana do guerreiro, que tem a fortune de o acolher, todos o escutam com respeito.

 

"Em suas palavras prudentes, os anciões da taba aprendem, para ensinar aos moços, os costumes dos outros povos, as façanhas de guerras desconhecidas por eles, e as artes da paz, que o estrangeiro viu em suas viagens.

 

"O hóspede é mensageiro de Tupã. O primeiro que apareceu na taba dos avós da nação tocantim, foi Sumé, que veio donde a terra começa e caminhou pare onde a terra acaba.

 

"Dele aprenderam as nações a plantar a mandioca para fazer a farinha; e a tirar do caju e do ananás o generoso cauim, que alegra o coração do guerreiro.

 

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Quando o estrangeiro entra na cabana, o guerreiro que tem a fortuna de o acolher, não sabe se ele é um chefe ilustre ou o grande Sumé que volta de sua viagem.

 

"O sábio ensina, por onde passa, os segredos da paz, e o herói, as façanhas da guerra; mas ambos deixam na cabana da hospitalidade, a glória de ter abrigado um grande varão.

 

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Por seu caminho vai deixando a abundância e a festa; depois do banquete da boa-vinda, as árvores vergam com os frutos e a caça não cabe na floresta.

 

"A cabana, que fecha a porta ao hóspede, o vento a arranca, o fogo do céu a abrasa. O guerreiro que não se alegra com a chegada do hóspede, vê murchar ao redor de si a esposa, os filhos, as mulheres e as roças que ele plantou.

 

"Bem-vindo seja o estrangeiro na cabana de Itaquê, o grande chefe da nação tocantim, que teve a glória de ser escolhido pelo hóspede.

 

"Os guerreiros exultam com a honra de seu chefe, e os cantores te saúdam, mensageiro de Tupã."

 

Enquanto na cabana ressoa o canto da boa-vinda, Jacamim, a esposa de Itaquê, chamou as amantes do marido, sues servas, pare ajudá-la a preparar o banquete da hospitalidade.

 

As servas pressurosas estenderam à sombra da gameleira as alvas esteiras de palmas entrançadas de airi; e colocaram sobre elas os urus cheios de farinha-d'água.

 

Trouxeram também os camucins rasos, onde se apinhavam as moquecas envoltas em folhas de banana, e peças de carne, assada no biaribi, que ainda fumegava nos pratos feitos de concha de tartaruga.

 

Depois suspenderam a caça mais volumosa, veados e antas, assim como as igaçabas de cauim, nos ramos inclinados da árvore, em altura que o braço do guerreiro pudesse alcançar.

 

Frutas de várias espécies, pencas douradas de bananas, cachos roxos de açaí, os rubros croás e os fragrantes abacaxis, enchiam o jirau levantado no meio do terreiro.
 
 

 

***

 





 

Jacamim conduzira o hóspede à sombra da gameleira, onde o esperava o banquete da chegada.

 

Ao lado de Ubirajara sentou-se Itaquê e depois os moacaras que tinham vindo para a festa da hospitalidade.

 

Os guerreiros comeram em silêncio. As mulheres diligentes os serviam, enchendo de vinho de caju e ananás as largas cumbucas, tintas com a pasta do crajuru que dá o mais brilhante carmim.

 

Quando o hóspede, depois de satisfeito o apetite, lavou o rosto e as mãos, Jacamim ordenou às servas que recolhessem os restos das provisões, e retirou-se com elas.

 

Também afastaram-se os jovens guerreiros, que ainda não tinham voz no conselho. Só ficaram sentados com o hóspede, Itaquê, e os moacaras, senhores das cabanas.

 

O cachimbo do grande chefe passou de mão em mão e cada ancião bebeu a fumaça da erva de Tupã, que inspira a prudência no carbeto.

 

Então disse o chefe:

 

- Itaquê deseja dar a seu hóspede um nome que lhe agrade; e precisa que o ajude a sabedoria dos anciões.

 

A lei da hospitalidade não consentia que se perguntasse o nome ao estrangeiro que chegava, nem que se indagasse de sua nação.

 

Talvez fosse um inimigo; e o hóspede não devia encontrar na cabana onde se acolhia, senão a paz e a amizade.

 

O chefe, que tinha a fortuna de receber o viajante, escolhia o nome de que ele devia usar enquanto permanecia na cabana hospedeira.

 

Foi Ipê quem primeiro falou:

 

- Tu chamarás ao hóspede Jutaí, porque sua cabeça domina o cocar dos mais fortes guerreiros, como a copa do grande pinheiro aparece por cima da mata.

 

Disse Tapir:

 

- Chama ao hóspede Boitatá, porque ele tem os olhos da grande serpente de fogo, que voa como o raio de Tupã.

 

Os moacaras, cada um por sua vez, falaram; e como a voz começava do mais moço para acabar no mais velho, as últimas falas eram menos guerreiras e traziam a prudência da idade.

 

Assim Caraúba, que era o segundo antes do chefe, disse:

 

- Itaquê, o hóspede é o núncio da paz. Tu deves chamá-lo Jutorib, porque ele trouxe a alegria à tua cabana.

 

Guaribu, cujos anos enchiam a corda de sua existência de mais nós, do que tem o velho cipó da floresta, falou por último:

 

- O viajante é senhor na terra que ele pisa como hóspede e amigo; e o nome é a honra do varão ilustre, porque narra sua sabedoria. Pergunta ao estrangeiro como ele quer ser chamado na taba dos tocantins.

 

- Bem dito!

 

Itaquê, aprovando as palavras prudentes do ancião, perguntou a Ubirajara que nome escolhia; este lhe respondeu:

 

- Eu sou aquele que veio trazido pela luz do céu. Chama-me Jurandir (44).

 

Nesse momento, Araci, a estrela do dia, apareceu por entre as palmeiras e caminhou para a cabana.

 

Os mais valentes entre os jovens guerreiros tocantins acompanhavam a formosa caçadora. Eram os servos do amor, que disputavam a beleza da virgem.

 

Os cantores saudaram de novo o hóspede pelo nome que ele escolhera:

 

- Tu és aquele que veio trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos Jurandir; para que te alegres ouvindo o nome de tua escolha.

 

"Tu és aquele que veio trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos Jurandir; e o nome de tua escolha alegrará o ouvido dos guerreiros. "

 

***

 





 

De longe Araci viu o estrangeiro, sentado entre os anciões, como o frondoso jacarandá no meio dos velhos troncos das aroeiras.

 

A virgem reconheceu logo o caçador araguaia e adivinhou que ele viera à cabana de Itaquê para disputar sua beleza aos guerreiros tocantins.

 

O coração de Araci encheu-se de alegria. Seus negros cabelos estremeceram de contentamento, como as penas da jaçanã quando pressente o formoso inverno.

 

O estrangeiro não queria ser conhecido; pois deixara o cocar das plumas da arara, que eram o ornato guerreiro de sua nação. Mas a imagem do jovem caçador ficara na lembrança da virgem, como fica na terra a verde folhagem, depois da lua das águas.

 

A lei da hospitalidade proibia à virgem revelar o segredo do estrangeiro, só dela sabido. Nesse momento foi à sua alma que obedeceu e não ao costume da nação.

 

Quando Araci chegou ao terreiro, os anciões se preparavam para ouvir a maranduba do hóspede. Os guerreiros e as mulheres escutavam em silêncio.

 

O estrangeiro começou:

 

- Jurandir é moço; ainda conta os anos pelos dedos e não viveu bastante para saber o que os anciões da grande nação tocantim aprenderam nas guerras e nas florestas.

 

"O moço é o tapir que rompe a mata, e voa como a seta. O velho é o jabuti (45) prudente que não se apressa.

 

"O tapir erra o caminho e não vê por onde passa. O jabuti observa tudo, e sempre chega primeiro.

 

"Jurandir é moço; mas conhece as grandes florestas; e atravessou mais rios do que as veias por onde corre o sangue valente de seu pai.

 

"A primeira água em que Jaçanã, sua mãe, o lavou, quando ele rasgou-lhe o seio, foi a do grande lago onde Tupã guardou as águas do dilúvio, depois que as retirou da terra.

 

"Ainda Jurandir não era um caçador, quando ele se banhou no pará sem fim (46), onde os rios despejam a sua corrente, e cujas águas quando dormem se mudam em sal.

 

"Duas vezes Jurandir seguiu o pai dos rios, desde a grande montanha onde nasce, até a várzea sem fim que ele enche com suas águas.

 

"Ele viu o grande rio combater com o mar, no tempo da pororoca. Os dois chefes tocam a inúbia antes da peleja, para chamar seus guerreiros.

 

"Vêm de um lado as águas do mar; são os guerreiros azuis, com penachos de araruna; vêm do outro as águas do rio; são os guerreiros vermelhos com penachos de nambu.

 

"Começa a batalha. Os guerreiros se enrolam, como a corrente da cachoeira, batendo no rochedo; a terra estremece com o trovão das águas.

 

"Mas o grande rio agarra o mar pela cintura. Arranca do chão o inimigo; carrega-o nos ombros; solta o grito de triunfo.

 

"Por muito tempo os Tetivas (47), que habitam sobre as árvores, vêem passar correndo as águas do mar: são os guerreiros azuis que fogem espavoridos e vão esconder-se na sombra das florestas.

 

"Jurandir também viu a terra onde habitam as mulheres guerreiras (48), senhoras de seu corpo (49), que vivem embaixo das águas do grande rio.

 

"Só elas sabem o segredo das pedras verdes, que tornam os guerreiros cativos de seu amor, sem privá-las da liberdade.

 

"Por isso, todas as luas, grande número de guerreiros as visitam em sua taba; e elas guardam para os mais valentes a flor de sua beleza.

 

"Quando chega o tempo de vir o fruto do amor, guardam somente as filhas; e enviam aos guerreiros os filhos, donde saem os maiores chefes.

 

"Feliz o guerreiro que acha uma terra valente e fecunda para a flor do seu sangue. O filho será maior do que ele; e o neto maior do que o filho.

 

"Sua geração vai assim crescendo de tronco em tronco; e forma uma floresta de guerreiros, onde o último cedro se ergue mais frondoso e robusto, porque recebe a seiva de seus avós. "

 

***

 





 

Quando Jurandir proferiu as últimas palavras, seus olhos que tinham muitas vezes buscado Araci, repousaram nela.

 

A virgem tocantim compreendeu que o estrangeiro se referia a si; e não escondeu sua alegria, como não esconde sua flor a juquiri que o rio beija.

 

A formosa caçadora cantou. Sua voz era límpida e sonora como o gorjeio do sabiá, quando se deleita com o calor do sol.

 

- Feliz a terra que recebe a semente do cedro frondoso e robusto; ela se cobrirá de sombra e frescura. Os guerreiros gostarão de reunir-se aí para falar da paz e da guerra.

 

"Ela é como a virgem que um chefe ilustre escolheu para sua esposa, e que se povoa de uma prole numerosa. As nações a respeitam porque é a mãe de valentes guerreiros; os anciões escutam seu conselho na paz e na guerra.

 

"As mulheres guerreiras, senhoras de seu corpo, são como a palmeira do muriti, que rejeita o fruto antes que ele amadureça e o abandona à correnteza do rio.

 

"A esposa não desprende de si o filho, senão quando ele não chupa mais seu peito. Ela é como a mangabeira; nutre o fruto com seu leite, que é a flor de seu sangue.

 

"Não é na terra das mulheres guerreiras que o estrangeiro deve buscar a esposa; mas na taba de sua nação, onde Tupã guarda para seu valor a mais bela das virgens, aquela que tem o sorriso de mel."

 

O hóspede respondeu:

 

- Jurandir sabe onde encontrará a virgem que deseja para esposa. A luz do céu o guia, e nada resiste à força de seu braço.

 

Depois de responder ao canto de Araci, o estrangeiro continuou sua maranduba, que todos ouviram silenciosos.

 

Ele contou o que havia aprendido nas praias do mar, habitadas pela valente nação dos tupinambás, descendentes da mais antiga geração de Tupi.

 

Os pajés dos tupinambás lhe disseram que nas águas do pará sem fim vivia uma nação de guerreiros ferozes, filhos da grande serpente do mar.

 

Um dia esses guerreiros sairiam das águas para tomarem a terra às nações que a habitam; por isso os tupinambás tinham descido às praias do mar, para defendê-las contra o inimigo.

 

Os guerreiros do mar (50) também tinham suas guerras entre si, como os guerreiros da terra. Então as águas pulavam mais altas do que os montes; seu estrondo era como o trovão.

 

Jurandir contou mais, que nas praias do mar se encontrava uma resina amarela, muito cheirosa (51), a qual a grande serpente criava no bucho.

 

Os tupinambás faziam dessa goma contas para seus colares; Jurandir mostrou a pulseira que lhe cingia o artelho, presente de um guerreiro daquela nação.

 

Essas contas tornavam o pé do guerreiro ágil na corrida, e protegiam o viajante contra os caiporas da floresta, que apartavam-se de seu caminho.

 

Muitas outras coisas referiu Jurandir; e os anciões admiravam-se de ver o juízo prudente de um abaré no corpo jovem de tão forte guerreiro.

 

Os mais velhos dos moacaras acreditaram que o hóspede era filho de Sumé, mandado por seu pai correr as terras que o sábio tinha visto em sua mocidade.

 

Calaram porém seu pensamento, para o comunicarem aos anciões quando se reunisse o carbeto da nação.

 

***

 





 

O sol já descia para as montanhas, quando terminou a festa da hospitalidade na cabana de Itaquê.

 

Os moacaras partiram. Itaquê voltando à sua ocupação, deixou o hóspede senhor de sua vontade, para fazer o que lhe agradasse.

 

Vieram os jovens pescadores da taba, com os anzóis e jequis, saber do hóspede que peixe ele preferia.

 

Depois deles chegaram os jovens caçadores que, antes de partir para a floresta, vinham receber os desejos do hóspede.

 

Por fim aproximaram-se as mulheres que já tinham rompido o fio da virgindade; mas não eram nem esposas, nem amantes de guerreiros.

 

Essas eram as mulheres livres, que davam seu amor e o retiravam quando queriam, mas não recebiam a proteção de um guerreiro, nem podiam jamais ser mães da prole.

 

Os filhos, concebidos no próprio seio, só tinham por mãe a esposa, que o guerreiro tomou por companheira de sua existência e raiz de sua geração.

 

O rito da hospitalidade, entre os filhos da floresta, manda que se dê ao estrangeiro amigo tudo que deleita ao guerreiro.

 

Por isso vinham as moças (52) oferecer a Jurandir sua beleza, para que ele escolhesse entre elas uma companheira, que partilhasse sua rede na cabana hospedeira.

 

Todas se tinham enfeitado com seus mais belos ornatos, para agradar aos olhos de Jurandir; pois não havia para elas maior glória do que a de merecer o amor do estrangeiro.

 

Umas traziam as tranças urdidas com penas vistosas dos pássaros de sua predileção; outras haviam perfumado da essência do sassafrás os cabelos soltos, que derramavam sua fragrância ao sopro da brisa.

 

Chegando diante do estrangeiro, começaram uma dança amorosa para mostrar a graça do seu corpo. Aquelas que tinham a voz doce cantavam em louvor de Jurandir.

 

Araci fora buscar seu balaio de palha vermelha, e sentara-se no terreiro, junto à porta da cabana. Seus dedos ágeis enfiavam as sementes de jequiriti, de que fazia um ramal para seu colo gentil.

 

Enquanto compunha o colar, a virgem percebia que os olhos de Jurandir abandonavam os encantos das mulheres e buscavam seu rosto.

 

Mas ela voltava-se para a floresta; com o trinado de seus lábios chamava o crajuá, que voava no olho da palmeira. O passarinho, iludido, vinha, cuidando ouvir o canto da companheira.

 

Jurandir apartou as mulheres e disse:

 

- As moças tocantins são formosas; qualquer delas alegraria o sono do estrangeiro. Mas Jurandir não veio à cabana de Itaquê para gozar do amor de uma noite; ele velo buscar a esposa que há de acompanhá-lo até à morte, e a virgem que escolheu para mãe de seus filhos.

 

Quando Araci ouviu estas palavras cobriu-se de sorrisos, como o guajeru se cobre de suas flores alvas e perfumadas, com os orvalhos da manhã.

 

Jurandir voltou-se então para a virgem caçadora.

 

- Estrela do dia, Araci, conduze-me à presença de Itaquê. É tempo que ele saiba o segredo do estrangeiro.

 

- Os sonhos disseram a Araci, duas noites seguidas, que o jovem caçador chegaria à cabana de Itaquê; ela te esperou. Quando meus olhos te viram sentado entre os moacaras, logo conheceram que tu vinhas buscar a esposa.

 

O estrangeiro respondeu:

 

- Jurandir chegou à taba dos seus, e recebeu um nome de guerra e o grande arco de sua nação. Mas a cabana do chefe estava deserta; e sua rede não lhe guardou o sono tranqüilo do guerreiro. Ele ouviu tua voz que o chamava, virgem tocantim, e ergueu-se; tua luz o guiou, filha do sol, e o trouxe à tua presença.

 

SERVO DO AMOR

 





 

Jurandir, conduzido pela virgem, caminhou ao encontro de Itaquê e disse:

 

- Grande chefe dos tocantins, Jurandir não veio à tua cabana para receber a hospitalidade; veio para servir ao pai de Araci (53), a formosa virgem, a quem escolheu para esposa. Permite que ele a mereça por sua constância no trabalho, e que a dispute aos outros guerreiros pela força de seu braço.

 

Itaquê respondeu:

 

- Araci é a filha de minha velhice. A velhice é a idade da prudência e da sabedoria. O guerreiro que conquistar uma esposa como Araci terá a glória de gerar seu valor no seio da virtude. Itaquê não pode desejar para seu hóspede maior alegria.

 

Desde esse momento, Jurandir não foi mais estrangeiro na taba dos tocantins. Pertencia à oca de Itaquê, e devia, como servo do amor, trabalhar para o pai de sua noiva.

 

Os guerreiros, cativos da beleza de Araci, conheceram que tinham de combater um adversário formidável; mas seu amor cresceu com o receio de perder a filha de Itaquê.

 

Jurandir tomou suas armas e desccu ao rio. Era a hora em que o jacaré bóia em cima das águas como o tronco morto; e a jaçanã se balança no seio do nenúfar.

 

O manati (54) erguia a tromba para pastar a relva na margem do rio. Ouvindo o rumor das folhas, mergulhou na corrente, mas já levava o arpéu do pescador, cravado no lombo.

 

Jurandir não esperou que o peixe ferido desenrolasse toda a linha. Puxou-o para terra; e levou-o ainda vivo à cabana de Itaquê, onde três guerreiros custaram a deitá-lo no jirau.

 

As mulheres cortaram as postas de carne e os guerreiros cavaram a terra para fazer as grelhas do biaribi (55).

 

Jurandir partiu de novo e entrou na floresta. Ao longe reboavam os gritos dos caçadores que perseguiam a fera.

 

Pelo assobio o guerreiro conheceu que era um tapir. O animal zombara dos caçadores e vinha rompendo a mata como a torrente do Xingu.

 

As árvores que seu peito encontrava caíam lascadas.

 

Jurandir estendeu o braço. O velho tapir, agarrado pelo pé, ficou suspenso na carreira, como o passarinho preso no laço. Nunca, até aquele momento, encontrara força maior que a sua.

 

Uma vez descera à lagoa para beber. A sucuri, que espreitava a caça, mordeu-o na tromba. Ele fugia, esticando a serpente; e a serpente encolhendo-se, o arrastava até à beira d'água.

 

Assim tornou uma, duas, três vezes. Mas o tigre urrou de fome. O velho tapir disparou pela floresta; e a sucuri com a cauda presa à raiz da árvore arrebentou pelo meio.

