LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
No tempo do rei, de Moreira de Azevedo
Edição de referência:
No tempo do rei, de Moreira de Azevedo.
Rio de Janeiro: Livraria de J. G.
de Azevedo & C., editores, 1899.
Nossos agradecimentos à Biblioteca
do IEB,
que gentil e prontamente nos
forneceu a digitalização desse romance.
I
Estavam reunidos em uma noite do
ano de 1817 diversos indivíduos em uma casa térrea da rua de São Pedro da
Cidade do Rio de Janeiro. Conservavam-se fechadas as portas e janelas, que
davam para a rua, mas na sala da frente, ao redor de uma mesa, onde descansavam
quatro castiçais de prata com velas de espermacete, viam-se sentados doze ou
treze indivíduos conversando em voz baixa.
— Deve haver bastante cautela,
dizia um, pois anda ativo o ministro Tomás Antônio, cujo faro é perspicaz.
— Entretanto têm as lojas
maçônicas caminhado às claras em Pernambuco, dão banquetes e levantam brindes.
— Assim é, mas sabe o colega o que
vai por lá, regougou o outro.
— Que há, perguntaram alguns ao
mesmo tempo.
— Houve uma revolução e
proclamou-se a república, exclamou o sujeito aterrado.
Produziu esta palavra um choque
como se uma bala de artilharia houvesse explodido no salão.
— Sim; expulsaram o governador
Caetano Pinto, e instituíram um governo republicano.
— Sim, repetiram diversos.
— Em obediência declaro que propalam ser o irmão Anselmo
da Costa, quem divulga o que aqui se passa.
— O que tem de expor em sua defesa, perguntou o presidente
ao acusado.
Anselmo levantou-se, cruzou os braços, abaixou a cabeça e
não pronunciou palavra.
Vendo que o acusado não tratava de justificar-se,
ergueu-se o vigilante, pronunciou algumas palavras, que todos ouviram de pé, e
em seguida aproximando-se de Anselmo o irmão fiscal, indicou-lhe a porta e
disse-lhe:
— Retirai-vos.
Sem praticar ato algum de violência, sem pronunciar uma
só palavra, lançando um olhar de cólera sobre seu denunciante, tomou Anselmo o
chapéu, abriu a porta e saiu.
— Havendo-se dado este triste incidente proponho o
encerramento da sessão, disse o presidente.
Aprovada semelhante resolução, levantaram-se todos, e
feita a devida vênia retiraram-se. Apenas ficou um chamado Luís Prates, que ali
residia, e que depois de examinar se a porta ficara bem fechada, apagou as
luzes da sala e recolheu-se ao interior da casa.
II
Convém travar relações com alguns
dos indivíduos, que acabamos de ver reunidos na casa térrea da rua de S. Pedro.
Era um deles Luís Prates, homem de
cinqüenta anos de idade, alto e corpulento. Vestia calção de ganga amarela,
meias brancas, sapatos de entrada baixa com fivelas, casaca e colete de pano
azul, trazendo atada a uma das casas do colete grossa corrente de ouro do relógio
com três ou quatro sinetas pendentes. Era empregado do arsenal de guerra ou do
Trem, como então se dizia.
Já dissemos que o irmão despedido
da loja chamava-se Anselmo da Costa.
De estatura mediana contava
Anselmo trinta anos de idade, tinha as pernas um pouco arqueadas e vivia de
foro.
Trajava casaca cor de pinhão,
calções da mesma cor, colete preto, meias e sapatos de fivelas.
Havia um outro chamado Eduardo
Maia, moço de 20 anos, esbelto, de fisionomia franca e simpática, e de caráter
alegre e expansivo.
Usava de calções e colete de cor
escura, casaca de belbulina parda, meias e sapatos de
fivela. Era empregado da alfândega.
Havia mais nove ou dez indivíduos,
dois quais não mencionaremos os nomes, nem outras particularidades, pois não
tem de figurar nesta narrativa histórica.
Corridos alguns dias depois
daquela reunião clandestina, dirigiu-se Anselmo da Costa à residência do
ministro Tomás Antônio na rua dos Inválidos, e fez-se anunciar pelo mordomo da
casa.
Introduzido na sala de espera,
apareceu, após alguma demora, o ministro trajando casaca de pano cor de vinho,
calções da mesma cor, colete azul, meias e sapatos com fivelas de ouro, grossa
corrente de relógio, gravata branca e bastante alta, e quer o peito, quer os
punhos da camisa, ornados de babadinhos crespos.
Era costume de Tomás Antônio não
apresentar-se à pessoa alguma decentemente vestido.
— Que deseja, perguntou ele a
Anselmo.
— Venho fazer a V. Ex. uma
revelação importante.
— Dirija-se então para ali. E
indicou-lhe um gabinete, que comunicava a sala.
Neste aposento, cuja porta, assim
como as da sala de recepção, eram veladas por grandes reposteiros de lã azul
com cordões e borlas encarnadas, havia uma linda secretária com belos lavores
de madeira trabalhada pelo insigne artista brasileiro Valentim, e seis cadeiras
e um canapé de jacarandá com espaldar e assento de couro lavrado obra do mesmo
artista.
Vinha Anselmo envolvido em um
capote de pano de cor cinzenta.
Acompanhando o seu visitante
apresentou-lhe o ministro uma cadeira, e sentou-se em outra.
— Fale, estou às suas ordens,
disse Tomás Antônio.
— Comunico a V. Ex. que está
instalada em uma casa da rua de S. Pedro desta cidade uma loja maçônica.
Tornou-se Tomás Antônio muito
atento, quis ficar ciente de todos os pormenores, dos nomes dos congregados,
suas ocupações, residências, dias de sessões, questões apresentadas em
discussão, e logo que ficou de tudo informado, disse ao seu interlocutor.
— Bem, agradeço-lhe o serviço que
acaba de prestar ao governo de el-rei nosso senhor,
que saberá recompensá-lo.
Cortejando respeitosamente ao
ministro retirou-se Anselmo contente com a promessa, que acabara de ouvir.
Na noite desse mesmo dia ficou um
batalhão de prontidão no quartel do campo de Santa Ana, hoje praça da
República, colocaram-se sentinelas nas ruas que cortam a de S. Pedro, e um
pelotão de soldados cercou a casa de Luís Prates.
Encarregado da diligência o tenente Gordilho
ao amanhecer bateu à porta da casa, e ordenou que em nome de el-rei fosse aberta.
Apareceu Luís Prates, que residia
só com dois escravos seus, e imediatamente recebeu ordem de prisão. Revisada
toda a casa, trastes e utensílios nada encontrou a autoridade de suspeito,
apenas um triângulo de metal, que parecia pertencer à maçonaria.
Receosos do caráter vingativo e
traiçoeiro de Anselmo, haviam seus companheiros transferido para outra casa as
suas sessões levando os emblemas e livros da maçonaria.
Luís Prates foi conduzido para uma
das prisões da fortaleza da Ilha das Cobras.
As sentinelas postadas nas
esquinas das ruas, o cerco à residência de Luís Prates, e a prisão desse
cidadão pacífico e honrado causaram sensação na cidade, assustou-se o povo, e
apesar do receio, que havia dos mações ou pedreiros livres, tidos como homens
que conversavam com o demônio à meia-noite, ninguém julgou-se livre de qualquer
perseguição. Propalou-se que iam fazer-se outras prisões, que corriam várias
denúncias, e que a maçonaria seria atrozmente
perseguida. Trataram os mações de ocultar-se, afastando-se da cidade, e
deixando muitos de freqüentar as lojas.
Informado de que existiam no
próprio paço real fidalgos filiados à maçonaria, procurou Tomás Antônio
persuadi-los a abandonar semelhante associação. Alguns o fizeram, outros
mostraram-se mais recalcitrantes, tendo o ministro de recorrer à autoridade do
rei.
Admoestados por D. João VI
resignaram as insígnias maçônicas os camaristas marquês de Angeja
e o conde de Parati.
Confessando-se arrependidos de
haverem pertencido à semelhante associação, para patentearem a sua contrição e
adesão à vontade absoluta do rei, ofereceu um deles toda a sua baixela de
prata para as urgências do erário régio, e comprometeu-se o outro a fazer o
serviço semanal do paço revestido de hábito e cordão de irmão da ordem de S.
Francisco.
De feito de hábito talar e cordão
pendente andou sete dias o conde de Parati nos salões do paço de S. Cristóvão,
a contento do carola e astuto D. João VI, e exposto no riso e galhofa da
criadagem, que nesse tempo atopetava a residência real.
Desse modo ridículo e impróprio
provou o fidalgo que abjurara a maçonaria, caindo nas boas graças do rei, seu
amo e senhor. (1)
Estava Eduardo Maia na rua
Direita, hoje 1º de Março, quando viu passar escoltado por soldados o seu amigo
Luís Prates.
Comoveu-se e irritou-se também,
pois compreendeu quem fora o denunciante. E no mesmo instante viu resvalar
junto de si, um indivíduo envolto em capote de pano cinzento e de gola alta,
que ocultava quase todo o rosto, mas apesar disso, reconheceu-o e tomando-lhe
do braço disse-lhe.
— És um infame.
— Veja como se expressa, Sr.
Eduardo
— Repito, és um traidor, um
denunciante, mas hás de pagar, e apertou-lhe com força o braço.
— Deixe-me, retorquiu o miserável
aterrado.
— Vai espião e Deus te castigará.
E largou o pusilânime Anselmo, que
tremia como se diante de si visse já alguma arma erguida.
E apressado afastou-se o traidor,
e foi seguindo a escolta dos soldados até ao arsenal de marinha, onde o preso
embarcou para a ilha das Cobras.
III
Residia no beco da Fidalga Antônio Gonçalves, casado com
Maria de Souza e pai de Alice.
Tinha Alice olhos vivos, boca
pequenina, nariz afilado, dentes miúdos, cabelos bastos, e corpo engraçado e
bem cinzelado. Se era encantadora a beleza de seu semblante, os contornos
elegantes de suas formas fascinavam.
Seu pai era ajudante do almoxarife
do paço da cidade. Quando apresentava-se com a sua casaca azul agaloada de prata, seus calções encarnados,
meias de seda chapéu armado, tomava um ar grave e imponente, o de toda a
vizinhança recebia cumprimentos.
Eram naqueles tempos muito
considerados os criados da casa real, qualquer que fosse sua categoria.
Submisso ao governo absoluto consagrava-lhes o povo temor e respeito.
Especialmente pela maldita lei das aposentadorias, viviam inquietos os
habitantes da cidade, pois não podiam ninguém julgar-se seguro na casa que
habitava. Se era cobiçada por algum criado do paço, dirigia-se este ao juiz aposentador e indicava-lhe o prédio que escolhera. Enviava
o magistrado um meirinho à casa indicada, o qual imediatamente escrevia com giz
na porta as letras P. R, príncipe regente, que o povo em galhofa traduzia pela
frase ponha-se na rua. Mudava-se o proprietário e o fidalgo, criado do
paço, aboletava-se ou aposentava-se muito a seu gosto.
Gozavam de semelhante regalia só
os criados de elevada jerarquia, mas também os de menor graduação em geral
residiam nas dependências dos palácios reais, e alguns se não tinham casa paga
pelo bolsinho do rei, eram alimentados pela ucharia
da casa real.
Colocada no pavimento térreo do
antigo convento do Carmo, que foi absorvido para acomodações da família real,
quando fugiu de Portugal para o Brasil em 1808, era a ucharia
do paço da cidade um grande sorvedouro dos dinheiros públicos. Havia ali comida
em profusão; ali iam fornecer-se de víveres muitos criados, e alguns se não
tinham rações em gênero, recebiam-nas em dinheiro.
Os fidalgos aposentados nas casas,
que haviam requerido; eram obrigados a pagar aluguel ao proprietário, mas
muitos não o faziam, e ai do proprietário, que recalcitrasse; esperava-o a
cadeia ou o degredo.
Recebiam outros fidalgos em certas
festividades da capela real brandões de cera, e
alguns até do paço traziam fazendas de seda e linho para seu uso particular.
Qualquer criado da casa real
julgava-se um potentado; e até os de baixa classe, quando percorriam as ruas a
cavalo, iam em disparada, atropelando o povo, que, com seu bom senso,
apelidava-os de tranca-ruas.
Saia do erário o dinheiro para
toda a despesa da casa real, o rei não tinha dotação, gastava o que queria, sem
limite, nem ordem na distribuição das quantias.
Repetidas vezes vira Eduardo Maia
a filha de Antônio Gonçalves nas missas matutinas como então era uso, nas
festividades religiosas, nos fogos de artifício, e em outros divertimentos
próprios do tempo.
Uma das festas populares era a do
Natal, que estendia-se de 25 de dezembro a 6 de janeiro seguinte. Começava pela
missa do galo celebrada à meia-noite de 24 de dezembro, e continuava com a
exposição de presepes e cantatas da noite de Reis. Armavam-se diversos presepes
em diferentes pontos da cidade, porém os mais importantes eram os ladeira de
Santo Antônio, o das religiosas da Ajuda, e o do cônego Felipe no morro do
Livramento.
Logo depois da noite do Natal
começava a percorrer as ruas e visitar as casas a fula dos Reis composta de
moços vestidos de calções e jaqueta branca, chapéu de palha co fitas pendentes
e sapatos com fivelas douradas. Cantavam e dançavam ao som de tambores, flautas
e pandeiros, colhendo esmolas para as solenidades da igreja.
Levava um deles o estandarte com a imagem do Menino
Deus, que era exposta em todas as igrejas à adoração dos fiéis. Colhiam os
foliões abundantes esmolas, e nas casas em que eram admitidos, encontravam
mesas repletas de iguarias e doces.
Concorrendo à missa do galo na
igreja da Lapa dos Mercadores, à rua do Ouvidor, encontrou-se Eduardo co Alice,
e durante a cerimônia religiosa tiveram os dois namorados ocasião de trocar
muitas palavras de amor. Acompanhou a moça quando esta regressou à casa, e
vendo-a entrar repetiu a quadra de uma balada, então em voga, que dizia assim:
No Colégio deram duas.
Vede que horas são estas
Que eu por ti ando nas ruas.
Chegou Alice à janela do sótão, e
atirou-lhe com uma flor que trazia presa ao pente, que atava-lhe os cabelos.
Apanhou o moço a flor, beijou-a, e
colocando-a na lapela da casaca, retirou-se satisfeito.
Alice fechou a janela, e
recolheu-se para repousar, ou antes para pensar no ídolo do seu coração.
IV
Vivendo apaixonado pela formosa
Alice não havia festividade ou passeio a que ela fosse,
que ele não se apresentasse
também.
Residia em uma casa de porta e
janela no beco do Guindaste, hoje travessa do Dr. Costa Velho, a velha
Quitéria, que era a portadora das cartas, flores e, presentes dos dois amantes.
Usava Quitéria de saia de lila preta, mantilha da mesma cor, que presa ao alto pente,
que atava-lhe os cabelos, descia quase até aos pés, sapatos de duraque, e
pendente da cintura um comprido rosário
de contas brancas e pretas. Esmolava pelas casas, não por necessidade,
pois possuía uma escrava, que costurava calças e camisas, que trazia dos algibebes existentes junto à igreja da Cruz, e por isso
chamavam-se costuras da Cruz.
Amiudadas vezes ia a velha à casa
de Antônio Gonçalves, e aí, além ele receber à esmola do costume, informava-se
dos passeios de Alice, e levava a Eduardo
as cartas e recados, que ela lhe
pedia!
Em todas as casas de suas devotas,
isto é, daquelas que socorriam-lhe com esmolas, narrava e colhia novidades, e assim era sabedora dos
segredos de muitas famílias.
Aproximava-se a festa do Espírito
Santo celebrada nesses tempos com extraordinária pompa nas igrejas de Santa
Rita, Santa Ana, Mata-porcos, hoje Estácio de Sá, e no convento dos Carmelitas.
No campo de Santa Ana, hoje praça
da República, armavam-se barracas de madeira e lona, onde havia danças de
velhos, de jardineiros, teatros de bonecos, mágicas, exercícios ginásticos,
sortes, doces, comidas e brinquedos.
Semanas antes era a festividade
anunciada pelos foliões, rapazes trajados com calções vermelhos e galão
dourado, colete de seda branca, meias, sapatos de fivelas, e chapéu de feltro
de copa alta, abas largas e ornado de fitas.
Levava um deles de vestimenta mais
garrida o estandarte de cor encarnada, tendo estampado no centro o emblema do
orago da festa, assim como também na parte superior um pombo prateado de asas
abertas atufado em milhares de fitas de diversas
cores.
Acompanhavam os foliões dois
irmãos da irmandade do Divino revestidos de opas vermelhas, trazendo um uma
vara e bacia de prata para recebimento das esmolas, e conduzindo o outro pela
mão o imperador, menino de dez ou doze anos, trajando casaca e calção de
veludo, colete de seda branca, meias, sapatos de fivelas e chapéu armado.
Percorrendo as ruas ao som dos
instrumentos entravam os foliões em diversas casas, onde cantavam e dançavam,
repetindo versos adequados à festividade.
Erguiam-se junto da igreja de
santa Ana, demolida para dar espaço à estação central da estrada de ferro, o
coreto ou império do imperador, um ou dois coretos de música e o
palanque do leiloeiro, todos eles ornados com cortinas de damasco e renda e
iluminados à noite com copinhos de cores.
Em frente do império flutuava
sobre o alto mastro o estandarte do Espírito Santo.
O leilão das ofertas, as fogueiras
de cabeças de alcatrão espalhadas pela praça, os fogos de vista, os repiques de
sinos, a música dos coretos, a romaria popular, a multidão aglomerada na praça,
as exclamações e gesticulações dos barraqueiros, apregoando suas quinquilharias
e divertimentos, os milhares de mercadores oferecendo à venda frutas, aves,
doces e acepipe, davam a esta festa popular grande animação e alegria, e assim
prolongava-se até o dia de Santana.