 

O velho tapir rompeu a serpente como se rompe uma corda de piaçaba; mas não pôde abalar o braço de Jurandir, mais firme do que o tronco do guaribu.

 

O estrangeiro tornou à cabana com a caça. Nenhum dos guerreiros da taba, nem mesmo o velho Itaquê, pôde agüentar com as duas mãos a fera bravia.

 

Então Jurandir obrigou o animal a agachar-se aos pés de Araci e disse:

 

- O braço de Jurandir fará cair assim, a teus pés, o guerreiro que ouse disputar ao seu amor a tua formosura, estrela do dia.

 

***

 





 

Nunca a abundância reinara na cabana sempre farta do chefe dos tocantins, como depois que a ela chegara o estrangeiro.

 

Jurandir era o maior caçador das florestas e o primeiro pescador dos rios. Seu olhar seguro penetrava na espessura das brenhas, como na profundeza das águas.

 

Nada escapava à destreza de sua mão. Onde ela não chegava, iam as unhas de suas flechas certeiras, que rasgavam o seio da vítima, como as garras do jaguar.

 

O estrangeiro soubera de Araci, qual era a caça que Itaquê preferia e qual o peixe que ele achava mais saboroso. Desde então nunca o velho chefe sentiu a falta do manjar predileto.

 

Se não era a lua própria do peixe desejado, Jurandir sabia onde o podia encontrar. Não tornava à cabana sem a provisão necessária para a refeição do dia.

 

Depois da caça e da pesca, Jurandir trabalhava nas roças de Itaquê. Fazia no tabuleiro os matumbos, para que Jacamim enterrasse as estacas da maniva e semeasse o feijão, o milho e o fumo.

 

Entre os filhos das florestas, a plantação devia ser feita pela mão da mulher (56), que era mãe de muitos filhos; porque ela transmitia à terra sua fecundidade.

 

A semente que a mão da virgem depositava no seio da terra dava flor; mas da flor não saía fruto. E se era um guerreiro que plantava, o aipim endurecia como o pau-d'arco.

 

Nas vazantes do rio, Jurandir capinava a terra coberta de relva e outras plantas, e só deixava crescer o arroz, o inhame e as bananeiras.

 

Quando o estrangeiro partia pela manhã, Araci o acompanhava de longe pela floresta. Sua vontade a levava após ele.

 

O costume da taba não consentia que a virgem desejada pelos servos do seu amor preferisse um guerreiro, antes de saber se ele a obteria por esposa.

 

A filha de Itaquê não queria pertencer a outro guerreiro. Mas lembrava-se que a virgem deve merecer o esposo por sua paciência; assim como o guerreiro merece a esposa por sua constância e fortaleza.

 

Então voltava ao terreiro: enquanto os outros guerreiros espreitavam sua vontade, ela tecia as franjas para a rede do casamento.

 

Sua mão sutil urdia como alvo fio do crauatá a fina penugem escarlate. Os noivos cuidavam que era a do peito do tucano; mas ela sabia que era do peito da arara e que tinha as cores do seu guerreiro.

 

Quando o sol chegava ao cimo dos montes, ouvia-se o canto de Jurandir que voltava da caça. A virgem, seguida pelos guerreiros, ia ao encontro do estrangeiro.

 

Então desciam ao rio. Era a hora do banho. Araci cortava as ondas mais lindas que a garça cor-de-rosa; e os guerreiros a seguiam de perto, como um bando de galeirões.

 

Mas nenhum, nem mesmo Jurandir, que nadava como um boto, podia alcançar a formosa virgem. Ela parecia a flor do mururê que se desprendeu da haste e passe levada pela corrente.

 

Uma vez a filha das águas soltou um grito e desapareccu no seio das ondas. Jacamim cuidou que o jacaré tinha arrebatado a filha de seu seio. Os guerreiros mergulharam pare salvá-la; mas não a encontraram.

 

Todos a julgavam perdida, quando apareceu Jurandir que trazia nos braços o corpo da virgem formosa. Pisando em terra, ela correu para a cabana, onde foi esconder sua alegria.

 

Desde então, era no banho que Araci recebia o abraço de Jurandir, sem que os outros guerreiros suspeitassem da preferência dada ao estrangeiro.

 

No seio das ondas ninguém a adivinhava a não ser o ouvido sutil de Jurandir, a quem ela chamava com o doce murmúrio do irerê.

 

Encontravam-se no fundo do rio, enquanto durava a respiração. Depois desprendiam-se do abraço e surgiam longe um do outro.
 
 

 

***

 





 

À tarde, voltando da caça, Jurandir viu na floresta um rastro, que ele conhecia.

 

Chegado à cabana, entregou a Jacamim o veado que matara e saiu para visitar os arredores. Nada encontrou de suspeito; o rastro, que o inquietava, não chegara até ali.

 

No outro dia, ao romper da alvorada, logo depois do banho, os guerreiros partiram para a caça e para a pesca. Só ficaram na cabana Jacamim e as mulheres de Itaquê.

 

Araci tomou o arco e entrou na floresta. A imagem do guerreiro amado fugia naquele instante de seus olhos; eles buscaram entre as folhas o sinal de seus passos e não o descobriram.

 

Lembrou-se a virgem, que Jurandir gostava da polpa do guaraná adoçada com o mel da abelha; e colheu os frutos encarnados que pendiam dos ramos da trepadeira.

 

Nesse momento a arara cantou no olho do pirijá (57). Araci precisava de suas plumes vermelhas, para o cocar que ela tecia em segredo.

 

Era o cocar do amor, com que desejava ornar a cabeça de seu guerreiro e senhor, no dia em que ele a conquistasse por esposa.

 

A virgem armou o arco e seguiu a arara rompendo a folhagem. Quando ia disparar a seta, ouviu ao lado um rumor desusado.

 

Jurandir estava perto dela e segurava o braço de uma mulher, que ainda tinha na mão a macana afiada.

 

Araci conheceu a virgem araguaia pela faixa de algodão entretecida de penas, que lhe apertava a curva da perna; e adivinhou que era Jandira, a noiva do guerreiro.

 

- Filha de Majé, tua mão quis matar a virgem que Jurandir escolheu para esposa. Tu vais morrer.

 

- Desde que Ubirajara abandonou Jandira, ela começou a morrer, como a baunilha que o vento arranca da árvore. Acaba de matá-la; para que sua alma te acompanhe de dia na sombra das florestas e te fale de noite na voz dos sonhos.

 

- A virgem araguaia ameaçou a vida de Araci; ela lhe pertence; disse a filha de Itaquê.

 

Jurandir cortou na floresta uma comprida rama de imbé e atou as mãos de Jandira.

 

- Jandira é tua escrava. Não lhe dês a liberdade. Ela tem a astúcia da serpente e seu veneno.

 

- Eu era a cobra-d'água, amiga do guerreiro, que habita sua cabana e a guarda contra o inimigo. Quem foi que me fez a cascavel venenosa, que traz nos lábios o sorriso da morte?

 

Jurandir não respondeu. Nesse momento ele teve saudade de sue cabana e lembrou-se do tempo em que, jovem caçador, seguia na floresta a formosa virgem araguaia.

 

***

 





 

As duas virgens ficaram sós no claro da floresta.

 

Já o rumor dos passos de Jurandir se apagara ao longe e ainda tinham ambas os olhos cativos uma da outra.

 

Jandira pensou que ela não podia dar a Ubirajara a formosura da filha de Itaquê. Araci receou que o amor do guerreiro se voltasse outra vez para a linda virgem araguaia.

 

A filha de Majé preparou-se para morrer à mão de sua rival, mas ela preferia a morte ao suplício de contemplar sua beleza.

 

Araci, a estrela do dia, cantou:

 

- O amor do guerreiro é a alegria da virgem; quando ele foge, a virgem fica triste como a várzea que perdeu sua relva.

 

"Por isso Jandira está triste; o amor do guerreiro fugiu dela; e a deixou solitária como a nambu, a quem o companheiro abandonou.

 

"Mas o amor do guerreiro é como o orvalho da noite. Quando o sol queima a várzea, ele desce do céu para cobri-la de verdura e de flores.

 

"Araci está alegre; porque o amor do guerreiro voltou-se para ela; e Jurandir vai fazê-la companheira de sua glória e mãe de seus filhos.

 

"Quando a esposa de Jurandir não tiver mais beleza para dar a seu guerreiro, ela consentirá que Jandira durma em sua rede.

 

"E o orvalho da noite descerá do céu para cobrir a várzea de verdura e de flores. E Jandira achará outra vez seu sorriso de mel."

 

Assim cantou Araci, a estrela do dia; e a virgem araguaia respondeu:

 

- A árvore que morreu não sofre quando o fogo a queima. Jandira prefere a morte à vergonha de ser tua serva e à tristeza de ver a cada instante a formosura da estrangeira que roubou seu amor.

 

"Araci, a estrela do dia, é mais bela do que Jandira, mas não sabe amar o guerreiro, que a escolheu para mãe de seus filhos.

 

"Nunca Jandira ofereceria sua rede de esposa (58) a outra mulher; e aquela que recebesse o amor de seu guerreiro morreria por sua mão.

 

"Ela amaria seu esposo tanto que sua graça nunca se retirasse dela; pois saberia morrer quando não tivesse mais beleza para dar-lhe.

 

"A nação araguaia nunca levanta a taba do vale onde acampou, senão quando a terra já não pode dar-lhe mais frutos.

 

"Assim é o guerreiro. Ele não retira seu amor da esposa que habita, senão quando ela já não sabe alegrar sua alma."

 

Tornou a virgem tocantim:

 

- A cajazeira depois que dá seu fruto perde a folha; o guerreiro busca a sombra de outra árvore para repousar.

 

"Mas vem a lua das águas e a cajazeira outra vez se cobre de folhas; sua sombra é doce ao guerreiro.

 

"A esposa é como a cajazeira. Quando o guerreiro não acha alegria em seus braços, ela sofre que busque outra sombra e espera que lhe volte a flor para chamá-lo de novo ao seio.

 

"Araci ama seu guerreiro, como Jacamim ama Itaquê. A cabana do grande chefe dos tocantins está cheia de servas; mas seu amor nunca abandonou a esposa.

 

"As servas deram a Itaquê muitos filhos; mas os filhos da velhice, foi só Jacamim quem os deu ao grande chefe; porque o primeiro amor do guerreiro não morre nunca.

 

"Ele é como a grama que nunca mais deixa a terra onde nasceu: podem arrancá-la que brota sempre.

 

"Araci quer apagar a tristeza de tua alma e beber o teu sorriso de mel, para que o esposo ache mais doces seus lábios, quando os provar.

 

"Tu serás irmã de Araci e lhe darás um filho de Jurandir, tão valente, como os que seu amor há de gerar no seio da esposa."

 

Jandira afastou os olhos da virgem dos tocantins, para desviar dela sua ira.

 

- Tua palavra dói como o espinho da juçara, que tem o coco mais doce que o mel.

 

"As flechas do teu arco não matam mais do que os sorrisos que o amor do guerreiro derrama em teu rosto, estrela do dia.

 

"Ubirajara deixou-me por ti; mas foi a Jandira que ele primeiro escolheu para esposa, quando ainda era jovem caçador.

 

"Nos campos alegres, onde vão os guerreiros quando morrem, ele me chamará; e o guanumbi virá buscar a minha alma no seio da flor do manacá para levá-la a seu amor.

 

"Mata-me ou deixa que eu morra para não ver mais tua beleza e não ouvir o canto de tua alegria. "

 

Araci caminhou para Jandira e desatou-lhe os pulsos.

 

- O amor do guerreiro não pertence à mulher que seus olhos primeiro viram; mas àquela que ele escolheu.

 

"Apanha teu arco; e morra aquela que não souber defender seu amor e merecer o esposo. "

 

Araci disse, e tirou da uiraçaba uma seta. Jandira ficou imóvel, com os pulsos cruzados, como se ainda estivessem presos:

 

- A vontade de Ubirajara atou os braços de Jandira; ela rejeita a liberdade dada por ti. Araci pode ser preferida; porém, não será mais generosa do que a filha de Majé.

 

O COMBATE NUPCIAL(59)

 





 

Chegou o dia, em que os noivos de Araci deviam disputar a posse da formosa virgem.

 

Era a hora em que o sol transpondo a crista da montanha, estende pelo vale sua araçóia d'ouro.

 

A grande nação tocantim cerca a vasta campina. No centro estão os anciões, que formam o grande carbeto.

 

Em frente aparece Araci, a estrela do dia, que há de ser o prêmio da constância e fortaleza do mais destro guerreiro.

 

Jacamim acompanha a filha; nesse momento remoça com a lembrança do dia em que Itaquê a conquistou, lutando com os mais feros mancebos tocantins.

 

De um e outro lado seguem pela ordem da idade os moacaras. Cada um cerca-se da esposa, das servas e das filhas, que vieram para assistir ao combate.

 

É a única das festas guerreiras, em que o rito de Tupã consente a presença das mulheres, porque trata-se de sua glória.

 

Contemplando o esforço heróico dos mais nobres guerreiros para conquistar a formosura de uma virgem, as outras virgens aprendem a prezar a castidade, e as esposas se ufanam de guardar a fé no primeiro amor.

 

Itaquê, o grande chefe dos tocantins, preside ao combate, orgulhoso pela valente nação que dirige, como pela formosa virgem de que é pai.

 

Quando seus olhos admiram a multidão de guerreiros, servos do amor de Araci, que se preparam a disputar a esposa, o grande chefe ergue a fronte soberba como o velho ipê da floresta coroado de flores.

 

Os noivos se distinguem dos outros guerreiros pelo bracelete de contas verdes, que o guerreiro cinge ao pulso da esposa, quando rompe a liga da virgindade.

 

Lá caminha Pirajá, o grande pescador, senhor dos peixes do rio, a quem obedece o manati e o golfinho.

 

Junto dele ergue-se Uiraçu, que tomou este nome do valente guerreiro dos ares, pelo ímpeto do assalto.

 

Vem depois Araribóia, a grande serpente das lagoas, Cauatá, o corredor das florestas, Cori, o altivo pinheiro, e tantos outros, ainda mancebos, e já guerreiros de fama.

 

Entre todos, porém, assoma Jurandir. Sua fronte passa por cima da cabeça dos outros guerreiros, como o sol quando se ergue entre as cristas da serrania.

 

Os músicos fizeram retroar os borés, anunciando o começo da festa; e os servos do amor se estenderam em linha pelo meio da campina.

 

Então os nhengaçaras levantaram o canto nupcial:

 

"A esposa é a alegria e a força do guerreiro. Ela acende em suas veias um fogo mais generoso que o do cauim, e prepara para seu corpo o repouso da cabana.

 

"Por isso, o primeiro desejo do mancebo, quando ganha nome de guerra, é conquistar uma esposa.

 

"Não basta ser valente guerreiro para merecer a virgem formosa, filha de um grande chefe; é preciso a paciência para sofrer e a perseverança no trabalho.

 

"Araci, a estrela do dia, filha de Itaquê, será a alegria e a glória do mais forte e do mais valente.

 

"Os filhos que ela gerar em seu seio, onde corre o sangue do grande chefe, serão os maiores guerreiros das nações."

 

***

 

 

 

Itaquê deu o sinal; o combate começou.

 

Pirajá foi o primeiro que saiu a campo, e clamou esgrimindo o tacape:

 

- Araci, estrela do dia, tu serás esposa do guerreiro Pirajá, que te vai conquistar pela força de seu braço.

 

Avançou Uiraçu, e disse:

 

- A virgem formosa ama ao guerreiro Uiraçu e há de pertencer-lhe.

 

A noiva cantou:

 

- Araci ama o mais forte e mais valente. Ela pertencerá ao vencedor, que vencer a bravura dos outros guerreiros, como venceu a vontade da esposa.

 

A voz maviosa da virgem afagou a esperança de todos os campeões; mas seus olhos ternos só viam o nobre semblante de Jurandir, o escolhido de sua alma.

 

Os dois guerreiros travaram a pugna; os tacapes girando nos ares encontravam-se como dois madeiros arrojados pelo remoinho da cachoeira.

 

Afinal Pirajá, ameaçado pelo bote do adversário, recuou um passo do lugar em que se postara. Pela lei do combate estava vencido, e teve de deixar o campo.

 

Araribóia tomou o seu lugar; e o combate prosseguiu com vária fortuna, até Cori que, expelindo o vencedor, manteve-se firme contra todos que vieram disputá-lo.

 

Faltava Jurandir. O estrangeiro avançou gravemente, como convinha a um grande guerreiro da nação araguaia.

 

Ele queria dar ao vencedor de tantos combates, o tempo preciso para descansar.

 

A mão do guerreiro arrastava pelo chão o tacape, que desdenhava erguer para um combate sem glória.

 

Quando Jurandir achou-se em face do vencedor, levantou a voz e disse:

 

- Para merecer Araci, a estrela do dia, Jurandir queria vencer a cem guerreiros, e não, combater um guerreiro fatigado.

 

"Tu empunhas um tacape; toma outro, habituado a vencer; ele restituirá a teu braço a força que perdeu. Basta a Jurandir esta mão, para te arrebatar todas as tuas vitórias. "

 

Disse, e arremessou a arma aos pés do adversário.

 

Cori, pensando que seu rival o atacava, desfechou-lhe o golpe. Mas Jurandir aparou-o na mão firme e, arrebatando o tacape que o ameaçava, arrancou o guerreiro do chão.

 

Assim o pinheiro que o tufão arrebata, antes de partir o tronco, desprende a raiz da terra, onde nada o abalava.

 

Jurandir ficou só no campo. Mas todos os noivos se haviam mostrado valentes guerreiros; talvez nas outras provas saíssem vencedores.

 

***

 





 

Os músicos tocaram os borés; e os jovens caçadores trouxeram para o meio do campo a figura da noiva (60).

 

Era um grosso toro de madeira, no qual a mão destra de um pajé entalhara, com o dente da cutia, a cabeça de uma mulher.

 

Três caçadores vergavam com o peso da carga e foram precisos dez para trazê-lo desde a cabana do pajé até o campo, onde ficou semelhante a uma mulher sentada.

 

Na véspera, o pajé burnira de novo com a folha da sambaiba o toro de madeira, e o esfregara com a banha do teiú, para que ele escorregasse da mão do guerreiro como o lagarto da mão do caçador.

 

Depois os mancebos guerreiros espalharam pelo campo, troncos de árvores cortadas com as ramas e as folhas; e fincaram cercas de estacas entre os barrancos da várzea que ia morrer à margem do rio.

 

Itaquê deu o sinal; e os guerreiros começaram a nova prova, mais difícil que a primeira.

 

Era preciso que o guerreiro, à disparada, levantasse do chão, sem parar, o toro de madeira; e se defendesse dos rivais que o assaltavam para tomá-lo.

 

Esse jogo era o emblema da agilidade e robustez, que o marido devia possuir, para disputar a esposa e protegê-la contra os que ousassem desejá-la.

 

Na primeira corrida foi Jurandir quem mais rápido chegou. Como o condor que, rebatendo o vôo, leva nas garras a tartaruga adormecida; assim o veloz guerreiro suspendeu a figura da esposa e com ela arremessou-se pela campina.

 

Os outros o seguiam ardendo em ímpetos de roubar-lhe a presa. Na planície aberta seria vão intento porque nenhum corria como o estrangeiro.

 

Mas Jurandir achava diante de si, para tolher-lhe o passo, as árvores derrubadas, os barrancos profundos e outros obstáculos de propósito acumulados.

 

Não hesitou, porém, o destemido mancebo. Saltou as corcovas, galgou as caiçaras, e subiu pelos galhos que estrepavam o chão.

 

Uma vez os guerreiros aproximaram-se tanto, que Jurandir sentiu nos cabelos o sopro da respiração ofegante. Em frente, erguia-se a alta estacada.

 

Se tentasse subir, carregado como estava, os guerreiros com certeza o alcançariam a tempo de arrancar-lhe a presa.

 

Então arremessou pelos ares o toro de madeira, como se fosse o tacape de um jovem caçador; e seguiu após.

 

Sempre vencedor dos assaltos dos rivais, Jurandir percorreu a vasta campina, e foi colocar a figura da esposa no meio do carbeto dos anciões.

 

Ali era o termo da correria. O guerreiro que chegava a esse ponto com a sua carga, saía triunfante da prova.

 

Ele mostrava como arrebataria a esposa do meio dos inimigos e a defenderia contra seus ataques até recolhê-la em um asilo seguro.

 

De todos os guerreiros só Cori e Uiraçu conseguiram ganhar a prova; mas nenhum com a galhardia de Jurandir

 

Cori por vezes foi alcançado, e só à confusão dos outros deveu escapar-se. Uiraçu recuperou a presa já perdida, porque Pirajá, que havia empolgado, falseou na corrida e tombou.

 

Os três vencedores entraram de novo em campo para decidir entre si. O triunfo não se demorou. Jurandir o arrebatou, como o gavião arrebata a presa que disputam duas serpes.

 

Soaram os borés; e ao som do canto de triunfo entoado pelos nhengaçaras, os chefes e os guerreiros saudaram o vencedor dos vencedores.
 
 

 

***

 





 

Quando voltou o silêncio, Ogib, o grande pajé dos tocantins, estava em pé no meio do campo.

 

Junto dele, uma das velhas mães dos guerreiros segurava o camucim da constância (61), que tinha o bojo pintado de vermelho.

 

O pajé disse:

 

- Não basta que o guerreiro seja forte e valente, para merecer a esposa.

 

"É preciso que tenha a constância do varão, e não se perturbe com o sofrimento.

 

"É preciso que ele tenha a paciência do tatu, e suporte sereno as mortificações das mulheres, e as importunações das crianças.

 

"O guerreiro que não tem constância e paciência, depressa gasta suas forças.

 

"O rio que se derrama pela várzea, nunca verá suas margens cobertas de grandes florestas.

 

"Assim é o guerreiro que não sabe sofrer, e derrama sua alma em lamentações.

 

"Nunca ele será pai de uma geração forte e gloriosa, nem verá sua cabana povoar-se dos guerreiros de seu sangue.

 

"Se queres merecer a filha de Itaquê, mostra, Jurandir, que és varão ainda maior do que o famoso guerreiro que todos admiram."

 

O grande pajé levantou o tampo do camucim, e descobriu uma abertura, bastante para caber o punho do mais robusto guerreiro.

 

Jurandir meteu a mão no vaso. O semblante sempre grave do guerreiro cobriu-se de um sorriso doce como da luz a alvorada; e seus olhos, mais contentes que dois saís, pousaram no rosto de Araci.

 

O camucim da constância continha um formigueiro de saúvas, que o pajé havia fechado ali na última lua.

 

Açuladas pela fome de tantos dias, as formigas vorazes se prepararam para dilacerar a primeira vítima que lhes caísse nas garras.

 

A dentada da saúva, que anda solta no campo, dói como uma brasa; quando são muitas e com fome, queimam como a fogueira.

 

Todas as vistas se fitaram no semblante do guerreiro para espreitar-lhe o mínimo gesto de sofrimento.

 

Mas Jurandir sorria; e seus lábios ternos soltaram o canto do amor. De propósito o guerreiro adoçou a voz, para não parecer que disfarçava o gemido com o rumor do grito guerreiro.

 

Assim cantou ele:

 

- A dor é que fortalece o varão, assim como o fogo é que enrija o tronco da craúba, da qual o guerreiro fabrica o arco e o tacape.

 

"A juçara tem setas agudas: mas Araci quando atravessa a floresta, colhe o coco de mel, embora a palmeira lhe espinhe a mão.

 

"O ferrão da saúva dói mais do que o espinho da juçara; mas Jurandir acha o mel dos lábios de Araci mais doce do que o coco da palmeira.

 

"Quando Jurandir era jovem caçador, gostava de tirar a cutia da toca, embora o seu dente agudo lhe sarjasse a carne.

 

"O ferrão da saúva não dói como o dente afiado; e Jurandir sabe que o pêlo dourado da cutia, não é tão macio como o colo de Araci.

 

"Jurandir despreza a dor. Seus olhos estão bebendo o sorriso da virgem, mais suave que o leite do sapoti. Sua mão está sentindo o roçar dos cabelos da virgem formosa."

 

Os anciões deram sinal para concluir a prova da constância; mas o guerreiro continuou o seu canto de amor.

 

- A cumari arde no lábio do guerreiro; mas torna mais gostosa a carne do veado assado no moquém.

 

"O cauim queima a boca do guerreiro; mas derrama a alegria dentro d'alma.

 

"A saúva arde como a cumari e queima como o cauim; porém torna os beijos de Araci mais saborosos: e o amor de Jurandir espuma como o vinho generoso.

 

"Araci há de sorrir de felicidade, quando o filho de seu guerreiro lhe rasgar o seio.

 

"Jurandir não tem corpo para sofrer, quando o sorriso de Araci lhe enche a alma de amor."

 

Foi preciso quebrar o camucim para que o guerreiro pudesse retirar a mão, de inflamada que ficara.

 

O grande pajé esfregou na pele vermelha o suco de uma erva dele conhecida; e logo desapareceu a inchação.

 

***

 





 

Faltava a última prova, chamada a prova da virgem.

 

As outras serviam para conhecer o valor, a destreza e robustez do guerreiro, assim como a força de seu amor.

 

Nesta era que a virgem podia mostrar seu agrado pelo vencedor; ou livrar-se de um esposo, que não soubera ganhar-lhe o afeto.

 

Os cantores disseram:

 

"Tupã deu asas à nambu para que ela escape às garras do carcará.

 

"Tupã deu ligeireza à virgem, para que ela fuja do guerreiro que não quer por esposo.

 

"Mas a nambu, quando ouve o canto do companheiro, espera que ele chegue para fabricar,seu ninho.

 

"A virgem, quando segue o guerreiro que ela prefere, pensa na cabana do esposo e corre devagar para chegar depressa."

 

Araci deixou a mãe, e avançou até o meio do campo.

 

O grande pajé colocou Jurandir na distância de uma muçurana, que cinge dez vezes a cintura do guerreiro.

 

Estrela do dia lançou para as espáduas as longas tranças negras que voaram ao sopro da brisa.

 

Arqueou os braços mimosos, vestidos com franjas de penas, como as asas brilhantes do arirama, e quando soou o sinal, desferiu a corrida.

 

Jurandir seguiu-a. Ele conhecia a velocidade do pé gentil de Araci, que zombava do salto do jaguar.

 

Nem que pudesse alcançá-la, o guerreiro o tentaria; depois de vencedor, queria dever a esposa ao amor dela e não a seu esforço.

 

Disputaria Araci não só a todos os guerreiros das nações, como a todas as nações das florestas; só à vontade da própria virgem não a disputaria, pois a queria rendida e não vencida.

 

Mas sua glória mandava que ele, o chefe de uma grande nação, se mostrasse digno da formosa virgem, que o aceitasse por esposo.

 

Araci voava pela campina. Às vezes trançava a corrida como o colibri que adeja de flor em flor, outras vezes fugia mais rápida do que a seta emplumada de seu arco.

 

Quando mostrou a todos que Jurandir não a alcançaria nunca, se ela quisesse fugir-lhe, reclinou a cabeça para esconder o rubor.

 

Jurandir abriu os braços e recebeu a esposa que se entregava a seu amor.

 

O guerreiro suspendeu a virgem formosa ao colo; e levou-a à cabana do amor que ele construira à margem do rio.

 

***

 





 

As ramas de jasmineiro e do craviri vestiam a cabana e matizavam o chão de flores.

 

Araci foi buscar a rede nupcial, que ela tecera de penas de tucano e arara; e Jurandir conduziu os utensílios da cabana.

 

Então o estrangeiro sentou-se com a virgem no terreiro e, antes de passar a soleira da porta, revelou a Araci quem era o guerreiro que ela aceitara por esposo.

 

- Araci pertence ao grande chefe da nação araguaia. Ela teve a glória de vencer ao maior guerreiro das florestas. Ela será mãe dos filhos de Ubirajara; e terá por servas as virgens mais belas, filhas dos chefes poderosos.

 

"A palmeira é formosa quando se cobre de flores e o vento agita as suas folhas verdes que murmuram; mais formosa, porém, é quando as flores se mudam em frutos, e ela se enfeita com seus cachos vermelhos.

 

"Araci também ficará mais formosa quando de seu sorriso saírem os frutos do amor: e quando o leite encher seus peitos mimosos, para que ela suspenda ao colo os filhos de Ubirajara."

 

Araci ouviu as palavras do guerreiro, palpitante como a corça; e ornou a fronte do esposo com o cocar de plumas vermelhas, que tecera em segredo.

 

Depois, sentindo os olhos de Ubirajara, que bebiam a sua formosura, ela vestiu o aimará mais alvo do que a pena da garça.

 

A túnica de algodão, entretecida de penas de beija-flor, desce das espáduas até a curva da perna, cingida pela liga da virgindade.

 

Quando Araci passava entre os guerreiros que admiravam sua beleza, ela não corava, porque sua castidade a vestia, como a flor à sapucaia.

 

Mas agora, em presença do guerreiro a quem ama e para quem guardou sua virgindade, tem pejo, e esconde sua formosura às vistas de Ubirajara.

 

- Os olhos do esposo são como o sol, disse o guerreiro; eles queimam a flor do corpo de Araci.

 

"Araci tem medo que os olhos do esposo não a achem digna de seu amor; e vestiu seus enfeites.

 

"Araci queria ser como a juriti, e ter no corpo uma penugem macia, que só a deixasse ver em sua formosura.

 

"Foi por isso que tua esposa se cobriu com o seu aimará. Os olhos de Ubirajara não lhe queimarão mais a flor de seu corpo."

 

O guerreiro respondeu:

 

- A flor do igapê (62) é mais formosa quando abre, e se tinge de vermelho aos beijos do sol, do que fechada em botão e coberta de folhas verdes.

 

Ubirajara tomou nos braços a esposa e pôs o pé na soleira da porta.

 

Nesse momento soou um clamor; chegaram os guerreiros que vinham chamar o vencedor à presença de Itaquê.

 

O carbeto dos anciões tinha decidido que o vencedor antes de receber a esposa, devia declarar quem era; pois fora recebido como estrangeiro, e ninguém na taba o conhecia.

 

A GUERRA

 





 

Itaquê esperava sentado na cabana e cercado do carbeto dos anciões. Jurandir entrou; Araci ficou na porta, orgulhosa do esposo que a conquistara e da admiração que ele ia inspirar aos guerreiros da sua nação.

 

Itaquê falou:

 

- Quando o estrangeiro chegou à cabana de Itaquê, ninguém lhe perguntou quem era e donde vinha. O hóspede é senhor.

 

"Mas agora o estrangeiro saiu vencedor do combate do casamento e conquistou uma esposa na taba dos tocantins.

 

"É preciso que ele se faça conhecer; porque a filha de Itaquê, o pai da nação dos tocantins, jamais entrará como esposa na taba, onde habite quem tenha ofendido a um só de seus guerreiros."

 

O estrangeiro disse:

 

- Morubixaba, abarés, moacaras, e guerreiros da valente nação tocantim, vós tendes presente o chefe dos chefes da grande nação araguaia.

 

"Eu sou Ubirajara, o senhor da lança; e o maior guerreiro depois do grande Camacã, cujo sangue me gerou. Se quereis saber por que tomei este nome, ouvi a minha maranduba de guerra."

 

Ubirajara contou o seu encontro com Pojucã; o combate em que o venccu e a festa do triunfo, até o momento em que deixou a taba dos araguaias.

 

Terminou dizendo que no seguinte sol partiria, para assistir ao combate da morte, como prometera ao prisioneiro.

 

Ninguém interrompeu a maranduba de guerra. Ubirajara ouviu um gemido; mas não soube que rompera do seio de Araci.

 

Itaquê arquejou como o rio ao peso da borrasca.

 

- Tu és Ubirajara, senhor da lança. Eu sou Itaquê, pai de Pojucã. Tenho em face o matador de meu filho; mas ele é meu hóspede!

 

"Chefe dos araguaias, tu és um jovem guerreiro; pergunta a Camacã que te gerou, qual deve ser a dor do pai, que não pode vingar a morte do filho. "

 

O grande chefe vergou a cabeça ao peito, como o cedro altaneiro batido pelo tufão.

 

Pojucã tinha sua taba mais longe, na outra margem do rio. Ele partira na última lua para rastejar a marcha dos tapuias; e voltava senhor do caminho da guerra quando encontrou Ubirajara.

 

Seu pai e os guerreiros de sua taba pensavam que ele buscava na floresta o caminho da guerra. Mal sabiam que a essa hora esperava prisioneiro na taba dos araguaias o combate da morte.

 

Anciões e guerreiros emudeceram. Todos respeitavam a dor do pai, e não ousavam perturbá-la.

 

Jacamim, a mãe de Pojucã, aproximara-se. O grande chefe ouviu seu gemido.

 

- A esposa de Itaquê não chora na presença do matador de seu filho.

 

À voz do esposo, a mãe teve força para esconder no seio sua tristeza e mostrar-se digna do grande chefe dos tocantins.

 

Ubirajara falou:

 

- A vingança é a glória do guerreiro; Tupã a deu aos valentes. Ubirajara venccu Pojucã em combate leal e aceita o desafio de Itaquê e de todos os chefes tocantins.

 

- Tu és meu hóspede; enquanto Itaquê brandir o grande arco da nação tocantim, ninguém ofenderá o amigo de Tupã na taba de seus guerreiros.

 

Dizendo assim, o grande chefe ergueu-se e trocou com o estrangeiro a fumaça da despedida.

 

- Parte. O sol que viu o estrangeiro na cabana hospedeira o acompanhará amigo; mas com a sombra da noite, mil guerreiros, mais velozes que o nandu, partirão para levar-te a morte.

 

Ubirajara tomou suas armas e disse:

 

- O hóspede vai deixar tua cabana, chefe dos tocantins; tu verás chegar o guerreiro inimigo.
 
 

 

***

 





 

Itaquê seguiu o estrangeiro até o terreiro; em torno dele se reuniram os abarés, os moacaras e os guerreiros para assistirem à partida.

 

Ubirajara caminhou com passo lento e grave até o fim da taba.

 

Chegado ali, tornou rápido à entrada da cabana e retrocedeu, apagando no chão o vestígio de seus passos.

 

A nação tocantim o observava imóvel.

 

Por fim o estrangeiro postou-se no centro da ocara e com o formidável tacape vibrou no largo escudo um golpe, que repercutiu pela taba como o estrondo da montanha.

 

- O hóspede passou o limiar da cabana que o tinha acolhido, e apagou seu rastro na taba dos tocantins.

 

"Quem está aqui é um guerreiro armado, que pisa senhor a taba de seus inimigos.

 

"Itaquê, morubixaba dos tocantins, Ubirajara, o senhor da lança, grande chefe dos araguaias, te envia a guerra na ponta de sua seta."

 

Quando o guerreiro acabou de proferir estas palavras, Itaquê levantou os olhos e viu cravada na figura do tucano, que era o símbolo da nação, a seta de Ubirajara.

 

Mil arcos se ergueram, mil tacapes brandiram. A voz possante de Itaquê abateu as armas de seus guerreiros.

 

Disse o morubixaba:

 

- A lei da hospitalidade é sagrada. A cólera do estrangeiro não deve perturbar a serenidade do varão tocantim.

 

Depois voltou-se para o inimigo.

 

- Ubirajara, grande chefe dos araguaias, Itaquê, o pai da poderosa nação tocantim, aceita a guerra que tu lhe enviaste. Recebe em teu escudo o penhor do combate.

 

A corda do grande arco da nação tocantim brandiu, e a seta de Itaquê mordeu o escudo de Ubirajara.

 

- Vai buscar teus guerreiros e nós combateremos à frente das nações.

 

- Ubirajara combaterá até que lhe restituas a esposa; assim como ele a conquistou a seus rivais, saberá conquistá-la a ti e à tua nação.

 

O chefe araguaia partiu. No seio da floresta encontrou Araci que o esperava.

 

A formosa virgem fora à cabana do casamento buscar a rede nupcial e preparar-se para acompanhar o esposo.

 

- Ubirajara parte; mas antes de cinco sóis ele estará aqui para te conquistar à tua nação.

 

- A esposa te acompanha. Teu braço valente já a conquistou; e ela entregou-se a seu senhor. Araci te pertence; deves levá-la.

 

A virgem tocantim desejava seguir Ubirajara à taba dos araguaias. Falava em sua alma a ternura da esposa e da irmã.

 

Partindo, ela unia-se para sempre a seu guerreiro e esperava que o amor o moveria a salvar Pojucã.

 

Ubirajara pensou e disse:

 

- Se Ubirajara tivesse rompido a liga de Araci, ela era sua esposa; e ninguém a arrebataria de seus braços. Mas a virgem tocantim não pode abandonar a cabana onde nasceu, sem a vontade de seu pai.

 

Araci suspirou:

 

- Ubirajara vai deixar a lembrança de Araci nos campos dos tocantins. Jandira o espera na taba dos araguaias e lhe guarda o seu sorriso de mel.

 

- A luz de teus olhos, Araci, estrela do dia, foi buscar Ubirajara na taba dos seus, onde ressoavam os cantos de seu triunfo, e o trouxe à tua cabana.

 

"Quando ele partiu encontrou Jandira, e para que a filha de Majé não o acompanhasse, a deu a Pojucã como esposa do túmulo."

 

- O goaná do lago voa longe, longe, para banhar-se nas águas da chuva que alagaram a várzea; mas logo volta ao seu ninho, e não se lembra mais da moita onde dormiu.

 

- Ubirajara é um guerreiro, ele não aprende com o goaná do lago, que foge do perigo, mas com o gavião, grande chefe dos guerreiros do ar, que nunca mais abandona o rochedo onde assentou a sua oca.

 

- Se Ubirajara amasse a esposa, também não a abandonaria. Os braços de Araci já cingiram o colo de seu guerreiro. O tronco não desprende de si a baunilha que se entrelaçou em seus galhos.

 

Ubirajara calcou a mão sobre a cabeça de Araci:

 

- Itaquê respeitou a lei da hospitalidade no corpo de Ubirajara; Ubirajara não deixará a traição na terra hospedeira.

 

"Araci não deve querer para esposo um guerreiro menos generoso do que seu pai."

 

A virgem emudeccu. Ela sabia que a honra é a primeira lei do guerreiro.

 

Antes de partir, o chefe consolou a esposa:

 

- Ubirajara vai pedir ao gavião suas asas para voltar ao seio de Araci. Ele virá à frente de sua nação, conduzido pela luz de teus olhos.

 

"As outras mulheres são o prêmio de um combate entre os servos de seu amor. Araci terá essa glória; que ela será o prêmio da maior guerra que já viram as florestas."

 

O chefe araguaia pôs as mãos nos ombros de Araci; duas vezes uniu o seu ao rosto dela, por uma e outra face, para exprimir que nada os podia separar.

 

Quando o guerreiro desapareccu na floresta, Araci caminhou para a cabana do esposo, que ficara triste e solitária.

 

A virgem fechou a porta; sentou-se na soleira e cantou sua tristeza.
 
 

 

***

 





 

Dois sóis tinham passado; e viera a noite.

 

A última estrela se apagava no céu, quando Ubirajara pisou os campos dos araguaias.

 

Sua mão robusta, vibrando a clava, feriu o trocano. A voz da nação araguaia derramou-se ao longe pelo vale, como o estrondo da montanha que arrebenta.