Nos coles de fogos de vista era
maior a concorrência popular. Aboletavam-se as famílias em esteiras de palha
estendidas pelo campo apreciando os petiscos que compravam; outras visitavam os
divertimentos, e ao som da música, de vivas e bravos ao artista pirotécnico, ou
de assobios e vaias, quando falhava qualquer peça, divertiam-se até altas horas
da noite, pois só muito tarde começavam a arder os fogos de artifício.
Agradava ao paladar do povo o
leilão das prendas ofertadas ao Divino, e era feito, como já dissemos em um
palanque próximo da igreja, e por indivíduo dado a galhofas e brejeirices.
Ia quase todas as noites às
barracas do campo a família de Antônio Gonçalves, e ali encontrava-se com
Eduardo, avisado antecipadamente do passeio pela velha Quitéria.
Aproximava-se a família de Antônio
Gonçalves do palanque do leiloeiro, quando este apregoava lindo ramalhete de
flores do seguinte modo.
— Afronta faço que mais não acho,
se mais achara mais tomara, dou-lhe uma,
dou-lhe duas, uma maior, outra menor. Quanto dão por este ramo?
Lançou cada um a sua oferta, porém
Eduardo cobriu o maior lanço.
— Dou-lhe três, dou-lhe tudo de uma
só vez, bradou o leiloeiro, batendo com o martelo na mesa, que tinha em frente
de si, e entregando o ramalhete a Eduardo, que ofertou-o imediatamente a Alice.
Não passou isso desapercebido a
Antônio Gonçalves, que já fizera reparo na presença do moço em todo o lugar, em
que ele se dirigia com a família.
Franziu o velho a testa e
cumprimentando ligeiramente o mancebo, afastou-se dali com a mulher e a filha.
Em caminho disse a sua
companheira.
— Anda a menina com um namorico,
que me não agrada, é preciso dissuadi-la.
— Não seja impertinente,
retrucou-lhe a mulher.
— Mas não gosto de semelhante
moço.
— Cale-se que Alice pode ouvir.
— Vamos assistir ao teatro de
bonecos, papai, perguntou Alice, que ia um pouco adiante.
— Vamos, respondeu o velho, e
começou a sorrir.
V
Correram assim meses vivendo os
dois namorados nesse enlevo de esperanças, risos, surpresas e encantos, que
constituem a vida dos que se amam.
A alguns amigos referira Eduardo o
amor, que consagrava à filha do almoxarife, manifestando desejos de casar-se.
Abrira-se, entre outros, com o
major Mello, comandante do regimento dos pardos, e esse bom homem aprovara os
seus projetos.
Era o major amigo de Antônio
Gonçalves, e encontrando-se um dia com este na missa da igreja da Cruz,
dissera-lhe:
— Conhece o Eduardo Maia,
empregado da Alfândega?
— Muito, e vejo-o quase todos os
dias, acrescentou o velho sorrindo.
— É moço morigerado.
— Consta-me que sim.
— Bom empregado público, tanto
assim que residindo em Catumbi não falta um dia à repartição.
Não havendo naquela época meios
fáceis de condução, não havendo aparecido ainda nem os ônibus, nem as gôndolas,
nem as diligências, existindo apenas as seges dos particulares, acontecia que quase
todos os empregados públicos residiam nas ruas centrais da cidade.
Raro era aquele que morava em
lugar mais distante, e então ou vinha a cavalo, ou necessitava ser há tantos
entre os mais ilustres e distintos membros da sociedade?
— Talvez assim seja, mas não
tenciono major, a um...
Bem, interrompeu-lhe o amigo, não
desejo contrariá-lo mais. E eis a missa que vai entrar.
De feito apareceu o pároco seguido
do acólito, e ajoelhando-se junto do altar, o mesmo fizeram os dois amigos na
nave da igreja enquanto partiam do coro os sons harmoniosos do órgão.
VI
Costumava D. João VI passar todos
os anos alguns dias na fazenda de Santa Cruz, onde mandou reconstruir o antigo
colégio dos jesuítas, transformando-o em palácio e mobiliando-o com luxo.
Quando fazia o rei a viagem à
Santa Cruz era interessante ver o préstito real. Na frente iam dois cadetes de
cavalaria como batedores, e em seguida desfilavam as seges dos veadores,
guarda-roupas, damas, camaristas, do cirurgião da real câmara, do confessor
real, e logo após a traquitana de el-rei de caixa
dourada e forrada interiormente de damasco encarnado. Fechava o préstito um
piquete de cavalaria. Raras vezes acompanhava-os nesse passeio sua mulher a
rainha Carlota.
Ordinariamente usava D. João
calções e colete de pano preto, casaca de saragoça ou
de pano azul, meias de seda e fivelas de ouro nos sapatos. Pendente da casaca
trazia um crachá de prata com as três cruzes das ordens militares de Cristo, Avis e Santiago,e embaixo desta a da Torre e Espada. A grã
cruz destas quatro ordens via-se pendente de uma só fita.
Quando andava de carro trazia
sempre o chapéu à cabeça e não o tirava a ninguém. Junto de sua traquitana
cavalgava o seu criado particular Tomás Carneiro.
Em dias de gala ostentava a
cabeleira empoada corrida para o alto da redonda cabeça, donde caía ao longo
das costas em rabicho, depois de repartida em dois canudos para cada uma das
têmporas. Trajava calções de caxemira branca, colete da mesma fazenda, casaca azul
ou vermelha, tendo no peito a ordem do tosão de ouro, meias de seda muito finas
e fivelas com brilhantes nos sapatos.
Era homem de baixa estatura, de
pernas um pouco grossas, pés e mãos pequenos, rosto avermelhado e largo, faces
nédia, barba raspada e lábios grossos e pequenos. Quando os dentes incisivos
superiores levantavam a ponta do lábio davam à boca a expressão de uma bonomia
imperturbável.
De calções e meias usavam todos os
criados da casa real, assim como de farda direita de pano azul orlada de galão
de ouro, prata ou de retrós conforme a sua categoria, e de chapéu armado, que
os lacaios colocavam atravessado.
Compunham a guarda real os
arqueiros de farda vermelha, colete azul com vivos brancos, calções com galões
amarelo, espada, lança e chapéu armado com galão branco e debruado de branco.
Era D. João homem instruído,
conhecia o latim, o francês, o espanhol, história e matemáticas, mas mui
modesto, não ostentava seus conhecimentos. Prudente e dissimulado ouvia a opinião
dos seus conselheiros, porém era mui reservado em manifestar a sua. Afável e
lhano tratava bem a todos, e não perseguia a ninguém. Se era comedido em suas
expressões, era generoso com seus inimigos, e sua única manifestação, que dava
quando acontecia encontrar-se com eles, era franzir o rosto e não lhes falar.
Mui religioso ouvia todos os dias missa em seu oratório particular,
confessava-se amiudadas vezes, e sempre, que o fazia, mandava celebrar missa em
seu oratório privado, e aí comungava. Era seu confessor privativo o bispo que
foi do Maranhão, D. frei Joaquim de Nazaré, e no impedimento deste outro
sacerdote de sua confiança; mas tinha um confessor régio, nomeado por decreto,
que o ouvia de confissão na capela real, e era o religioso franciscano frei
Joaquim. Dizia-se mal desse frade, e propalava-se que por isso mesmo o rei o
escolhera para ver se assim ele se corrigia, e melhorava de conduta.
Assistia D. João a todas as
festividades da capela real e a algumas de outras igrejas; era perito no cantochão.
Levantava-se cedo, e logo que
faziam-lhe a barba e ouvia missa, ia para a mesa do almoço, e dali seguia em
geral para a sala do conselho dos ministros, onde demorava-se até as duas
horas. Passava-se depois para a sala de jantar. Não bebia vinho, nem licor de
qualidade alguma. De tarde saia a passeio.
Havendo falecido o conde da Barca
foi modificado o ministério tomando conta da pasta do reino e casa de Bragança
o chanceler Tomás Antônio Vila Nova Portugal.
Alcançou este ministro a confiança
íntima de D. João, que com ele entretinha constante correspondência, ouvindo-o
em quase todos os negócios. Quando escrevia-lhe assinava-se João Carlos.
Nascera Tomás Antônio em Portugal
em 1755, e fora seu pai um advogado de pouca fortuna. Tendo ocupado o cargo de
corregedor foi nomeado desembargador da relação do Porto com exercício na casa
da suplicação de Lisboa. Transferido oficialmente para aí foi mais tarde
nomeado fiscal do erário régio, e por sua hábil administração conseguiu
melhorar as finanças e cobrir o déficit. Passou a desembargador do paço, o que
causou inveja e desgosto não só por ser ele o desembargador mais moço, como
também por ser filho de um pobre advogado da aldeia. Tinham-lhe ojeriza os
antigos fidalgos, e mais de uma vez procuraram intrigá-lo. Elevado a
chanceler-mor do Brasil e a ministro de estado, maior rancor consagravam-lhe os
fidalgos.
Residia Tomás Antônio, na rua dos
Inválidos, como já dissemos, na chácara da esquina da rua do Senado. Pertencia
essa casa ao médico do paço Vieira, depois barão de Alvaiázere,
valido do rei, que dela lhe fizera presente. Existira aí no tempo dos vice-reis
um asilo para inválidos, donde proveio o nome da rua.
Apesar de merecer do rei toda
confiança não abusava Tomás Antônio de sua posição, não intrigava ninguém,
mostrava-se obediente, respeitoso, firme e calmo em suas opiniões.
Na época de que escrevemos,
desejando D. João passar à fazenda de Santa Cruz, falou a Tomás Antônio.
— Seria conveniente, meu senhor,
respondeu o ministro, desistir este ano de semelhante passeio.
— Por que, perguntou o rei
franzindo a testa.
— Não foi incluída no orçamento a
despesa necessária para esta jornada.
— E por que houve essa lacuna?
— As dificuldades financeiras, o
déficit...
— Bem, mande chamar Targini.
Depois de beijar a mão do rei,
fez-lhe o ministro profunda cortesia e saiu.
Corridas algumas horas
apresentava-se na sala do paço Targini, visconde de
São Lourenço, tesoureiro-mor do erário régio.
Avisado el-rei
apareceu logo, e comunicou ao tesoureiro a observação do ministro.
Não sendo afeiçoado a Tomás
Antônio aproveitou-se Targini da ocasião e disse.
— Não dê importância, meu senhor,
ao que disse o Sr. Tomás Antônio; vá para Santa Cruz, que não faltará dinheiro
no erário para esse passeio; e se faltasse tenho amigos, que não me deixarão
ficar mal perante vossa majestade.
Sorriu-lhe o rei, e tendo o Targini de retirar-se deu-lhe a mão a beijar.
Imediatamente expediu o
tesoureiro-mor ordens para ser fornecida a quantia necessária para o passeio do
soberano.
No dia seguinte partiu D. João
para Santa Cruz sem participar ao seu ministro Tomás Antônio.
Procedia assim o governo absoluto.
Não tendo o rei dotação limitada ou pensão do Estado, gastava quanto queria, e
todas as suas despesas eram pagas pelo erário público.
Exorbitantes eram as despesas da
casa real, especialmente as da ucharia, mantearia, cavalariça e outras e todas pagas pelo erário.
Além disso quando necessitava de qualquer quantia extraordinária mandava o rei
buscá-la ao erário pelo seu tesoureiro particular sem que houvesse da parte dos
empregados a menor observação. Acresce que dos brilhantes recolhidos ao erário,
os de maior quilate e melhor água, iam para o monarca, que os guardava para si.
E quando casava as filhas era do erário que vinham as jóias, os brilhantes, que
desejava oferta-lhes.
Santíssimos tempos do absolutismo,
ainda hoje tão elogiados por alguns!
VII
O rei foi recebido
Compareceram ao ato o mordomo do palácio,
os semanários e todos e todos os fidalgos e criados da comitiva real.
Alguns dias depois mandou o
monarca chamar o ministro Tomás Antônio, que apresentou-se vestido de casaca
vermelha direita com bordaduras nos canhões e na gola, calções de casimira
branca, colete da mesma fazenda, sapatos com fivela de ouro e chapéu armado com
presilha dourada.
Vestia o rei sua casaca usual,
calções, meias e sapatos com fivelas.
Admitindo o manifesto no gabinete
de despacho não falou-lhe D. João da viagem à Santa Cruz, nem ousou também o
ministro referir-se a este incidente.
— Mandei-o chamar para saber o que
há de novo, disse-lhe o rei.
— Recebi agradáveis notícias da
capitania de Pernambuco, onde a revolução foi sufocada.
— Estimo muito.
— Vieram ofícios relatando a
prisão e execução de diversos revoltosos.
— Haverá por semelhante motivo
solene te-deum na capela deste palácio, acrescentou
D. João.
— Felicito a vossa majestade em
nome da nação por tão assinalado triunfo. E aproveito a ocasião para lembrar ao
meu senhor uma medida urgente.
— Qual é?
— Para os terríveis acontecimentos
revolucionários, que ocorreram em Pernambuco, contribuíram os clubes maçônicos
do Paraíso, do Suassuna e do Cabo. Aqui, como vossa
majestade não ignora, vão também aparecendo reuniões maçônicas, e convém
providenciar em quanto é tempo.
— Pensa bem.
— Lembrava a necessidade de um
alvará com força de lei condenando não
só a maçonaria e todas as sociedades secretas, como os livros e quaisquer outras
instruções impressas ou manuscritas relativas à semelhantes sociedades.
— Aprovo a idéia e manda lavrar o
alvará para eu assiná-lo.
— Vou cumprir as ordens de vossa
majestade.
Retirou-se Tomás Antônio para uma
sala próxima, enquanto o rei começou a passear pelo gabinete com os braços
atrás das costas, como costumava.
Enquanto redigia o ministro o
terrível alvará, e o rei passeava, dirigia o reposteiro da câmara Francisco da
Silva finezas a uma dama do paço, que passeava no jardim chamado Curralinho.
— Cumprimento a V. Ex. que com a
sua beleza realça mais a grandeza e o brilho deste palácio.
— É muito lisonjeiro.
— Não, minha senhora, elogiando as
graças de V. Ex., por mais que diga, fico sempre distante da verdade.
— E agora está tão afastado dela!
— Estando perto de V. Ex. estou
junto de todas as perfeições, de todos sentimentos puros e verdadeiros.
— Então é porque acarreta-os
consigo mesmo.
— Não será antes porque eles se
irradiam de V. Ex. para mim?
— Julgo que o senhor vê mal.
— Pode ser em presença de tanta
luz. E mui alegre estou pela notícia que tive hoje.
— Qual!
— Tenciona el-rei
demorar-se algumas semanas neste palácio, onde terei o prazer de gozar da
presença de V. Ex.
Estando lavrado o alvará cominando
penas severas contra as sociedades secretas levou-o o ministro ao rei, que
lendo-o assinou logo.
— Agradeço a bondade e prontidão
com que vossa majestade atendeu a minha observação sobre os maçons, disse o
ministro recebendo o alvará. Vou enviá-lo para a cidade. E beijando a mão do
monarca saiu.
Dera Francisco da Silva o braço a
dama com quem passeava no jardim, e encaminhando-se para o paço chegou ao
primeiro pavimento, quando descia o ministro as escadas.
Percebendo ruído de passos disse a
dama a Francisco da Silva.
— Não convém que me vejam aqui.
— E deixando o braço do amante
ocultou-se em um dos quartos do pavimento térreo do paço. Encontrando-se com
Francisco da Silva perguntou-lhe o ministro.
— Conhece algum criado diligente
da casa real, que possa levar um ofício à corte?
— Conheço o Braga.
— Peço-lhe o favor de mandá-lo vir
à minha presença.
Comparecendo o criado deu-lhe o
ministro o ofício, ordenando-lhe que entregasse com urgência na chancelaria-mor
do reino.
Partiu o criado imediatamente para
a cidade. Enquanto esse homem corre a cavalo a toda brida levando o decreto de
condenação de uma classe inteira da sociedade, dirigia-se o rei vagarosamente
para sala do jantar murmurando consigo.
— Vamos ver qual o melhor prato,
que hoje preparou-me o Alvarenga.
Era Alvarenga o mestre das
cozinhas do paço, o cozinheiro favorito de D. João VI, assim como Isidoro era
seu sapateiro predileto.
VIII
Terminando o jantar levantou-se o
rei da mesa, tomou o seu bastão, no qual se arrimava, e desceu ao parque para
passear. Instantes depois ordenou a um dos semanários, que o seguiam, que fosse
chamar o médico Manuel Luís e ao religioso do Carmo frei Custódio. Logo que
estes chegaram encetou com eles conversação.
Referiu o cirurgião uma anedota
para entreter o monarca, que sorria satisfeito. Quanto a frei Custódio fértil
em ditos agudos, anexins e anedotas, depois de haver alegrado a todos com a sua
conversa variada, disse:
Vou agora, meu senhor, recitar uns
versos do desembargador Petra Bittencourt.
Enviando ele um presente de frutas
dentro de uma cesta de prata, envolvida em uma toalha bordada, ficou o
presenteado com tudo.
Desapontado mostrou-se o
desembargador, e ao sujeito remeteu a seguinte quadra:
Alma que sai deste mundo
Dizem que vai e não vem,
Mas o meu cesto e toalha
Quem o fez alma também.
Riram-se todos, e também D. João
que, tomando a boceta de rapé, sorveu com satisfação uma pitada.
Mas convém observar que depois de
haver aparecido em Pernambuco a revolução republicana raras vezes o rei
mostrava-se satisfeito, em geral apresentava-se um pouco taciturno.
Esquivava-se à própria família, e apenas atraíam-lhe cuidados o príncipe real
ou uma ou outra filha.