 

Com o primeiro raio do sol que subia o píncaro da serra, chegaram à grande taba os chefes das cem tabas araguaias, com todos os seus guerreiros, convocados à ocara da nação.

 

Ubirajara mandou que Pojucã, o prisioneiro, viesse à sua presença:

 

- Vê o mar de meus guerreiros que enche a terra, como as águas do grande rio quando alaga a várzea. Eles esperam o aceno de Ubirajara para inundarem teus campos.

 

"A nação tocantim carece neste momento do braço de seus maiores guerreiros; vai levar-lhe o socorro de teu valor, para que se aumente a glória de Ubirajara, seu vencedor.

 

"Tu és livre, Pojucã; parte e voa, que a guerra dos araguaias te segue os passos."

 

O semblante do filho de Itaquê ficou sombrio:

 

- Pojucã é um chefe ilustre; não merece esta desonra. Tu lhe prometeste a morte dos bravos. Ele exige o combate.

 

O chefe araguaia contou a maranduba da hospitalidade:

 

- Ubirajara não sabia que Pojucã era filho de Itaquê; pois ele nunca pisaria como hóspede a cabana de um guerreiro, a quem tivesse decepado um filho.

 

"É preciso que recuperes a liberdade para que não se diga que Ubirajara surpreendeu a hospitalidade do grande chefe dos tocantins."

 

Pojucã não respondeu. Ele reconhecera que a honra do seu vencedor exigia sua volta à taba dos seus.

 

- Parte. Nós combateremos à frente das nações. Ubirajara pertence a Itaquê; mas depois dele, terás a glória de ser vencido outra vez por este braço.

 

- Ubirajara é um grande chefe e maior guerreiro. Se Tupã não consente que Pojucã seja vencedor, ele não quer maior glória do que a de morrer combatendo Ubirajara.

 

Pojucã foi à cabana de seu vencedor buscar as armas. Ubirajara arrimou-se ao tacape, como o rochedo que se apóia ao tronco do ipê, e meditou.

 

Quando passou o chefe tocantim que voltava à sua taba, Ubirajara levantou a cabeça e disse:

 

- Os olhos de Ubirajara te acompanham; tu és irmão de Araci e vais para junto dela. Dize à estrela do dia que seu esposo está com ela.

 

O conselho dos abarés se reunira para meditar sobre a guerra. O velho Majé, a quem irritava o desaparecimento da filha, reparou que sem o voto do carbeto se convocasse a nação.

 

Veio um mensageiro chamar o grande chefe para o carbeto. Ubirajara chegou. Antes que falasse a voz dos anciões, o guerreiro levantou o arco e disse:

 

- O conselho dos anciões governa a taba e medita nas coisas da paz Toda a nação respeita sua prudência e sabedoria.

 

"Mas enquanto Ubirajara brandir o grande arco dos araguaias, tem a guerra fechada em sua mão.

 

"Quando ele soltar o grito do combate, a voz que falar da paz, emudecerá para sempre, ainda que venha da cabeça do abaré que a lua já embranqueceu.

 

"Quem não quiser assim, venha arrancar da mão de Ubirajara, este arco que ele conquistou por seu valor."

 

Os abarés estremeceram. Mas o carbeto meditou e decidiu que a maior glória e sabedoria da nação era ter o seu grande arco de guerra na mão de um chefe como Ubirajara.

 

Camacã tratou com os anciões acerca da defesa das tabas; e o grande chefe abriu o caminho da guerra.

 

***

 





 

Quando Ubirajara desdobrou sua guerra pela margem do grande rio, ele viu que uma nação tapuia preparava-se para assaltar a taba dos tocantins.

 

O grande chefe tocou a inúbia, cuJa voz chamava o jovem Murinhém (63), primeiro dos cantores araguaias.

 

Correu o nhengaçara à presença do grande chefe, e dele recebeu a mensagem que devia levar ao campo inimigo.

 

Os cantores eram respeitados por todas as nações das florestas como os filhos da alegria; porque serviam de mensageiros entre as nações em guerra.

 

Eles penetravam no campo inimigo, entoando o seu canto de paz; e nenhum guerreiro ousava ofender aquele a quem Tupã concedera a fonte da alegria.

 

Murinhém atravessou rápido a campina e apresentou-se em frente de Canicrã, chefe dos tapuias.

 

- Ubirajara, o senhor da lança, que empunha o arco da poderosa nação araguaia, te manda, a ti, quem quer que sejas, e a todos quantos te obedecem, a sua vontade.

 

O tapuia rugiu; mas seus olhos viam o mar dos guerreiros araguaias que o cercava, e na frente o grande vulto de Ubirajara, semelhante ao rochedo sombrio e imóvel do meio dos borbotões da cachoeira.

 

- Os guerreiros de Canicrã só conhecem a vontade do seu chefe; e Canicrã afronta a cólera de Tupã e das nações que ele gerou. Dize, mensageiro, o que pede Ubirajara ao grande chefe dos tapuias.

 

- Ubirajara te manda que encostes o tacape da guerra. A nação tocantim aceitou a sua flecha de desafio, e ele não consente que ninguém combata seu inimigo, antes de o ter vencido.

 

- Torna e dize ao grande chefe araguaia, que Canicrã veio trazido pela vingança. Pojucã, um dos chefes tocantins, penetrou em sua taba e incendiou a cabana do pajé, que foi devorado pelas chamas.

 

"Ubirajara é um grande chefe; ele que diga se o pai da nação pode sofrer tão dura afronta. Canicrã escutará a voz de sua amizade. "

 

O chefe tapuia tomou uma de suas flechas; arrancou o farpão e deu ao mensageiro a haste emplumada com as asas negras do anum, que era o emblema guerreiro de sua nação.

 

- Toma; entrega ao grande chefe araguaia o penhor da aliança.

 

Murinhém partiu e foi à taba dos tocantins levar igual mensagem. Itaquê escutou o que lhe mandava Ubirajara e respondeu.

 

- Antes que Itaquê trocasse com Ubirajara a seta do desafio, Pojucã tinha levado a guerra à taba dos tapuias.

 

"Canicrã veio trazido pela vingança; e a nação tocantim não pode recusar o combate. Mas Itaquê sabe honrar seu nome: se Ubirajara quer, ele combaterá juntamente os dois inimigos."

 

O mensageiro tornou ao campo dos araguaias com as respostas dos dois chefes. Ubirajara ouviu e meditou.

 

- Escuta a vontade de Ubirajara para levá-la aos inimigos. O grande chefe araguaia não roubará a Canicrã a glória da vingança; ele respeita a honra da nação tapuia, mas rejeita sua aliança. Restitui o penhor que recebeste.

 

"Itaquê pode aceitar o combate que Pojucã foi buscar; Ubirajara não ofende o nome de um guerreiro, ainda mais de um morubixaba, e do pai de Araci.

 

"O chefe dos araguaias não carece de auxílio para triunfar de seus inimigos: deseja que a nação tocantim derrote aos tapuias, para ter ele a glória de vencer ao vencedor.

 

"Se Itaquê não pode repelir os tapuias, Ubirajara toma a si castigar os bárbaros; e depois de varrê-los das florestas, combaterão as duas nações.

 

"Se os tocantins necessitam de aliados para resistir ao ímpeto dos araguaias, Ubirajara espera que Itaquê os chame e que eles venham.

 

"Murinhém falará assim a um e outro chefe; a ambos dirá que a cabana onde estiver Araci fica sob a guarda de Ubirajara; quem nela penetrar como inimigo, sofrerá a morte vil do covarde."

 

O guerreiro deixou a voz do chefe e falou com a voz de esposo:

 

- A Araci levarás o canto de amor de Ubirajara. Tu lhe dirás que arme a rede nupcial e não deixe nossa cabana, enquanto Ubirajara não a for buscar.

 

"Conta-lhe também que o canitar que ela teceu, ainda não deixou a cabeça do seu guerreiro e há de acompanhá-lo sempre. "
 
 

 

A BATALHA

 





 

A um lado da imensa campina move-se a multidão dos guerreiros tocantins, do outro lado, a multidão dos guerreiros tapuias.

 

As duas nações se estendem como dois lagos formados pelas grandes chuvas, que se transformam em rios e atravessam o vale.

 

De um e outro campo levantou-se a pocema guerreira; e os dois povos arremetendo travaram a batalha.

 

Itaquê achou-se em frente de Canicrã. Ambos se buscavam; dez vezes tinham combatido; vencedores ambos, nenhum fora vencido.

 

Enquanto viverem os formidáveis guerreiros, não é possivel quebrar a flecha da paz entre as duas nações.

 

Era preciso que um deles morresse para que o vencedor encostasse o tacape do combate e desse repouso à sua nação para reparar os estragos da guerra.

 

Quando os dois chefes se encontraram, os guerreiros de um e outro campo ficaram imóveis, contemplando o pavoroso combate.

 

Ubirajara de longe, apoiado em seu grande arco, admirava os dois guerreiros e pensava qual não seria o seu orgulho em vencê-los ambos.

 

Durava a peleja o espaço de uma sombra. Em torno dos chefes lastravam o chão os tacapes e escudos que se tinham espedaçado aos golpes de cada um.

 

Imóveis no mesmo lugar, só agitavam a cabeça e os braços; semelhantes a dois condores, que de garras presas aos píncaros do rochedo, se dilaceram com o bico adunco.

 

Um rugido espantoso atroou pela campina, que estremeceu a batalha e rolou pelas profundezas da floresta.

 

Pahã (64), a seta, era o último filho de Canicrã. Ainda curumim, pelejava ao lado do irmão, o guerreiro Crebã, cujo ombro mal alcançava com o braço.

 

Ele tinha nos olhos a vista da gaivota, e nas setas de seu arco, feitas de espinho de ouriço, a velocidade e a certeza do vôo do guanumbi.

 

Quando caçava na floresta, divertia-se em matar as mutucas traspassando-as com suas flechas, que voavam mais rápidas e certeiras que as vespas venenosas.

 

Pahã saltara sobre os ombros do guerreiro Crebã para assistir ao combate. Admirando o valor de Canicrã, teve orgulho e inveja do pai.

 

Itaquê desfechara tão formidável golpe, que o tacape e escudo de Canicrã se espedaçaram em suas mãos, deixando-o à mercê do inimigo.

 

O chefe tocantim arrojou-se, e já sua mão descia sobre a espádua do tapuia para fazê-lo prisioneiro.

 

O arco de Pahã sibilou duas vezes. Os olhos de Itaquê, os olhos do varão forte que nunca umedecera uma lágrima, choraram sangue.

 

As setas do curumim tinham vazado as pupilas do fero guerreiro, cuja vista era raio. Assim a jandaia rói o grelo do prócero coqueiro.

 

Foi então que Itaquê soltou o rugido pavoroso que fez tremer a terra. Mas o grito de espanto soçobrou no peito dos guerreiros e rompeu em um grito de horror.

 

Itaquê estendera os braços, hirtos como duas garras de condor. A mão direita abarcou o penacho e a cabeleira de Canicrã, a esquerda entrou pela boca do tapuia e travou-lhe o queixo.

 

Separaram-se os braços do guerreiro cego, e a cabeça de Canicrã abriu-se como um coco que se fende pelo meio.

 

Agitando no ar o crânio sangrento como um maracá de guerra, Itaquê arrojou-se contra os inimigos, buscando a morte que lhe fugia.

 

Quando o sol entrou, não havia na campina a sombra de um tapuia.

 

O velho herói voltou à cabana conduzido por Pojucã:

 

- Tupã viu que Itaquê não podia ser vencido pela mão dos homens; e quis vencê-lo ele mesmo pela mão de um menino.
 
 

 

***

 





 

Quando Ubirajara viu o êxito do combate, lamentou que dos dois grandes guerreiros não restasse nenhum, para que ele o vencesse.

 

Seus olhos descobriram Pahã que fugia no meio dos destroços de sua nação. Ergueu a mão, mas não chegou a retesar a seta.

 

A águia não persegue a andorinha. Era indigno de um guerreiro, quanto mais de um chefe, empregar seu valor contra um menino.

 

O chefe chamou à sua presença Tubim, um dos jovens caçadores, que tinham acompanhado a guerra para prover o alimento.

 

- Tubim tem as asas da abelha; se ele alcançar o curumim tapuia que eu estou olhando, Ubirajara lhe dará o nome de Abeguar.

 

O jovem caçador seguiu o olhar do chefe e sumiu-se num turbilhão de poeira. Quando os vaga-lumes começaram a luzir no escuro da mata, ele estava de volta ao campo dos araguaias; e trazia o curumim fechado nos braços.

 

Nessa mesma noite, Tubim recebeu o nome de Abeguar, senhor do vôo, em honra da façanha que tinha realizado.

 

Os cantores entoaram seu louvor; e o jovem caçador teve a glória de receber os aplausos dos moacaras de sua nação, e de um chefe como Ubirajara.

 

Ao raiar da manhã, Murinhém foi à taba dos tocantins, acompanhado por vinte guerreiros que conduziam o curumim.

 

Quando chegou em frente à cabana do grande chefe, o cantor viu Itaquê no terreiro, sentado em uma sapopema.

 

O guerreiro fitava os olhos no céu, onde o calor lhe dizia que estava o sol. Mas não encontrava a luz que para sempre o abandonara.

 

Então o velho guerreiro abaixava os olhos para a terra, como se buscasse o lugar do repouso.

 

Quando soaram longe os passos dos estrangeiros, o chefe alongou a fronte para ver pelo ouvido o que os olhos lhe recusavam.

 

Murinhém chegou e disse:

 

- Ubirajara envia a Itaquê o resto da vingança. Este é Pahã, o filho de Canicrã. Ele te roubou a vista; mas não salvou o pai de tua mão terrível. Faze do curumim tapuia um mancebo tocantim; e ele será a luz dos teus olhos e caminhará na frente do grande chefe para abrir-lhe o caminho da guerra.

 

Pahã avançou:

 

- O filho de Canicrã jamais será escravo; nasceu tapuia e tapuia morrerá, como o grande chefe que o gerou. Enquanto o ouriço viver nas florestas, ele roubará seus espinhos para furar os olhos dos tucanos.

 

Itaquê pousou a palma da mão na cabeça do menino:

 

- O curumim que ama seu pai é filho de Itaquê. Tu és livre, Pahã; vai caçar o ouriço. Quando fores um guerreiro, acharás cem mancebos do sangue de Itaquê para castigarem tua audácia.

 

O chefe voltou-se para o cantor.

 

- Tupã tirou a luz dos olhos de Itaquê; mas aumentou a força de seu braço. Ubirajara terá para combatê-lo um inimigo digno de seu valor.

 

Murinhém tornou ao chefe araguaia com esta resposta.

 

***

 





 

Quando partia o cantor, chegaram à cabana de Itaquê os abarés da nação tocantim.

 

Os anciões sentaram-se em torno do guerreiro cego; e bebendo a fumaça da sabedoria, formaram o carbeto.

 

Falou Guaribu:

 

- O grande arco da nação carece de uma mão robusta para brandir sua corda; e de um olho seguro para dirigir sua seta. Itaquê é o maior guerreiro das florestas; seu nome faz tremer aos mais valentes dos inimigos; seu braço fere como o raio. Mas a luz fugiu de seus olhos e ele não pode mais abrir o caminho da guerra.

 

O velho chefe ergueu-se com o passo trôpego. Alcançando o grande arco dos tocantins abraçou-se com ele e falou-lhe.

 

- Quando Itaquê te recebeu da mão do grande Javari, ele pensava que só a morte o separaria de ti, para transmitir-te a um guerreiro de seu sangue. Mas Itaquê ficou na terra, como um tronco levado pela corrente, que não sabe onde vai.

 

Um esguicho de sangue saltou dos buracos, onde o velho tivera os olhos. Era a lágrima que a desgraça lhe deixara.

 

Os abarés meditaram. Guaribu falou de novo:

 

- O grande arco da nação que tu recebeste do grande Javari, teu pai, não te abandonará. Ele fica em tua mão invencível; haverá outro arco na mão do mais valente guerreiro, que abrirá o caminho da guerra. Mas enquanto Itaquê viver, sua voz governará a nação que ele defendeu com seu braço.

 

O semblante do velho chefe cobriu-se de um sorriso, como o negro rochedo sobre o qual desliza um raio de luar.

 

- Pais da sabedoria, abarés, olhai aquele jatobá que se levanta no meio da campina, e que eu só posso ver agora na sombra de minha alma.

 

"Ele tem muitas raízes que o sustentam nos ares, tem muitos galhos que o cercam e estendem ao longe a sua rama. Mas o tronco é um só.

 

"As grossas raízes são os abarés que sustentam o chefe com o seu conselho. Os galhos fortes são os moacaras que cercam o chefe e geram a multidão de guerreiros mais numerosa que as folhas das árvores. O tronco é o chefe da nação; se ele se dividir, o jatobá não subirá às nuvens, nem terá forças para resistir ao tufão.

 

"O lugar de Itaquê é no conselho. O último dente de seu colar de guerra foi o que ele arrancou da boca de Canicrã. Convocai os guerreiros, e o que for mais forte e mais valente empunhe o grande arco da nação."

 

O trocano chamou a nação ao carbeto. Vieram os moacaras, conduzindo suas tribos.

 

O velho Itaquê contava pelos passos os guerreiros que chegavam. O grande arco da nação, que ele segurava direito, parecia um dos esteios da cabana, e tinha a corda tão grossa como a da rede do chefe.

 

Os mais famosos guerreiros tocantins se apresentaram para disputar o grande arco; muitos conseguiram vergá-lo, mas a seta não partiu.

 

Itaquê escutava com o ouvido atento; o som dele conhecido não feriu os ares.

 

- Onde está Pojucã? perguntou o velho chefe.

 

O valente guerreiro do sangue de Itaquê estava de parte, grave e taciturno. Algum motivo o separava do arco-chefe, que ele devia ser o primeiro a disputar.

 

- Teu filho te escuta; respondeu.

 

- Empunha o arco-chefe; se há um guerreiro tocantim que possa conquistá-lo, esse deve ser do sangue de Itaquê.

 

Pojucã recebeu o arco. Fincando nele os pés, o guerreiro arrojou-se para trás como a jibóia quando se enrista para armar o bote.

 

A seta partiu, e foi cravar a cabeça de um chefe tapuia, fincada na estaca, à entrada da taba.

 

Itaquê curvara a cabeça. Ele ouviu brandir a arma; não era, porém, aquele o zunido da corda do arco, quando o vergava sua mão possante.

 

Pojucã depôs o arco-chefe aos pés de Itaquê e disse:

 

- Pojucã mostrou que em suas veias corre o sangue generoso de Itaquê. Mas o grande arco pesa em sua mão. Só há um guerreiro na terra que o possa brandir como Itaquê: e esse não cinge a fronte com o cocar das penas de tucano.

 

- Pojucã negou a Itaquê esta última consolação. O arco invencível do grande Tocantim, que foi o pai da nação, vai sair de sua geração. Tocantim o transmitiu a seu filho Javari, que me gerou; mas eu não soube gerar com seu sangue um guerreiro digno deles.

 

UNIÃO DOS ARCOS

 

Os tapuias voltaram; com eles vinha Agniná à frente de sua nação, para vingar a morte de Canicrã, seu irmão.

 

Era grande a multidão dos guerreiros; e maior a tornavam a sanha da vingança e a fama do chefe que a conduzia.

 

Não eram tantos os tocantins; mas bastaria seu valor para igualá-los, se não lhes faltasse a cabeça, que rege o corpo.

 

A poderosa nação estava como o bando de caitetus que perdeu o pai e desgarra-se pela floresta, correndo sem rumo.

 

Os mais valentes moacaras, chefes das tribos, esperavam pelo grande chefe da nação para abrir-lhes o caminho da guerra.

 

Os abarés meditaram. Eles não podiam inventar um guerreiro capaz de suceder a Itaquê; mas não se resignavam a abater a glória da nação, trocando o arco invencível do grande Tocantim por outro arco mais leve, que Pojucã manejasse.

 

Também Pojucã anunciara que, não podendo brandir o arco de Itaquê, jamais empunharia outro arco-chefe, menos glorioso do que o do grande Tocantim.

 

Abarés, chefes, moacaras, guerreiros, toda a nação se reuniu em torno do herói cego.

 

Daquele que durante tantas luas defendera a nação com a força de seu braço e a protegera com o terror de seu nome, esperavam ainda a salvação.

 

O velho ouviu a voz dos abarés, a voz dos chefes, a voz dos moacaras, a voz dos guerreiros, e disse:

 

- Itaquê ainda pode combater e morrer por sua nação; mas sem a luz do céu, ele não pode mais abrir a seus filhos o caminho da vitória.

 

"O braço de Itaquê defendeu sempre a nação tocantim; quer ela ser defendida agora pela palavra daquele, que não tem mais para dar-lhe senão a experiência de sua velhice?

 

"Pensem os abarés, os chefes, os moacaras e os guerreiros."

 

Guaribu respondeu:

 

- A nação pensou. Fala e todos obedecerão à tua palavra, como obedeciam ao braço de Itaquê.

 

- A voz do coração diz ao neto de Tocantim que a glória da nação que ele gerou não se pode extinguir. O sangue de Itaquê, passando pelo seio de Araci, se unirá a outro sangue generoso para brotar maior e mais ilustre.

 

"Assim a terra onde nasceu uma floresta de acajás, recebe o limo do rio e gera nova floresta mais frondosa que a outra.

 

"Jacamim, chama Araci, a filha de nossa velhice. E vós, abarés, chefes, moacaras e guerreiros, segui-me."

 

O velho herói atravessou a taba guiado por Araci.

 

A nação o seguia em silêncio.

 

Quando o guerreiro cego passava com a mão no ombro da virgem formosa que dirigia o seu passo incerto, os guerreiros lembravam-se do tronco já morto que a rama do maracujá ainda sustenta de pé junto ao penedo.

 

Os cantores iam adiante e entoavam um canto de paz.

 

***

 

Um mensageiro de Itaquê o precedera no campo dos araguaias.

 

Ubirajara, cercado de seus abarés, chefes, moacaras e guerreiros, veio ao encontro do morubixaba dos tocantins.

 

A alma do grande chefe araguaia encheu-se da alegria de ver Araci; mas ele retirou os olhos da esposa, para que o amor não perturbasse a serenidade do varão.

 

- Ubirajara está em face de Itaquê; para combatê-lo, se trouxe a guerra; para abraçá-lo, se trouxe a paz.

 

- Nunca Itaquê pediu a paz ao inimigo que trouxe-lhe a guerra, antes de o vencer; nem teria vivido tanto para cometer essa fraqueza. Ele vem trazer-te a vitória para que tu a repartas com seu povo.

 

O velho herói avançou o passo:

 

- Chefe dos araguaias, tu levaste a guerra à taba dos tocantins para conquistar Araci, a filha de minha velhice.

 

"Por teu heroísmo, e ainda mais pela nobreza com que restituíste a liberdade a Pojucã, tu merecias uma esposa do sangue de Tocantim.

 

"Mas desde que tu ameaçaste tomá-la pela força de teu braço, Itaquê não podia mais conceder-te a filha de sua velhice, senão depois que abatesse teu orgulho.

 

"Ele preparava-se para te combater, e à tua nação; mas fugiu-lhe dos olhos a luz que dirige a seta da guerra; e não há entre seus guerreiros um que possa brandir o arco do grande Tocantim."

 

Quando pronunciou estas palavras, a voz do velho guerreiro soçobrou-lhe no peito:

 

- O arco de Itaquê é como o gavião que perdeu as asas e não pode mais levar a morte ao inimigo. As andorinhas zombam de suas garras.

 

"Empunha o arco de Itaquê, chefe dos araguaias, e tu conquistarás por teu heroísmo uma esposa e uma nação.

 

"À esposa farás mãe de cem guerreiros como Itaquê; e à nação, conservarás a glória que ela conquistou quando o filho de Javari a conduziu à guerra.

 

"Tupã dará a teu braço esta força para que o sangue de Itaquê brote mais vigoroso e os netos de Tocantim dominem as florestas. "

 

Ubirajara sorriu:

 

- Chefe dos tocantins, teus olhos não podem ver o grande arco da nação araguaia; mas pergunta à tua mão se o arco que Camacã brandia invencível e agora empunha Ubirajara, cede ao arco de Itaquê.

 

O velho herói palpou o arco-chefe dos araguaias e vergou-lhe a ponta ao ombro, como se a haste fosse de taquari.

 

Ubirajara travou do arco de Itaquê e desdenhando fincá-lo no chão, elevou-o acima da fronte. A flecha ornada de penas de tucano partiu.

 

O semblante de Itaquê remoçou, ouvindo o zunido que recordava-lhe o tempo de seu vigor. Era assim que ele brandia o arco outrora, quando as luas cresciam aumentando a força de seu braço.

 

O velho inclinou a fronte para escutar o sibilo de sua flecha que talhava o azul do céu. Os cantores não tinham para ele mais doce harmonia do que essa.

 

Ubirajara largou o arco de Itaquê para tomar o arco de Camacã. A flecha araguaia também partiu e foi atravessar nos ares a outra que tornava à terra.

 

As duas setas desceram trespassadas uma pela outra como os braços do guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade

 

Ubirajara apanhou-as no ar.

 

- Este é o emblema da união. Ubirajara fará a nacão tocantim tão poderosa como a nação araguaia. Ambas serão irmãs na glória e formarão uma só, que há de ser a grande nacão de Ubirajara, senhora dos rios, montes e florestas.

 

O chefe dos chefes ordenou que três guerreiros araguaias e três guerreiros tocantins ligassem com o fio do crautá as hastes dos dois arcos.

 

Quando o arco de Camacã e o arco de Itaquê não fizeram mais que um, Ubirajara o empunhou na mão possante e mostrou-o às nações:

 

- Abarés, chefes, moacaras e guerreiros de minhas nações, aqui está o arco de Ubirajara, o chefe dos grandes chefes. Suas flechas são gêmeas, como as duas nações, e voam juntas.

 

Ambas as cordas brandiram a um tempo. A seta araguaia e a seta tocantim partiram de novo como duas águias que par a par remontam às nuvens.

 

Quando calou-se a pocema do triunfo, Ubirajara caminhou para a filha de Itaquê:

 

- Araci, estrela do dia, tu pertences a Ubirajara, que te conquistou pela força de seu braço. Agora que é senhor, ele espera a tua vontade.

 

A formosa virgem rompeu a liga vermelha que lhe cingia a perna e atou-a ao pulso de seu guerreiro.

 

Ubirajara tomou a esposa aos ombros (65) e levou-a à cabana do casamento.

 

O jasmineiro semeava de flores perfumadas a rede do amor.

 

***

 





 

O outro sol rompia, quando os tapuias estenderam pela campina a multidão de seus guerreiros.

 

Na frente assomava Agniná, a montanha dos guerreiros, ainda mais feroz do que o irmão, o terrível Canicrã.

 

De um lado e do outro seguiam-se os chefes, cada um à frente de seus guerreiros.

 

Ubirajara escolheu mil guerreiros araguaias e mil guerreiros tocantins, com que saiu ao encontro dos tapuias.

 

Depois que desdobrou sua batalha pela campina, o chefe dos chefes caminhou só para o inimigo.

 

Quando chegava a meio do campo, os tapuias levantaram a pocema de guerra, que atroou os ares, como o estrépito da cachoeira.

 

Um turbilhão de setas crivou o longo escudo do herói, que ficou semelhante ao grosso tronco de juçara, eriçado de espinhos.

 

Ubirajara embraçou o escudo na altura do ombro, e com o pé brandiu sete vezes a corda do grande arco gêmeo.

 

As setas vermelhas e amarelas subiram direitas ao céu e perderam-se nas nuvens.

 

Quando voltaram, Agniná e os chefes que obedeciam a seu arco, tinham cada um fincado na cabeça o desafio do formidável guerreiro.

 

Enfurecidos mais pelo insulto do que pela dor, arremessaram-se contra o inimigo que os esperava coberto com seu vasto escudo.

 

Agniná era o primeiro na corrida e o primeiro na sanha. Após ele vinham os outros a dois e dois, lutando na rapidez.

 

Quando o esposo de Araci viu que eles se estendiam pela campina, como dois ribeiros que se aproximam para confundir suas águas; o herói empunhou a lança de duas pontas e soltou seu grito de guerra, que era como o bramir do jaguar, senhor da floresta.

 

Seu pé devorou o espaço; e a lança de duas pontas girou em sua mão, como a serpente que enrosca-se nos ares, silvando.

 

Caiu Agniná do primeiro bote; após ele caíram aos dois os chefes tapuias, como caem os juncos talhados pelo dente afiado da capivara.

 

Então o herói soltou seu grito de triunfo, que era como o rugido do vento no deserto:

 

- Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencível que tem por arma uma serpente.

 

"Eu sou Ubirajara, o senhor das nações, o chefe dos chefes, que varre a terra, como o vento do deserto."

 

O herói estendeu a vista pela campina, e não descobriu mais o inimigo, que sumia-se na poeira.

 

Ubirajara lançou-lhe seus guerreiros, que tinham fome de vingança; porém o terror de sua lança dava asas aos fugitivos.

 

Desde esse dia nunca mais um tapuia pisou as margens do grande rio.

 

Ubirajara voltou à cabana, onde o esperava Araci.

 

A esposa despiu as armas de seu guerreiro, enxugou-lhe o corpo com o macio cotão da monguba, e cobriu-o do bálsamo fragrante da embaíba.

 

Encheu depois de generoso cauim a taça vermelha feita do coco da sapucaia; e aplacou a sede do combate.

 

Enquanto nas grandes tabas se preparava a festa do triunfo e o herói repousava na rede, Araci foi ao terceiro e voltou conduzindo Jandira pela mão.

 

- Jandira é irmã de Araci, tua esposa. Ubirajara é o chefe dos chefes, senhor do arco das duas nações. Ele deve repartir seu amor por elas, como repartiu a sua força.

 

A virgem araguaia pôs no guerreiro seus olhos de corça

 

- Jandira é serva de tua esposa; seu amor a obrigou a querer o que tu queres. Ela ficará em tua cabana para ensinar a tuas filhas como uma virgem araguaia ama seu guerreiro.

 

Ubirajara cingiu ao peito, com um e outro braço, a esposa e a virgem.

 

-Araci é a esposa do chefe tocantim; Jandira será esposa do chefe araguaia; ambas serão as mães dos filhos de Ubirajara, o chefe dos chefes, e o senhor das florestas.

 

***

 







 

As duas nações, dos araguaias e dos tocantins, formaram a grande nação dos Ubirajaras, que tomou o nome do herói.

 

Foi esta poderosa nação que dominou o deserto.

 

Mais tarde, quando vieram os caramurus, guerreiros do mar, ela campeava ainda nas margens do grande rio (66).

 

NOTAS DO AUTOR

 





 

(1) Grande rio: Os tupis chamavam assim ao maior rio que existia na região por eles habitada: e daí resultou ficarem tantos rios com essa designação na língua original, ou traduzida.

 

O rio grande de que se trata nesta lenda é o Tocantins, em cujas margens se passa a ação dramática.

 

(2) Jaguarê: Nome composto de Jaguar -a onça, e o sufixo ê que na língua tupi reforça enfaticamente a palavra a que se liga. Jaguarê significa, pois, a onça, verdadeiramente onça, digna do nome por sua força, coragem e ferocidade.

 

(3) Uiraçaba: Nome que davam os tupis à aljava, de uirá - seta, e aba - desinência exprimindo o lugar, modo e instrumento; literalmente "o que tem a seta".

 

Os selvagens a faziam, ou do tubo do taquaraçu, ou da casca de certas árvores, guarnecida de fios embebidos de resina, o que a tornava muito resistente.

 

(4) Nome de guerra: "Mal nascia a criança logo se lhe punha nome. Hans Staden achou-se presente numa dessas ocasiões. Convocou o pai aos mais próximos vizinhos de dormitório, pedindo-lhes para o filho um nome viril e terrível; não lhe agradando nenhum dos propostos, declarou que ia escolher o de um de seus quatro antepassados, o que daria fortuna ao rapaz, e repetindo-o em voz alta, fixou a escolha. Ao chegar à idade de ir à guerra, dava-se outro nome ao mancebo que aos seus títulos ia acrescentando um por inimigo que trazia para casa a ser imolado. Também a mulher tomava adicional apelido quando o marido dava uma festa antropófaga. De objetos visíveis se tirava o cognome, determinando o orgulho ou a ferocidade a escolha. O epíteto grande frequentemente se compunha com o nome." Southey, H. do Brasil, Tomo. 1o, cap. 8o, p. 336.

 

Pode-se ler também a este respeito o que diz Gabriel Soares, cit. no cap. 154, acerca do nome que tomava o tupinambá quando matava o contrário, e no cap. 174 onde acrescenta: "Acontece muitas vezes cativar um tupinambá a um contrário na guerra, onde o não quis matar para trazer cativo para sua aldeia, onde o faz engordar com as cerimônias já declaradas para o deixar matar a seu filho quando é moço e não tem idade para ir à guerra, o qual o mata em terreiro como fica dito, com as mesmas cerimônias; mas atam as mãos ao que há de padecer, para com isso o filho tomar nome novo e ficar armado cavaleiro e mui estimado de todos".

 

A este trecho de Gabriel Soares é preciso dar o devido desconto acerca da engorda do cativo, e do papel insignificante que representa o mancebo. Devemos crer que entre gente, cuja alma era a guerra, o título de guerreiro não se conferia ao mancebo que não fizesse prova real de seu esforço e coragem.

 

Ives d'Evreux, cap. XXI, trata minuciosamente da graduação que a idade estabelecia entre os tupis. Havia para os guerreiros seis classes: 1o das crianças até dois anos, mitanga, que significa chupador ou mamador; 2o curumim-mirim, isto é, o pequeno que balbucia; compreendia os meninos até sete anos; 3o; curumim simplesmente, correspondia à segunda infância, de 7 a 15 anos; 4o curumim-guaçu, era a adolescência, em que os rapazes se empregavam na caça e na pesca; 5o abá - o homem, indicava o princípio da virilidade, o qual, logo que se casava, tornava-se apiaba - o varão, ou como diz d'Evreux, mendarama - o casado; 6otijubaê-o ancião ou veterano, o homem de experiência, guerreiro consumado.

 

(5) Jandira: O nome é Jandaíra, de uma abelha, que fabrica excelente mel; Jandira é uma contração mais eufônica daquele nome, que também por sua vez é contração de Jemonhaíra, - que fabrica mel.

 

(6) Aratuba: Palavra que se compõe de ara - o sol e tuba, infinito do verbo ajub - estar deitado. Vem a ser a significação leito do sol, aplicada pelos índios à montanha do poente; onde o sol se esconde no seu ocaso.

 

(7) Lança: O uso da lança não era comum aos selvagens, que empregavam de preferência o arco, o tacape, a macana, e a igarapema, espécie de remo, que fazia as vezes de partazana. Outros escrevem iverapema; mas o nome é aquele de igara-pema - espada da canoa; basta ver-lhe a forma para compreender seu duplo destino.

 

(8) Craúba: É a mesma carabiúba dos índios, assim contraída pelo uso dos nossos sertanejos. Madeira roxa, excessivamente rija, que não cede ao pau-ferro no peso e na dureza.

 

(9) A liga vermelha: Era este um dos mais curiosos e interessantes ritos dos tupis.

 

Quando a menina atingia a puberdade, depois de sua purificação, da qual tratam os autores, especialmente Orbigny e Thevet, a mãe punha-lhe nas pernas, abaixo do joelho, uma liga de fio de algodão tinta de vermelho, de três dedos de largura, e tecida no próprio luar, de modo que uma vez fechada, não era mais possível tirá-la. Vide Gabriel Soares, cap. 153.

 

A essa liga chamavam tapacorá, e não a podia trazer senão a virgem, de modo que se acontecesse quebrar a castidade, havia de rompê-la, para que todos conhecessem sua falta. Eis como Gabriel Soares se exprime a este respeito no cap. 152: "E como o marido lhe leva a flor, é obrigada a noiva a quebrar estes fios, para que seja notório que é feita dona; e ainda que uma moça destas seja deflorada por quem não seja seu marido, ainda que seja em segredo, há de romper os fios da sua virgindade, que de outra maneira cuidará que a leva logo o diabo, os quais desastres lhes acontecem muitas vezes, etc.".

 

Este simples traço é bastante para dar uma idéia da moralidade dos tupis, e vingá-la contra os embustes dos cronistas que por não compreenderem seus costumes, foram-lhes emprestando gratuitamente, quanto inventavam exploradores mal-informados e prevenidos.

 

Em que sociedade civilizada se observa tão profundo respeito pela união conjugal, a ponto de não consentir-se que a mulher decaída conserve o segredo de sua falta, e iluda o homem que a busque para esposa?

 

A resignação com que a moça culpada rompia a liga da virgindade, e fazia confissão pública de seu erro, é um exemplo da lealdade do caráter tupi e da veneração que inspiravam os ritos de sua religião.

 

Nega Southey, cap. VIII, que a liga vermelha e o respeito que ela inspirava indicassem guarda da castidade, porquanto a castidade como a caridade é virtude da civilização; do mesmo modo considera o amor uma delicadeza da vida civilizada. São paradoxos de escritor. Sentimentos naturais à criatura humana desenvolvem-se nela em qualquer estado e condições.

 

Não é possível negar a castidade da mulher tupi; além desse recato da virgindade, prova-a de modo cabal a continência que homens e mulheres guardavam em certas circunstâncias. Assim, nenhum homem tinha relações com a mulher inúbil, nem ela o consentia; o próprio marido não violava essa lei, embora tivesse a esposa em seu poder. Gabriel Soares, cit. Durante a gravidez e a amamentação interrompia-se absolutamente o ajuntamento conjugal. (Barlaeus, 2a. ed.)

 

Onde está a sociedade civilizada, que observe leis tão rigorosas, e refreie os instintos sensuais com a severidade usada pelos tupis?

 

Poderíamos fazer muitas outras observações que reservamos para um estudo especial acerca dos selvagens brasileiros.

 

(10) Taari: Rio que despeja no Tocantins, pouco depois da confluência do Araguaia. Indica o lugar da cena.

 

(11) Araguaia: O nome é araguara, de ará e guara, literalmente, os guerreiros das araras, porque usavam nos seus ornatos das penas encarnadas daquelas aves. Conservei a versão que ficou no nome do rio.

 

(12) Araci: Esta palavra tupi compõe-se de ará - dia, e ceí ou cejy - grande estrela. Este último nome davam os indígenas às Plêiades, que servia-lhes para contar os anos.

 

(13) Cem dos melhores guerreiros: Nesta e outras frases idênticas, os numerais cem ou mil não representam algarismo exato, que não os tinham os tupis para exprimir número tão elevado. Traduzem apenas esses termos a desinência tiba, com que os tupis designavam cópia e multidão.

 

(14) Canitar: Enfeite de cabeça. Adotei esta designação empregada pelos autores sob a autoridade de Hans Staden por me parecer mais eufônica. A exata lição pede acanga atara.

 

(15) Tocantim: compõe-se de tocano e tim; literalmente, o nariz, o rostro do tucano. Nome que tomou um guerreiro por trazer na cabeça o despojo de um tucano com o grande bico da ave; e que transmitido a uma nação selvagem, ficou designando o rio a cujas margens vivia.