Entretinha-se o rei nessa palestra
quando entrou D. Francisco de Almeida Mello e Castro, conde das Galveias, que apresentou-lhe uma carta do marquês de Bellas pedindo licença para ir a Portugal cuidar em sua
casa e acomodar-se com seus credores.
Tendo lido as cartas mostrou-se D.
João contrariado por ser o marquês conselheiro de estado, e homem de sua estima
e inteira confiança.
Atraindo ao conde das Galveias para um dos bancos do jardim disse-lhe o monarca.
— Pede-me o marquês licença para
ir a Portugal, o que contraria-me nas circunstâncias políticas atuais do reino.
Ele não devia requerer agora semelhante coisa.
— Mas vossa majestade por que não
lhe nega a licença, retorquiu o conde.
— Não, observou D. João, há coisas
que não se devem pedir, mas quando se pedem devem-se conceder. Diga-lhe que
mande o requerimento a despacho e será atendido. (2)
E sem dirigir-se mais às pessoas
com quem há pouco palestrava, seguiu para o palácio, onde entrou.
IX
Dias depois compareceu de novo ao
gabinete do despacho o ministro Tomás Antônio, único membro do ministério, que
se achava
— Ouse lembrar a vossa majestade, ponderou o
ministro, que convém vir de Lisboa uma divisão militar tirada do exército
português, para tomar parte na guerra do sul do Brasil. Se as armas brasileiras
têm ali sustentado a luta com vantagem e denodo, deve também o exército
português participar dos louros dessa campanha.
— Acho justo, não se despertarão
assim rivalidades sempre inconvenientes e prejudiciais, acrescentou D. João.
O rei amava os Brasileiros,
procurava promover o engrandecimento do Brasil, e lamentava a rivalidade
existente entre Portugueses e Brasileiros, considerando todos seus súditos.
Mas não pensavam assim os seus
conselheiros e fidalgos; quase todos favoreciam aos seus compatriotas,
davam-lhes os bons empregos e propinas e espezinhavam os Brasileiros.
— E quem indica, meu senhor, para
ser encarregado da comissão a Portugal, perguntou Tomás Antônio:
— Julgo apto para isso o marquês
de Angeja.
— É judiciosa semelhante
lembrança, assim será afastado esse fidalgo, que esteve filiado à maçonaria.
Sorriu-se o rei, e acrescentou.
— Traga o alvará da nomeação para
ser assinado.
— E quem ordena para juiz da
Inconfidência, cargo que convém criar para cuidar das sociedades secretas?
— Já refleti sobre o caso, deve
ser o desembargador Albino Fragoso.
— É muito digno.
— Passe o alvará e apresente-o no
primeiro despacho.
— Vou cumprir as ordens de vossa
majestade, disse o ministro beijando a mão do rei e retirando-se.
Contente ausentou-se Tomás Antônio
por ver que o monarca, fora de seu costume, mostrara-se resoluto e pronto na
resolução das medidas propostas.
Descendo ao primeiro pavimento do
paço encontrou-se com o guarda-roupa Matias Lobato e saudando-o disse-lhe.
— Acabo de estar com el-rei, que mostrou-se hoje alegre e satisfeito.
Talvez por haver recebido
agradáveis notícias da capitania de Pernambuco, onde foi sufocado o movimento
republicano.
— É, exato.
— E por esse jubiloso
acontecimento mandou el-rei celebrar solene te-deum na capela deste palácio.
— Assisti ao ato, e mais uma vez
apreciei os músicos e cantores da real capela.
— Mas, mudando de assunto, não
quer Sr. ministro jogar o gamão, perguntou o guarda-roupa.
— Vamos.
E tomando Tomás Antônio o braço do
guarda-roupa desapareceram ambos nos longos corredores da residência real.
Quando se achava no palácio de
Santa Cruz recebia D. João a todos, e a todos atendia, conversava afavelmente,
dava audiência em dois dias da semana e recolhendo os requerimentos, que lhe
entregavam, passava-os ao camarista, respondendo.
— Falarei ao ministro.
Ouvia todas as queixas quer contra
os ministros quer contra os governadores das capitanias; com paciência e
bondade atendia a todos, e não se alterava com ninguém; apenas sorria quando
ouvia disparates.
Entregando-lhe uma velha, em dia
de audiência, um requerimento disse-lhe.
— Fale ao Tomás Antônio.
— Quem é esse sujeito?
— É o ministro do reino.
— Eu não entendo dessas coisas, é
com meu senhor que me quero entender.
— Riu-se D. João, entregando o
requerimento ao camarista, disse à mulher.
— Procure amanhã pelo despacho.
E em tudo foi-lhe favorável.
Era esse em geral o seu
procedimento, tendo quase sempre palavras benévolas para dirigir a todos, e
esperanças para repartir com todos os pretendentes.
A pobreza, que residia no curato
de Santa Cruz, logo que tinha notícia da chegada do rei, vinha implorar a sua
caridade, e era atendida. Não se esgotava a filantropia do monarca, nem jamais
diminuíam os auxílios de sua bolsa.
Estando em audiência, e depois de
haver recebido vários requerimentos concernentes uns a assuntos diversos,
outros implorando esmolas, viu aproximar-se a infanta Isabel Maria, a quem
muito prezava, e que acabava de chegar da cidade, chamada por seu pai para
estudar e ensaiar uma música de festividade religiosa.
Beijou a infanta a mão do rei seu
pai, que retribuiu-lhe com um beijo na face.
— Venho participar a meu pai que
hoje mesmo começarei o estudo da ária, que tenho de cantar na festa da
degolação de S. João Batista, que vossa majestade tenciona celebrar neste seu
palácio.
— Muito bem, minha amada filha. E
dando por finda a audiência, retirou-se o rei oferecendo o braço à infanta, e
sendo acompanhado pelo seu camarista efetivo conde de Parati e guarda-roupas
Matias Lobato.
Quer a princesa Maria Teresa, quer
a infanta Isabel Maria sabiam bem música e tinham voz harmoniosa. Cantavam nas
serenatas que D. João costumava dar no palácio de S. Cristóvão, assim também
excelente músico o príncipe real D. Pedro, como é notório.
X
Transferido Luís Prates da prisão
da Ilha da Cobras para a fortaleza de Santa Cruz ali permaneceu incomunicável
longo tempo. Foi diversas vezes interrogado pelo desembargador Fragoso e
acareado com diversas testemunhas. Procedendo-se à rigorosa busca em sua casa
apenas encontrou-se, como já vimos, um triângulo maçônico. Não apareceu papel
algum escrito, que o comprometesse, ou indicasse a existência de loja maçônica
naquele domicílio. Foram concordes todos os vizinhos em testemunhar o bom
procedimento e o modo de vida honesto do honrado cidadão, que cauteloso e firme
ao voto, que prestara filiando-se à maçonaria, não fez a menor revelação à
autoridade. Mas apesar disso, e sem haver o juiz lavrado sentença contra ele,
foi no fim de algum tempo degradado para Goa, na
Índia.
Soube disso Antônio Gonçalves e
mais horrorizados ficou dos mações.
Desde que tivera a conversa com o
major Mello, suspeitando logo que tratava-se de sua filha, começou a
espreitar-lhe os passos, e receando-se da beata Quitéria, que ia repetidas à
sua casa, procurou não perdê-la de vista.
Entrando certo dia a velha em casa
dele viu cair-lhe do bolso da saia um papel. Disfarçou e assim que teve ocasião
apanhou-o; era uma carta de namoro. Lendo-a ficou possesso, quis repreender a
filha e proibir a entrada da velha em sua casa, mas julgou mais acertado usar
de prudência. Na carta repetia Eduardo Maia fervorosas juras de amor à sua
amada.
Pensou Antônio Gonçalves que assim
como caíra em seu poder essa carta, outras poderia obter, que comprometessem
mais o rapaz, e servissem de prova para ser ele degradado para a Índia.
Naqueles tempos atrasados, e de
governo absoluto, fácil era conseguir-se o degredo para a África ou para a Índia de qualquer indivíduo
apontado como desordeiro, malfeitor, ladrão, jacobino, vadio, ébrio, desobediente
ao rei e ao altar e desencaminhador de moças solteiras, ou mulheres casadas.
Indo ter com sua esposa disse
Antônio Gonçalves.
— É necessário evitar o namoro de
Alice com o Eduardo.
— Deixa-te disso, ela é moça e
deseja casar-se. Além disso, o rapaz parece ser bom.
— É o diabo que o carregue, tem
contra si a condenação da igreja.
— Que diz!
— É pedreiro livre!
— Santo Nome de Jesus, S. Jerônimo
nos acuda, pronunciou Maria benzendo-se.
— Deus Nosso Senhor afaste de nós
semelhante homem, acrescentou Gonçalves.
Nesse mesmo instante avistava
Alice da janela do sótão o seu amante, e com os dedos atirava-lhe um beijo
casto e inocente, promessa de amor e esperança, sinal de constância e
firmeza.
XI
Resolvendo passar algum tempo na
fazenda de Santa Cruz, e celebrar ali a festividade da degolação de S. João
Batista quis o rei houvesse música nova nessa solenidade. De semelhante tarefa
foram encarregados os dois mestres da real capela Marcos Portugal e José
Maurício. Ambos eram músicos inspirados e magistrais em suas composições; e iam
agora medir o seu talento e inspiração artística.
O músico português Marcos Portugal
gastou um mês em compor as matinas para a festa, e o padre José Maurício,
artista brasileiro, compôs em quinze dias uma grande missa e credo, que ainda
hoje se executam.
Essa luta artística veio tornar
mais veemente a rivalidade entre os dois notáveis compositores.
Se eram os fidalgos afeiçoados ao
seu compatriota Marcos Portugal, mostrava D. João decidida predileção pelo
músico brasileiro. Estimava-o, e em plena corte havia-o condecorado depois de
ouvi-lo executar umas variações em piano, tirando da casaca do conde de Vila
Nova da Rainha o hábito de Cristo para pregá-lo com suas próprias mãos na
batina do inspirado artista.
E mostrava-se o rei arrebatado
sempre que ouvia o músico brasileiro tirar do piano sons harmoniosos.
Neste e em outros fatos
manifestava D. João os seus sentimentos generosos. Se a corte desmoralizada,
interesseira e prepotente via com rancor e ódio o desenvolvimento do Brasil,
prezava o monarca português a este país, apreciava o seu progresso e amava os
Brasileiros; porém fraco, irresoluto, e sem energia moral, tolerava que seus
fidalgos, arrogantes, altivos, ignorantes e presumidos, cometessem injustiças e
arbitrariedades; não sabia resistir-lhes, e apesar de rei despótico, vivia
cercado e dominado por eles, que zombando das leis, abusavam e prevaricavam.
Hesitando muitas vezes em fazer
aquilo mesmo que no seu entender parecia justo, ouvia esse rei os conselhos de
diversos validos sobre o mesmo assunto, não lhe bastava um só, cada fidalgo era
consultado por sua vez, e como era conhecido o caráter versátil e indeciso
desse soberano, procurava a sua corte embaraçá-lo mais, apresentando cada fidalgo
opinião contrária à idéia primitiva. E essa tática trazia o rei atado,
irresoluto e sem vontade própria.
Quem não podia alcançar para si o
valimento e a confiança do rei procurava desacreditar àquele, que dele estava
gozando. Reinava assim no paço uma intriga contínua, ignóbil e baixa, e
sacrificado era o ídolo de que todos queriam adotar. Como D. João era fraco,
dúbio e inconstante no seu modo de pensar, de tudo aproveitavam-se os fidalgos
para iludi-lo e emaranhá-lo na marcha governamental. E todos os meios eram
lícitos embora sacrificassem o país, a honra e a dignidade sua e do próprio
rei.
Foi
— É uma inépcia semelhante
proposta, disse o conde de Parati ao rei, quando este externou-lhe o pensamento do seu ministro.
— São utopias do Sr. Tomás
Antônio, acrescentou o conde de Magé.
— Como não deixou em Portugal
extirpe ilustre, não duvida enxertá-la com gente de mais ou menos; falou o
conde de Vila-Pouca.
— Dizer que não viverá o Brasil
unido por muito tempo a Portugal! Ah é querer vaticinar a sorte das nações, o
que só pertence a Deus, sentenciou frei Custódio.
Ouvindo os seus conselheiros o rei
sorria e abanava com a cabeça, mas repentinamente fechando o semblante, como
costumava fazer quando queria mostrar-se reservado, após ligeiro cumprimento,
ausentou-se com passo vagaroso apoiado em seu bastão de jacarandá por estar
sofrendo de uma das pernas.
Realizava-se poucos anos depois do
vaticínio de Tomás Antônio, tornando-se o Brasil nação livre e independente.
Informando o rei do pouco tempo
que despendeu o padre José Maurício na composição da missa e credo para a festa
da degolação de S. João Batista, saindo certo dia do ensaio da partitura, a que
fora assistir, disse ao distinto músico brasileiro.
— Além do seu ordenado de mestre
de capela receberá de hoje em diante mais uma pensão paga do meu bolsinho.
Curvou José Maurício o
joelho, e beijou agradecido a régia mão,
que o favorecia.
XII
Persistia Francisco da Silva no
seus galanteios com a dama do paço.
Era então numeroso o cortejo de
criados e criadas da casa real.
Além dos camaristas,
guarda-roupas, veadores e criados de diversas denominações e categorias, e
também moços de muitas denominações, classificados segundo suas obrigações,
havia as damas de honor, aias, açafatas, criadas particulares, donas da porta e
moças do lavor, do quarto, da câmara e outras mais de diversos nomes conforme
seus misteres e ocupações.
A dama, que ouvia e aceitava os
idílios e finezas do reposteiro da câmara, chamava-se Eugênia, era casada, e
entre as muitas, que habitavam o paço, era sem dúvida uma das mais formosas.
O conde de Valadares, camarista
particular do príncipe D. Pedro, já havia surpreendido o reposteiro Francisco
da Silva a beijar a dama querida, e se não revelara semelhante galanteio, fora
para não escândalo no paço.
Eram então comuns as intrigas, as
relações e seduções amorosas na residência real. Havia namoro desbragado entre
fidalgos e fidalgas, entre criados e criadas das diferentes categorias. Reinava
ali luta amorosa, veemente e constante, e não era raro darem-se cenas pouco
decorosas. De alto vinha o exemplo. Falava-se do gênio leviano, das maneiras
desenvoltas da rainha Carlota, do desprezo que tinha pelo marido, de suas
relações ilícitas com certos titulares.
Não dedicava-lhe o marido
confiança alguma. Murmurava o povo contra os escândalos da casa real, mas muito
à puridade, pois, naqueles priscos
tempos, não levantava-se impunemente a ponta do véu, que cobria as mazelas das
altas classes sociais, quanto mais da casa de el-rei
nosso senhor!
Era Francisco da Silva amante do
sexo fraco e inclinado às aventuras amorosas.
Freqüentava a casa de Antônio
Gonçalves, e mostrava-se solícito em render finezas à filha do ajudante do
almoxarife.
Conversava em certa ocasião com o
pai de Alice, que dizia-lhe.
— Tenho vontade que minha filha se
case.
— É natural.
— Mas desejava para meu genro um
moço honesto e de posição social. Sabe
que devemos honrar a classe, que ocupamos na sociedade.
— É certo, colega.
— E se encontrasse algum empregado
no paço... E Antônio Gonçalves começou a brincar entre os dedos com o pesado
sinete, que trazia pendente da grossa corrente do relógio.
— Seria bom, ficaria tudo em casa,
como se diz, acrescentou o moço, olhando de soslaio para o velho.
— E o senhor não pensa em
casar-se?
— Pode ser, retorquiu Francisco da
Silva, relanceando o olhar para o interior da casa, de onde se ouvia a voz da
filha de Antônio Gonçalves, a qual entoava uma modinha do tempo, que começava
assim:
Os homens querem
nos enganar,
Mas nós devemos
acautelar
Os homens querem
nos iludir,
Mas nós devemos
deles fugir.
— Bonita voz tem a sua filha,
elogiou Francisco da Silva. Por que não a matricula na aula de música do padre
José Maurício, na rua das Marrecas, para ouvir algumas lições?
— A menina não pensa agora em
dedicar-se ao estudo da música, quer marido, quer marido, repetiu Gonçalves a
sorrir.
O mesmo fez o reposteiro do paço.
Nessa ocasião entrou na sala uma
escrava, que veio anunciar a hora do jantar.
E foram os dois para a mesa.
XIII
Celebrou-se na capela do palácio
de Santa Cruz a festa da degolação de S. João Batista com pompa e grande
concorrência de povo. Houve matinas, missa cantada, sermão e te-deum, e salvas e foguetes do ar em abundância, Se a
música de marcos Portugal agradou a todos, impressionou e entusiasmou o
auditório a de José Maurício.
Pregou na festa e no te-deum o franciscano frei Sampaio, que arrebatou os
ouvintes com sua palavra inspirada.
Ao descer do púlpito recebeu
verdadeira ovação dos amigos, que aplaudiram-no e abraçaram pela impressão
profunda, que sobre todos causara a eloqüência inspirada do orador.
Mandou o rei chamá-lo à tribuna, e
em sinal de estima ofereceu-lhe uma
boceta de ouro para rapé. Era a terceira ou quarta, que, em idênticas
circunstâncias, recebia das mãos reais!
Na mesma ocasião desciam do coro
os músicos precedidos dos insignes mestres Marcos Portugal e José Maurício.
Se o primeiro era festejado pelos
fidalgos portugueses, era o segundo recebido entusiasticamente pelos
brasileiros encantados dos sons harmoniosos e cadentes da linda partitura exibida pelo maestro.
Já então era viva a rivalidade
entre brasileiros e portugueses, como se
previssem ambos, que breve raiaria o
dia,
Chamados à tribuna real ouviram os
dois músicos da boca do rei palavras lisonjeiras.