 

(16) As duas nações não estão em guerra: As nações tupis não viviam em um estado perene de guerra, como propalaram alguns escritores. A guerra era freqüente; mas não constante. As nações faziam a paz e nela se mantinham até que sobrevinha alquma causa de rompimento. Então não começavam as hostilidades senão depois de anunciada a guerra ao inimigo, o que se fazia lançando-lhe uma flecha na taba, ou levando-lhe um guerreiro o desafio.

 

É uma prova do caráter leal dos selvagens. Foi depois da colonização, que os portugueses assaltando-os como a feras, e caçando-os a dente de cão, ensinaram-lhes a traição que eles não conheciam.

 

(17) Tacape: Davam os tupis o nome de apém a um corpo alongado de forma análoga à espada, e como ela cortante. Daí vinha chamarem a unha - pô-apém, espada do dedo; e à raiz que surge da terra e se eleva como um galho - sapô-pema - raiz espada.

 

A sua principal arma de guerra chamaram itá-ca-apém, espada de pau-pedra; ou itá-qui-apém, machado comprido de pedra, por ter sido dessa matéria que primeiro o fabricaram, antes de aprenderem a lavrar a madeira.

 

Acerca da força dessa arma e da destreza com que a manejavam, diz Lery, que um tupinambá com ela armado daria que fazer a dois soldados de espada.

 

(18) Pojucã: Contração de uma frase túpica: I-po-jucá; significa eu mato gente. Essas contrações não são arbitrárias; elas eram da índole da língua e conformes ao seu sistema de aglutinação. Todas as vezes que os indígenas compunham uma palavra, cerceavam as sílabas dos vocábulos que entravam na composição, para ligá-las mais eufonicamente.

 

Lemos em Alfred Maury, La Terre et l'homme, cap. V111, o seguinte trecho:

 

"Nas línguas americanas, não é somente uma síntese que concentra em uma palavra todos os elementos da idéia mais complexa; há ainda engrazamento (enchevêtrement) das palavras umas nas outras; é o que M. F. Lieber chama incapsulação, comparando a maneira por que as palavras entram na frase, a uma caixa na qual se conteria outra que a seu turno conteria terceira, esta uma quarta, e assim por diante. A incorporação das palavras é por vezes levada à extrema exageração nesses idiomas, o que produz a mutilação dos vocábulos incorporados".

 

Esta observação é da maior justeza e conforma-se de todo o ponto com a índole da língua, como se vê nas seguintes palavras - A-por-u - como gente - A-poro-tim - enterro gente - A-po-çub - visito a gente. (Vide Figueira, Gramática da Língua do Brasil, p 54 )

 

(19) Guerreiro chefe: Para compreender-se bem a força dessa designação, diremos alguma coisa acerca da hierarquia selvagem.

 

Como a religião, era simples o governo dos tupis; mas não careciam dele, segundo inculcam os cronistas: antes o tinham, e bem regulado, para o seu estado de civilização.

 

Podemos distinguir na taba selvagem, uma sociedade civil e uma sociedade política; a primeira reduzida à família, e a segunda exclusiva à subsistência, defesa e à guerra.

 

A sociedade civil era constituída pela oca, a casa, onde o varão, abá, morava com suas mulheres, sua prole, os servos que trabalhavam para granjear as filhas em casamento; os cativos que fazia da guerra; e os parentes que agregava a si.

 

O dono da casa, ou literalmente, o que fazia a casa, moacara, era a perfeita imagem do patriarca. Ele governava a sua gente; e formava uma sociedade independente, no seio da grande sociedade política, de que era membro e para cuja defesa concorria não só por interesse próprio, mas pela honra da nação.

 

Moacara nos dicionários significa fidalgo. A tradução ressente-se da preocupação do homem civilizado; mas havia realmente uma distinção entre o moacara, chefe da oca, pai de muitos guerreiros, e o simples indivíduo que ainda não possuía uma família.

 

A sociedade política, taba, era a reunião das ocas. Essa denominação vem de tama, a pátria, o berço, a terra natal, e aba - desinência que indica o lugar, modo, instrumento da coisa. Assim taba significa literalmente - onde ou o que faz a pátria; isto é, aldeia natal.

 

O governo da taba, essencialmente democrático, residia no conselho dos moacaras, entre os quais predominava a experiência dos anciões, que se chamavam abarês ou abaetês; isto é, varões egrégios.

 

Nações, essencialmente guerreiras, tinham um chefe para governá-las nas jornadas e batalhas. A estes davam o nome de tuxava, ou tauxab, o dono da taba, morubixaba, o que governa o povo; de moro - gente, e aba, desinência.

 

Quando as nações eram grandes e não cabiam numa taba, destacavam-se alquns moacaras com suas famílias e formavam novas tabas, sujeitas à taba mãe. Daí se originaria a diferença das duas designações, vindo então tauxaba, a designar o simples chefe de uma taba; e morubixaba, o chefe da taba primitiva, ou da nação, moro.

 

Também acontecia que muitas vezes um moacara poderoso separava-se de sua nação por causa de alquma dissensão intestina, e constituía-se independente com seus descendentes e os guerreiros a ele sujeitos pelo parentesco. Essa oca independente chamava-se moroca, isto é, oca de gente, de tribo e não mais de família. O termo moloca, tão freqüente nos cronistas, não é senão corruptela daquele, e pode corresponder ao de tribo ou horda.

 

A nomeação do chefe participava da natureza dessa sociedade democrática e guerreira. O mais audaz e o mais forte impunha-se: a permanência de sua autoridade, bem como sua extensão, dependia do respeito que ele conseguia infundir a seus guerreiros.

 

No momento em que surgia outro ambicioso a disputar o poder, este tornava-se o prêmio do mais valente. Acontecia então que o vencido com seus sectários revoltava-se; e daí as freqüentes guerras intestinas, que aniquilaram a raça indígena, ainda mais talvez do que a crueldade dos europeus.

 

Na morte do morubixaba ocorria igual pleito. O filho apossava-se do poder pelo direito de herança; e o conservava se não aparecia algum êmulo mais poderoso que lho arrebatasse.

 

Falando com as nossas teorias da civilização, podemos dizer que a base desse poder executivo era, como nas repúblicas, o sufrágio universal. Mas era o sufrágio sempre ativo e vigilante, pronto a inclinar-se ao merecimento superior, onde ele se revelasse.

 

Entre o chefe guerreiro (poder executivo) e o conselho dos moacaras (poder legislativo) os conflitos eram inevitáveis. Morubixaba haveria, como o célebre Cunhambebe, que era um verdadeiro déspota. O tacape de muito herói tupi há de ter governado tão absolutamente como a espada de César ou de Napoleão.

 

Outros conflitos também se deviam dar freqüentemente entre a influência dos pajés e o poder do chefe ou dos anciões. Aqueles sacerdotes, cercados do respeito dos guerreiros, fortes pelo prestígio de seus augúrios e sortilégios, tentariam insuflados pela ambição governar a taba, ou pelo menos fomentar a resistência ao chefe.

 

Eis em escorço as paixões que deviam agitar aquela sociedade política, depois da guerra que era a maior preocupação.

 

Além das ocas, ou famílias, havia na taba uma espécie de oca mais vasta e comum. Nessa parece que moravam aquelas pessoas, que já não tinham oca, e estavam a cargo da nação; tais eram as velhas, e por este nome devem-se entender as mulheres sem companhia de marido nem parentes; os órfãos, aos cuidados daquelas mães emprestadas; e finalmente as moças que não faziam vida conjugal.

 

Vejamos agora a sociedade civil, tal como a podemos induzir dos acanhados esclarecimentos que nos deixaram os cronistas.

 

O casamento, base da família, devia ter alguma cerimônia simbólica, ainda que não passasse da simples entrega da noiva ao varão. Essa minha suposição funda-se no fato de haver entre esses povos um casamento bem caracterizado, e não simples coito.

 

A mulher legítima distinguia-se pelo nome. O marido a chamava temirecô, isto é, a verdadeira mãe de meus filhos; enquanto que às outras mulheres, suas amantes, chamava aguaçaba. O marido tinha também um nome especial, menda, que o distinguia do simples amante.

 

Acresce que, para obter a noiva, o varão sujeitava-se a certas condições, e até mesmo a provas de coragem; donde devemos inferir com boa razão, que não era esse um ato insignificante para os selvagens, a ponto de não o distinguirem com uma fórmula qualquer, eles que em outros pontos eram tão cerimoniosos, como na recepção do hóspede, na declaração da paz ou da guerra.

 

Os cronistas, porém, não se ocuparam disso e todo seu tempo foi pouco para lamentarem a poligamia dos tupis, tirando logo daí argumento para pintarem os selvagens vivendo a modo de cães.

 

É uma falsidade. Os tupis tinham moralidade conjugal, e até muito severa. O adultério era punido de morte; e também por isso permitia-se o divórcio por mútuo consentimento.

 

A poligamia dos tupis foi da mesma natureza da que existiu entre os hebreus; era uma poligamia patriarcal, filha das condições da vida selvagem, e não a poligamia sensual dos turcos e outros povos do Oriente, produzida unicamente pelo requinte da libidinagem.

 

Compreende-se que no estado selvagem ou primitivo, a mulher, fraca para resistir aos perigos que a rodeavam, tinha necessidade de acolher-se ao amparo e proteção do homem. Por outro lado cada varão no interesse não somente de sua glória, como de seu poder, carecia de rodear-se de uma família numerosa, e de gerar do seu próprio sangue os seus guerreiros.

 

Entretanto, e é isto que distingue a poligamia patriarcal, a posse de muitas mulheres não destruía a instituição da família, bem caracterizada pela preeminência da primeira mulher ou da verdadeira esposa; e pela adoção dos filhos nascidos das outras mulheres, que se tornavam todos filhos da esposa, ou da verdadeira mãe, temirecô.

 

Muita coisa poderia dizer acerca da educação dos filhos e da condição da mulher, mas não cabe esse estudo em uma nota. Mais tarde e a propósito é possível que o faça.

 

Para a inteligência do texto basta saber-se que além da esposa, temirecô, mãe da família, das amantes, aguaçabas, que faziam parte da família na condição de servas, havia 1o as virgens, cunhantém, mulheres debalde, que pertenciam à família, e se destinavam para esposas dos guerreiros que as obtivessem pelas provas de esforço e denodo. 2o as velhas, ou mulheres já privadas de seus maridos, e que ficavam sob a proteção da comunhão, incumbidas da educação dos órfãos, e dos filhos anônimos. 3o as moças ou mulheres que desprezavam o casamento e viviam livremente aceitando o amor dos guerreiros que lhes agradavam, e dos quais tinham filhos, que não pertenciam à família, mas à tribo; eram estas as mulheres que ofereciam seu amor como penhor de hospitalidade, ao estrangeiro que chegava à taba. 4o finalmente, a classe infeliz, abandonada de todo o sentimento e de todo o pudor, à qual davam o nome de morixaba, literalmente coisa de todos; ou segundo o testemunho de Ives d'Evreux - menondere, que equivalia a ladra; porquanto entendiam os selvagens que a mulher roubava seu primeiro amante, dando ou vendendo a outro o amor que lhe pertencia.

 

Ainda nesta última escala, se estão manifestando as leis severas do recato e fidelidade da união sexual entre os selvagens. Além do casamento legítimo, havia o concubinato, como existiu entre os romanos, produzindo direito e obrigação recíproca. A mulher que traía a fé conjugal, ou o concubinato, era uma adúltera, isto é, uma ladra e descia à última infâmia. O marido tinha o direito de matá-la; o amante entregava-a ao desprezo da tribo.

 

(20) Tapuia: De taba e puir - o que foge das tabas. Davam os indígenas esse nome a povos mais bárbaros e de língua diversa. Segundo as últimas investigações etnológicas, pertenciam esses povos a uma raça diversa da tupi, e muito aproximada, senão congênere, do tipo mongólico. Entretanto, Orbigny, L'homme américain, sustenta a identidade das duas raças, tapuia e tupi.

 

(21) Jaguarê agradece a Tupã: Não achando entre os abongínes, templos e ídolos, ainda que alguns cronistas atestam a existência dos últimos, foram os colonizadores peremptoriamente declarando ateus a esses povos. Mas logo, com incoerência flagrante, reconheciam a existência de uma superstição, que outra coisa não é a religião na infância da humanidade.

 

Os tupis adoravam uma excelência superior, Tupã, que se manifestava pelo raio e pelo trovão; donde se induz o grande poder que atribuíam a essa divindade. Seu nome de raça apresenta uma afinidade que faz presumir a crença de uma descendência celeste.

 

Também temiam os tupis o espírito do mal, personificado em Anhangá, o fantasma, que habitava as trevas, e a quem referiam um poder funesto. Para conjurar essa divindade maléfica, tinham sacerdotes, os pajés, que buscavam sua força e virtude no fumo da planta sagrada, o tabaco.

 

Além disso contava a mitologia túpica gênios bons e maus, que habitavam as florestas e os rios, e percorriam as solidões, montados em caitetus, ou transformados em certos animais. Entre estes mencionarei o caipora e a mãe-d'água, cuja abusão transmitiu-se à raça conquistadora, e de que ainda se encontram vestígios entre as populações do norte.

 

Não há contestar que aí está uma religião bem caracterizada. Mas como faltassem templos e ídolos, os descendentes dos bárbaros gauleses, godos, francos e celtas não podiam admitir na América, uma religião sem culto regular, qual a tiveram aqueles selvagens europeus.

 

Entre os viajantes que mais tarde percorreram a América havia espíritos superiores, dedicados ao estudo da humanidade, que investigavam, sem prevenções, a origem e índole das raças indígenas do novo mundo. Na primeira plaina destes sábios figura Alexandre Humboldt.

 

O eminente naturalista assinalou a causa dessa ausência de culto, dos aborígines do Brasil, quando observou que o antropomorfismo da divindade se manifesta por dois modos: da terra ao céu como na Grécia, ou do céu à terra, como na América. Voyage au Nouveau Continent - 8o volume, p. 243.

 

Quando a imaginação do homem, personificando a divindade à sua imagem, a faz subir ao céu, como os numes pagãos da Grécia, ela é levada naturalmente a oferecer-lhe uma constante adoração com que mantém o vínculo da criatura ao criador. Daí a necessidade de ídolos, que simbolizem esses numes, e a tenham presente aos olhos mortais.

 

Diverso, porém, é quando concebendo a divindade à sua imagem, o mortal a humana inteiramente, transportando-a do céu à terra. Então o homem figura-se não a criatura, mas o descendente, o filho de seu deus.

 

Desaparece a necessidade dos ídolos, pois a verdadeira representação da divindade na terra é o mesmo homem que a continua. Cada um tem o seu nume em si . A adoração transforma -se naturalmente no culto da própria individualidade, nessa exageração prodigiosa do estalão humano, que distingue as idades heróicas.

 

É pela ostentação da coragem, da força, da grandeza de ânimo, que o selvagem se elevava até o deus, seu progenitor, e não pela adoração, pelas preces e oferendas usadas no paganismo grego, o qual estava bem longe da humildade evangélica do cristianismo. Os tupis não careciam pois de orações e sacrifícios; as façanhas, com que se mostravam dignos de sua origem celeste, eram as melhores oblações de seu culto.

 

Tal era o respeito que o selvagem professava pela dignidade humana, que matava as pessoas mais caras quando não se podiam curar da enfermidade. Essa implacável sujeição ao mal abatia e humilhava uma raça forte e guerreira.

 

Muitos outros exemplos podia apresentar dessa elevada consciência da individualidade, que distinguia no mais alto ponto o selvagem brasileiro.

 

Eis o que não souberam ver os cronistas, quando tacharam de ateus aos indígenas americanos.

 

Abstraindo da moral absoluta em que só há uma verdade, a do cristianismo, e tomada a questão no ponto de vista da arte, não se pode recusar a essa religião tupi, que nivela o homem à divindade, certo cunho de grandeza selvagem e um vigoroso sentimento da individualidade.

 

O paganismo grego lhe fica inferior nesse ponto da dignidade humana; ao passo que ele tornava a raça de Japeto escrava submissa dos deuses e vítima de seus caprichos e vinganças; na mitologia americana o homem é o filho e o êmulo da divindade.

 

À parte as ficções graciosas do espírito helênico, a mitologia grega só tem uma criacão que reveste a majestade da religião tupi, é a criação dos semideuses, em que se operava o antropomorfismo terrestre da divindade, qual se deu na América.

 

Considerando-se divino, o selvagem americano acreditava-se combatido por um ente maléfico, antagonista do deus de quem descendia. Nos acheques e misérias que afligem a humanidade, via as manifestações desse poder funesto. Os sacerdotes o esconjuravam por sortilégios; os heróis porém resistiam-lhe pela constância e o afrontavam.

 

A essa religião simples e sem aparato, como devia ser uma religião das florestas, professada por povos caçadores e guerreiros, coroava a crença profunda e inalterável da imortalidade da alma, revelada pela veneração às cinzas dos mortos e pelas cerimônias da inumação.

 

Os indígenas encerravam suas múmias em túmulos especiais, a que davam o nome de Camucins; e as acompanhavam não só das armas e objetos de uso próprio, como de alimentos para a viagem aos campos alegres, onde iam reviver os guerreiros e suas mulheres.

 

Basta este rápido esboço para dar idéia da religião dos tupis, e avaliar do critério daqueles que os consideravam estranhos a qualquer noção da divindade.

 

Um povo que mantinha as tradições a que aludimos, não era certamente um acervo de brutos, dignos do desprezo com que foram tratados pelos conquistadores. E quando através de suas falsas apreciações, a verdade pôde chegar até nossos tempos, o que não seria, se espíritos despreocupados e de vistas menos estreitas, vivendo entre essas nações primitivas, se aplicassem ao estudo de suas crenças, tradições e costumes?

 

Os jesuítas, que podiam melhor realizar esse estudo, eram induzidos a exagerar a ferocidade e ignorância dos selvagens, no interesse de tornar indispensável sua catequese. Já imbuídos da intolerância religiosa, a política exagerava ainda mais sua suspeição.

 

(22) Ubiratã: Pau-ferro; literalmente ubirá -madeira, e atan - duro. Atan não é senão a palavra ita com a terminação ana, que na língua tupi servia para a formação dos adjetivos. Itana - o que tem a natureza de pedra. Assim, de pedra fizemos nós pedregoso. Rigorosamente, ubiratã é pau-pedra; pois que os indígenas não conheciam o ferro. Era dessa madeira que faziam os tacapes.

 

(23) O chefe tocantim: Os autores empregam, em geral, os termos maioral, principal, para designar o cabeça de uma tribo ou nação indígena. Alguns, como Southey, serviram-se do termo cacique adotado dos Araucanos; Barlaeus chamou-os classicamente de reis.

 

Neste livro, como em Iracema, preferi traduzir o termo indígena tuxaba, por chefe; e fui levado pela razão de ser além de muito apropriado e vulgar, um termo nobre e suscetível de entrar no estilo o mais elevado, sem laivos de afetação. Ao morubixaba pela mesma razão chamei chefe dos chefes.

 

(24) Calcou a mão direita sobre o ombro esquerdo: Acerca desse modo simbólico de assegurar o vencedor seu império sobre o cativo, é curioso o que referiu e notou Ives d'Evreux, cap. XIV.

 

"Então eu soube que era uma cerimônia de guerra praticada entre essas nações, que quando um prisioneiro cai na mão de algum, aquele que o toma, bate-lhe com a mão na espádua dizendo-lhe: 'Eu te faço meu escravo'; e desde então esse pobre cativo, por maior que seja entre os seus, se reconhece escravo e vencido, segue o vitorioso, o serve fielmente, sem que seu senhor importe-se com ele; tem liberdade de andar por onde lhe parece, não faz senão o que quer e ordinariamente esposa a filha ou irmã de seu senhor, até o dia em que deve ser morto e comido."

 

Depois o missionário lembra as palavras de Isaías, cap. IX - Factus est principatus super humerum ejus - e cap. XXII - Dabo clavem dominis David super humerum ejus; e mostra a conformidade desse rito dos tupis com as tradições dos hebreus e outros povos primitivos.

 

(25) Precisa de um prisioneiro: Era entre os selvagens maior honra conduzir da guerra um prisioneiro, para ornar o seu triunfo e a festa de vitória, do que matá-lo em combate. Veja Gabriel Soares - cit. na nota 4.

 

(26) Chamas da alegria: Metáfora tupi. Chamavam a alegria e a festa toriba, literalmente, grande quantidade de fogueiras.

 

(27) História de guerra: Os tupis para exprimirem história, ou narrativa, diziam maranduba, conto de guerra, de marã - guerra, nheeng - falar, e tuba - muito; falar muito de guerra.

 

Depois aplicaram os indígenas essa palavra a toda narrativa, se é que não criaram para as outras histórias o termo análogo de poranduba, composto de poro, nheeng e tuba - falar muito da gente.

 

Os índios eram muito apaixonados dessas narrações, em que mostravam sua natural eloqüência. Informa-me o Dr. Coutinho, incansável explorador do vale do Amazonas, que ainda hoje nenhum índio chega de viagem, que não diga a sua maranduba, que é recito circunstanciado de quanto viu e lhe aconteceu em caminho.

 

Às vezes traduzo o termo; outras, o emprego original para mais incutir no livro o espírito indígena. Do mesmo modo procedi acerca de outros termos eufônicos tais como tuxaba, morubixaba, moacara, nhengaçara, etc.

 

(28) Os cantores: Os tupis eram muito dados à música e à dança.

 

Léry fala com entusiasmo da doçura de seus cantos e Ferdinand Denis, p. 24, afirma, não sei com que fundamento, que, à imitação dos Chataws da América do Norte, certas nações do Brasil gozavam do privilégio de fornecer poetas e músicos aos outros povos, como sucedia com os tamoios entre os tupis.

 

Gabriel Soares - cap. 162 - descreve os cantos, improvisos e danças dos tupinambás, concluindo com estas palavras:

 

"Entre este gentio, são os músicos muit estimados e por onde quer que vão, são bem agasalhados, e muitos atravessaram já o sertão por entre seus contrários, sem Ihes fazerem mal".

 

(29) Como chefe pertence-lhe a virgem, etc.: Barlaeus, 2a ed., p. 423 - "Quotquot lucta, hastarum concursu ac venatu proecellunt, eminentiores habentur et ut haeroum numero, qui ob virtutis fortitudinisque excellentiam ab ipsis virginibus ambire moerentur, cum meliores ex melioribus nasci opinentur, nec vanum esse nobilitatis nomen, sed cum sanguine transfundi." - Quantos disputam em jogos de lança e caça; os eminentes são tidos no número dos heróis; os quais pela excelência da virtude e fortaleza merecem possuir as mesmas virgens; porquanto pensam que os melhores nascem dos melhores; nem é vão nome a nobreza, pois se comunica pela transfusão do sangue.

 

(30) Purifica o corpo: Os selvagens distinguiam-se pelo apurado asseio. Ives d'Evreux diz a este respeito: "lls sont fort soigneux de tenir leur corps net de toute ordure: ils se Javent fort souvent tout le corps, et ne se passe jour qu'ils ne jettent sur eux force eau et se frottent avec les mains de tous côtés et toutes les parts, pour oster la poudre et autres ordures. Les femmes ne manquent de se peigner souvent."

 

(31) Uru: Tinham os indígenas várias espécies de móveis para guardar objetos. O uru era um cesto aberto. Panacum era um cesto maior com tampa. Samburá era cesto com orelha, corrupção de nambi e uru, literalmente, cesto de orelha. Tinham ainda os selvagens o patiguá ou patuá que era uma caixa de palha ou couro; e o mocô, pequeno surrão da pele felpuda do coelho. Todos estes nomes ainda são usados no norte, para designar os mesmos objetos, produtos da indústria indígena, aproveitada pelos colonizadores.

 

(32) Coqueiros: Ao que disse em nota de Iracema acerca do indigenismo desta planta, acrescentarei a notícia que dela nos deixou Guilherme Piso - Historial Rerum Naturalium Brasiliae.-Liv. VIII, p. 138.

 

"Inaiá Guacuiba cujus fructus inaiaguacu brasiliensibus; in congo vocatus Ejaquiambutu et fructus Quetiniga quiambutu; Palma nucifera, lusitanis coqueiro et fructus illius coco; qui tribus suis foraminulis lavam representat. Arbor caudice raro recto, sed plerumque incurvato, quatuor, quinque, sex aut etiam septem pedes crasso, triginta, quadraginta et interdum quinquaginta pedes alto."

 

É esta mesma palmeira que os mexicanos chamavam Coyolli. Piso viu, em 1640, na cidade Mauricéia (Recife), transplantarem-se pés que tinham mais de 24 anos.

 

(33) Cabelos: Pelos cabelos costumavam distinguir-se as diversas nações indígenas. (Southey, I - cap. 8o.) Das mulheres diz Barloeus: - Faeminis coma promissa nisi per luctus tempora aut absens marito - p 36. Traziam as mulheres a madeixa longa, salvo no tempo do luto ou ausência do marido.

 

Mais um traço do caráter e costumes indígenas. Durante a ausência do marido, a mulher trazia uma espécie de luto, ou mostra de tristeza e saudade, que era simbolizada pelo sacrifício das longas tranças dos cabelos.

 

(34) Braços que querias para tua cintura: Metáfora da língua tupi, que exprime o amor; aguaçaba, a amante, literalmente, o que se tem à cintura.

 

(35) Escravo: Acerca das leis do cativeiro entre os índios, leiam-se os dois capítulos, XV e XVI, que a este assunto consagrou Ives d'Evreux, citado.

 

Os cativos viviam em plena liberdade na taba de seus senhores, e era muito raro que fugissem, porque se consideravam ligados por um vínculo, desde o momento em que o vencedor lhes calcava a mão sobre a espádua. Quebrar esse vínculo, era por eles considerado uma desonra.

 

Até os prisioneiros destinados ao suplício, preferiam a morte gloriosa a se rebaixarem pela fuga no conceito de seus inimigos. "Muitas vezes as mulheres tomavam substâncias que provocavam o aborto, não querendo passar pela miséria de verem trucidada a prole; e não raro favoreciam a fuga dos tristes maridos d'alguns dias, pondo-lhes comida nos bosques e até escapulindo-se com eles. Freqüentemente sucedeu isto a prisioneiros portugueses; os índios brasileiros, porém, julgavam desonrosa a fuga, nem era fácil persuadi-los a tomá-la." Southey, cap. VII, onde cita Notícias do Brasil, II, 69 e Herrera 4, 3, 13.

 

Abbeville ainda é mais explícito: - Et bien que estant desliez et libres comme ils sont, ils puissent fuir et se sauver - si est ce qu'ils ne font jamais encore qu'ils soient assurez de estre tuez et mangez au bout de quelques temps. Car si quelqu'un des prisionniers s'estait eschapé pour retourner en son pays, non seulement il serait tenu pour un couaen eum, c'est a dire poltron et lasche de courage; mais aussi ceux de sa nation mesme ne manqueroient de le tuer avec mille reproches de ce qu'il n'aurait pas eu le courage d'endurer la mort parmi ses ennemis, comme si ses parents et tous ses semblables n'étaient assez puissants pour venger sa mort, etc. - p. 290.

 

As leis da cavalaria, no tempo em que ela floresceu em Europa, não excediam por certo em pundonor e brios à bizarria dos selvagens brasileiros. Jamais o ponto de honra foi respeitado como entre estes bárbaros, que não eram menos galhardos e nobres do que esses outros bárbaros, godos e árabes, que fundaram a cavalaria.

 

Aí está uma pedra de toque para aferir-se do caráter do selvagem brasileiro, tão deprimido por cronistas e noveleiros, ávidos de inventarem monstruosidades para impingi-las ao leitor. Nem isso lhes custava; pois a raça invasora buscava justificar suas cruezas rebaixando os aborígines à condição de feras, que era forçoso montear.

 

(36) O suplício: Outro ponto em que assopra-se a ridícula indignação dos cronistas é acerca da antropofagia dos selvagens americanos.

 

Ninguém pode seguramente abster-se de um sentimento de horror ante essa idéia do homem devorado pelo homem. Ao nosso espírito civilizado, ela repugna não só à moral, como ao decoro que deve revestir os costumes de uma sociedade cristã.

 

Mas antes de tudo, cumpre investigar a causa que produziu entre algumas, não entre todas as nações indígenas, o costume da antropofagia.

 

Disso é que não curaram os cronistas. Alguns atribuem o costume à ferocidade, que transformava os selvagens em verdadeiros carniceiros, e tornava-os como a tigres sedentos de sangue. A ser assim não faziam mais do que reproduzir os costumes citas, que sugavam o sangue do inimigo ferido, - quem primum interemerunt, ipsis e vulneribus ebibere.- Pomponius Moela. Descrip. da Terra.- Liv. 2o, cap. 1o.

 

Outros lançam a antropofagia dos americanos à conta da gula, pintando-os iguais à horda bretã das Gálias, os aticotes, dos quais diz São Jerônimo que se nutriam de carne humana, regalando-se com o úbere das mulheres e a fêvera dos pastores. (S. Hierônimo IV. - p. 201. adv. Jovin. - Liv. 2o.)

 

O canibalismo americano não era produzido, nem por uma nem por outra dessas causas.

 

É ponto averiguado, pela geral conformidade dos autores mais dignos de crédito, que o selvagem americano só devorava ao inimigo, vencido e cativo na guerra. Era esse ato um perfeito sacrifício, celebrado com pompa, e precedido por um combate real ou simulado que punha termo à existência do prisioneiro.

 

Simão de Vasconcelos, Crônica da Companhia, I § 49, alude a uma velha que sentia entojos por não ter a mãozinha de um rapaz tapuia para chupar-lhe os ossinhos; e Hans Staden, p. 4, cap. 43 e seg., conta a história de dois indivíduos moqueados pelos tupinambás, e guardados para um banquete.

 

Não exageremos porém esses fatos isolados, alguns dos quais podem não passar de caraminholas, impingidas ao pio leitor. Os costumes de um povo não se aferem por acidentes, mas pela prática uniforme que ele observa em seus atos.

 

Se os tupis fossem excitados pelo apetite da carne humana, eles aproveitariam os corpos dos inimigos mortos no combate, e que ficavam no campo da batalha. A guerra se tornaria em caçada, e em vez de montear as antas e os veados, os selvagens se devorariam entre si.

 

Não há porém escritor sério que deixasse notícia de fatos daquela natureza; e não me recordo de nenhum que referisse exemplo de serem devoradas mulheres e meninos; salvo quanto aos últimos, o filho do prisioneiro de guerra (Not. do Brasil, II, 69), do que tenho razão para duvidar.

 

Parece-nos pois que a idéia da gula deve ser repelida sem hesitação. Se em algumas tribos ou malocas se propagou o apetite depravado, essa degeneração foi porventura devida ao contágio dos Aimorés, cuja invasão é posterior ao descobrimento. Em todo o caso é uma exceção que não pode preterir o rito da religião túpica.

 

Também pela contraprova, havemos de excluir a ferocidade, como razão do canibalismo americano.

 

Se o instinto carniceiro dominasse o tupi, ele se lançaria sobre o inimigo como o cita, ou o sarraceno de que fala Am. Marcellinus, para sugar-lhe o sangue da ferida; e trincar-lhe as carnes ainda vivas e palpitantes

 

Mas ao contrário, vemos que o guerreiro tupi tinha por maior bizarria cativar seu inimigo no combate, e trazê-lo prisioneiro, do que matá-lo. Chegado à taba, em vez de o torturar, dava-lhe por esposa uma das virgens mais formosas, a qual tinha a seu cargo nutri-lo e tornar-lhe agradável o cativeiro.

 

Releva notar que a idéia da antropofagia já era comum na Europa, antes do descobrimento da América; não só pelas tradições dos bárbaros, como pelas crendices da média idade, nas quais figuravam gigantes e bruxas, papões de meninos. Que tema inesgotável para a imaginação popular, não veio a ser a primeira notícia, senão conjetura, sobre o canibalismo do selvagem brasileiro?

 

Cronista há que nesse costume, onde se está revelando a força tradicional de um rito, não enxergou senão o zelo do glutão, que engorda a presa para saboreá-la. Mas essa ridícula suposição nem ao menos se conforma com o teor da vida selvagem, a qual desconhecia a indústria da criação.

 

O selvagem comia a caça como a encontrava no mato, gorda logo depois do inverno; magra na força da seca. Não se dava ao trabalho de a engordar. Por que motivo se havia de afastar desse uso acerca do homem, se o homem fosse para ele uma espécie de caça?

 

E porventura faria parte do processo da engorda do bípede, o acessório de uma companheira formosa e na flor da idade, qual invariavelmente a davam ao prisioneiro?

 

É óbvio que esse uso tinha outra razão mui diversa. Não se tratava de engordar o prisioneiro, mas de fortalecê-lo, para que ele morresse com honra no dia do sacrifício, que devia ser o seu último combate.

 

Ainda nessa ocasião, os vencedores ostentavam sua gravidade, deixando que o prisioneiro exaltasse o próprio valor e os afrontasse com seu desprezo. Só chegado o momento, depois de celebrada a cerimônia, o abatiam com um golpe de tacape.

 

A ferocidade não se coaduna com a calma e comedimento desse proceder. Pode-se explicar o sacrifício humano dos tupis por um intenso e profundo sentimento de vingança; mas não por sanha brutal.

 

Ferdinand Saint-Denis (Univers, Brésil, p. 30) diz com muito critério: - En accomplissant ces sacrifices, les tupinambas n'obéissaient pas, comme pourraient le croire quelques personnes, à un gout depravé qui leur aurait fait préférer la chair humaine à toutes les autres; ils étaient mus avant tout par un esprit de vengeance qui se transmettait de génération en génération, et dont notre civilisation nous empêche de comprendre la violence.

 

Não era porém a vingança a verdadeira razão da antropofagia. O selvagem não comia o corpo do matador de seu pai ou filho, se acontecia matá-lo em combate. Abandonava o cadáver no campo, e apenas cortava-lhe a cabeça para espetá-la em um posse à entrada da taba, e arrancava-lhe o dente para troféu.

 

A vingança pois esgotava-se com a morte. O sacrifício humano significava uma glória insigne reservada aos guerreiros ilustres ou varões egrégios quando caíam prisioneiros. Para honrá-los, os matavam no meio da festa guerreira; e comiam sua carne que devia transmitir-lhes a pujança e valor do herói inimigo.

 

Este pensamento ressalta dos mesmos pormenores com que os cronistas exageraram o cruento sacrifício.

 

Morto o inimigo, não era devorado; antes as mulheres tratavam o corpo e o curavam, moqueando as carnes. Essas eram guardadas e distribuídas por todas as tribos, incumbindo-se os que tinham vindo assistir à cerimônia, de levá-las às tabas remotas.

 

Os restos do inimigo tornavam-se pois como uma hóstia sagrada que fortalecia os guerreiros; pois às mulheres e aos mancebos cabia apenas uma tênue porção. Não era a vinganca; mas uma espécie de comunhão da carne; pela qual se operava a transfusão do heroísmo.

 

Por isso dizia o prisioneiro: - "Esta carne que vedes não é minha; porém vossa; ela é feita da carne dos guerreiros que eu sacrifiquei, vossos pais, filhos e parentes. Comei-a; pois comereis vossa própria carne". Deste modo retribuía o vencido a glória de que os vencedores o cercavam. O heroísmo que lhe reconheciam, ele o referia à sua raça de quem o recebera por igual comunhão.

 

Algumas nações tinham outra comunhão, inspirada no mesmo pensamento. Era a dos ossos dos progenitores que reduziam a pó, e que bebiam dissolvidos no cauim em festas de comemoração. Este fato, assim como o sacrifício tremendo da mãe, que devia absorver em si o filho que lhe nascera morto, bem mostram que por modo algum nasceu do espírito de vingança o chamado canibalismo.

 

Transportemo-nos agora, não como homens e cristãos, mas como artistas, ao seio das florestas seculares, às tabas dos povos guerreiros que dominavam a pátria selvagem; e quem haverá tão severo que negue a fera nobreza desse bárbaro e tremendo sacrifício?

 

A idéia repugna; mas o banquete selvagem tem uma grandeza que não se encontra no festim dos Atridas; e está bem longe de inspirar o horror dessa atrocidade, que entretanto não foi desdenhada pela musa clássica.

 

No Brasil é que se tem desenvolvido, da parte de certa gente, uma aversão para o elemento indígena de nossa literatura, a ponto de o eliminarem absolutamente. Contra essa extravagante pretensão, lavra mais um protesto o presente livro.

 

Para concluir com este ponto, observaremos que nem todas as nações selvagens eram antropófagas; e que em minha opinião esse costume, bem longe de ser introduzido pela raça tupi, foi por ela recebido dos Aimorés e outros povos da mesma origem, que ao tempo do descobrimento apareceram no Brasil.

 

(37) Esposa do túmulo: Este rito selvagem é muito conhecido, e dispensa-me de transcrever o que acerca dele escreveram os cronistas.

 

Mais uma prova do caráter generoso e bizarro do selvagem brasileiro. Longe de torturarem seu prisioneiro, ao contrário, se esforçavam em alegrar-lhe os últimos dias pelo amor; davam-lhe uma esposa; e tão grande honra era esta, que o vencedor a reservava para sua filha ou irmã virgem, e se não a tinha, para a filha de alqum dos principais da taba.

 

Falam alguns autores da cunhãmembira, como de uma cerimônia em que se devorava o filho que porventura a esposa do túmulo concebia do prisioneiro morto . Duvido da generalidade desse fato, que me parece adulterado, e seria especial aos tamoios.

 

Cunhãmembira, dizem esses autores, significa filho da mulher; e daí diz Southey, copiando Léry, tiravam eles uma horrível conseqüência; que era devorarem a criança.

 

Ora, cunhãmembira significa, saído do ventre da mulher. A língua tupi não tinha outro modo de designar a maternidade; taíra - isto é, saído do sangue, diziam do filho acerca do pai; e membira, diziam do filho acerca da mãe. Na expressão cunhãmembira, não há senão a anteposição do substantivo cunhã (mulher) que os índios suprimiam por supérfluo; assim como suprimiam na outra palavra, dizendo simplesmente taíra e não abá-taíra - saído do sangue do varão.

 

Se o nome de cunhãmembira indicasse estar a criança destinada ao suplício; então todos os nascidos da taba se achariam no mesmo caso, pois todos eram.em relação às mães, membiras ou cunhãmembiras.

 

Ainda mais, se a criança era condenada ao suplício pela razão de ser do sangue inimigo; parece que o nome a ela dado devia exprimir esse fato importante e derivar-se antes desta frase: miauçub-taíra - o gerado do sangue do cativo.

 

A estes filhos dos prisioneiros chamavam os indígenas marabá - gerado da guerra, nome honroso, que revelava o apreço em que tinham essa prole, saída de um sangue heróico. E tanto assim era que destinavam para conceber essa prole, o seio da virgem mais ilustre da taba.

 

Se os selvagens, que nada praticavam sem uma razão justificativa, só tinham em mira devorar os filhos do cativo, para que dar-lhe uma esposa ilustre? Mais sagazmente procederiam adjudicando-lhe diversas mulheres para terem maior criação a matar.

 

Está se conhecendo que o tal banquete não passa de um invento de cronistas, que entenderam as outras palavras dos índios tão bem como a de cunhãmembira que eles diziam significar filho do inimigo.