Durante a festividade foi tal a
concorrência popular, tão atopetada ficou a igreja, que muitos tiveram de
retirar-se para o átrio, afim de respirar ar melhor. Francisco da Silva foi um
deles, e ao chegar à porta encontrou-se com o marido de Eugênia, o que não
deixou de contrariá-lo.
— Que calor imenso, disse o marido
da dama, o qual também trabalhava no paço.
— Excessivo, replicou Francisco da
Silva.
Atravessava nessa ocasião o portão
fronteiro ao palácio um boi com seu passo tardio e grave.
— Lá vai o Patrício.
— Quem, perguntou Francisco da
Silva.
— O boi Patrício, que veio com
outros para fornecimento de bordo, quando a família real emigrou para o Brasil,
e havendo chegado vivo ao Rio de Janeiro ordenou o rei que o conservassem, e
mais tarde mandou abonar-lhe a diária de quatro contos de réis. (3)
— É aquele?
— É. Conduzia em uma carroça a
água da Carioca para o paço de S. Cristóvão, mas tendo emagrecido muito, foi
remetido para os pastos desta fazenda.
— É então o Patrício estimado pelo
soberano?
— É, tem uma pensão e vive sem
trabalho nestes campos.
— Então entre tantos animais, que
habitam estes domínios reais, é um dos mais aquinhoados!
— Certamente, e talvez hajam aqui
indivíduos, que desejassem a sorte daquele boi acrescentou o marido de Eugênia.
E os dois rindo-se separaram-se,
indo o reposteiro esperar em um dos corredores do palácio da dama, de quem
vivia enamorado, pois havendo terminado a festividade, teria ela de recolher-se
ao seu aposento.
De feito não esperou muito tempo.
Apareceu Eugênia em companhia de outra dama, que, subindo uma das escadas, foi
ter ao seu quarto no pavimento superior do paço, deixando-a só.
Vendo o seu apaixonado disse-lhe:
— O senhor aqui! O meu marido está
na capela.
— Estive com ele há pouco, e foi
agora passear no pomar.
— Mas pode voltar.
— Não virá já. E eu estava aqui à
espera para cumprimentar a rainha...
Interrompendo-o replicou Eugênia.
— Agora não falou verdade, porque,
como sabe, a rainha não assistiu à festividade, ficou na cidade no seu palacete
do largo do Machado.
— Eu queria dizer que desejava
saudar a rainha da festa.
— Lisonjeiro, e a moça sorrindo,
disse ao seu amante.
— Mas sinto passos, aí vem gente.
Era o criado particular do rei
Tomás Carneiro, com quem encetou ligeira conversação o reposteiro Francisco da
Silva, enquanto Eugênia, subindo a primeira escada, que encontrou, recolheu-se
ao seu camarim no segundo pavimento do palácio.
XIV
Moço, dispondo de dotes físicos,
afeiçoado ao belo sexo, empregado no paço, que naqueles tempos era coisa de
grande valia e importância, desejava Francisco da Silva contar de dia para dia
novas aventuras amorosas, no que a fortuna já o havia ajudado assaz.
Começou a fazer repetidas visitas
à casa de Antônio Gonçalves para ver se subjugava o coração de Alice. Já não
lhe bastava o amor da dama do paço, queria prender o coração de outra moça, e
viver assim completamente envolvido nos liames do amor.
Alice era moça esbelta e trazia
mais de um moço embevecido dos seus encantos, e assim queria Francisco da Silva
ter a glória de haver feito tão esplêndida conquista amorosa.
Se realizasse seus desejos
contaria mais uma vitória, um triunfo mais e blasonaria, como costumava fazer,
que era prezado por tão linda donzela.
Concedia-lhe Antônio Gonçalves
amizade e inteira confiança, da qual estava disposto a abusar, logo que as
circunstâncias lhe fossem favoráveis.
Se encontrasse firme oposição,
vigorosa resistência a seus projetos de sedução na filha de Antônio Gonçalves,
talvez pensasse em casar com ela, no que acreditava não ficaria de mau partido,
não só por ser moça formosa, como também
por ter o pai posição social, e dispor, conforme diziam, de um cabedal de boas
dobras de ouro.
As suas repetidas visitas à casa
do velho já serviam de tema para as conversas dos vizinhos.
Dizia um tenente do regimento de
Bragança, vizinho próximo de Antônio Gonçalves, quando via entrar Francisco da
Silva na residência daquele.
— Essas visitas repetidas de
Francisco da Silva são inconvenientes, não achas minha mulher?
— São prejudiciais à honra da
filha do vizinho.
— Queira Deus que não tenha ele de
arrepender-se.
— Eles dois são da casa real e lá
se entendem.
— É assim, e não é para que
digamos, digna de servir de exemplo a moralidade, que corre no palácio do rei.
— Mas caluda,
e eles que continuem a semear tão maus princípios.
E ficou o tenente firme no seu
posto, por trás da rótula a espreitar a vizinhança, coisa que faz muita gente até de mais alta patente. Quanto a
mulher continuou a tecer uma renda em almofada de bilros.
Murmuravam outros também sobre o
caso, e a seu modo iam propalando coisas não mui favoráveis à honra da donzela.
Maledicência é mal antigo e
contagioso, tisna e por fim fere, e vai se estendendo, como esses répteis, que
à medida que se arrastam, parecem que vão aumentando de cumprimento.
Mostrava-se Alice contrariada com
a presença do moço, não lhe fazia boa cara, mostrava-se esquiva, fugia-lhe, e
raras vezes respondia-lhe às perguntas e galanteios.
— Hei de atraí-la pouco a pouco,
repetia o sedutor.
Afligia-se Eduardo com as visitas
do seu rival à casa do ajudante do almoxarife, tornava-se ciumento, repetia
cartas amorosas, e duvidava da constância e fidelidade da donzela. E maldizia-se
o pobre moço, e vivia inquieto e desgostoso.
Havendo festividade religiosa e
fogo de artifício na igreja do largo da Lapa, convidou Francisco da Silva a
família de Antônio Gonçalves para assistir a esses festejos. Aceito o convite
foram todos, tendo o reposteiro do paço a dita de dar o braço à filha do
ajudante do almoxarife.
Correu solenemente o te-deum, sendo orador o franciscano Monte Alverne, que tão alto elevou a fama do púlpito brasileiro.
Começando o fogo de vistas ia tudo
a contento de todos, quando despregando-se uma das rodas que ardia, caiu sobre
o povo, produzindo grande alvoroto e confusão. Corriam os espectadores de um
para outro lado, as crianças choravam,
as mulheres gritavam e tinham ataques, e aumentavam o alarido os
assobios e vaias ao fogueteiro.
Julgou Francisco da Silva azada a
ocasião para por em prática o plano de afastar-se com a filha de Antônio
Gonçalves. De feito no meio da confusão popular, perdendo de vista os pais de
Alice, e simulando querer afastar-se do torvelinho do povo, disse para a
donzela.
— Fujamos por aqui.
E dirigindo-se ao beco do Império
foi ter à rua de Santa Teresa, hoje Dr. Joaquim da Silva.
Mui pouco habitada era essa rua
naquele tempo, especialmente do lado do morro poucas casas tinha, separadas por
extensos muros, ou cercas de espinhos.
Arredado do lugar do sinistro, e
em ponto solitário, disse ele à filha de Gonçalves.
— Estamos aqui livres de qualquer
perigo, e em lugar de poder fazer-lhe minhas revelações.
— Mas, senhor, estou longe de meus
pais...
— Que receia?
— Não sei, mas convém irmos ao seu
encontro.
— Será difícil por hora, pois é
imensa a onda popular, e antes peço-lhe que ouça-me.
— Não o atenderei agora, se quiser
revelar quais seus intentos deve fazê-lo em presença de meu pai.
— Siga-me e será feliz.
— Jamais. E Alice afastando
rapidamente o seu braço do moço, retrocedeu caminhando apressadamente.
— Começou Francisco da Silva a
segui-la procurando animá-la e convencê-la.
Andavam aflitos os pais de Alice
em procura desta, quando encontrando-se com Eduardo Maia referiram-lhe o que
acontecera.
— Vou procurá-la, disse Eduardo, e
partiu logo.
Percorreu apressadamente as ruas
vizinhas, e no momento em que a moça relutava mais com o reposteiro, apareceu
ele.
— Pois conduza-me aonde eles
estão, disse Alice, reanimando-se e tomando o braço do moço.
Retraindo o seu ressentimento,
retorquiu Francisco da Silva.
— Na ocasião do burburinho popular
perdemos de vista ao Sr. Antônio Gonçalves e sua senhora.
E contrariado foi acompanhando a
Eduardo e a filha do ajudante do almoxarife.
Restituída Alice a seus pais
mostraram-se estes alegres e satisfeitos, e tal era a confiança, que tributavam
ao reposteiro Francisco da Silva, que não causou-lhes o incidente a menor
suspeita. Acompanhou Francisco da Silva a família à casa, e Alice ainda
bastante abalada pelo que acontecera, não ousou fazer a menor revelação aos
pais, e quanto a Eduardo desapareceu no meio da onda popular.
XV
Referiu o major Mello a Eduardo Maia
a conversa, que tivera com Antônio Gonçalves, na igreja da Cruz, relativa ao
casamento da filha deste.
Ficou o moço contrariado e
pesaroso, mas acrescentou:
— Estão atualmente fechadas as
lojas maçônicas e dispersos os sócios, e
assim não deve o Sr. Gonçalves ter tanto receio dos mações.
— Ponderei-lhe semelhante
circunstância, replicou o major, mas disse-me ele, que continuava o senhor a
pertencer à associação.
— E se me comprometesse a deixá-la
para sempre!
— Não faça tal, se alistou-se
nessa seita, e prestou juramento de conservar-se fiel às suas leis, para que
renegar seu voto! Não há motivo para isso. Esqueça antes esse amor, que não lhe
pode trazer ventura.
— Não penso assim, e jamais
olvidarei esse amor.
— São assim todos os namorados,
porque neles pesa mais o coração do que a cabeça. Mostram muito sentimento,
porém pouco juízo. Julga então mais fácil renegar os seus compromissos perante
uma grande corporação, do que apagar uma paixão, que para si começa tão mal!
— Mas procurarei superar todos os
obstáculos.
— Bem, permaneça firme no seu
amor, seja prudente e reservado, mas conserve-se também unido à maçonaria,
filiado à essa sociedade útil e importante.
E os dois amigos foram conversando
até a porta da alfândega, que nessa época era na rua 1º de Março em frente à do
Hospício.
Separaram-se aí entrando Eduardo
para a sua repartição.
Apesar de não ter ouvido de
Francisco da Silva nenhuma revelação a respeito de casamento, julgou Antônio
Gonçalves ser conveniente ir preparando o ânimo de sua filha em favor desse
moço, e assim dizia-lhe ele em certo dia.
— Ainda não pensaste em ter um
noivo.
Sorriu-se Alice, e não ousou
pronunciar palavra.
— Todavia é preciso voltares a tua
atenção para um moço conceituado, que sirva, e de posição social e de recursos,
que te possa fazer feliz.
— É assim, meu pai.
— E creio haver um nessas
circunstâncias.
— Ah, e qual é ele?
— O Francisco da Silva, empregado
da casa real, que vem visitar-nos amiudadas vezes, e parece ter por ti decidida
inclinação.
— Não sei se serão puras as
intenções desse moço, acrescentou Alice, dissimulando o seu ressentimento.
— E porque não! É moço honesto.
— Não sei, mas apesar de desejar obedecer-vos
em tudo, não quero semelhante homem para marido.
— Não queres, e ousas responder
assim a teu pai! Preferes talvez algum pelintra?
— Não senhor, amo a um moço pobre,
porém honrado e digno.
— A quem, perguntou Antônio
Gonçalves, como se nada soubesse das relações amorosas de sua filha.
— Ao empregado... E a moça
hesitou.
— Dize, fale.
— Ao empregado da alfândega
Eduardo Maia.
— Vai-te daí tolinha. Queres então
casar com um endemoninhado e alma de Satanás!
— Porque fala assim meu pai!
— Pois não sabes que ele pertence
à maçonaria!
— E que tem isso? É uma sociedade
como qualquer outra.
— Bonito, e quem te ensinou
semelhante doutrina!
— Não dizem que até na casa real
há mações!
— Não te metas em semelhantes funduras.
E fiques sabendo que com semelhante celerado não te casarás. Ou aceitas o noivo
que te indiquei, ou encerro-te em um convento.
Começou Alice a chorar.
— Empregas em vão as lágrimas,
porque não me comovem. Se não mudares de pensar, faço-te apenas uma concessão,
a de escolheres o convento a que tiveres de pertencer, isto é o de Santa Teresa
ou o de Nossa Senhora d’Ajuda.
E Antônio Gonçalves retirou-se
deixando a filha lavada em pranto.
Nessa ocasião ouviu-se junto à
porta de entrada da casa uma voz, que repetia:
— Esmola para sua devota.
Abriu a moça a rótula, e ao dar a
esmola à pobre disse-lhe esta:
— Aqui tem uma carta do Sr.
Eduardo Maia.
— Obrigada, mãe Quitéria,
balbuciou Alice.
Fechando o postigo correu Alice
para dentro, e leu imediatamente a carta; e reanimaram-na logo as expressões
apaixonadas dessa missiva de amor.
Essa cartinha, esse papel
enfeitado e perfumado, foi para ela de grande conforto naquele momento de
aflição, entornando-lhe n’alma resignação e esperança.
XVI
Além da fazenda de Santa Cruz
costumava D. João VI também passar alguns dias do ano na ilha do Governador,
onde o abade beneditino frei João da Madre de Deus mandara edificar um palacete
de recreio para o rei sua família. Aí entregava-se o monarca aos prazeres da caça, e além dos seus
folguedos venatórios, ensaiou em um terreno próximo a cultura do chá.
Acompanhavam-no ao passeio da ilha
os príncipes seus filhos, a princesa Maria Teresa ou alguma outra filha, mas a
rainha quase nunca ia.
Logo que chegou ao Rio de Janeiro
foi a rainha Carlota residir com as filhas na chácara dos Bastos em
Botafogo.Julgando-se mal acomodada foi habitar no Rio Comprido uma casa da rua,
que desde então chamou-se da Rainha. Ainda não se achou a seu gosto nessa
habitação, e por isso mudou-se para a chácara do comendador Gomes Barroso no
Engenho Velho. Residiu também algum tempo na fazenda do Capão pertencente à
família do bispo Mascarenhas, depois no engenho Meriti, que procurou para si,
pelo que ficou se chamando da Rainha, nome que ainda conserva. Tratou depois de
fazer aquisição de dois prédios do largo do Machado, hoje praça Duque de
Caxias, e aí mandou construir um palacete e capela, que mais tarde serviu de
matriz, quando criou-se a freguesia da Glória. Aí permaneceu a mulher de D.
João VI até ausentar-se para Lisboa.
A custa do Estado fizeram-se obras
importantes nesses prédios ocupados pela volúvel soberana, que jamais
mostrou-se solícita em pagar alugueis daqueles, que pertenciam a particulares.
Vê-se assim que gostava ela de
mudar de residência, evitando a convivência do esposo, com quem vivia em
constante desarmonia.
Apetecia-lhe estar só e livre,
maquinando sempre planos e traições, e forjando astúcias e seduções.
A rainha Carlota era magra, de
pequena estatura e feia. Caprichosa e de gênio volúvel, encontrando aberto o
erário para satisfazer a todos seus caprichos e extravagâncias, vivia afastada
do esposo como formando outra corte, e outro círculo político. Iludia e
maquinava contra o próprio marido, que não sabia, ou não podia domá-la.
Havendo resolvido passar alguns
dias na ilha Governador para ali dirigiu-se D. João acompanhado da princesa
Maria Teresa, dos príncipes D. Pedro e D. Miguel e dos fidalgos e criados de
sua casa.
Na ilha entretinha-se o rei em
caçadas, no cultivo de chá e de outras plantas, em palestras com os monges
beneditinos, ou entoando com eles o canto chão no que era perito, e assistindo
a atos religiosos, coisa a que era mui inclinado.
Tendo chegado à ilha, escreveu, no
fim de alguns dias, o seguinte bilhete ao ministro Tomás Antônio.
«
Querendo estar aqui mais alguns dias julgo que me quererá falar,
querendo venha amanhã; deve saber que do desembarque até esta casa é longe, e
no caso que venha me dirá para lhe mandar pôr cavalo, e o correio vai
autorizado para lhe mandar por as mudas do costume, se lhe disser que as
ponha.»
J. C. (4)
J. C., isto é, João Carlos, pois
era assim que se assinava D. João quando escrevia as suas missivas
particulares.
Logo que recebeu a carta
dirigiu-se o ministro para a ilha, e compareceu imediatamente na residência
real.
Trazia inquieto o rei a agitação,
que se dera na Espanha, e prévia, como aconteceu, que se estendesse ao reino
português. Aconselhava-o Tomás Antônio que contentasse ao povo e aos
negociantes animando o fabrico de vinho, dos panos de linho, saragoças ou boréis, que
impusesse tributos sobre o vinho e mais produtos estrangeiros, e escolhesse e
nomeasse outras autoridades, que agrandassem mais o
povo de Portugal.
Opinavam outros conselheiros, que
se transferisse para a Europa a sede do reino, e outros que se enviasse para
ali algum membro da família real.
Preocupavam semelhantes questões
aos ministros e conselheiros régios, sendo divergentes os votos e diversos os pareceres.
Se Tomás Antônio pensava de um modo, refletia de outro o conde dos Arcos, tinha opinião
controversa o conde de Palmela, e assim outros.
Vivia o rei inquieto e aflito com
semelhantes questões, e passava horas e horas, encerrado em seu gabinete, lendo
ofícios do ministro inglês e de outros diplomatas, ou os pareceres de seus
conselheiros e ministros de estado.
Enquanto preocupavam-se os
políticos com semelhantes projetos e planos, procurando resolver as magnas
questões, enquanto o rei vacilava, mostrava-se dúbio e irresoluto, continuava
Francisco da Silva no seu enlevo de amor e sedução. Se encontrava-se com a dama
do paço rendia-lhe sempre finezas, dirigia-lhe um sorriso, ou beijava-a, ou
fazia-lhe uma carícia. Persistia em sua paixão, firme e constante, certo talvez
de que aquela mulher breve se renderia a seus afagos.
Avistando-a em uma das salas
aproximou-se e disse-lhe.
— Ainda não a tinha visto hoje.
— Estive toda a manhã com a
princesa D. Maria Teresa.
— E eu sempre firme como o
castiçal da sala da tocha para vê-la passar.
— É preciso ter prudência e falar,
baixo porque vi el-rei no gabinete próximo.
— Ah, mas eu amo-a tanto. E com
fervor beijou-a.
— Eu também o amo.
— Ah repita uma e muitas vezes
essas palavras, quero ouvir essa confissão de sua boca para sentir todo o
prazer em minha alma. E tornou a beijá-la.
— Senhor.
— Deixe-me abraçá-la, uni-la ao
meu peito para sentir o seu coração junto do meu.
E no momento
— Que ousadia é essa!
— Perdão meu senhor, murmuraram
ambos ao mesmo tempo, que se ajoelhavam e procuravam beijar a mão do monarca,
mas este afastando-se retorquiu.
— Retirem-se para os seus
aposentos.
Ambos obedeceram imediatamente.
Contrariado por ter presenciado em
seu palácio semelhante cena amorosa, fechou D. João o semblante, e de cabeça
baixa caminhou vagarosamente para seu gabinete.
Sabia ele que corria pelo paço
muita imoralidade, que eram ali comuns entre damas e cavalheiros os galanteios,
juras entrevistas de amor, que de sua
própria esposa murmuravam, censurando a vida impudica, os seus modos desenvoltos,
mas desejava ostentar toda a moralidade. Comedido em seus atos, reservado em
suas ações, patenteando quanto possível a sua gravidade, exasperava-se quando
era informado de qualquer ação desonesta ocorrida no paço, e mais contrariado
ficava quando ele próprio era testemunha de qualquer ato contra o decoro e a
decência.
Nervoso, irritado pelo que
presenciara, tocou o rei com força a campainha, que tinha sobre a mesa.
Compareceu imediatamente o seu criado
particular Tomás Carneiro.
— Que deseja, meu senhor,
perguntou o criado entrando e fazendo profunda cortesia
— Onde está o guarda-roupa Matias
Lobato.
— Está passeando no jardim.
— Vá chamá-lo.
Saiu o criado depois de competente
reverência. Vindo o guarda-roupa pediu-lhe o rei o seu chapéu armado, o seu
bastão de jacarandá, e disse-lhe.
— Vamos passear.
E em passeio para distrair-se da
contrariedade, que há pouco experimentara, foi caminhando até o poço d’água
nascente, distante um quarto de hora do convento, e de cuja água se servia D.
João quando se achava na ilha.
Chamava-se a fonte do Caricó, e ainda hoje vêem-se as paredes velha e as ruínas
da casa de telha, que cobria semelhante poço.
Pediu ao guarda-roupa que lhe
desse um pouco d’água, e regressou para o palacete.
Durante o passeio não dirigiu o
rei uma única palavra, ao seu guarda-roupa sobre o incidente, que se dera em
sua casa, nem este ousou, segundo a etiqueta, fazer a menor pergunta.
XVII
Na noite do dia, em que se dera o
incidente amoroso presenciado pelo rei, conversavam o reposteiro do paço
Francisco da Silva e a dama Eugênia.
— Estamos perdidos, murmurava ele.
— Que desgraça, acrescentava a
dama.
— Convém fugir, quando não serei
vergonhosamente despedido deste paço, dizia ele.
— Eu vos acompanharei; mas para
onde iremos?
— Mandarei aparelhar dois cavalos,
que nos levarão ao ponto de embarque, e aí em qualquer canoa de pescador navegaremos para a cidade.
— E depois?
— Chegados à cidade, irei às
cachoeiras do paço, na rua Fresca, e pedirei uma sege, que nos conduzirá à
chácara de um amigo, no Cosme Velho.
— E seremos recebidos?
— Com certeza porque esse
indivíduo deve-me favores de muito peso e valia.
— Mas fugirmos da residência de el-rei, não será isso praticar um escândalo?
— Mas assim talvez procure el-rei lançar ao desprezo o ato que presenciou, e se
permanecermos aqui virá a pena.
Mostrando-se convencida com este
argumento, e desejando acompanhar o homem que amava, recolheu-se a dama ao seu
aposento para preparar-se para a partida, enquanto tratava o reposteiro de
mandar aparelhar os cavalos.
Disposto tudo veio ele buscar a
amante, e montando a cavalo seguiram os dois para o ponto de embarque. Tomando
aí uma canoa seguiram para a cidade.
Desembarcaram no largo do Paço,
hoje praça 15 de Novembro; Francisco da Silva foi buscar a sege, e entrando
nela com a sua companheira seguiram para o Cosme Velho.
Chegados à casa indicada desceu
ele só, falou com o amigo, e passados instantes veio buscar a amante, e ambos
recolheram-se a um aposento.
— Estamos salvos, disse ele
abraçando a Eugênia.
— Assim não decrete el-rei algum castigo contra nós; articulou Eugênia.
— Agora que só o amor nos deve
preocupar para que empanar a nossa felicidade com idéias tristes, disse
Francisco da Silva beijando a amante.
Na manhã, seguinte logo que o rei
acabou de fazer a barba e vestir-se, referiu-lhe o seu criado particular a fuga
da dama do paço com o reposteiro.
Mostrou-se o rei admirado, como se
nada houvesse presenciado na véspera entre namorados, mas franzindo
repentinamente a testa e fechando o semblante ordenou ao criado, que fosse
chamar o ministro Tomás Antônio, que ainda se achava ilha.
Algum tempo depois apresentou-se
Tomás Antônio e beijando a mão do monarca disse-lhe.
— Estou às ordens de vossa
majestade.
— Deu-se ontem aqui um fato
vergonhoso e impróprio desta casa, falou D. João. Surpreendi o reposteiro
Francisco da Silva beijando a dama Eugênia, e acabo de saber agora que,
seduzindo a dama, fugiu com ela ontem à noite deste paço. Eles não podiam
continuar no serviço desta casa, mas seriam simplesmente despedidos, tendo
porém o reposteiro tornado público o seu delito raptando a dama, resolvi
castigá-lo severamente. Leve esta minuta e mande lavrar um aviso, que deverá
ser remetido ao corregedor do crime da corte e casa.
— Cumprirei as ordens de vossa
majestade. E o ministro saiu depois de haver saudado o rei.
Dois dias depois publicava a Gazeta do Rio de Janeiro o aviso
seguinte:
* Não devendo ficar impune o
desatino, em que caiu o reposteiro da câmara Francisco da Silva de
aleivosamente aliciar e raptar a mulher de F.F., é el-rei nosso senhor servido que vossa mercê faça intimar o
sobredito reposteiro que não entre mais
no paço, e que deve sair para fora da corte para a distância de dez léguas até
segunda ordem. O que participo a vossa mercê para que assim o execute. Deus
guarde a vossa mercê. (5)
Era D. João homem probo e justo.
Se davam-se em sua casa, em sua corte, cenas censuráveis, indecorosas, se
lavrava a imoralidade entre alguns dos seus criados e cortesãos, não eram
provenientes do procedimento mau do rei.
Homem cordato e bom não desejava
fazer mal a ninguém, porém fraco e irresoluto não sabia dissipar os abusos, e
raras vezes era pronto e enérgico em
punir os culpados.
Se não tinha energia para corrigir
as faltas, os delitos contra a moral praticados contra a sua esposa, como
poderia impedir os atos vergonhosos de sua numerosa criadagem e dos seus
orgulhosos e ignorantes válidos!
Havendo porém, presenciado aquela
cena amorosa em seu palácio, e considerando-a como uma afronta à sua pessoa e à
sua dignidade, mostrou-se decidido e expedito na decretação da pena. Tratou
imediatamente de infligir o castigo contra o culpado, dando ele próprio a
minuta para o aviso, que foi publicado na Gazeta
dessa época.
Causou grande sensação na cidade a
publicação daquele aviso. Todos leram-no e todos comentaram; durante dias de
serviu de tema para todas as palestras.
Se uns censuravam a imoralidade
que ia pelo paço, outros a corrupção geral dos costumes, louvavam alguns o
procedimento moralizador do rei.
Conversando na sacristia da capela
real os cônegos Januário, tão distintos nas letras pátrias, e Plácido Carneiro,
que ocupava o cargo de reitor do Seminário de S. Joaquim, dizia o primeiro.
— E o fato vergonhoso que deu-se
no paço real!
— Meu amigo, o povo não é educado,
e estamos no tempo em que se manda transformar um seminário em quartel,
redargüiu o cônego Plácido.
Referia-se ao seminário de S.
Joaquim, que foi extinto, indo aboletar-se no mesmo edifício uma divisão de
soldados chegados de Portugal.
— Escolhem para mestres homens
ignorantes, retorquiu Januário, os quais adotam o péssimo costume de ensinar os
meninos à força de pancada.
— Dizem os tais mestres que o
ensino deve entrar no sangue.
Excelente método! Não se recorda
daquele menino aleijado pelos castigos rigorosos do mestre, e que mais tarde
viveu esmolando na portaria do convento de Santo Antônio! (6)
— Viu-o ali muitas vezes, era
filho de Manuel Luís.
— Também qual será o homem
instruído e de bom procedimento, bradou Januário, que sujeite-se a ensinar
meninos pelo mesquinho ordenado anual de cento e vinte mil réis!
— Certamente, pois não chega tão
insignificante quantia nem para modesta e parca subsistência.
Continuavam os dois cônegos a sua
palestra, quando tiveram de interrompê-la despertados pelo dobre do sino
anunciando a hora da reza do coro.
Vestindo a sobrepeliz sobre a
batina, e tomando o livro de oração colocado sobre o arcaz,
encaminharam-se em companhia dos outros sacerdotes para o recinto da igreja.
XVIII
Ficou estupefato Antônio Gonçalves
tendo o aviso da Gazeta relativo ao reposteiro da câmara. Jamais pensou que
praticasse esse moço semelhante ação, tal era o conceito vantajoso que dele
fazia.
— Que escândalo praticado na
residência real por um próprio criado da casa, bradou ele, ao terminar a
leitura do aviso.
Se ficou surpreendido lendo aquele
aviso, também teve Eduardo Maia certa satisfação. Viu assim demorados e talvez
desvanecidos planos de Antônio Gonçalves sobre o casamento da filha com o reposteiro
da câmara. Como todos praguejou contra a imoralidade do paço, e riu-se consigo
pensando no marido modelo, que o ajudante do almoxarife desejava para a filha.
Mas vivia o moço perplexo e
inquieto; amava mas perdia cada dia a esperança de realizar seu casamento, pois
sempre que a moça escrevia-lhe referia-se à oposição que os pais manifestavam
ao casamento por ser ele maçom.
Passava Eduardo Maia triste e
pensativo pela rua da Quitanda, quando encontrou o pardo Ângelo Rondon, soldado
reformado do regimento de artilharia.
Era um homem alto e descarnado e
tinha falta de dois dedos na mão direita, que perdera na campanha do Rio Grande
do Sul. Andava fardado, porém sem apuro e sem uniforme completo. Usava de farda
e boné, quanto a calça era do molde e cor, que lhe aprazia. Dizidor
de conceitos chistosos gabava-se de vaticinar o futuro.
Era um maníaco, um vagabundo das
ruas, semelhante a outros muitos, que então existiam. Punha os dedos na boca e
dando assobios e estalos gritava.
— É foguetório.
Aplaudia-se a si mesmo, e alegre e
pacato era um tipo popular estimado por todos.
Apesar de robusto e forte nada
fazia, não trabalhava, vagava pela cidade, e vivia vida folgada e inútil.
Costumava repetir.
— O for meu às mãos me há de vir.
Se propunham dar-lhe qualquer
trabalho oferecendo-lhe boa paga, recusava-se dizendo.
— Para quê! A quem Deus promete um
tostão, de seis vinténs não passa por mais que faça.
Preguiçoso e indolente não se
ocupava com coisa alguma, acreditando, como alguns, que a sorte está escrita,
que nasce o destino no berço com o homem, e que de nada valem o esforço e o
trabalho.
Não sabia ou não queria lutar com
a sorte, vivia na inércia e preguiça, e cooperava o povo para isso dando-lhe
esmolas e alimentando a sua indolência.
Concorria assim para que esse
infeliz nada fizesse, e acreditasse que, tendo nascido pobre, pobre teria de
morrer.
Encontrando-se com Eduardo Maia,
que mostrava-se triste e taciturno, repetiu-lhe o soldado Rondon a seguinte
quadra.
Chora, menino, chora
Vá-se embora pra Campinas,
Vá cumprir o seu degredo,
Quem tem amores tem medo.
— Vai-te Ângelo, disse-lhe Eduardo
Sabia o pardo do amor, que o moço
tinha à filha de Antônio Gonçalves, e por isso acrescentou.
— Ora venha cá, quer ouvir o que
há de acontecer com o seu amor.
— Dize lá.
— Água mole em pedra dura tanto
bate até que fura.
— Mas quem ama não pode esperar
muito.
— Tenha paciência, porque quem
anda alcança, e quem corre cansa.
— Ora não me atormente com teus
adágios. E Eduardo foi se afastando do saldado.
— Olhe, retorquiu Ângelo
cantarolando.
Querer bem não é bom, não
Faz a gente enlouquecê,
Abre as feridas por dentro,
Por for fora ninguém as vê.
E lá se foi o pobre no seu
caminhar sem destino dando estalos e assobios, ou cantando versos populares. A
garotada chamava-o para ouvi-lo repetir anexins ou cantar modinhas em troca de
alguns vinténs, que ele agradecia fazendo caretas e trejeitos.
XIX
Viveram alguns dias Francisco da
Silva e Eugênia ocultos na casa cercada de denso arvoredo do Cosme Velho.
Apressados correram os dias na
embriaguez do amoré na expansão da paixão. Mas uma amigo do reposteiro da
câmara remeteu-lhe a Gazeta, onde viera publicado o aviso.
Lendo-o ficou Francisco da Silva
sucumbido, tremeram-lhe as pernas e inundou-lhe o corpo um suor frio. Repetiu a
leitura três ou quatro vezes, e ficou perplexo sem saber o que resolver. Chamou
a sua companheira e disse-lhe.
— Lê isto.
Eugênia leu, e comovida
perguntou-lhe.
— E agora!
Devemos sair imediatamente daqui,
cumprindo o que el-rei ordena, quando não estarei
perdido. Serei ou degradado para a Índia, ou encerrado em uma fortaleza, na
qual morrerei esquecido.
— E para onde iremos!
— Tenho em Itaguaí um amigo que
nos guiará, facilitando-nos todos os recursos. Hoje mesmo empreenderemos a viagem, deste modo cumprirei
a ordem do rei.
— Eu te acompanharei para qualquer
lugar.
Entrando em preparativos de
viagem, partiram os dois amantes nesse mesmo dia, e após dois dias de viagem a
cavalo, suportando diversas contrariedades e maus caminhos, chegaram ao seu
destino.
Entregues aos enlevos do amor
esqueceram-se logo quer da condenação do rei, quer das vicissitudes da sorte.
Viviam embebidos nos encantos da paixão. Passavam horas e horas abraçados,
arrebatados em sonhos de fantasias e esperanças. Tudo encantava-os, tudo
cobria-se para eles de uma cor celeste, porque sorria-lhes a felicidade,
afagava-os em seus devaneios, e os anjos pareciam entoar-lhes aos ouvidos
harmonias cadentes e sonoras. Se Eugênia prendia aos cabelos uma rosa gabava
Francisco da Silva o perfume da flor e também a beleza das tranças de sua
amada. Se tomava um vestido de cor mais viva tecia elogios à cor do vestuário,
mas acrescentava que a forma do manequim é que fazia realçar a elegância da
toalete. Se lançava ao redor do pescoço um colar extasiava-se notando-lhe o
arfar e o volume dos seios.
Também para Eugênia ninguém tinha
os cabelos mais sedosos, nem o olhar mais penetrante, nem o sorriso mais
sedutor do que seu amante.
Se iam passear quedavam-se os dois
horas e horas à sombra das árvores, e ali inventavam idílios de amor e repetiam
palavras amorosas, que só o anjo da felicidade lhes poderia ensinar. Se
encontravam regato deixavam-se ficar nas margens e beijando-se repetiam que o
murmúrio das águas ocultava o murmúrio dos seus beijos. Se passeavam a cavalo
apostavam carreira levando os animais a toda brida, ou agitando um o seu
ginete, seguia o outro atrás, e ao encontrarem-se abraçavam-se e beijavam-se.
Tudo se desvanecera da mente
desses dois entes. Já não se lembravam das pompas, solenidades, honras e
cerimônias da casa real. A sua vida passada era como um sonho, de que se não
recordavam. O mundo deles era ali só, não havia mais para eles rei, nem rainha,
nem príncipes nem cortesãos. Existiam só eles dois ou antes só viam, só rendiam
culto ao amor ingente, que enchia-lhes o coração, transbordavam-lhes o cérebro
de idéias alegres, e semeava na estrada
de sua vida, flores, prazeres, alegrias e risos.
XX
Correram assim alguns meses
vivendo envolvidos os dois amantes nas ondas da felicidade, e embalados pelas
asas da paixão e do prazer.
Mas foi depois arrefecendo o
entusiasmo do amor, e foram eles compreendendo o mal, que haviam feito.
Foi Francisco da Silva o primeiro,
que começou a lastimar-se.
— Grande loucura pratiquei em
deixar o meu emprego honroso da
corte para vir sepultar-me neste retiro.
— Mas não és feliz!
— Sou porque vivo em tua
companhia, mas perdi tudo, nome, honras, emprego, consideração, futuro, tudo,
tudo.
— Em compensação tens o meu amor.
— Ah, mas as galas, as grandezas,
a pompa do paço!
Ele que até então esquecera-se de
sua vida de outrora para só cuidar da mulher querida, ele que varrera da idéia
todo o passado, por que só lhe bastava o presente, principiava agora a
recordar-se das solenidades, das festas do paço real, das honras,
condecorações, títulos e grandezas, que o rei costumava distribuir com a mão
pródiga pelos seus vassalos. A vida alegre e principesca do palácio
despertava-lhe agora idéias de ambição, e cogitando na posição elevada, a que
poderia ter chegado, mostrava-se triste e abatido.
— Que vida temos nós aqui, repetia
ele, neste ermo silencioso e triste.
— E o nosso amor!
— Sim foi o amor, ou antes essa
vertigem louca, que apoderou-se de mim.
— E já não existe, não é assim!
— Amo-te, porém isso não é viver.
Cada dia mínguam os nossos recursos, e cada dia vejo-me mais só e repelido de
todos.
— E também eu não desprezei o meu
lugar honroso da corte, o meu marido. Não manchei para sempre o meu nome de
mulher honesta. Não abandonei as galas,
os prazeres, os passatempos galantes do paço, as minhas relações com as damas e
princesas, os meus vestidos ricos, adereços e jóias!
— Queres sem dúvida fazer-me
recriminações; se não dou-te vestidos de valor é porque não tenho dinheiro.
— Nem penso em tal, mas deves ver
que também fiz pesado sacrifício acompanhando-te.
— Mas não sofreste a condenação,
que caiu sobre mim. Se delinqüiste, repetem todos que fui eu o culpado, eu o
sedutor, eu que desonrei a casa real cometendo grave desacato.
— Sossegue Francisco, talvez mais
tarde sejas perdoado, o rei é clemente e bom.
— E qual perdão que eu posso
esperar para lavar o meu desatino, e a minha desonra!
— Ah, a condenação de o rei
fulminou-me, expôs-me à vergonha, à execração pública.
E o moço levava as mãos nos
cabelos percorrendo o aposento, em que se achava, com passos largos.
— E moralmente não estou eu também
envolvida nessa lei de condenação, e não será meu nome todos os dias
amaldiçoado por meu marido e por meus pais!
Repetiam-se essas cenas, e de dia
para dia tornavam-se mais freqüentes e acerbas essas lamentações, mais vivas
essas recriminações.
E não era só Francisco da Silva
que se lastimava, que se exasperava, era também Eugênia, quando começou a
compreender que já não era mais amada.
— Ah, na minha idade, dizia ela,
na primavera da vida, quando tanto poderia gozar, ostentando meus encantos, os
meus atrativos de mulher formosa em uma numerosa corte, lisonjeada por todos, e
ver-me hoje encerrada nesta casa sem divertimentos e sem carinhos!
E a moça vertia sentidas lágrimas
recordando-se dos dias felizes, que passara em companhia do marido, no palácio
do rei, no camarim das princesas e das infantas, nos aposentos das damas,
ostentando os seus vestidos de luxo, as suas jóias de brilhantes e topázios.
Quer no coração de um, quer no do
outro foi de dia para dia apagando-se o amor, e em vez desse sentimento veio o
aborrecimento, veio o tédio.
Francisco e Eugênia já não podiam
viver juntos. Entre eles havia cada dia exprobrações e acusações veementes. A
cada instante um deles lamentava a sua sorte, a cada momento um acusava o outro
da sua infelicidade.
Não existindo mais o amor, que os
embriagara, e os unira, compreendiam agora a posição vergonhosa e triste em que
se achavam. Já não havia aquele sentimento, que lhes obscurecera a vista,
enchera-lhes o coração, e por isso compreendiam a realidade feia e má da sua
existência.
Passavam eles dias e dias sem
trocarem uma palavra entre si, e um como que procurava evitar o outro.
Numerando cada um deles as suas
alegrias de outrora, seus divertimentos, e sua felicidade passada, maldizia o
erro, a desgraça, o crime, que pesava-lhe sobre a existência. Atribuía um ao
outro os males, que sofria, e qualquer motivo originava entre os dois uma
discussão, contenda ou desavença.
— Não pode continuar isso assim,
observava o reposteiro.
— Pois acabe com tudo isso, que o
mesmo desejo eu, repetia Eugênia.
— Então tens novos amores, não é
assim?
— Não sei.
Qualquer deles saía a passeio sem
convidar o outro, se ia Eugênia para uma casa da vizinhança, ausentava-se
Francisco para ponto diverso.
Na mesa do almoço ou do jantar
comiam sem trocar uma palavra, e já haviam separado os leitos alegando
excessivo calor. Não eram mais dois amantes, nem dois amigos, eram como pessoas
indiferentes ou antes rivais, que viviam
sob o mesmo teto.
Compreendeu o reposteiro que já
não amava a Eugênia, antes aborrecia semelhante mulher, e que também ela não
tributava-lhe mais nenhum amor.
Assim resolveu deixá-la o mais
breve possível.
Firme nessa idéia, reuniu dentro
de uma mala alguma roupa, guardou algum dinheiro, e ao amanhecer do dia
seguinte saiu de casa, deixando sobre uma mesa o bilhete seguinte.
— Não havendo laço algum que nos
uma, tendo desaparecido o amor, que um consagrava ao outro, julguei dever
retirar-me deixando-te livre para procurares outra vida de mais liberdade e
prazer, outro que ocupe o teu coração donde fui expulso. Eu farei o mesmo.
Ao despertar avistou Eugênia o
escrito sobre a mesa, leu-o, ficou receosa e sobressaltada por ver-se só e sem
recursos. Mas passou depressa a comoção, amarrotou o bilhete, lançou-o ao chão,
e sorrindo murmurou.
— Já era tempo, foi melhor assim,
Também já não podíamos viver um ao lado do outro. Hei de achar outro, que o
substitua. E a moça foi preparar o almoço, entoando uma canção popular.
A Eugênia moça rica de dotes
físicos, de olhos sedutores e atraentes, formas esculturais, ancas
desenvolvidas, seios exuberantes, e dificilmente contidos pelas barbatanas do
colete, não faltaram adoradores.
Começou a vê-la todas as tardes na
janela um moço da vizinhança, conseguiu depois ser admitido em casa, e algum
tempo depois ele cantava vitória.
Corridos alguns meses
ausentaram-se os dois para lugar distante e recôndito.
A andorinha, depois de haver feito
verão em um ponto, emigrava satisfeita para outro diferente.
XXI
— Estão desvanecidas as esperanças
do casamento de nossa filha com o reposteiro Francisco da Silva, dizia Antônio
Gonçalves a sua mulher.
— Depois da ação revoltante por
ele praticada no paço real não devemos pensar mais em semelhante homem.
— E como persiste a menina em
esposar o Eduardo Maia vou levar por diante o meu projeto de encerrá-la em um
convento.
— Diz ela que se não casar com o
Eduardo Maia, prefere ficar para sempre solteira.
— E não se receia a tolinha de
unir o seu destino àquele renegado!
— Não, e não, repete ela.
— Mas com essa alma de satanás não
se casará ela, prefiro vê-la freira.
— Coitadinha.
— Queres por ventura vê-la antes
nos braços daquele endemoninhado do que na casa de Deus!
— Isso não, se ele é pedreiro
livre, como disseste, vá antes ela para um convento; serve-se assim a Deus
Nosso Senhor.
Considerava-se relevante serviço
prestado ao céu consagrar-se, naqueles tempos idos, um filho à vida religiosa.
Violentando a vocação acreditavam os pais alcançar o perdão dos seus pecados
condenando os filhos a uma clausura perpétua. Era apanágio de honra e glória
ter um filho revestido de batina de padre ou de hábito de monge. As vestes
religiosas de um membro de uma família nobilitavam toda a geração, embora o
infeliz arrastasse no claustro uma vida inútil e péssima, e amaldiçoasse, em
seus momentos de reflexão, àqueles que segregaram-no da sociedade.
— Mas falta-me dinheiro, continuou
Antônio Gonçalves, para realizar esse meu intento.
— E por que não falas, ponderou a
mulher, ao compadre Miguel Afonso para que to empreste?
Residia o padre Miguel Afonso,
padrinho de Alice, na rua do Sabão, hoje do General Câmara. Era alto, magro,
seco de carnes, olhos vivos e pequeninos, boca regular e nariz adunco. Não saía
à rua, como então era uso, senão de batina, chapéu tricórneo,
e trazendo ou um grosso bastão com castão de ouro, ou um chapéu de chuva de
pano encarnado. Sacerdote bom e caritativo distribuía diariamente esmolas aos
pobres e mensalidades a famílias necessitadas. Legou em testamento diversos
prédios à ordem terceira do Bom Jesus, da qual era irmão, para ser o rendimento
deles distribuído anualmente por viúvas e filhas dos irmãos pobres da mesma
confraria. E até hoje, e perpetuamente, as moedas legadas por esse piedoso
padre, caem no regaço de viúvas pobres, de donzelas, que entre lágrimas de
gratidão e súplicas ao céu, recebem a esmola repetindo o nome do seu perpétuo
benfeitor.
XXII
Corridos alguns dias dizia Antônio
Gonçalves a mulher.
— Lembraste bem, vou procurar o
padre Miguel Afonso e falar-lhe sobre minha pretensão.
E tomando os seus melhores
calções, a sua casaca, sapatos com fivelas douradas, chapéu armado e bengala de
castão amarelo, dirigiu-se à casa do sacerdote.
Expôs-lhe as suas circunstâncias e
o desejo, que nutria em ver a filha freira no convento da Ajuda.
— Mas terá a menina vocação para a
vida da clausura, perguntou o padre.
— Tem, balbuciou Gonçalves
mentindo, pois não ousou declarar qual o motivo por que queria encerrar a filha em um convento.
— É bom refletir e pensar bem no
caso.
— Ela quer ser religiosa, repetiu
o velho.
— Não vá sacrificar em vão a sua
filha.
— Desejo prestar um serviço a Deus, Senhor Nosso.
— Aceita Deus os sacrifícios
espontâneos, a abnegação verdadeira, os atos de contrição pura, mas não
agradam-lhe, nem aproveitam os que praticam, as violências, as ações, que
acarretam remorsos.
— Minha filha servirá a Deus com
humildade e resignação.
— Permita o céu que assim seja.
Mas que deseja, quer que fale ao Sr. Bispo?
— Sim, e venho também suplicar
outro favor de sua amizade.
— Fale.
— Falta-me dinheiro para certas
despesas de papéis e enxoval, e se o compadre me adiantasse qualquer quantia...
— Farei tudo que estiver no meu alcance,
pois estimo a minha afilhada, e desejo
concorrer sempre para obras meritórias.
— Fiado no seu bom coração vim
pedir o seu auxílio.
— E não lhe há de faltar, mas
indague, perscrute bem a inclinação de sua filha, que tudo farei em benefício
dela.
Beijou Antônio Gonçalves o anel do
padre, como era uso naqueles tempos, e despediu-se agradecido e satisfeito.
XXIII
Regressando para casa disse
Antônio Gonçalves.
— Falei com o compadre e...
— E ele prometeu dar o dinheiro,
perguntou a mulher interrogando-o.
— Sim, e que falaria com o Sr.
bispo para a menina ser admitida no convento.
Alice que estava em um quarto
próximo ouvindo a conversa, ficou aflita. Horrorizava-a a idéia da clausura, e
teve ímpetos de fugir da casa paterna. Seu pai a ameaçava de fazê-la freira,
mas não acreditava que semelhante projeto se realizasse com tamanha presteza.
Triste, inquieta e lagrimosa recolheu-se ao seu aposento, onde escreveu
imediatamente a Eduardo relatando-lhe tudo. Fechada a carta, guardou-a no seio,
e veio à janela da rua para ver se passava a velha Quitéria afim de entregar-lhe a carta.
De feito a velha não se fez
esperar, assomou na esquina da rua, e a moça chamando-a entregou-lhe a carta.
Vendo que Alice chorava
perguntou-lhe:
— Que tem, menina, por que chora
assim.
— Quer meu pai fazer-me freira.
— Sossegue, sossegue, e tenha fé
no céu. Aqui está a oração a Santo Antônio, reze-a todas as noites, e verá que
seu casamento se realizará.
— Quanto à carta será entregue
hoje mesmo.
Despediu-se Quitéria de Alice, que
encerrou-se em seu quarto, onde entre lágrimas e suspiros leu a oração, que lhe
dera a devota.
Eram naqueles tempos mui
preconizadas as orações, os breves, as relíquias. Julgava-se que por esse meio
sanava-se tudo. Era tido como bom e infalível tudo que vinha da igreja. A
felicidade era sempre uma dádiva do céu, e a desgraça um castigo. Era
considerado quase sempre milagre o bom acontecimento, e nada se resolvia sem
antes pedir-se a intercessão de qualquer santo ou santa da corporação celeste.
E se não provinha resultado vantajoso e feliz quer das orações, quer das
promessas, bradava o padre, ou o fanático.
— Foi a falta de fé, que arruinou
o caso.
E assim vivia-se, sustentando os
padres princípios errôneos, fanáticos para extorquir o dinheiro do povo, e
conservá-lo manietado ao seu poder e influência. Confiava-se tudo da
providência, não se empregando o esforço próprio e individual. E desse modo
concorria a igreja para o atraso da civilização, para a paralisação do
progresso, e do adiantamento social.
XXIV
Publicado o aviso régio para o
corregedor do crime da corte e casa contra Francisco da Silva tratou o
magistrado de dar-lhe pronto cumprimento. Enviou cópia do citado aviso ao
delinqüente, mas este, como vimos, já havia se afastado para lugar distante da
corte, curvando-se à ordem régia.
Tendo abandonado a amante e
vendo-se sem recursos, escreveu o reposteiro ao marquês da Vila-Nova da Rainha,
com quem entretinha relações íntimas, e pediu-lhe intercedesse por ele ao rei.
Esse fidalgo, valido de D. João
VI, era por ele estimado, e um daqueles com quem o monarca mais confidenciava
nas palestras particulares. Era homem corpulento e bem apessoado, mas tinha as
pernas um pouco inchadas, como Luís
XVIII, e por isso pouco saía, vivendo constantemente no paço da cidade.
Sabendo que o rei tinha de
assistir a uma festividade na capela real foi o marquês esperá-lo na sala da
Tocha.
Era assim denominada a sala do
paço, onde havia um grande tocheiro dourado, como os que usam-se nas igrejas,
sustentando uma tocha de cera, que conservava-se acesa dia e noite no palácio,
em que se achasse o rei.
Aproximando-se D. João VI com a
sua comitiva correu o marquês ao seu encontro, curvou o joelho, e beijando-lhe
a mão disse,
— Venho implorar uma graça de
Vossa Majestade.
— Diga o que quer.
— Condenou Vossa Majestade com
toda justiça o reposteiro Francisco da Silva, que cometeu o feio delito de
seduzir uma dama casada; mas desterrado para fora da cidade vive esse moço na
miséria, vendo-se impossibilitado de angariar meios de subsistência em lugar
tão distante e ermo.
— Está sendo punido pelo crime que
praticou.
— Sim, real senhor, mas ele ainda
é considerado criado da casa real, e por isso não deve passar tão rudes e
vergonhosas privações.
— E por que não soube respeitar o
paço real e a sua posição?
— Grande foi a sua culpa, real
senhor, mas como pai de todos os seus súditos, podia Vossa Majestade permitir
que regressasse ele para a cidade.
— E voltasse talvez para o serviço
de minha casa, não é assim, interrogou o rei com o olhar carregado.
— Não, meu senhor, mas aliviando-o
de parte da pena, isto é ordenando que ele possa regressar à cidade, terá Vossa Majestade facilitado ao desgraçado
meios de subsistência.
— Bem, verei se posso atender ao
seu pedido, mas desde já declaro-lhe que semelhante criado não terá mais
exercício no paço real.
— Beijo as mãos de Vossa
Majestade.
— Escreverei ao ministro do reino
a semelhante respeito.
— Sim, meu senhor, disse o marquês
fazendo profunda cortesia ao rei.
Acompanhado do camarista conde de
Parati, do guarda-roupa Lobato, e de outras pessoas da corte, atravessou D.
João as salas do paço, o passadiço, que uniu o antigo palácio dos governadores
ao convento dos Carmelitas, transformado em paço real, e chegando à capela
tomou assento na tribuna régia aberta na capela mor. Mais tarde chegou a rainha
Carlota, e foi sentar-se junto do esposo, indo as damas ocupar uma das tribunas
do corpo da igreja.
Logo que o rei desapareceu das
salas do palácio, recolheu-se o marquês de Vila-Nova da Rainha aos seus
aposentos.
Apareceu três dias depois
estampado na Gazeta do Rio de Janeiro o aviso seguinte:
« El-Rei
Nosso Senhor é servido ordenar que o seu criado Francisco da Silva, que foi
mandado sair para fora desta cidade, na distância de dez léguas, possa para
voltar livremente, conservando-se com tudo, até segunda ordem, a proibição de
entrar no paço.»
O que participo a V. Mercê para
que assim lhe faça constar e se execute. Sr. Corregedor do crime da corte e
casa. (7)
Lendo semelhante aviso ficou
Eduardo Maia contrariado, pois talvez se despertassem as intenções de Antônio
Gonçalves de casar a filha com o reposteiro. Se cometera este escândalo público
tivera minoração na pena, e em breve ninguém mais falaria do delito, nem do
delinqüente. Acresce que não havia sido ele rebaixado do cargo, que exercia em
palácio, e naqueles tempos era considerado e digno de todas as distinções os
indivíduos da casa real.
Relatara-lhe Alice na carta, que
lhe escrevera, a firme resolução do pai em fechá-la em um convento, mas talvez
ela ainda o comovesse com suas lágrimas, ou soubesse resistir-lhe; acresce que
poderia ela falar com o bispo D. José Caetano, e denunciar a violência, que
tencionavam praticar com a infeliz donzela.
E era o douto diocesano D. José
Caetano homem firme e consciencioso, e jamais consentiria que, constrangida,
violentada pelos pais, professasse essa moça em uma ordem religiosa.
Mas, refletia Eduardo Maia, o que
mais grave lhe parecia era o recente aviso régio, que talvez arrastasse o
Antônio Gonçalves a mudar de idéia e projeto, entregando a filha em casamento
ao digno e honrado reposteiro da casa
real!
XXV
Contentíssimo ficou Antônio
Gonçalves lendo o aviso régio na Gazeta do Rio. Viu aliviado da sentença um
colega seu na casa real, e de novo veio encantar-lhe a imaginação a idéia
de tomar o reposteiro como seu genro. Se
praticara um ato indecoroso fora punido, e talvez o fizesse arrastado pelos
galanteios da dama, e como extravagância do rapaz. Sabia ele Gonçalves quais as
seduções, os enredos e conquistas amorosas, que se davam constantemente no
paço. Acresce que se o rei permitira ao moço reposteiro o regresso para a cidade
era sem dúvida por não estar muito irritado contra ele, e nem julgá-lo tão
culpado como a princípio. E se D. João não afastara ainda toda a sua proteção
do seu criado, talvez voltasse este ao exercício de seu cargo no paço real. A
comutação da pena fazia crer que o rei ainda se interessava pelo seu
reposteiro, e se ele pensava assim, toda a criadagem devia regular-se pela
cabeça do seu rei e senhor.
Ainda mais. Dispunha o reposteiro
da proteção do marquês da Vila-Nova da Rainha, fidalgo de invejada influência
na corte.
Mas também pensava Antônio
Gonçalves nos gastos, que já fizera para a filha recolher-se ao convento, no
que dissera ao padre Miguel Afonso sobre a inclinação da afilhada para a vida
mística. E até já conversara com a abadessa do convento da Ajuda sobre a
admissão de sua filha nessa clausura.
Estava assim indeciso no seu modo de resolver, via a filha manifestar
oposição em vestir o hábito, e via também restituído ao seio da sociedade o
reposteiro Francisco da Silva, que desprezara a amante, como era público e
notório, e assim era um genro mesmo ao pintar.
Quanto ao Eduardo Maia obteria ele
facilmente, por intermédio do marquês da Vila-Nova da Rainha, que, preso como
maçom e conspirador do trono e do altar, fosse recolhido à alguma fortaleza, e
daí degradado para a Índia. Eram tão fáceis aqueles tempos de domínio absoluto
essas salutares providências em benefício da igreja e da pessoa sagrada de el-rei nosso senhor!
E talvez vendo o noivo condenado a
desterro perpétuo aceitasse Alice por marido o reposteiro Francisco da Silva.
Povoavam-lhe o cérebro semelhantes
cogitações, quando ouviu Antônio Gonçalves bater à porta da rua. Foi ver quem
era e encontrou-se com o padre Miguel Afonso, que cumprimentando-o, disse.
— A graça de Deus esteja nessa
casa.
— E convosco, senhor reverendo.
— Como vai a afilhada?
— Na paz do Senhor.
— Está em casa?
— Não, foi com a mãe ouvir missa
na igreja de S. José.
— Pois vim trazer-lhe o que prometi.
E tirando do bolso da batina um saquinho de veludo preto entregou-o ao pai de
Alice acrescentando.
— É o dinheiro para a ajuda das
despesas, afim de ser minha afilhada contada entre as servas da Senhora do
Carmo, como freira no convento da Ajuda.
— Agradeço-lhe meu compadre, e de
Deus receberá a recompensa de tão boa ação.
— Coisa diminuta.
— Vou já passar-lhe uma obrigação
de semelhante quantia.
— Tem tempo.
— Seja como vossa reverendíssima
determinar. Tenciono recolher a menina ao convento em dia de Santo Antônio.
— Deus a faça feliz, e transforme
seu véu de freira em auréola de santidade.
— E já falou ao Sr. bispo?
— Ainda não, mas breve o farei.
— E desejo também que consulte a
abadessa.
— Tudo farei para iniciá-la na
vida do retiro e amor de Deus, assim tenha ela vocação e fortaleza para
suportar as privações e martírios, que acompanham o hábito religioso.
— Há de ter.
— Mas não posso demorar-me mais,
pois ainda tenho de dizer missa.
Deus o siga.
E separaram-se os dois amigos
osculando Antônio Gonçalves com sinais de verdadeira piedade o anel do
padre.
XXVI
Haviam se precipitado os
acontecimentos políticos.
Resolvera D. João VI
inopinadamente partir para Portugal, deixar nas mãos do seu filho D. Pedro o
governo do Brasil, e mandar eleger deputados às cortes de Lisboa.
Instalada no edifício da nova
praça do Comércio, na rua hoje Primeiro de Março, a assembléia eleitoral, para
eleger os deputados às cortes de Lisboa, apresentou-se o ouvidor Joaquim José
de Queiroz, e procedeu à leitura de decretos, que não eram da competência da
assembléia tomar conta deles. Manifestava semelhante procedimento, que nada
entendia do sistema representativo constitucional, quer o governo, quer os
governados.
Tornou-se a assembléia
tumultuária, arvorou-se em constituinte, e começou a legislar como se fosse
assembléia de toda a monarquia. Mas na noite de 21 de abril de 1821 foi
dissolvida violentamente por um forte destacamento da divisão portuguesa, que
dando uma descarga, invadiu a casa à baioneta calada.
Procuraram fugir os eleitores
pelas portas, pelas janelas, que deitavam para o mar, porém foi o maior número
repelido pelas baionetas. Pereceram alguns e muitos ficaram feridos.
Fechou-se o edifício, e adiou-se a
reunião dos eleitores.
Conversando sobre este
acontecimento político Frei Sampaio e o capitão-mor Rocha, os quais teriam de
tornar-se notáveis na luta da independência do Brasil, dizia o frade
franciscano.
— E o atentado da praça do
Comércio!
— Veio tornar mais profundo o
sulco, que separa os Brasileiros dos Portugueses, objetou o capitão-mor Rocha.
— Não houve nem advertência, nem
intimação prévia, e a descarga de mosquetaria foi o
anúncio da violência.
— Foi um crime cometido pelo
governo do rei; se assembléia abusou, o governo foi violento e cruel.
— Mas dizem que o rei foi estranho
ao ato.
— Não sei, afirmou Rocha, mas do
paço partiu a ordem, e se não foi o rei, foi seu filho D. Pedro o autor da
carnificina.
— E consta que entre as vítimas
foi encontrado o cadáver de Anselmo da Costa.
— Quem, o denunciante do infeliz
Luís Prates?
— Ele mesmo, morreu varado por uma
bala.
— Talvez lá comparecesse como
espião do governo!
— Se mais uma vez quis ser
relator, uma bala tapou-lhe a boca.
Nessa ocasião atravessou a rua o
soldado Rondon entoando o seguinte estribilho.
— Se isto vai como vós vedes,
Meu compadre Belchior,
Males a males sucedem,
Tudo vai de mal a pior.
Riram-se os dois brasileiros
amigos, e logo após separaram-se.
XXVII
Determinara Antônio Gonçalves que
fosse sua filha recolhida ao convento da Nossa Senhora da Ajuda no dia de Santo
Antônio, festejando ele na véspera, como costumava com fogueira e fogos de
vistas, o santo de seu nome.
Eram naqueles tempos muito usados
os festejos em honra de Santo Antônio, S. João, S. Pedro e Santana. Erguiam-se
fogueiras em quase todas as ruas da cidade, e queimava-se muito fogo
artificial. Os foguetes, rodinhas, busca-pés, bombas, pistolas e traques de
fogo atropelavam os transeuntes, que se queriam fugir das fogueiras, viam-se
perseguidos pelos fogos do ar. Era um brinquedo perigoso e fatal, no qual
alguns indivíduos adquiriam aleijões, e outros faleciam vítimas desse
divertimento em ruas estreitas de uma cidade já bastante populosa.
Mandara Antônio Gonçalves armar a
fogueira em frente de sua casa, e despendera bastante dinheiro em fogos de
vistas.
Entretendo-se com jogos de
prendas, queimando fogos artificiais e saboreando as canas, batatas e carás assados,
ao som de vivas a Santo Antônio, determinara Antônio Gonçalves, em companhia da
família e de diversos amigos, passar toda a noite em claro.
Corria alegre o festejo quando
aconteceu cair sobre o telhado da casa alguns foguetes, que penetraram no madeiramento
e produziram incêndio.
A alegria, a distração, a que se
entregavam todos, concorreu para que não fosse pressentido o fogo, que em breve
invadiu todo o prédio, e era iminente o perigo, quando foi de todos conhecido.
Não existiam naquele tempo no Rio
de Janeiro meios regulares de abafar os incêndios, que eram por isso sempre
fatais. No meio de grande tumulto e desordem corriam os vizinhos com vasilhas
d’água, subiam outros aos telhados por meio de escadas de mão, gritavam,
lastimavam-se, espalhavam-se pelas ruas clamando pelos pretos, que vendiam
barris d’água, e sem ordem, sem método dificultavam e baralhavam tudo pouco
conseguindo. Todos queriam mandar, ninguém obedecia, e semelhante desordem
facilitava a propagação do fogo.
Apresentavam-se às vezes no lugar
do sinistro o intendente de polícia e outras autoridades, mas como não houvesse
corpo arregimentado para semelhante serviço, tinham de obrigar os transeuntes a
ofícios de bombeiros.
Não eram freqüentes os incêndios,
mas quando se davam devoravam todo prédio.
Prestaram os vizinhos bons
serviços à família de Antônio Gonçalves na ocasião do perigo, e entre aqueles,
que mais concorreram para subjugar o fogo, notou-se um moço, que desde o
princípio do festejo da noite, aproveitara-se da confusão e do entretenimentos
dos outros, para trocar palavras de amor e galanteio com a sua amada.
Mas logo que o incêndio tomou
incremento, foi ele um dos mais denodados em subjugar as chamas. Afrontou
diversas vezes o perigo, percorrendo os pontos mais elevados e arriscados,
trabalhou de machado, carregou baldes de água, e empregou esforços inauditos
para circunscrever o fogo.
Só restaram do prédio as paredes,
porque tudo mais as chamas devoraram, ficando os moradores só com a roupa do
corpo.
Teve a família de Antônio
Gonçalves de abrigar-se em uma das casas da vizinhança.
Durante a confusão de tão grande
desastre encontrou-se Eduardo Maia várias vezes com Alice.
— Ardeu tudo, e ficaram meus pais
sem coisa alguma, repetiu a moça lagrimosa.
— Até o hábito de noviça foi-se,
acrescentou Eduardo fitando-a.
— É certo, o fogo devorou-o.
— É porque Deus não quer vê-la
freira.
— Pensa assim?
— Creio. E quem sabe se este fatal
acontecimento não nos será propício!
— Ah, e meus pais que ficaram na
pobreza.
— Se para amá-la tenho o coração,
para proteger a seus pais tenho os braços. E Eduardo Maia estreitando a moça em
íntimo abraço, deu-lhe um ardente beijo, como desejando testemunhar a sua
proteção com essa expansão de amor.
Entretanto não cessava Antônio
Gonçalves de repetir.
— Que desgraça, que fatalidade.
— Quem sabe se não foi praga
daquele maldito rapaz Eduardo, retorquiu a mulher.
— Pode ser, visto como é maçom, e
irmão portanto de Satanás.
— Afaste-o Deus de todos nós.
E continuaram os velhos a
lastimar-se.
XXVIII
Tendo abandonado a amante
retirou-se Francisco da Silva para a casa de um amigo residente na real fazenda
de Santa Cruz. Dali escreveu ao marquês de Vila-Nova da Rainha pedindo-lhe
suplicasse ao rei a permissão de regressar para a cidade. Já vimos que atender
D. João ao pedido do velho fidalgo.
Logo que soube que consentira o
rei que voltasse para a cidade, ficou Francisco da Silva contentíssimo. Lendo o
aviso régio alimentaram-no fagueiras esperanças. Veio imediatamente aboletar-se
em casa de um velho criado do paço residente na rua chamada atualmente da
Assembléia.
Pensou em pedir em casamento a
linda filha de Antônio Gonçalves, que tanto desejava, que se realizasse
semelhante enlace, e contraindo esse consórcio manifestar a todos que
tencionava seguir conduta moralizada e séria. Mas informado que tudo perdera o
ajudante do almoxarife no incêndio, que devorou-lhe a casa, considerou que nada
adiantaria em recursos pecuniários com semelhante união. Refletiu que não lhe
convinha tomar qualquer resolução sem consultar antes ao seu amigo e protetor o
marquês de Vila-Nova da Rainha.
Escreveu-lhe agradecendo ter
obtido a clemência do rei a seu favor, e pediu-lhe ditasse os conselhos sobre a
norma de vida, que teria de trilhar.
Dedicava o marquês muito estima a
este moço, tanto que, propalava-se no paço, que era ele seu filho.
Dizia-se que, quando estudante da
universidade de Coimbra, apaixonara-se esse fidalgo por uma camponesa, e dela
tivera um filho. Mais tarde regressando para Lisboa casara-se com uma rica
herdeira da casa dos condes de Resende, esquecendo-se da camponesa e do filho.
Corridos anos faleceu a pobre aldeã, e ficou o menino abandonado.
Despertaram-se então os
sentimentos de paternidade no coração do fidalgo. Mandou procurar o menino, e
sendo encontrado trouxe-o para a sua companhia, educou-o, e matriculou-o em um
colégio.
A espada invencível de Napoleão
amedrontou a família de Bragança, que veio foragida buscar asilo no Brasil. Na
comitiva régia veio o marquês de Vila-Nova da Rainha, que já havia colocado o
filho entre os criados da casa real. Exercendo o cargo de camarista era
desvelado protetor de Francisco da Silva, porém jamais declarou-lhe, quem era
seu pai.
Recebendo a carta de Francisco da
Silva ordenou o marquês, que se achava
na quinta de S. Cristóvão, que preparassem a sua sege, e entrando nela seguiu
para a casa do seu protegido.
Ficou lisonjeado Francisco da
Silva vendo o fidalgo, o favorito do rei,
em sua casa, e fazendo-lhe cerimoniosa cortesia agradeceu-lhe a honrosa
visita.
— Vim aqui vê-lo, porque poderemos
conversar mais livremente.
—
E desejo muito ouvir a opinião de V. Ex. sobre a conduta, que devo
seguir.
— Convém proceder como homem de
juízo, esquecendo o seu passado, e procurar honrar o lugar, que ainda ocupa, no paço de el-rei.
— Passando um destes dias em
frente do paço da cidade, acrescentou Francisco da Silva, e avistando el-rei em uma das
janelas, saudei-o curvando o joelho.
— E ele o que fez?
— Retirou-se logo da janela.
— Soube disso, retorquiu o
marquês, contou-me o guarda-roupa Lobato.
— Desejava casar-me para que el-rei compreendesse que tenciono mudar de vida e de
procedimento.
— Não pense em tal por ora, seria
necessário pedir a permissão de el-rei, e ele agora
não a daria.
— Por quê?
— Ainda está muito recente o ato
indecoroso, que o senhor praticou no paço.
— Mas.
— Espere algum tempo. Caminham
rapidamente os acontecimentos políticos; D. João VI e a família real devem
regressar breve para a Europa.
— E devo também embarcar-me na
esquadra?
— Não. Fica no Brasil o príncipe
real D. Pedro, que é moço, apaixonado do belo sexo e facilmente desculpará as
travessuras, os irrefletidos de um rapaz.
Dele obterá a permissão de voltar
ao serviço ativo da casa real, se proceder bem, como espero.
— E V. Ex. acompanha el-rei a Lisboa.
— É meu dever.
— Ficarei assim sem a sua valiosa
proteção. E porque não pede ao rei para antes de partir incluir-me no número de
criados que estão em serviço?
— Não julgo conveniente, pois o
Sr. D. João é teimoso, e não me atenderá. Mas hei de deixar quem o proteja na
minha ausência.
E o marquês sensibilizado, e como
receoso de expandir-se mais com o seu protegido, abraçou-o, e despedindo-se
dele entrou na sege, que o levou para S.
Cristóvão.
Ficou Francisco da Silva perplexo,
irresoluto e contrariado. Via que não podia voltar à pátria em companhia da
família real, não podia casar-se por talvez ser-lhe negada a competente
licença, que talvez tão cedo não fosse admitido no exercício do seu cargo na
residência real, e ia ausentar-se o poderoso fidalgo, que até então servia-lhe
de pai, e tanto o protegera.
Ficava só, isolado, em posição
precária, e entregue aos caprichos de um príncipe muito moço, arrebatado;
extravagante e de gênio altivo e irascível.
XXIX
Na manhã de 26 de abril de 1821
cortava as águas da baía do Rio de Janeiro a esquadra, em que regressavam para
Portugal D. João VI e sua família,
exceto o príncipe D. Pedro, que ficava como regente do Brasil.
Receoso e irritado pelo ato
violento da praça do Comércio, praticado pelo governo, viu o povo com
indiferença, e talvez com contentamento, a partida dos navios, que afastavam-se
da América o rei, sua mulher, seus filhos, e os fidalgos e numerosos criados do
paço, e também muitos capitalistas e negociantes portugueses, formando todos
uma comitiva de mais de três mil pessoas.
Três dias antes da partida da
esquadra conversava na portaria do paço da cidade o marquês de Vila-Nova da
Rainha com Francisco da Silva.
— Com bastante pesar, dizia o
marquês, retiro-me para Lisboa deixando-o neste país, mas já recomendei-o ao
conde dos Arcos, que fica como ministro do príncipe.
— E o rei parte satisfeito?
— Não; vai triste por deixar o
Brasil, onde viveu treze anos feliz e tranqüilo, mas os negócios públicos
obrigaram-no a partir.
— E irá mais tarde o príncipe?
— Creio que não. Esse é moço,
ágil, ambicioso e saberá resistir à política das cortes de Lisboa, que se
aterrou seu pai, não o atemorizará.
— E o Brasil permanecerá unido a
Portugal?
— Não julgo também provável, pois
está nublado o horizonte político, salienta-se de dia para dia a rivalidade
entre os filhos daqui e os do velho Portugal, e não é possível que, este
pequeno país, possa reter por muito tempo em suas mãos o grande território
brasileiro.
E o velho marquês vendo que fora
mais expansivo sobre a política, do que devera ser, como conselheiro e
camarista do rei, abraçou triste e muito saudoso o seu amigo ou antes seu filho
despedindo-se.
Na nova fase, que abria-se para o
Brasil, surgiram acontecimentos , que alarmaram o espírito público.
Exaltou os ânimos dos Brasileiros
a política do congresso português, que pensou em recolonizar o Brasil. Abriu-se
no Rio de Janeiro a válvula da imprensa. Mostrou-se ameaçadora e exigente a
tropa portuguesa, pretendeu apoderar-se da pessoa de D. Pedro, o regente, e fazê-lo embarcar à força para
Portugal. Tomando armas foi acampar no morro do Castelo. Para resistir-lhe
reuniram-se os nacionais, armaram-se, e resolveram pelejar com muito valor e
muito patriotismo. O campo de Santana, hoje praça da República, transformou-se
em campo de guerra do povo e tropa do Brasil, e essa altivez, essa atitude
enérgica aterrou os soldados portugueses.
No número dos Brasileiros
alistados entre os defensores da pátria estava Eduardo Maia, tenente de
milícias, que bons serviços prestou à causa nacional.
Conseguiu prender um indivíduo
suspeito, que, envolto em capote de baeta azul e chapéu desabado, procurava
perscrutar qual o número e a posição aguerrida da força brasileira.
Apresentado ao marechal, que
comandava a divisão brasileira, foi o espião reconhecido; era João de Avilez, irmão de Jorge Avilez,
general do exército português. Quis desculpar-se o criminoso declarando que
tomara aquele trajo para poder penetrar em uma casa, onde entretinha amores
secretos. Sentenciou-o o marechal à morte, mas intercedeu por ele o tenente Eduardo
Maia, e assim teve o traidor a vida salva. (8)
Havendo escassez de munições e não
podendo fornecê-las o arsenal de guerra, por que o respectivo inspetor o
brigadeiro Raposo bandeou-se com os revoltosos, disfarçou-se Eduardo Maia em
aguadeiro, e conduzindo em uma carroça uma pipa vazia, penetrou na praça de
guerra, encheu a pipa de munições, e veio salvo e jubiloso entregá-las a seus
camaradas, aos defensores, como ele, do pavilhão e da honra nacional. (9)
Coagida a deixar o ponto
ameaçador, que tomara, embarcou a divisão portuguesa para Niterói.
Ainda aí quis cerrar fileiras,
travar peleja, mas a força nacional, que, transpondo a baía, foi fazer-lhe
frente, a posição estratégica dos navios, e a atitude decidida e enérgica do
regente, forçaram os batalhões portugueses a recolher-se aos navios, que
levaram-nos para a Europa.
Os feitos guerreiros, o civismo e
a coragem de Eduardo Maia na luta pela pátria tinham-no tornado saliente entre
os fortes, e era seu nome repetido com louvor.
Ouvira Antônio Gonçalves mencionar
as façanhas do moço, e convencido dos
ingentes esforços e da solicitude, que empregara para abafar o incêndio, que,
como vimos, consumiu todo o prédio, em que residira, começou a dedicar ao
valente e denodado militar viva simpatia.
Indo de passeio com a família e
encontrando-o junto de um posto de guarda, disse-lhe o velho jubiloso.
— Sei, Sr. Eduardo Maia, que
bastante tem batalhado pela causa santa da pátria.
— Pouco tenho feito, respondeu
Eduardo.
— Muito, replicou Alice, lançando
sobre o mancebo um olhar fixo e ardente, como desejando dizer-lhe!
— Amo-te.
XXX
Designado para ficar ao serviço do
príncipe D. Pedro, na categoria de almoxarife do paço da cidade, não acompanhou
Antônio Gonçalves o rei a Lisboa.
Empossado do novo emprego veio residir no pavimento térreo do palácio,
e mostrou-se desde então muito grato e dedicado ao regente, que dera-lhe
graduação maior entre os criados de sua casa. Não perdia ocasião de elogiá-lo,
e, apesar de ser português, achava bom tudo, que o príncipe resolvia em prol do
Brasil.
Antes de partir para a Europa
mandou o marquês de Vila-Nova da Rainha entregar ao seu protegido Francisco da
Silva uma bolsa cheia de moedas de ouro, e também uma carta de despedida com
salutares e paternais conselhos.
Mas apesar disso não seguiu
direção inversa da que costumava seguir, persistiu em aventuras amorosas;
todavia levado do desejo de voltar ao serviço ativo do paço, determinou atar ao
rosto a máscara da decência e da simulação, e afetar sentimentos, idéias e
conceitos de homem sisudo e
circunspecto.
Ponderosos motivos levaram-no a
proceder assim. Sabia que seria privado da proteção do marquês se não fosse
sensato e correto o seu procedimento, e era preciso passar por homem de boa
organização moral, de austeridade de princípios para alcançar a proteção dos
amigos, afim de regressar à vida ativa do paço.
Aparentando integridade, que não
tinha, conseguiu o seu fim. O seu novo patrono conde dos Arcos intercedeu por
ele ao príncipe regente.
Moço de caráter libidinoso,
expansivo, alegre, inclinado a conquistas amorosas, facilmente D. Pedro
esqueceu a fraqueza, a falta cometida pelo antigo criado de seu pai, e ordenou
fosse ele reintegrado no exercício do cargo. Voltou Francisco da Silva às salas, às grandezas, às festas, ao luxo do
paço. Vestiu a sua farda agaloada e achou-se bonito, e o que é mais, homem de
importância e valia.
Extravagante e dissoluto soube
insinuar-se no ânimo do príncipe, angariou a sua confiança e a sua estima,
tornou-se dedicado, serviçal ao extremo, e compreendendo que era sua índole
semelhante à do seu senhor, acompanhou-o em todas as ações de libertinagem, e
lisonjeou-o em todos os atos de devassidão.
D. Pedro sensualista e pródigo,
entregue a seus instintos e às sua paixões, necessitava de confidentes, que
desprezando os ditames da moral, o acompanhassem em suas extravagâncias e
desvarios de mancebo; dispunha de favoritos, que tanto mais subiam nas honras,
quanto mais bajulavam e sujeitavam-se
aos caprichos do soberano. Francisco da Silva, conhecido pela alcunha popular
de Chalaça, achou-se logo à testa desses validos do monarca, e por isso, de
simples criado, foi rapidamente subindo em honras e em postos; foi nomeado
ajudante da guarda de honra, secretário privado, e tanta ascendência ganhou no
ânimo do seu grande protetor, que decidida influência chegou a obter na política
geral da nação.
XXXI
Depois da partida do rei para
Lisboa, do insólito ataque contra a assembléia reunida no edifício da praça do
Comércio, exacerbou-se a rivalidade entre brasileiros e portugueses. Afrontosos
epítetos dirigiam uns aos outros; se os portugueses chamavam os brasileiros de
cabras, apelidavam-nos estes de pé de chumbo, e qualquer incidente originava
uma questão, um conflito mais ou menos grave entre os dois povos.
Tendo desertado diversos soldados
da divisão portuguesa revoltada, foram incorporados aos batalhões brasileiros.
Aconteceu que, atravessando alguns
desses soldados portugueses a praça hoje denominada Quinze de Novembro, foram
provocados por soldados brasileiros.
Armou-se entre os dois grupos viva
contenda, que terminou em renhida luta. Tomou o fato caráter grave, e tanto que
reconquistou-se força do quartel do Campo. Veio para abafar o motim o tenente Eduardo Maia comandando uma
companhia. Travou-se peleja entre os grupos das duas nacionalidades, e após
forte tiroteio de fogo foram repelidos os portugueses, ficando mortos dois e
feridos alguns. Da força brasileira ficaram feridos diversos, entre outros o
tenente Eduardo Maia.
Espalhou-se pela cidade a notícia
do motim, que assustou o povo, e obrigou muitos negociantes a fecharem as
portas dos negócios.
Logo que cessaram os tiros e
terminou a luta, saiu Antônio Gonçalves de casa, e foi saber o que ocorrera.
Atravessava a praça, quando viu uma padiola carregada por quatro soldados.
Desejou ser informado e perguntou-lhes.
— Camaradas quem vai aí?
— É o tenente Eduardo Maia, que
recebeu grave ferimento, responderam as praças.
— Ah! o valente moço, que tão
forte e corajoso se tem mostrado na defesa nacional! Infeliz.
E o velho afastou-se sumamente
comovido.
XXXII
Chamava-se Afonso o novo amante de
Eugênia. Era moço esbelto e desempenado. Filho de um fazendeiro rico de S.
Paulo, dispunha de dinheiro suficiente para conquistar os amores de mulheres
fáceis.
Afonso conduziu Eugênia para uma
casa de campo na Tijuca; e aí passaram ambos uma existência de amor, ou antes
de prazer e volúpia.
Sentados ou deitados debaixo de
frondosas árvores, viam correr as horas em cenas de amor e luxúria.
Se ele era libidinoso, ela era
ardente e fogosa. Esgotavam a existência nessa orgia sensual e cotidiana.
Quiseram por fim mudar de cenário,
e resolveram vir para a cidade, aboletando-se em uma casa da praia de Botafogo.
Teatros, bailes, passeios, carros,
cavalos, tudo teve a amante do mancebo rico, e alegres corriam-lhe os dias,
vivendo no luxo e na lascívia.
Contavam os dois as horas pelos
beijos, ou antes pelos prazeres, que fruíam. Viviam nas ânsias da paixão, em
uma verdadeira embriaguez de gozos e
delícias.
Mas tudo cansa e fatiga. Como já
não bastassem para passar as horas a beleza e encantos de Eugênia, procurou
Afonso outra distração; entregou-se ao jogo. Se de dia vivia envolvido nos
braços da sereia, ia de noite consumir no jogo o tempo e o dinheiro.
Começou Eugênia a estranhar a
ausência do amante, a sentir-se só; e se a princípio lastimou-se e chorou, foi
depois reconhecendo que Afonso já não lhe satisfazia, não sabia cumprir a sua
missão de homem apaixonado, e por isso procurou descobrir outro, que melhor o
substituísse.
Também Afonso já sentia-se
fatigado, e iam-lhe rareando os recursos colhidos na casa paterna.
Apesar da vida extravagante,
inebriante de prazer, que levava Eugênia, ostentava-se ainda esplêndida a sua
beleza. Era rosa, que apesar de lhe terem experimentado muito o perfume, ainda
conservava o encanto da cor e a contextura brilhante das pétalas. Era mulher
sedutora e provocadora.
Atraiu depressa ao seu domínio um
negociante rico.
Por sua vez notou Afonso certa
frieza nessa mulher de fogo, que soubera subjugá-lo. Já não havia tantos
carinhos em seu s afagos, nem tantas delícias em suas ânsias de prazer. Ele
também foi pouco a pouco se retraindo. Acresce que recebera do pai uma carta,
chamando-o à fazenda, pois já era avultada a soma de dinheiro, que esbanjara no
Rio de Janeiro com os seus prazeres.
Determinou partir, mas não
sabia qual o meio de desvencilhar-se da
áspide, em que se achava enroscado.
Correu assim algum tempo sem o
moço atinar qual a melhor resolução a seguir, porém voltando uma noite, já bem
tarde do jogo, ao entrar em casa, não encontrou Eugênia.
Procurou-a em todos os aposentos,
chamou-a, mas em vão, ela havia desaparecido.
— Foi-se, murmurou Afonso, e foi
melhor assim, livrou-me do embaraço em que vivia, desejando-lhe dizer que ia
ausentar-me, ou mandá-la sair desta casa.
Preparou no dia seguinte as suas
malas, dispôs a viagem, e daí a dois ou três dias, estava de volta à casa
paterna, esperando encher de novo a carteira para conquistar outra amante, que
viesse ocupar o lugar da que tinha
fugido.
XXXIII
Ficara penalizado Antônio
Gonçalves sabendo do grave ferimento de Eduardo Maia, e para não causar
profunda mágoa à sua filha, que vivia triste e abatida, nada referiu-lhe sobre
semelhante acidente.
Os feitos do distinto moço em
defesa da pátria, que erguia-se livre e independente, que surgia como nação
entre outras nações, haviam-no tornado benquisto e elogiado por todos, e era
Antônio Gonçalves um dos entusiastas do destemido mancebo.
Além disso estavam extintas as
aspirações, que acalentara de ter como genro Francisco da Silva. Subira este na
escala social, era vulto proeminente no paço imperial, e certamente se pensasse
em casar-se, iria buscar alguma dama das mais distintas da sociedade
fluminense.
Quanto ao fazer da filha uma freira,
era idéia, que já desprezara, não só porque considerara, como aviso do céu ou
antes castigo, o incêndio de sua casa na véspera de Alice receber o hábito
monacal, como também porque informado o padre Miguel Afonso da violência, que
ia-se praticar contra aquela moça, retirara a sua proteção, e ameaçara revelar
ao bispo a crueldade, que se tencionava fazer, clausurando
uma donzela, para não deixá-la casar com quem pedia-lhe o coração.
Entretanto fiel e dedicado
conservava-se Eduardo Maia ao seu amor, e nos dias de luta da nação, procedera
como um forte, como homem dotado de todas as energias.
Era assim esse moço, quem convinha para noivo de sua filha, cogitava
consigo Antônio Gonçalves.
Recolhido ao hospital militar foi
considerado grave o ferimento de Eduardo, e por muitos dias guardou o leito,
sobrevindo-lhe hemorragias, febre e dores cruciantes. Mas depois de longo
tratamento foi debelado o mal, e o doente restabeleceu-se.
Mais de uma vez fora visitá-lo
Antônio Gonçalves, e tendo o moço alta do hospital por estar inteiramente são,
foi Antônio Gonçalves ter com ele, e falou-lhe no casamento com a sua filha.
Aceitou Eduardo Maia com grande
efusão de contentamento.
Encheu-se também de alegria o
coração de Alice, quando soube da permissão de seu pai; abraçou-o, e lançou-lhe
um olhar de tanta gratidão e contentamento, que ele leu em seus olhos a
felicidade, que lhe inundava a alma.
Decorrido pouco mais de um mês,
celebrou-se na igreja de S. José, o ato religioso unindo os noivos Eduardo Maia
e Alice.
Ao sair do templo avistou a moça a
velha Quitéria, que disse-lhe baixinho.
— Foi milagrosa a oração a Santo
Antônio.
Alice sorriu-se, e Eduardo,
tirando do bolso uma moeda, deixou cair entre as mãos mirradas da velha.
Ao entrar em casa disse Eduardo
Maia abraçando a sogra.
— Ainda tem medo dos mações?
— Já não tenho tanto, respondeu a
velha, e batendo-lhe no ombro, acrescentou, especialmente deste, por que terá
sempre junto de si um anjo.
XXXIV
E Eugênia!
Viveu algum tempo com o terceiro
amante, mas no fim de alguns meses deixou-o para receber outro. Desprezada por
este, aceitou mais um, mais dois, mais três, nem sei quantos, por que o último
era o número das notas da carteira dos visitantes, que fazia-lhe abrir a porta
da casa.
Quando saía à rua usava de luxo
excessivo; trajava vestido de sede ou de veludo, ornavam-lhe o pescoço grossos
cordões de ouro, como então se usava, e
os braços ricos braceletes de brilhantes.
Dirigindo-se um dia o distinto
franciscano Monte Alverne para os seu convento em
companhia do negociante Insua, sínodo do Seminário de
São Joaquim, que havia sido restabelecido por ordem de D. Pedro, viu passar uma
mulher ricamente vestida.
Ainda nesse tempo conservava o
notável orador sagrado Monte Alverne a luz dos olhos,
que trinta anos depois perdeu, ficando porém intacta a grande luz, que
iluminava-lhe o cérebro.
— Conhece aquela mulher, perguntou
Insua ao ilustre franciscano.
— Não, respondeu este.
— É a dama, que no tempo do rei D.
João VI, fugia do paço em companhia de
um reposteiro.
— Ah, recordo-me pelo aviso então
estampado na Gazeta do Rio. E agora é
talvez uma mulher mundana.
— Presumo que sim, e por isso
procura atrair a atenção pública com o brilho de suas jóias e o farfalhar da
seda do seu vestido.
— É a devassidão ostentando a sua
grandeza.
— É certo, o vício excitando os
vícios.
— Infeliz, caminhará vestindo
galas até cair coberta de lepra no leito
de um hospital, ponderou Monte Alverne.
E o eminente franciscano
despediu-se do amigo.
Nessa ocasião lançando Eugênia um
olhar malicioso sobre o negociante e sobre o frade sorriu-se, e continuou no
seu passeio, exibindo a sua beleza, que ainda não era pouca, e o seu luxo, que
então era muito.
FIM
NOTAS
(2) Palavras textuais proferidas pelo rei.
(5) Autêntico. Veja a Gazeta
do Rio de Janeiro.
(6) Fato verdadeiro ocorrido nessa época.
(7)
Veja a Gazeta do Rio desta época.
(8) É fato referido por pessoas do tempo.
(9) Também é fato tradicional referido em algumas crônicas da época.