 

Cunhãmembira creio eu ser a festa que se fazia pelo parto da mulher; e talvez acontecendo nascer morta a criança, se originasse a fábula, do sacrifício que então se praticava entre algumas nações, de ser a mãe obrigada a absorver em si esse fruto, goro de sua fecundidade.

 

(38) Guanumbi: "Persuadem-se os brasilienses haver uma ave, que chamam colibri, a qual leva e traz notícia do outro mundo". (Santa Rita Durão- Notas ao Caramuru)

 

Também chamavam os índios a esse pássaro, Guaraci-aba - cabelos do sol: e Arati ou Arataguaçu, segundo Marcgraff, 197. Quanto ao nome de Guanumbi, ou mais corretamente Guinambi, penso eu que significa o brinco das flores. Os selvagens tiraram naturalmente essa designação do modo por que o colibri tremula, como suspenso à flor para chupar-lhe o mel, semelhante ao movimento das arrecadas suspensas às orelhas, e que eles chamavam nambi pora.

 

(39) Juçara: "Nas povoações feitas em terra, têm muitas nações guerreiras a providência de as segurarem e munirem com fortes muralhas, não de pedra, mas de estacas do pau duro como pedra. Outros as fabricam de palmeira, que chamam juçara, cujos espinhos são tão grandes e duros, que servem a muitos de agulhas de fazer meias; e as trincheiras feitas de juçara são mais seguras que as mais bem reguladas fortalezas; porque de modo nenhum se podem penetrar e romper, senão com fogo, por crescerem não só cheias de grandes estrepes ou agudos espinhos, mas tão enlaçadas e enleadas umas com outras, que se fazem impenetráveis". (Tesouro descoberto no rio Amazonas, parte 2a, cap. 1o no 2o vol., da Rev. do Instituto, p. 350)

 

O nome da palmeira é em tupi espinhosa, de ju - espinho, e ara desinência.

 

(40) Carbeto: Assim chamam Ives d'Evreux e Abbeville ao conselho dos velhos entre os selvagens. Este nome deriva-se naturalmente de caraíba - varão ilustre, e ipê - lugar onde.

 

(41) Hóspede: A virtude da hospitalidade era uma das mais veneradas entre os indígenas. Todos os cronistas dão dela testemunho; e alguns, como Léry e Ives d'Evreux, descrevem com particularidade o modo liberal e generoso por que os selvagens brasileiros a exerciam.

 

E certo que não escapou também à malevolência dos cronistas, essa excelência e nobreza do caráter indígena. Gabriel Soares, cit. cap. 163, depois de falar de como os tupinambás agasalhavam os hóspedes, acrescenta: "e lançam suas contas, se vem de bom título ou não; e se é seu contrário, de maravilha escapa que o não matem, etc." Southey, cit. cap. 8o, faz coro com essa versão que nos parece suspeita.

 

É possível que depois da colonização, os selvagens, vítimas das perfídias dos aventureiros, relaxassem suas tradições; mas a hospitalidade foi sempre entre eles uma coisa sagrada, como atestam em geral os escritores, que não referem aquela exceção.

 

Basta refletir sobre o modo por que exerciam os selvagens a hospitalidade para reconhecer que não é admissível a suspeita de Gabriel Soares. "Em verdade, aqueles cuja porta estava aberta sempre ao viajante; que franqueavam o ingresso de sua cabana por tal modo que o estrangeiro nela entrava como senhor, ainda mesmo na ausência do dono; que, sem perguntar o nome de quem chegava nem donde vinha, o agasalhavam com a maior liberalidade; esses que assim acolhiam o hóspede, não podiam ocultar a intenção pérfida de o matar, no caso de ser contrário." Há uma tal contradição entre esse desfecho e as circunstâncias precedentes, que não se pode acreditar nele pelo simples dizer de um cronista, que em muitas outras inexatidões caiu.

 

Se há traço nobre do caráter selvagem é essa hospitalidade, que o estrangeiro não pedia e sim exigia como um direito sagrado, com esta simples fórmula - Vim; ao que o dono da cabana respondia - Bem-vindo.

 

O episódio da deliberação do conselho sobre o nome do estrangeiro está justificado pelo trecho seguinte de Ives d'Evreux, cap. 50.

 

"Après ces paroles il vous dit - Marapê derere? comment t'appelles-tu? quel est ton nom? comme veux tu que nous t'appelions? Quel nom veux tu qu'on t'impose? Où faut-il noter, que si vous ne vous estes donné et choisi un nom, le quel vous leur dites alors et desormais estes appellé par tout le pays de ce nom, les sauvages du village ou vous demourez vous en choisiront un pris des choses naturelles, qui sont en leurs pays ce le plus convenablement qu'il leur sera possible, selon la phisionomie qu'ils veront en votre visage, ou selon les humeurs et façons qu'ils reconnaitront en vous. (...). 'Eh bien quel nom donnerons nous à un tel ton compère?' 'Je ne sais, il faut voir'; lors chacun dit son opinion et le nom qui rencontre le mieux et est reçu de l'assemblée, est imposé avec son consentement si c'est quelque homme d'honneur."

 

Ainda nessa circunstância se revela a delicadeza da hospitalidade do selvagem.

 

(42) Artes da paz: É ainda de Ives d'Evreux, cap. 18, esta curiosa informação: "Je reconterai ici une jolie histoire. Un jour je m'allois visiter le grand Theon, principal des Pierres Verts Tabaiares: comme je fus en sa loge et que je l'eus demandé, une des ses femmes me conduit soubs une belle arbre qui estoit au bout de sa loge, qui la couvrait du soleil; là-dessous il avait dressé son messier pour testre des licts de coton et travaillait après fort soigneusement; je m'étonnai beaucoup de voir ce grand capitaine, vieil colonel de sa nation; ennobli de plusieurs coups de mousquets, s'amuser à faire se mestier et je ne peus me taire que je ne scusse la raison espérant apprendre quelque chose de nouveau en ce spectacle si particulier. Je luy fist demander par le truchement qui estoit avec moy, à quelle fin il s'amusait à cela? il me fit responce: 'Les jeunes gens considèrent mes actions et selon que je fais ils font; si je demeurais sur mon lit à me branler et humer le petim, ils ne voudraient faire autre chose; mais quand ils me voient aller au bois, la hache sur l'épaule et la serpe en main, ou qu'ils me voient travailler à faire des licts, ils sont honteux de rien faire, etc.'

 

(43) Lançadeira: Os indígenas tinham um tear que é descrito por Léry, cap. 18. Usavam também de um fuso comprido e grosso, que as mulheres faziam girar entre os dedos, atirando ao ar, como ainda agora fazem as velhas fiandeiras do sertão.

 

(44) Jurandir: Contração da frase Ajur-rendi-pira, o que veio trazido pela luz.

 

(45) Jabuti: Contou-me o Dr. Coutinho que o jabuti para os índios do Amazonas é o símbolo da gravidade, prudência e sabedoria, e prometeu-me dar um apólogo, em que eles celebram essas virtudes, contando a história de um jabuti, que venceu na ligeireza ao veado, na força à onça, e assim aos mais animais.

 

(46) "Pará sem fim - Par, diz Humboldt, cit., p. 384, é um radical guarani e exprime água. Pará creio eu que significou a grande abundância d'água, e foi primitivamente empregado para designar os lagos e porventura as vastas inundações do vale do Amazonas . Mais tarde os selvagens acrescentaram-lhe o verbo nhanhe - correr, e disseram pará-nhanhe - donde paranãn, para designar as grandes massas d'água corrente, isto é, os rios caudalosos.

 

Os dois maiores rios da América do Sul, o Amazonas e o Prata, ambos se chamavam Paranãn, assim como outros muitos do Brasil. O mesmo radical se encontra já composto em Paraíba, Parnaíba, Paranapanema, etc.

 

Foi a substituição do p pela análoga m que produziu o nome de Maranhão, acerca de cuja etimologia se inventaram tantas extravagâncias.

 

(47) Tetivas: Os tetivas habitam nos olhos das palmeiras e de outras árvores: põem-lhes terra e acendem fogo. Humboldt, cit., p. 283.

 

(48) Mulheres guerreiras: Alusão às amazonas cuja existência é tão controvertida. Eu acredito na sua existência, embora reconheça que houve exageração de Orellana.

 

Não é este o momento de elucidar este ponto da história, ou antes mitologia do Brasil selvagem. Proponho-me a fazê-lo, quando publicar uma lenda que tenho esboçada acerca do assunto. Nessa ocasião direi o que entendo acerca da memória do Dr. Gonçalves Dias, publicada na Revista do Instituto.

 

(49) Senhoras de seu corpo: Metáfora tupi. No varão a parte nobre era o sangue; pelo que ele dizia do filho - taíra, o filho do meu sangue; e para indicar a independência diziam taiguara, que os dicionários traduzem livre, mas que literalmente significa - senhor do seu sangue.

 

A mulher que dizia do filho membira - o gerado de meu ventre; devia pela mesma razão usar de expressão análoga para exprimir sua liberdade, e dizer membijara - senhora de seu ventre, que eu por elegância traduzo menos literalmente - senhora de seu corpo.

 

(50) Guerreiros do mar: Tradução da palavra tupi caramuru com que os tupinambás da Bahia designaram Diogo Álvares Correia.

 

Caramuru é composto de cará, alteração de Pará - mar, e moro, gente; homem do mar. Os selvagens acreditavam que as águas eram habitadas, e daí nasceu a lenda da mãe-d'água, que se transmitiu à raça invasora. Nada mais natural do que chamarem ao primeiro homem branco, que lhes apareceu surgindo do oceano, Caramuru - o guerreiro do mar.

 

(51) Resina cheirosa: É o ambar, que os tupis chamavam Piraoçurepoti, e de que ao tempo do descobrimento abundavam as ribeiras do mar, nas províncias do norte.

 

(52) Moças: É difícil, senão impossível, determinar atualmente, e pelas informações tão falhas quão malignas dos cronistas, a condição da mulher entre os selvagens.

 

Do que tenho lido coligi as idéias, a que no texto se alude mui ligeiramente, e a que em outro lugar demos maior desenvolvimento.

 

(53) Para servir a Itaquê: "E quando o principal não é o maior d'aldeia dos índios das outras casas, o que tem mais filhas é mais rico e estimado, e mais honrado de todos, porque são as filhas mui requestadas dos mancebos que as namoram; os quais servem os pais das damas dois e três anos primeiro que lhas dêem por mulheres; e não as dão senão aos que melhor os servem, a quem os namoradores fazem a roça, e vão pescar e caçar para os sogros, que desejam de ter, e lhe trazem a lenha do mato, etc." G. Soares, cit., cap. 152.

 

Aí está a lenda bíblica de Jacó, servindo a Labão 7 anos para obter por esposa a Raquel. Não consta porém que os selvagens usassem da esperteza do pai de Lia, para descartar-se de uma filha defeituosa; se tal acontecesse entre os tupis, de que ridículas indignações não se encheriam os cronistas?

 

(54) Manati: É o peixe-boi, de cujo couro mais forte que o do touro, os índios fazem escudos. Anunciam a chuva, saltando acima d'água. Gumilla - El Orenoco Ilustrado, p. 276.

 

(55) Biaribi: Um dos modos por que os índios assavam a caça, e consistia em enterrá-la envolta em folhas de banana, e acender em cima o fogo, cujo calor penetrando no chão cozia a carne, concentrando-lhe o sabor.

 

Moquém era simplesmente o assado envolto em folha e feito sobre a brasa; daí vem moqueca de que tiramos os verbos moquear e amoquecar.

 

Bucã, supõem alquns que seja alteração de moquém; mas eu o considero termo distinto que exprimia apenas a operação de secar a carne ao fumeiro para conservá-la. Neste sentido é que Léry e Ives d'Evreux empregam constantemente o termo francês boucaner, derivado da palavra tupi.

 

(56) Pela mão da mulher: Refere Gumilla, cap. 45, que estranhando aos índios sobrecarregarem as mulheres com os trabalhos agrícolas, eles retorquiram que as mulheres sabem dar fruto, o que não sabem os homens, e por isso na mão delas as sementes nasciam e se multiplicavam.

 

(57) Pirijá: Uma espécie de palmeira chamada palmeira-real; é espinhosa e tem frutos semelhantes ao pêssego. Humboldt, cit., p. 257 e 262.

 

(58) Nunca Jandira ofereceria sua rede de esposa, etc.: Araci representa o amor da virgem tupi, segundo o costume tradicional de sua nação, que admitia a comunidade e partilha do amor, como um privilégio do guerreiro ilustre. Ser amada exclusivamente, significava para a mulher selvagem, ser amada por um guerreiro obscuro.

 

Jandira representa o exclusivismo do amor, que muitas vezes devia lutar com a lei tradicional; porque é um impulso da natureza, a qual não é dado ao homem aniquilar embora muitas vezes a sopite.

 

(59) O combate nupcial: Este rito de ser a virgem requestada, o prêmio do valor e da coragem, é atestado por grande número de escritores.

 

Barlaeus, p. 420: - "Lucta et hastarum concursu decertare gloriosum, finis spectanctium voluptas es, presertim amantium foemina de cujus-que fortitudine et victoria pronuntiat, sic in proximo pignora, pugnandi irritamenta sunt fortitudinis proecones, ciborum administrae".

 

(60) A figura da noiva: Esta prova de destreza era muito usada pelos selvagens. Marcgraff descreve a espécie de torneio que eles faziam divididos em duas turmas, a ver qual levava mais depressa o seu toro ao lugar destinado para acampamento. Naturalis Historia Brasiliae, liv. 8o, cap. 12.

 

Conclui com estas palavras: - "qui deinceps tempus terunt hastilibus certando, luctando, currendo; quibus certaminibus duae faeminae ad id selectoe proesident et judicant de singulorum virtute et victoribus".

 

Estes certames guerreiros, esses jogos de luta, combate e carreira, presididos por duas mulheres que julgavam do valor dos campeões e conferiam prêmio aos vencedores; não cedem em galanteria aos torneios da cavalaria.

 

Acerca da prova a que acima nos referimos escrevou o Dr. Gonçalves Dias - Brasil e Oceania, cap. 10, Revista do Instituto, tomo 30, parte 2a, p.155: - "Um toro de barrigudo em um cabo delgado e de fácil preensão, semelhante aos soquetes ou macetes de que ainda entre nós se usa em muitas partes para bater a terra das sepulturas, posto que mais poderoso que este, ou um grande pedaço de tronco de palmeira, era colocado no meio do terreiro. Vinha o guerreiro correndo, tomava o tronco, continuava a carreira, saltava fossos, subia elevações, arrojava-se às vezes ao rio com ele, e quem chegava primeiro e levava mais longe a carga, esse ganhava a palma e a mulher que tinha de ser esposada. Explicou-se esse costume, de que trata Barlaeus, Marcgraff e outros, e que ainda conservam algumas tribos do Piauí pela necessidade que tinha o guerreiro de defender a mulher, e para que em ocasião de perigo a pudesse salvar fugindo".

 

(61) O camucim da constância: Lê-se no Tesouro do Amazonas, cit., tomo 3 da Revista do Instituto, p 169. "O 5o predicado que também, como muitas outras nações, conservam os arapiuns é a prova da valentia quando casam; é um exame prévio ou o primeiro princípio, como se diz nas Universidades, às suas bodas, e uma experiência ou tentativa de seu valor para mostrarem que posto casem não é por efeminados, mas por valentes. Há diversos gêneros dessa prova de valentia; mas uma mui ordinária nos índios arapiuns é encherem uns grandes e compridos cabaços das formigas, que chamam saúgas (saúvas), grandes e mui bravas; ferram na carne com tanta ou mais valentia que os cães de fila; com proporção à grandeza destes e pequenez daquelas; porque os cães assim vêm a largar; mas as saúgas não largam ainda que as matem, e antes perderão a cabeça, ficando com as troqueses cravadas na carne, do que soltarem elas a presa; por isso usam delas alguns cirurgiões quando querem coser alguma cicatriz com segurança, sem usarem pontos, como adiante dizemos. Cheios pois os cabaços de saúgas, não só famintas, mas quando estão com fome talvez de dias... e sobre isso bem enraivadas com sacudidelas, presentes todos os velhos e graves da missão, sai a terreiro o noivo examinando, destapam-se os cabaços nos quais intrépido mete os braços, a que logo acodem as filas, já para saciar a fome, já para desabafar a ira e já para provar e castigar o bacharel, o qual, posto que as dores o façam mudar de cores, torcer a boca, tremer o corpo, levantar as sobrancelhas e arrebentar as lágrimas; tenha paciência, que se quer, há de aturar a bucha, enquanto os examinadores, já bebendo-lhe à saúde e já dando voltas em bailes, se vão regalando à sua custa, etc."

 

(62) Igapê: É o nenúfar na língua tupi, de ig, ipe e potira - flor-d'água. Os portugueses corromperam essa palavra transformando-a em aguapé, nome por que é vulgarmente conhecida. Penso eu, porém, que devemos restaurar o nome indígena, até mesmo porque aguapé tem diversa significação em português.

 

Uma dessas ninféias, a rainha das flores, a que os índios chamavam milho-d'água, ou a flor jaçanã, por servir de ninho a essas aves paludais, nasce branca e com a luz do sol vai roseando até se tornar escarlate.

 

Em uma notícia publicada pelos jornais, li que o nome dessa flor, napê jaçanan, significa - forno das jaçanãs, do que duvido. O genitivo exprimiam os índios com anteposição do nome regido por esse caso; assim, napê jaçanan significaria jaçanã do forno. Demais, nem napê quer dizer forno, nem forno indica a idéia que se pretende de pouso ou ninho.

 

Uapê aí é o mesmo igapê com a simples diferença de figurar-se a vogal indígena por u em vez de ig, adotada pelo geral dos autores.

 

(63) Murinhém: Palavra composta de morib - afável, e nheng -falar. Veja-se a respeito dos cantores, nhengara, o que se disse na nota 28.

 

(64) Pahã: Palavra da língua macauli que significa seta. Crebã significa homem alvo; e Agniná - monte.

 

(65) Tomou a esposa aos ombros: Era entre as mulheres selvagens prova de amor, suspenderem-se às costas daqueles que preferiam, quando as requestavam com cantos e danças. Assim o atesta Marcgraff cit.: Ubi vespera advenit, coeunt adolescentes in varias cohortes et castra perambulantes cantillant ante tuguria, adolescentula autem quae juvenibus delectantur, produnt et cantillantes atgue tripudiantes sequuntur adolescentes et a tergo consistunt eorum quos amant, id enim ipsis amoris testimonian est p 280.

 

(66) Escaparam-me algumas notas que a inteligência do leitor suprirá. Todavia resumirei as de que me recordo neste momento.

 

À p. 35, faz-se referência à lenda de Sumé, já muito conhecida. Foi Sumé que ensinou aos tupis a agricultura e os primeiros rudimentos das artes.

 

À p. 37, onde se diz que os anos de Guaribu enchiam a corda de seus anos alude-se ao costume que tinham os selvagens de contar os anos pelos nós que davam em um cordel, outros pelos frutos do colar.

 

À p. 38, quando diz Jurandir que conta os anos pelos dedos, quer dizer que não tem mais de vinte, pois tantos são os dedos das mãos e pés.

 

À mesma p. 38, o grande lago que recolheu as águas do dilúvio é o Manoa, em cujas margens se fabulou o El-Dourado. Manoa em achaguá é dilúvio, segundo Gumilla, 2o vol., 7; palavra homóloga ao vocábulo tupi amana, que significa chuva.

 

Ainda à mesma p. 38, o combate que Jurandir figura entre o mar e o Amazonas é a descrição da pororoca. Ele chama as águas do mar - guerreiros azuis, por causa da cor das vagas, e as águas do rio - guerreiros vermelhos, porque a corrente do rio é então barrenta.

 

À p. 43, fala-se de matumbos. São as leivas que se fazem no Norte para a plantação da mandioca.
 

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística