LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

No tempo do rei, de Moreira de Azevedo


 

 

Edição de referência:

No tempo do rei, de Moreira de Azevedo.

Rio de Janeiro: Livraria de J. G. de Azevedo & C., editores, 1899.

 

Nossos agradecimentos à Biblioteca do IEB,

 que gentil e prontamente nos forneceu a digitalização desse romance.

 

 

 

 

 

 

 

 

I

 

 

Estavam reunidos em uma noite do ano de 1817 diversos indivíduos em uma casa térrea da rua de São Pedro da Cidade do Rio de Janeiro. Conservavam-se fechadas as portas e janelas, que davam para a rua, mas na sala da frente, ao redor de uma mesa, onde descansavam quatro castiçais de prata com velas de espermacete, viam-se sentados doze ou treze indivíduos conversando em voz baixa.

 

— Deve haver bastante cautela, dizia um, pois anda ativo o ministro Tomás Antônio, cujo faro é perspicaz.

 

— Entretanto têm as lojas maçônicas caminhado às claras em Pernambuco, dão banquetes e levantam brindes.

 

— Assim é, mas sabe o colega o que vai por lá, regougou o outro.

 

— Que há, perguntaram alguns ao mesmo tempo.

 

— Houve uma revolução e proclamou-se a república, exclamou o sujeito aterrado.

 

Produziu esta palavra um choque como se uma bala de artilharia houvesse explodido no salão.

 

— Sim; expulsaram o governador Caetano Pinto, e instituíram um governo republicano.

 

— Sim, repetiram diversos.

 

— Em obediência declaro que propalam ser o irmão Anselmo da Costa, quem divulga o que aqui se passa.

 

— O que tem de expor em sua defesa, perguntou o presidente ao acusado.

 

Anselmo levantou-se, cruzou os braços, abaixou a cabeça e não pronunciou palavra.

 

Vendo que o acusado não tratava de justificar-se, ergueu-se o vigilante, pronunciou algumas palavras, que todos ouviram de pé, e em seguida aproximando-se de Anselmo o irmão fiscal, indicou-lhe a porta e disse-lhe:

 

— Retirai-vos.

 

Sem praticar ato algum de violência, sem pronun­ciar uma só palavra, lançando um olhar de cólera sobre seu denunciante, tomou Anselmo o chapéu, abriu a porta e saiu.

 

— Havendo-se dado este triste incidente proponho o encerramento da sessão, disse o presidente.

 

Aprovada semelhante resolução, levantaram-se todos, e feita a devida vênia retiraram-se. Apenas ficou um chamado Luís Prates, que ali residia, e que depois de examinar se a porta ficara bem fechada, apagou as luzes da sala e recolheu-se ao interior da casa.

 

 

 

II

 

 

Convém travar relações com alguns dos indivíduos, que acabamos de ver reunidos na casa térrea da rua de S. Pedro.

 

Era um deles Luís Prates, homem de cinqüenta anos de idade, alto e corpulento. Vestia calção de ganga amarela, meias brancas, sapatos de entrada baixa com fivelas, casaca e colete de pano azul, trazendo atada a uma das casas do colete grossa corrente de ouro do relógio com três ou quatro sinetas pen­dentes. Era empregado do arsenal de guerra ou do Trem, como então se dizia.

 

Já dissemos que o irmão despedido da loja chamava-se Anselmo da Costa.

 

De estatura mediana contava Anselmo trinta anos de idade, tinha as pernas um pouco arqueadas e vivia de foro.

 

Trajava casaca cor de pinhão, calções da mesma cor, colete preto, meias e sapatos de fivelas. 

 

Havia um outro chamado Eduardo Maia, moço de 20 anos, esbelto, de fisionomia franca e simpática, e de caráter alegre e expansivo.

 

Usava de calções e colete de cor escura, casaca de belbulina parda, meias e sapatos de fivela. Era empregado da alfândega.

 

Havia mais nove ou dez indivíduos, dois quais não mencionaremos os nomes, nem outras particularidades, pois não tem de figurar nesta narrativa histórica.

 

Corridos alguns dias depois daquela reunião clandestina, dirigiu-se Anselmo da Costa à residência do ministro Tomás Antônio na rua dos Inválidos, e fez-se anunciar pelo mordomo da casa.

 

Introduzido na sala de espera, apareceu, após alguma demora, o ministro trajando casaca de pano cor de vinho, calções da mesma cor, colete azul, meias e sapatos com fivelas de ouro, grossa corrente de relógio, gravata branca e bastante alta, e quer o peito, quer os punhos da camisa, ornados de babadinhos crespos.

 

Era costume de Tomás Antônio não apresentar-se à pessoa alguma decentemente vestido.

 

— Que deseja, perguntou ele a Anselmo.

 

— Venho fazer a V. Ex. uma revelação importante.

 

— Dirija-se então para ali. E indicou-lhe um gabinete, que comunicava a sala.

 

Neste aposento, cuja porta, assim como as da sala de recepção, eram veladas por grandes reposteiros de lã azul com cordões e borlas encarnadas, havia uma linda secretária com belos lavores de madeira trabalhada pelo insigne artista brasileiro Valentim, e seis cadeiras e um canapé de jacarandá com espaldar e assento de couro lavrado obra do mesmo artista.

 

Vinha Anselmo envolvido em um capote de pano de cor cinzenta.

 

Acompanhando o seu visitante apresentou-lhe o ministro uma cadeira, e sentou-se em outra.

 

— Fale, estou às suas ordens, disse Tomás Antônio.

 

— Comunico a V. Ex. que está instalada em uma casa da rua de S. Pedro desta cidade uma loja maçônica.

 

Tornou-se Tomás Antônio muito atento, quis ficar ciente de todos os pormenores, dos nomes dos congregados, suas ocupações, residências, dias de sessões, questões apresentadas em discussão, e logo que ficou de tudo informado, disse ao seu interlocutor.

 

— Bem, agradeço-lhe o serviço que acaba de prestar ao governo de el-rei nosso senhor, que saberá recompensá-lo.

 

Cortejando respeitosamente ao ministro retirou-se Anselmo contente com a promessa, que acabara de ouvir.

 

Na noite desse mesmo dia ficou um batalhão de prontidão no quartel do campo de Santa Ana, hoje praça da República, colocaram-se sentinelas nas ruas que cortam a de S. Pedro, e um pelotão de soldados cercou a casa de Luís Prates.

 

Encarregado da diligência o tenente Gordilho ao amanhecer bateu à porta da casa, e ordenou que em nome de el-rei fosse aberta.       

 

Apareceu Luís Prates, que residia só com dois escravos seus, e imediatamente recebeu ordem de prisão. Revisada toda a casa, trastes e utensílios nada encontrou a autoridade de suspeito, apenas um triângulo de metal, que parecia pertencer à maçonaria.

 

Receosos do caráter vingativo e traiçoeiro de Anselmo, haviam seus companheiros transferido para outra casa as suas sessões levando os emblemas e livros da maçonaria.

 

Luís Prates foi conduzido para uma das prisões da fortaleza da Ilha das Cobras.

 

As sentinelas postadas nas esquinas das ruas, o cerco à residência de Luís Prates, e a prisão desse cidadão pacífico e honrado causaram sensação na cidade, assustou-se o povo, e apesar do receio, que havia dos mações ou pedreiros livres, tidos como homens que conversavam com o demônio à meia-noite, ninguém julgou-se livre de qualquer perseguição. Propalou-se que iam fazer-se outras prisões, que corriam várias denúncias, e que a maçonaria seria atrozmente perseguida. Trataram os mações de ocultar-se, afastando-se da cidade, e deixando muitos de freqüentar as lojas.

 

Informado de que existiam no próprio paço real fidalgos filiados à maçonaria, procurou Tomás Antônio persuadi-los a abandonar semelhante associação. Alguns o fizeram, outros mostraram-se mais recalcitrantes, tendo o ministro de recorrer à autoridade do rei.   

 

Admoestados por D. João VI resignaram as insígnias maçônicas os camaristas marquês de Angeja e o conde de Parati.

 

Confessando-se arrependidos de haverem perten­cido à semelhante associação, para patentearem a sua contrição e adesão à vontade absoluta do rei, ofe­receu um deles toda a sua baixela de prata para as urgências do erário régio, e comprometeu-se o outro a fazer o serviço semanal do paço revestido de hábito e cordão de irmão da ordem de S. Francisco.

 

De feito de hábito talar e cordão pendente andou sete dias o conde de Parati nos salões do paço de S. Cristóvão, a contento do carola e astuto D. João VI, e exposto no riso e galhofa da criadagem, que nesse tempo atopetava a residência real.

 

Desse modo ridículo e impróprio provou o fidalgo que abjurara a maçonaria, caindo nas boas graças do rei, seu amo e senhor. (1)

 

Estava Eduardo Maia na rua Direita, hoje 1º de Março, quando viu passar escoltado por soldados o seu amigo Luís Prates.

 

Comoveu-se e irritou-se também, pois compreendeu quem fora o denunciante. E no mesmo instante viu resvalar junto de si, um indivíduo envolto em ca­pote de pano cinzento e de gola alta, que ocultava quase todo o rosto, mas apesar disso, reconheceu-o e tomando-lhe do braço disse-lhe.

 

— És um infame.

 

— Veja como se expressa, Sr. Eduardo

 

— Repito, és um traidor, um denunciante, mas hás de pagar, e apertou-lhe com força o braço.

 

— Deixe-me, retorquiu o miserável aterrado.

 

— Vai espião e Deus te castigará.

       

E largou o pusilânime Anselmo, que tremia como se diante de si visse já alguma arma erguida.

 

E apressado afastou-se o traidor, e foi seguindo a escolta dos soldados até ao arsenal de marinha, onde o preso embarcou para a ilha das Cobras.

 

 

 

III

 

 

Residia no beco da Fidalga Antônio Gonçalves, casado com Maria de Souza e pai de Alice.

Tinha Alice olhos vivos, boca pequenina, nariz afilado, dentes miúdos, cabelos bastos, e corpo engraçado e bem cinzelado. Se era encantadora a beleza de seu semblante, os contornos elegantes de suas formas fascinavam.

 

Seu pai era ajudante do almoxarife do paço da ci­dade. Quando apresentava-se com a sua  casaca azul agaloada de prata, seus calções encarnados, meias de seda chapéu armado, tomava um ar grave e impo­nente, o de toda a vizinhança recebia cumprimentos.

 

Eram naqueles tempos muito considerados os criados da casa real, qualquer que fosse sua categoria. Submisso ao governo absoluto consagrava-lhes o povo temor e respeito. Especialmente pela maldita lei das aposentadorias, viviam inquietos os habitantes da cidade, pois não podiam ninguém julgar-se seguro na casa que habitava. Se era cobiçada por algum criado do paço, dirigia-se este ao juiz aposentador e indicava-lhe o prédio que escolhera. Enviava o magistrado um meirinho à casa indicada, o qual imediatamente escrevia com giz na porta as letras P. R, príncipe regente, que o povo em galhofa traduzia pela frase ponha-se na rua. Mudava-se o proprietário e o fidalgo, criado do paço, aboletava-se ou aposentava-se muito a seu gosto.

 

Gozavam de semelhante regalia só os criados de elevada jerarquia, mas também os de menor graduação em geral residiam nas dependências dos palácios reais, e alguns se não tinham casa paga pelo bolsinho do rei, eram alimentados pela ucharia da casa real.

 

 

Colocada no pavimento térreo do antigo convento do Carmo, que foi absorvido para acomodações da família real, quando fugiu de Portugal para o Brasil em 1808, era a ucharia do paço da cidade um grande sorvedouro dos dinheiros públicos. Havia ali comida em profusão; ali iam fornecer-se de víveres muitos criados, e alguns se não tinham rações em gênero, recebiam-nas em dinheiro.

 

Os fidalgos aposentados nas casas, que haviam requerido; eram obrigados a pagar aluguel ao proprietário, mas muitos não o faziam, e ai do proprietário, que recalcitrasse; esperava-o a cadeia ou o degredo.

 

Recebiam outros fidalgos em certas festividades da capela real brandões de cera, e alguns até do paço traziam fazendas de seda e linho para seu uso particular.

 

Qualquer criado da casa real julgava-se um potentado; e até os de baixa classe, quando percorriam as ruas a cavalo, iam em disparada, atropelando o povo, que, com seu bom senso, apelidava-os de tranca-ruas.

 

Saia do erário o dinheiro para toda a despesa da casa real, o rei não tinha dotação, gastava o que queria, sem limite, nem ordem na distribuição das quantias.

 

Repetidas vezes vira Eduardo Maia a filha de Antônio Gonçalves nas missas matutinas como então era uso, nas festividades religiosas, nos fogos de artifício, e em outros divertimentos próprios do tempo.

 

Uma das festas populares era a do Natal, que estendia-se de 25 de dezembro a 6 de janeiro seguinte. Começava pela missa do galo celebrada à meia-noite de 24 de dezembro, e continuava com a exposição de presepes e cantatas da noite de Reis. Armavam-se diversos presepes em diferentes pontos da cidade, porém os mais importantes eram os ladeira de Santo Antônio, o das religiosas da Ajuda, e o do cônego Felipe no morro do Livramento.

 

Logo depois da noite do Natal começava a percorrer as ruas e visitar as casas a fula dos Reis composta de moços vestidos de calções e jaqueta branca, chapéu de palha co fitas pendentes e sapatos com fivelas douradas. Cantavam e dançavam ao som de tambores, flautas e pandeiros, colhendo esmolas para as solenidades da igreja.

 

Levava  um deles o estandarte com a imagem do Menino Deus, que era exposta em todas as igrejas à adoração dos fiéis. Colhiam os foliões abundantes esmolas, e nas casas em que eram admitidos, encontravam mesas repletas de iguarias e doces.

 

Concorrendo à missa do galo na igreja da Lapa dos Mercadores, à rua do Ouvidor, encontrou-se Eduardo co Alice, e durante a cerimônia religiosa tiveram os dois namorados ocasião de trocar muitas palavras de amor. Acompanhou a moça quando esta regressou à casa, e vendo-a entrar repetiu a quadra de uma balada, então em voga, que dizia assim:

 

Em S. Bento deu uma hora,

No Colégio deram duas.

Vede que horas são estas

Que eu por ti ando nas ruas.

 

Chegou Alice à janela do sótão, e atirou-lhe com uma flor que trazia presa ao pente, que atava-lhe os cabelos.

 

Apanhou o moço a flor, beijou-a, e colocando-a na lapela da casaca, retirou-se satisfeito.

 

Alice fechou a janela, e recolheu-se para repousar, ou antes para pensar no ídolo do seu coração.    

 

 

 

IV

 

 

Vivendo apaixonado pela formosa Alice não havia festividade ou passeio a que ela fosse,

que ele não se apresentasse também.    

 

Residia em uma casa de porta e janela no beco do Guindaste, hoje travessa do Dr. Costa Velho, a velha Quitéria, que era a portadora das cartas, flores e, presentes dos dois amantes.

 

Usava Quitéria de saia de lila preta, mantilha da mesma cor, que presa ao alto pente, que atava-lhe os cabelos, descia quase até aos pés, sapatos de duraque, e pendente da cintura um comprido rosário  de contas brancas e pretas. Esmolava pelas casas, não por necessidade, pois possuía uma escrava, que costurava calças e camisas, que trazia dos algibebes existentes junto à igreja da Cruz, e por isso chamavam-se costuras da Cruz.    

 

Amiudadas vezes ia a velha à casa de Antônio Gonçalves, e aí, além ele receber à esmola do costume, informava-se dos passeios de Alice, e levava a Eduardo

as cartas e recados, que ela lhe pedia!

 

Em todas as casas de suas devotas, isto é, daquelas que socorriam-lhe com esmolas, narrava  e colhia no­vidades, e assim era sabedora dos segredos de muitas famílias.

 

Aproximava-se a festa do Espírito Santo celebrada nesses tempos com extraordinária pompa nas igrejas de Santa Rita, Santa Ana, Mata-porcos, hoje Estácio de Sá, e no convento dos Carmelitas.

 

No campo de Santa Ana, hoje praça da República, armavam-se barracas de madeira e lona, onde havia danças de velhos, de jardineiros, teatros de bonecos, mágicas, exercícios ginásticos, sortes, doces, comidas e brinquedos.

 

Semanas antes era a festividade anunciada pelos foliões, rapazes trajados com calções vermelhos e galão dourado, colete de seda branca, meias, sapatos de fivelas, e chapéu de feltro de copa alta, abas largas e ornado de fitas.

 

Levava um deles de vestimenta mais garrida o estandarte de cor encarnada, tendo estampado no centro o emblema do orago da festa, assim como também na parte superior um pombo prateado de asas abertas atufado em milhares de fitas de diversas cores.

 

Acompanhavam os foliões dois irmãos da irmandade do Divino revestidos de opas vermelhas, trazendo um uma vara e bacia de prata para recebimento das esmolas, e conduzindo o outro pela mão o imperador, menino de dez ou doze anos, trajando casaca e calção de veludo, colete de seda branca, meias, sapatos de fivelas e chapéu armado.

 

Percorrendo as ruas ao som dos instrumentos entravam os foliões em diversas casas, onde cantavam e dançavam, repetindo versos adequados à festividade.

 

Erguiam-se junto da igreja de santa Ana, demolida para dar espaço à estação central da estrada de ferro, o coreto ou império do imperador, um ou dois coretos de música e o palanque do leiloeiro, todos eles ornados com cortinas de damasco e renda e iluminados à noite com copinhos de cores.

 

Em frente do império flutuava sobre o alto mastro o estandarte do Espírito Santo.

 

O leilão das ofertas, as fogueiras de cabeças de alcatrão espalhadas pela praça, os fogos de vista, os repiques de sinos, a música dos coretos, a romaria popular, a multidão aglomerada na praça, as exclamações e gesticulações dos barraqueiros, apregoando suas quinquilharias e divertimentos, os milhares de mercadores oferecendo à venda frutas, aves, doces e acepipe, davam a esta festa popular grande animação e alegria, e assim prolongava-se até o dia de Santana.

 

Nos coles de fogos de vista era maior a concorrência popular. Aboletavam-se as famílias em esteiras de palha estendidas pelo campo apreciando os petiscos que compravam; outras visitavam os divertimentos, e ao som da música, de vivas e bravos ao artista pirotécnico, ou de assobios e vaias, quando falhava qualquer peça, divertiam-se até altas horas da noite, pois só muito tarde começavam a arder os fogos de artifício.

 

Agradava ao paladar do povo o leilão das prendas ofertadas ao Divino, e era feito, como já dissemos em um palanque próximo da igreja, e por indivíduo dado a galhofas e brejeirices.

 

Ia quase todas as noites às barracas do campo a família de Antônio Gonçalves, e ali encontrava-se com Eduardo, avisado antecipadamente do passeio pela velha Quitéria.

 

Aproximava-se a família de Antônio Gonçalves do palanque do leiloeiro, quando este apregoava lindo ramalhete de flores do seguinte modo.

 

— Afronta faço que mais não acho, se mais achara  mais tomara, dou-lhe uma, dou-lhe duas, uma maior, outra menor. Quanto dão por este ramo?

 

Lançou cada um a sua oferta, porém Eduardo cobriu o maior lanço.

 

— Dou-lhe três, dou-lhe tudo de uma só vez, bradou o leiloeiro, batendo com o martelo na mesa, que tinha em frente de si, e entregando o ramalhete a Eduardo, que ofertou-o imediatamente a Alice.

 

Não passou isso desapercebido a Antônio Gonçalves, que já fizera reparo na presença do moço em todo o lugar, em que ele se dirigia com a família.

 

Franziu o velho a testa e cumprimentando ligeiramente o mancebo, afastou-se dali com a mulher e a filha.

 

Em caminho disse a sua companheira.

 

— Anda a menina com um namorico, que me não agrada, é preciso dissuadi-la.

 

— Não seja impertinente, retrucou-lhe a mulher.

 

— Mas não gosto de semelhante moço.

 

— Cale-se que Alice pode ouvir.

 

— Vamos assistir ao teatro de bonecos, papai, perguntou Alice, que ia um pouco adiante.

 

— Vamos, respondeu o velho, e começou a sorrir.

 

 

 

V

 

 

Correram assim meses vivendo os dois namorados nesse enlevo de esperanças, risos, surpresas e encantos, que constituem a vida dos que se amam.

 

A alguns amigos referira Eduardo o amor, que consagrava à filha do almoxarife, manifestando desejos de casar-se.

 

Abrira-se, entre outros, com o major Mello, comandante do regimento dos pardos, e esse bom homem aprovara os seus projetos.

 

Era o major amigo de Antônio Gonçalves, e encontrando-se um dia com este na missa da igreja da Cruz, dissera-lhe:

 

— Conhece o Eduardo Maia, empregado da Alfândega?

 

— Muito, e vejo-o quase todos os dias, acrescentou o velho sorrindo.

 

— É moço morigerado.

 

— Consta-me que sim.

 

— Bom empregado público, tanto assim que residindo em Catumbi não falta um dia à repartição.

 

Não havendo naquela época meios fáceis de condução, não havendo aparecido ainda nem os ônibus, nem as gôndolas, nem as diligências, existindo apenas as seges dos particulares, acontecia que quase todos os empregados públicos residiam nas ruas centrais da cidade.

 

Raro era aquele que morava em lugar mais distante, e então ou vinha a cavalo, ou necessitava ser há tantos entre os mais ilustres e distintos membros da sociedade?

 

— Talvez assim seja, mas não tenciono major, a um...

 

Bem, interrompeu-lhe o amigo, não desejo contrariá-lo mais. E eis a missa que vai entrar.

 

De feito apareceu o pároco seguido do acólito, e ajoelhando-se junto do altar, o mesmo fizeram os dois amigos na nave da igreja enquanto partiam do coro os sons harmoniosos do órgão.

 

 

 

VI

 

 

Costumava D. João VI passar todos os anos alguns dias na fazenda de Santa Cruz, onde mandou reconstruir o antigo colégio dos jesuítas, transformando-o em palácio e mobiliando-o com luxo.

 

Quando fazia o rei a viagem à Santa Cruz era interessante ver o préstito real. Na frente iam dois cadetes de cavalaria como batedores, e em seguida desfilavam as seges dos veadores, guarda-roupas, damas, camaristas, do cirurgião da real câmara, do confessor real, e logo após a traquitana de el-rei de caixa dourada e forrada interiormente de damasco encarnado. Fechava o préstito um piquete de cavalaria. Raras vezes acompanhava-os nesse passeio sua mulher a rainha Carlota.

 

Ordinariamente usava D. João calções e colete de pano preto, casaca de saragoça ou de pano azul, meias de seda e fivelas de ouro nos sapatos. Pendente da casaca trazia um crachá de prata com as três cruzes das ordens militares de Cristo, Avis e Santiago,e embaixo desta a da Torre e Espada. A grã cruz destas quatro ordens via-se pendente de uma só fita.

 

Quando andava de carro trazia sempre o chapéu à cabeça e não o tirava a ninguém. Junto de sua traquitana cavalgava o seu criado particular Tomás Carneiro.

 

Em dias de gala ostentava a cabeleira empoada corrida para o alto da redonda cabeça, donde caía ao longo das costas em rabicho, depois de repartida em dois canudos para cada uma das têmporas. Trajava calções de caxemira branca, colete da mesma fazenda, casaca azul ou vermelha, tendo no peito a ordem do tosão de ouro, meias de seda muito finas e fivelas com brilhantes nos sapatos.

 

Era homem de baixa estatura, de pernas um pouco grossas, pés e mãos pequenos, rosto avermelhado e largo, faces nédia, barba raspada e lábios grossos e pequenos. Quando os dentes incisivos superiores levantavam a ponta do lábio davam à boca a expressão de uma bonomia imperturbável.

 

De calções e meias usavam todos os criados da casa real, assim como de farda direita de pano azul orlada de galão de ouro, prata ou de retrós conforme a sua categoria, e de chapéu armado, que os lacaios colocavam atravessado.

 

Compunham a guarda real os arqueiros de farda vermelha, colete azul com vivos brancos, calções com galões amarelo, espada, lança e chapéu armado com galão branco e debruado de branco.

 

Era D. João homem instruído, conhecia o latim, o francês, o espanhol, história e matemáticas, mas mui modesto, não ostentava seus conhecimentos. Prudente e dissimulado ouvia a opinião dos seus conselheiros, porém era mui reservado em manifestar a sua. Afável e lhano tratava bem a todos, e não perseguia a ninguém. Se era comedido em suas expressões, era generoso com seus inimigos, e sua única manifestação, que dava quando acontecia encontrar-se com eles, era franzir o rosto e não lhes falar. Mui religioso ouvia todos os dias missa em seu oratório particular, confessava-se amiudadas vezes, e sempre, que o fazia, mandava celebrar missa em seu oratório privado, e aí comungava. Era seu confessor privativo o bispo que foi do Maranhão, D. frei Joaquim de Nazaré, e no impedimento deste outro sacerdote de sua confiança; mas tinha um confessor régio, nomeado por decreto, que o ouvia de confissão na capela real, e era o religioso franciscano frei Joaquim. Dizia-se mal desse frade, e propalava-se que por isso mesmo o rei o escolhera para ver se assim ele se corrigia, e melhorava de conduta.  

 

Assistia D. João a todas as festividades da capela real e a algumas de outras igrejas; era perito no cantochão.

 

Levantava-se cedo, e logo que faziam-lhe a barba e ouvia missa, ia para a mesa do almoço, e dali seguia em geral para a sala do conselho dos ministros, onde demorava-se até as duas horas. Passava-se depois para a sala de jantar. Não bebia vinho, nem licor de qualidade alguma. De tarde saia a passeio.

 

Havendo falecido o conde da Barca foi modificado o ministério tomando conta da pasta do reino e casa de Bragança o chanceler Tomás Antônio Vila Nova Portugal.

 

Alcançou este ministro a confiança íntima de D. João, que com ele entretinha constante correspondência, ouvindo-o em quase todos os negócios. Quando escrevia-lhe assinava-se João Carlos.

 

Nascera Tomás Antônio em Portugal em 1755, e fora seu pai um advogado de pouca fortuna. Tendo ocupado o cargo de corregedor foi nomeado desembargador da relação do Porto com exercício na casa da suplicação de Lisboa. Transferido oficialmente para aí foi mais tarde nomeado fiscal do erário régio, e por sua hábil administração conseguiu melhorar as finanças e cobrir o déficit. Passou a desembargador do paço, o que causou inveja e desgosto não só por ser ele o desembargador mais moço, como também por ser filho de um pobre advogado da aldeia. Tinham-lhe ojeriza os antigos fidalgos, e mais de uma vez procuraram intrigá-lo. Elevado a chanceler-mor do Brasil e a ministro de estado, maior rancor consagravam-lhe os fidalgos.

 

Residia Tomás Antônio, na rua dos Inválidos, como já dissemos, na chácara da esquina da rua do Senado. Pertencia essa casa ao médico do paço Vieira, depois barão de Alvaiázere, valido do rei, que dela lhe fizera presente. Existira aí no tempo dos vice-reis um asilo para inválidos, donde proveio o nome da rua.

 

Apesar de merecer do rei toda confiança não abusava Tomás Antônio de sua posição, não intrigava ninguém, mostrava-se obediente, respeitoso, firme e calmo em suas opiniões.

 

Na época de que escrevemos, desejando D. João passar à fazenda de Santa Cruz, falou a Tomás Antônio.

 

— Seria conveniente, meu senhor, respondeu o ministro, desistir este ano de semelhante passeio.

 

— Por que, perguntou o rei franzindo a testa.

 

— Não foi incluída no orçamento a despesa necessária para esta jornada.

 

— E por que houve essa lacuna?

 

— As dificuldades financeiras, o déficit...

 

— Bem, mande chamar Targini.

 

Depois de beijar a mão do rei, fez-lhe o ministro profunda cortesia e saiu.

 

Corridas algumas horas apresentava-se na sala do paço Targini, visconde de São Lourenço, tesoureiro-mor do erário régio.

 

Avisado el-rei apareceu logo, e comunicou ao tesoureiro a observação do ministro.

 

Não sendo afeiçoado a Tomás Antônio aproveitou-se Targini da ocasião e disse.

 

— Não dê importância, meu senhor, ao que disse o Sr. Tomás Antônio; vá para Santa Cruz, que não faltará dinheiro no erário para esse passeio; e se faltasse tenho amigos, que não me deixarão ficar mal perante vossa majestade.

 

Sorriu-lhe o rei, e tendo o Targini de retirar-se deu-lhe a mão a beijar.

 

Imediatamente expediu o tesoureiro-mor ordens para ser fornecida a quantia necessária para o passeio do soberano.

 

No dia seguinte partiu D. João para Santa Cruz sem participar ao seu ministro Tomás Antônio.

 

Procedia assim o governo absoluto. Não tendo o rei dotação limitada ou pensão do Estado, gastava quanto queria, e todas as suas despesas eram pagas pelo erário público.

 

Exorbitantes eram as despesas da casa real, especialmente as da ucharia, mantearia, cavalariça e outras e todas pagas pelo erário. Além disso quando necessitava de qualquer quantia extraordinária mandava o rei buscá-la ao erário pelo seu tesoureiro particular sem que houvesse da parte dos empregados a menor observação. Acresce que dos brilhantes recolhidos ao erário, os de maior quilate e melhor água, iam para o monarca, que os guardava para si. E quando casava as filhas era do erário que vinham as jóias, os brilhantes, que desejava oferta-lhes.

 

Santíssimos tempos do absolutismo, ainda hoje tão elogiados por alguns!      

    

 

 

 

VII

 

 

O rei foi recebido em Santa Cruz com repiques de sino, salvas e foguetes do ar, estando alcatifado de folhas de mangueira o terreno desde o portão da entrada até o palácio. Descendo da traquitana de chapéu na cabeça atravessou D. João por entre os fidalgos e criados da casa real, que formando alas, curvavam os joelhos para beijarem-lhe a mão. Entrou na capela, que estava ornada co luxo e iluminada, ajoelhou-se sobre uma almofada de veludo, fez curta oração, e subindo para a tribuna sentou-se para assistir ao te-deum.

 

Compareceram ao ato o mordomo do palácio, os semanários e todos e todos os fidalgos e criados da comitiva real.

 

Alguns dias depois mandou o monarca chamar o ministro Tomás Antônio, que apresentou-se vestido de casaca vermelha direita com bordaduras nos canhões e na gola, calções de casimira branca, colete da mesma fazenda, sapatos com fivela de ouro e chapéu armado com presilha dourada.

 

Vestia o rei sua casaca usual, calções, meias e sapatos com fivelas.

 

Admitindo o manifesto no gabinete de despacho não falou-lhe D. João da viagem à Santa Cruz, nem ousou também o ministro referir-se a este incidente.

 

— Mandei-o chamar para saber o que há de novo, disse-lhe o rei.

 

— Recebi agradáveis notícias da capitania de Pernambuco, onde a revolução foi sufocada.

 

— Estimo muito.

 

— Vieram ofícios relatando a prisão e execução de diversos revoltosos.

 

— Haverá por semelhante motivo solene te-deum na capela deste palácio, acrescentou D. João.

 

— Felicito a vossa majestade em nome da nação por tão assinalado triunfo. E aproveito a ocasião para lembrar ao meu senhor uma medida urgente.

 

— Qual é?

 

— Para os terríveis acontecimentos revolucionários, que ocorreram em Pernambuco, contribuíram os clubes maçônicos do Paraíso, do Suassuna e do Cabo. Aqui, como vossa majestade não ignora, vão também aparecendo reuniões maçônicas, e convém providenciar em quanto é tempo.

 

— Pensa bem.

 

— Lembrava a necessidade de um alvará  com força de lei condenando não só a maçonaria e todas as sociedades secretas, como os livros e quaisquer outras instruções impressas ou manuscritas relativas à semelhantes sociedades.

 

— Aprovo a idéia e manda lavrar o alvará para eu assiná-lo.

 

— Vou cumprir as ordens de vossa majestade.

 

Retirou-se Tomás Antônio para uma sala próxima, enquanto o rei começou a passear pelo gabinete com os braços atrás das costas, como costumava.

 

Enquanto redigia o ministro o terrível alvará, e o rei passeava, dirigia o reposteiro da câmara Francisco da Silva finezas a uma dama do paço, que passeava no jardim chamado Curralinho.

 

— Cumprimento a V. Ex. que com a sua beleza realça mais a grandeza e o brilho deste palácio.

 

— É muito lisonjeiro.

 

— Não, minha senhora, elogiando as graças de V. Ex., por mais que diga, fico sempre distante da verdade.

 

— E agora está tão afastado dela!

 

— Estando perto de V. Ex. estou junto de todas as perfeições, de todos sentimentos puros e verdadeiros.

 

— Então é porque acarreta-os consigo mesmo.

 

— Não será antes porque eles se irradiam de V. Ex. para mim?

 

— Julgo que o senhor vê mal.

 

— Pode ser em presença de tanta luz. E mui alegre estou pela notícia que tive hoje. 

 

— Qual!

 

— Tenciona el-rei demorar-se algumas semanas neste palácio, onde terei o prazer de gozar da presença de V. Ex.

 

Estando lavrado o alvará cominando penas severas contra as sociedades secretas levou-o o ministro ao rei, que lendo-o assinou logo.

 

— Agradeço a bondade e prontidão com que vossa majestade atendeu a minha observação sobre os maçons, disse o ministro recebendo o alvará. Vou enviá-lo para a cidade. E beijando a mão do monarca saiu.

 

Dera Francisco da Silva o braço a dama com quem passeava no jardim, e encaminhando-se para o paço chegou ao primeiro pavimento, quando descia o ministro as escadas.

 

Percebendo ruído de passos disse a dama a Francisco da Silva.

 

— Não convém que me vejam aqui.

 

— E deixando o braço do amante ocultou-se em um dos quartos do pavimento térreo do paço. Encontrando-se com Francisco da Silva perguntou-lhe o ministro.

 

— Conhece algum criado diligente da casa real, que possa levar um ofício à corte?

 

— Conheço o Braga.

 

— Peço-lhe o favor de mandá-lo vir à minha presença.

 

Comparecendo o criado deu-lhe o ministro o ofício, ordenando-lhe que entregasse com urgência na chancelaria-mor do reino.

 

Partiu o criado imediatamente para a cidade. Enquanto esse homem corre a cavalo a toda brida levando o decreto de condenação de uma classe inteira da sociedade, dirigia-se o rei vagarosamente para sala do jantar murmurando consigo.

 

— Vamos ver qual o melhor prato, que hoje preparou-me o Alvarenga.

 

Era Alvarenga o mestre das cozinhas do paço, o cozinheiro favorito de D. João VI, assim como Isidoro era seu sapateiro predileto.

 

 

 

VIII

 

 

Terminando o jantar levantou-se o rei da mesa, tomou o seu bastão, no qual se arrimava, e desceu ao parque para passear. Instantes depois ordenou a um dos semanários, que o seguiam, que fosse chamar o médico Manuel Luís e ao religioso do Carmo frei Custódio. Logo que estes chegaram encetou com eles conversação.

 

Referiu o cirurgião uma anedota para entreter o monarca, que sorria satisfeito. Quanto a frei Custódio fértil em ditos agudos, anexins e anedotas, depois de haver alegrado a todos com a sua conversa variada, disse:

 

Vou agora, meu senhor, recitar uns versos do desembargador Petra Bittencourt.

 

Enviando ele um presente de frutas dentro de uma cesta de prata, envolvida em uma toalha bordada, ficou o presenteado com tudo.

 

Desapontado mostrou-se o desembargador, e ao sujeito remeteu a seguinte quadra:

 

Alma que sai deste mundo

Dizem que vai e não vem,

Mas o meu cesto e toalha

Quem o fez alma também.

 

Riram-se todos, e também D. João que, tomando a boceta de rapé, sorveu com satisfação uma pitada.

 

Mas convém observar que depois de haver aparecido em Pernambuco a revolução republicana raras vezes o rei mostrava-se satisfeito, em geral apresentava-se um pouco taciturno. Esquivava-se à própria família, e apenas atraíam-lhe cuidados o príncipe real ou uma ou outra filha.          

 

Entretinha-se o rei nessa palestra quando entrou D. Francisco de Almeida Mello e Castro, conde das Galveias, que apresentou-lhe uma carta do marquês de Bellas pedindo licença para ir a Portugal cuidar em sua casa e acomodar-se com seus credores.        

 

Tendo lido as cartas mostrou-se D. João contrariado por ser o marquês conselheiro de estado, e homem de sua estima e inteira confiança.

 

Atraindo ao conde das Galveias para um dos bancos do jardim disse-lhe o monarca.

 

— Pede-me o marquês licença para ir a Portugal, o que contraria-me nas circunstâncias políticas atuais do reino. Ele não devia requerer agora semelhante coisa.

 

— Mas vossa majestade por que não lhe nega a licença, retorquiu o conde.

 

— Não, observou D. João, há coisas que não se devem pedir, mas quando se pedem devem-se conceder. Diga-lhe que mande o requerimento a despacho e será atendido. (2)

 

E sem dirigir-se mais às pessoas com quem há pouco palestrava, seguiu para o palácio, onde entrou.

 

 

 

IX

 

 

Dias depois compareceu de novo ao gabinete do despacho o ministro Tomás Antônio, único membro do ministério, que se achava em Santa Cruz com o rei. Era ele que expedia todos os negócios, correspondendo-se com seus colegas.

 

— Ouse  lembrar a vossa majestade, ponderou o ministro, que convém vir de Lisboa uma divisão militar tirada do exército português, para tomar parte na guerra do sul do Brasil. Se as armas brasileiras têm ali sustentado a luta com vantagem e denodo, deve também o exército português participar dos louros dessa campanha.

 

— Acho justo, não se despertarão assim rivalidades sempre inconvenientes e prejudiciais, acrescentou D. João.

 

O rei amava os Brasileiros, procurava promover o engrandecimento do Brasil, e lamentava a rivalidade existente entre Portugueses e Brasileiros, considerando todos seus súditos.

 

Mas não pensavam assim os seus conselheiros e fidalgos; quase todos favoreciam aos seus compatriotas, davam-lhes os bons empregos e propinas e espezinhavam os Brasileiros. 

 

— E quem indica, meu senhor, para ser encarregado da comissão a Portugal, perguntou Tomás Antônio:

 

— Julgo apto para isso o marquês de Angeja.

 

— É judiciosa semelhante lembrança, assim será afastado esse fidalgo, que esteve filiado à maçonaria. Sorriu-se o rei, e acrescentou.

 

— Traga o alvará da nomeação para ser assinado.

 

— E quem ordena para juiz da Inconfidência, cargo que convém criar para cuidar das sociedades secretas?

 

— Já refleti sobre o caso, deve ser o desembargador Albino Fragoso.

 

— É muito digno.

 

— Passe o alvará e apresente-o no primeiro despacho.

 

— Vou cumprir as ordens de vossa majestade, disse o ministro beijando a mão do rei e retirando-se.

 

Contente ausentou-se Tomás Antônio por ver que o monarca, fora de seu costume, mostrara-se resoluto e pronto na resolução das medidas propostas.

 

Descendo ao primeiro pavimento do paço encontrou-se com o guarda-roupa Matias Lobato e saudando-o disse-lhe.

 

— Acabo de estar com el-rei, que mostrou-se hoje alegre e satisfeito.

 

Talvez por haver recebido agradáveis notícias da capitania de Pernambuco, onde foi sufocado o movimento republicano.

 

— É, exato.

 

— E por esse jubiloso acontecimento mandou el-rei celebrar solene te-deum na capela deste palácio.

 

— Assisti ao ato, e mais uma vez apreciei os músicos e cantores da real capela.

 

— Mas, mudando de assunto, não quer Sr. ministro jogar o gamão, perguntou o guarda-roupa.

 

— Vamos.

 

E tomando Tomás Antônio o braço do guarda-roupa desapareceram ambos nos longos corredores da residência real.

 

Quando se achava no palácio de Santa Cruz recebia D. João a todos, e a todos atendia, conversava afavelmente, dava audiência em dois dias da semana e recolhendo os requerimentos, que lhe entregavam, passava-os ao camarista, respondendo.

 

— Falarei ao ministro.

 

Ouvia todas as queixas quer contra os ministros quer contra os governadores das capitanias; com paciência e bondade atendia a todos, e não se alterava com ninguém; apenas sorria quando ouvia disparates.

 

Entregando-lhe uma velha, em dia de audiência, um requerimento disse-lhe.

 

— Fale ao Tomás Antônio.

 

— Quem é esse sujeito?

 

— É o ministro do reino.

 

— Eu não entendo dessas coisas, é com meu senhor que me quero entender.

 

— Riu-se D. João, entregando o requerimento ao camarista, disse à mulher.

 

— Procure amanhã pelo despacho.

 

E em tudo foi-lhe favorável.

 

Era esse em geral o seu procedimento, tendo quase sempre palavras benévolas para dirigir a todos, e esperanças para repartir com todos os pretendentes.

 

A pobreza, que residia no curato de Santa Cruz, logo que tinha notícia da chegada do rei, vinha implorar a sua caridade, e era atendida. Não se esgotava a filantropia do monarca, nem jamais diminuíam os auxílios de sua bolsa.

 

Estando em audiência, e depois de haver recebido vários requerimentos concernentes uns a assuntos diversos, outros implorando esmolas, viu aproximar-se a infanta Isabel Maria, a quem muito prezava, e que acabava de chegar da cidade, chamada por seu pai para estudar e ensaiar uma música de festividade religiosa.

 

Beijou a infanta a mão do rei seu pai, que retribuiu-lhe com um beijo na face.

 

— Venho participar a meu pai que hoje mesmo começarei o estudo da ária, que tenho de cantar na festa da degolação de S. João Batista, que vossa majestade tenciona celebrar neste seu palácio.

 

— Muito bem, minha amada filha. E dando por finda a audiência, retirou-se o rei oferecendo o braço à infanta, e sendo acompanhado pelo seu camarista efetivo conde de Parati e guarda-roupas Matias Lobato.

 

Quer a princesa Maria Teresa, quer a infanta Isabel Maria sabiam bem música e tinham voz harmoniosa. Cantavam nas serenatas que D. João costumava dar no palácio de S. Cristóvão, assim também excelente músico o príncipe real D. Pedro, como é notório.

 

 

 

X

 

 

Transferido Luís Prates da prisão da Ilha da Cobras para a fortaleza de Santa Cruz ali permaneceu incomunicável longo tempo. Foi diversas vezes interrogado pelo desembargador Fragoso e acareado com diversas testemunhas. Procedendo-se à rigorosa busca em sua casa apenas encontrou-se, como já vimos, um triângulo maçônico. Não apareceu papel algum escrito, que o comprometesse, ou indicasse a existência de loja maçônica naquele domicílio. Foram concordes todos os vizinhos em testemunhar o bom procedimento e o modo de vida honesto do honrado cidadão, que cauteloso e firme ao voto, que prestara filiando-se à maçonaria, não fez a menor revelação à autoridade. Mas apesar disso, e sem haver o juiz lavrado sentença contra ele, foi no fim de algum tempo degradado para Goa, na Índia.

 

Soube disso Antônio Gonçalves e mais horrorizados ficou dos mações.

 

Desde que tivera a conversa com o major Mello, suspeitando logo que tratava-se de sua filha, começou a espreitar-lhe os passos, e receando-se da beata Quitéria, que ia repetidas à sua casa, procurou não perdê-la de vista.

 

Entrando certo dia a velha em casa dele viu cair-lhe do bolso da saia um papel. Disfarçou e assim que teve ocasião apanhou-o; era uma carta de namoro. Lendo-a ficou possesso, quis repreender a filha e proibir a entrada da velha em sua casa, mas julgou mais acertado usar de prudência. Na carta repetia Eduardo Maia fervorosas juras de amor à sua amada.

 

Pensou Antônio Gonçalves que assim como caíra em seu poder essa carta, outras poderia obter, que comprometessem mais o rapaz, e servissem de prova para ser ele degradado para a Índia.

 

Naqueles tempos atrasados, e de governo absoluto, fácil era conseguir-se o degredo para a África  ou para a Índia de qualquer indivíduo apontado como desordeiro, malfeitor, ladrão, jacobino, vadio, ébrio, desobediente ao rei e ao altar e desencaminhador de moças solteiras, ou mulheres casadas.

 

Indo ter com sua esposa disse Antônio Gonçalves.

 

— É necessário evitar o namoro de Alice com o Eduardo.

 

— Deixa-te disso, ela é moça e deseja casar-se. Além disso, o rapaz parece ser bom.

 

— É o diabo que o carregue, tem contra si a condenação da igreja.

 

— Que diz!

 

— É pedreiro livre!

 

— Santo Nome de Jesus, S. Jerônimo nos acuda, pronunciou Maria benzendo-se.

 

— Deus Nosso Senhor afaste de nós semelhante homem, acrescentou Gonçalves.

 

Nesse mesmo instante avistava Alice da janela do sótão o seu amante, e com os dedos atirava-lhe um beijo casto e inocente, promessa de amor e esperança, sinal de constância e firmeza. 

 

 

 

XI

 

 

Resolvendo passar algum tempo na fazenda de Santa Cruz, e celebrar ali a festividade da degolação de S. João Batista quis o rei houvesse música nova nessa solenidade. De semelhante tarefa foram encarregados os dois mestres da real capela Marcos Portugal e José Maurício. Ambos eram músicos inspirados e magistrais em suas composições; e iam agora medir o seu talento e inspiração artística.

 

O músico português Marcos Portugal gastou um mês em compor as matinas para a festa, e o padre José Maurício, artista brasileiro, compôs em quinze dias uma grande missa e credo, que ainda hoje se executam.

 

Essa luta artística veio tornar mais veemente a rivalidade entre os dois notáveis compositores.

 

Se eram os fidalgos afeiçoados ao seu compatriota Marcos Portugal, mostrava D. João decidida predileção pelo músico brasileiro. Estimava-o, e em plena corte havia-o condecorado depois de ouvi-lo executar umas variações em piano, tirando da casaca do conde de Vila Nova da Rainha o hábito de Cristo para pregá-lo com suas próprias mãos na batina do inspirado artista.

 

E mostrava-se o rei arrebatado sempre que ouvia o músico brasileiro tirar do piano sons harmoniosos.

 

Neste e em outros fatos manifestava D. João os seus sentimentos generosos. Se a corte desmoralizada, interesseira e prepotente via com rancor e ódio o desenvolvimento do Brasil, prezava o monarca português a este país, apreciava o seu progresso e amava os Brasileiros; porém fraco, irresoluto, e sem energia moral, tolerava que seus fidalgos, arrogantes, altivos, ignorantes e presumidos, cometessem injustiças e arbitrariedades; não sabia resistir-lhes, e apesar de rei despótico, vivia cercado e dominado por eles, que zombando das leis, abusavam e prevaricavam.

 

Hesitando muitas vezes em fazer aquilo mesmo que no seu entender parecia justo, ouvia esse rei os conselhos de diversos validos sobre o mesmo assunto, não lhe bastava um só, cada fidalgo era consultado por sua vez, e como era conhecido o caráter versátil e indeciso desse soberano, procurava a sua corte embaraçá-lo mais, apresentando cada fidalgo opinião contrária à idéia primitiva. E essa tática trazia o rei atado, irresoluto e sem vontade própria.

 

Quem não podia alcançar para si o valimento e a confiança do rei procurava desacreditar àquele, que dele estava gozando. Reinava assim no paço uma intriga contínua, ignóbil e baixa, e sacrificado era o ídolo de que todos queriam adotar. Como D. João era fraco, dúbio e inconstante no seu modo de pensar, de tudo aproveitavam-se os fidalgos para iludi-lo e emaranhá-lo na marcha governamental. E todos os meios eram lícitos embora sacrificassem o país, a honra e a dignidade sua e do próprio rei.

 

Foi em Santa Cruz que Tomás Antônio fez pela primeira vez pressentir a D. João que não se devia contar por muito tempo com a união do Brasil e Portugal, e insinuou a necessidade de darem-se títulos de nobreza a alguns brasileiros, e admiti-los também no ministério.

 

— É uma inépcia semelhante proposta, disse o conde de Parati ao rei, quando este externou-lhe  o pensamento do seu ministro.

 

— São utopias do Sr. Tomás Antônio, acrescentou o conde de Magé.

 

— Como não deixou em Portugal extirpe ilustre, não duvida enxertá-la com gente de mais ou menos; falou o conde de Vila-Pouca.

 

— Dizer que não viverá o Brasil unido por muito tempo a Portugal! Ah é querer vaticinar a sorte das nações, o que só pertence a Deus, sentenciou frei Custódio.

 

Ouvindo os seus conselheiros o rei sorria e abanava com a cabeça, mas repentinamente fechando o semblante, como costumava fazer quando queria mostrar-se reservado, após ligeiro cumprimento, ausentou-se com passo vagaroso apoiado em seu bastão de jacarandá por estar sofrendo de uma das pernas.

 

Realizava-se poucos anos depois do vaticínio de Tomás Antônio, tornando-se o Brasil nação livre e independente.

 

Informando o rei do pouco tempo que despendeu o padre José Maurício na composição da missa e credo para a festa da degolação de S. João Batista, saindo certo dia do ensaio da partitura, a que fora assistir, disse ao distinto músico brasileiro.

 

— Além do seu ordenado de mestre de capela receberá de hoje em diante mais uma pensão paga do meu bolsinho.

 

Curvou José Maurício o joelho,  e beijou agradecido a régia mão, que o favorecia.

 

 

 

XII

 

 

Persistia Francisco da Silva no seus galanteios com a dama do paço.

 

Era então numeroso o cortejo de criados e criadas  da casa real.

 

Além dos camaristas, guarda-roupas, veadores e criados de diversas denominações e categorias, e também moços de muitas denominações, classificados segundo suas obrigações, havia as damas de honor, aias, açafatas, criadas particulares, donas da porta e moças do lavor, do quarto, da câmara e outras mais de diversos nomes conforme seus misteres e ocupações.

 

A dama, que ouvia e aceitava os idílios e finezas do reposteiro da câmara, chamava-se Eugênia, era casada, e entre as muitas, que habitavam o paço, era sem dúvida uma das mais formosas.

 

O conde de Valadares, camarista particular do príncipe D. Pedro, já havia surpreendido o reposteiro Francisco da Silva a beijar a dama querida, e se não revelara semelhante galanteio, fora para não escândalo no paço.

 

Eram então comuns as intrigas, as relações e seduções amorosas na residência real. Havia namoro desbragado entre fidalgos e fidalgas, entre criados e criadas das diferentes categorias. Reinava ali luta amorosa, veemente e constante, e não era raro darem-se cenas pouco decorosas. De alto vinha o exemplo. Falava-se do gênio leviano, das maneiras desenvoltas da rainha Carlota, do desprezo que tinha pelo marido, de suas relações ilícitas com certos titulares.

 

Não dedicava-lhe o marido confiança alguma. Murmurava o povo contra os escândalos da casa real, mas muito à puridade, pois, naqueles priscos tempos, não levantava-se impunemente a ponta do véu, que cobria as mazelas das altas classes sociais, quanto mais da casa de el-rei nosso senhor!

 

Era Francisco da Silva amante do sexo fraco e inclinado às aventuras amorosas.

 

Freqüentava a casa de Antônio Gonçalves, e mostrava-se solícito em render finezas à filha do ajudante do almoxarife.

 

Conversava em certa ocasião com o pai de Alice, que dizia-lhe.

 

— Tenho vontade que minha filha se case.

 

— É natural.

 

— Mas desejava para meu genro um moço honesto e de posição social. Sabe  que devemos honrar a classe, que ocupamos na sociedade.

 

— É certo, colega.

 

— E se encontrasse algum empregado no paço... E Antônio Gonçalves começou a brincar entre os dedos com o pesado sinete, que trazia pendente da grossa corrente do relógio.

 

— Seria bom, ficaria tudo em casa, como se diz, acrescentou o moço, olhando de soslaio para o velho.

 

— E o senhor não pensa em casar-se?

 

— Pode ser, retorquiu Francisco da Silva, relanceando o olhar para o interior da casa, de onde se ouvia a voz da filha de Antônio Gonçalves, a qual entoava uma modinha do tempo, que começava assim:

 

Os homens querem

nos enganar,

Mas nós devemos

acautelar

 

Os homens querem

nos iludir,

Mas nós devemos

deles fugir.

 

— Bonita voz tem a sua filha, elogiou Francisco da Silva. Por que não a matricula na aula de música do padre José Maurício, na rua das Marrecas, para ouvir algumas lições?

 

— A menina não pensa agora em dedicar-se ao estudo da música, quer marido, quer marido, repetiu Gonçalves a sorrir.

 

O mesmo fez o reposteiro do paço.

 

Nessa ocasião entrou na sala uma escrava, que veio anunciar a hora do jantar.

 

E foram os dois para a mesa.

 

 

 

XIII

 

 

Celebrou-se na capela do palácio de Santa Cruz a festa da degolação de S. João Batista com pompa e grande concorrência de povo. Houve matinas, missa cantada, sermão e te-deum, e salvas e foguetes do ar em abundância, Se a música de marcos Portugal agradou a todos, impressionou e entusiasmou o auditório a de José Maurício.

 

Pregou na festa e no te-deum o franciscano frei Sampaio, que arrebatou os ouvintes com sua palavra inspirada.

 

Ao descer do púlpito recebeu verdadeira ovação dos amigos, que aplaudiram-no e abraçaram pela impressão profunda, que sobre todos causara a eloqüência inspirada do orador.

 

Mandou o rei chamá-lo à tribuna, e em sinal de estima  ofereceu-lhe uma boceta de ouro para rapé. Era a terceira ou quarta, que, em idênticas circunstâncias, recebia das mãos reais!

 

Na mesma ocasião desciam do coro os músicos precedidos dos insignes mestres Marcos Portugal  e José Maurício.

 

Se o primeiro era festejado pelos fidalgos portugueses, era o segundo recebido entusiasticamente pelos brasileiros encantados dos sons harmoniosos e cadentes  da linda partitura exibida pelo maestro.

 

Já então era viva a rivalidade entre brasileiros  e portugueses, como se previssem ambos,  que breve raiaria o dia, em que Brasil e Portugal seriam duas nações diversas.

 

Chamados à tribuna real ouviram os dois músicos da boca do rei palavras lisonjeiras.

 

Durante a festividade foi tal a concorrência popular, tão atopetada ficou a igreja, que muitos tiveram de retirar-se para o átrio, afim de respirar ar melhor. Francisco da Silva foi um deles, e ao chegar à porta encontrou-se com o marido de Eugênia, o que não deixou de contrariá-lo.

 

— Que calor imenso, disse o marido da dama, o qual também trabalhava no paço.

 

— Excessivo, replicou Francisco da Silva.

 

Atravessava nessa ocasião o portão fronteiro ao palácio um boi com seu passo tardio e grave.

 

— Lá vai o Patrício.

 

— Quem, perguntou Francisco da Silva.

 

— O boi Patrício, que veio com outros para fornecimento de bordo, quando a família real emigrou para o Brasil, e havendo chegado vivo ao Rio de Janeiro ordenou o rei que o conservassem, e mais tarde mandou abonar-lhe a diária de quatro contos de réis. (3)

 

— É aquele?

 

— É. Conduzia em uma carroça a água da Carioca para o paço de S. Cristóvão, mas tendo emagrecido muito, foi remetido para os pastos desta fazenda.

 

— É então o Patrício estimado pelo soberano?

 

— É, tem uma pensão e vive sem trabalho nestes campos.

 

— Então entre tantos animais, que habitam estes domínios reais, é um dos mais aquinhoados!

 

— Certamente, e talvez hajam aqui indivíduos, que desejassem a sorte daquele boi acrescentou o marido de Eugênia.

 

E os dois rindo-se separaram-se, indo o reposteiro esperar em um dos corredores do palácio da dama, de quem vivia enamorado, pois havendo terminado a festividade, teria ela de recolher-se ao seu aposento.

 

De feito não esperou muito tempo. Apareceu Eugênia em companhia de outra dama, que, subindo uma das escadas, foi ter ao seu quarto no pavimento superior do paço, deixando-a só.

 

Vendo o seu apaixonado disse-lhe:

 

— O senhor aqui! O meu marido está na capela.

 

— Estive com ele há pouco, e foi agora passear no pomar.

 

— Mas pode voltar.

 

— Não virá já. E eu estava aqui à espera para cumprimentar a rainha...

 

Interrompendo-o replicou Eugênia.

 

— Agora não falou verdade, porque, como sabe, a rainha não assistiu à festividade, ficou na cidade no seu palacete do largo do Machado.

 

— Eu queria dizer que desejava saudar a rainha da festa.

 

— Lisonjeiro, e a moça sorrindo, disse ao seu amante.

 

— Mas sinto passos, aí vem gente.

 

Era o criado particular do rei Tomás Carneiro, com quem encetou ligeira conversação o reposteiro Francisco da Silva, enquanto Eugênia, subindo a primeira escada, que encontrou, recolheu-se ao seu camarim no segundo pavimento do palácio.

 

 

 

XIV

 

 

Moço, dispondo de dotes físicos, afeiçoado ao belo sexo, empregado no paço, que naqueles tempos era coisa de grande valia e importância, desejava Francisco da Silva contar de dia para dia novas aventuras amorosas, no que a fortuna já o havia ajudado assaz.

 

Começou a fazer repetidas visitas à casa de Antônio Gonçalves para ver se subjugava o coração de Alice. Já não lhe bastava o amor da dama do paço, queria prender o coração de outra moça, e viver assim completamente envolvido nos liames do amor.

 

Alice era moça esbelta e trazia mais de um moço embevecido dos seus encantos, e assim queria Francisco da Silva ter a glória de haver feito tão esplêndida conquista amorosa.

 

Se realizasse seus desejos contaria mais uma vitória, um triunfo mais e blasonaria, como costumava fazer, que era prezado por tão linda donzela.

 

Concedia-lhe Antônio Gonçalves amizade e inteira confiança, da qual estava disposto a abusar, logo que as circunstâncias lhe fossem favoráveis.

 

Se encontrasse firme oposição, vigorosa resistência a seus projetos de sedução na filha de Antônio Gonçalves, talvez pensasse em casar com ela, no que acreditava não ficaria de mau partido, não só  por ser moça formosa, como também por ter o pai posição social, e dispor, conforme diziam, de um cabedal de boas dobras de ouro.

 

As suas repetidas visitas à casa do velho já serviam de tema para as conversas dos vizinhos.

 

Dizia um tenente do regimento de Bragança, vizinho próximo de Antônio Gonçalves, quando via entrar Francisco da Silva na residência daquele.

 

— Essas visitas repetidas de Francisco da Silva são inconvenientes, não achas minha mulher?

 

— São prejudiciais à honra da filha do vizinho.

 

— Queira Deus que não tenha ele de arrepender-se.

 

— Eles dois são da casa real e lá se entendem.

 

— É assim, e não é para que digamos, digna de servir de exemplo a moralidade, que corre no palácio do rei.

 

— Mas caluda, e eles que continuem a semear tão maus princípios.

 

E ficou o tenente firme no seu posto, por trás da rótula a espreitar a vizinhança, coisa que faz muita  gente até de mais alta patente. Quanto a mulher continuou a tecer uma renda em almofada de bilros.

 

Murmuravam outros também sobre o caso, e a seu modo iam propalando coisas não mui favoráveis à honra da donzela.

 

Maledicência é mal antigo e contagioso, tisna e por fim fere, e vai se estendendo, como esses répteis, que à medida que se arrastam, parecem que vão aumentando de cumprimento.

 

Mostrava-se Alice contrariada com a presença do moço, não lhe fazia boa cara, mostrava-se esquiva, fugia-lhe, e raras vezes respondia-lhe às perguntas e galanteios.

 

— Hei de atraí-la pouco a pouco, repetia o sedutor.

 

Afligia-se Eduardo com as visitas do seu rival à casa do ajudante do almoxarife, tornava-se ciumento, repetia cartas amorosas, e duvidava da constância e fidelidade da donzela. E maldizia-se o pobre moço, e vivia inquieto e desgostoso.

 

Havendo festividade religiosa e fogo de artifício na igreja do largo da Lapa, convidou Francisco da Silva a família de Antônio Gonçalves para assistir a esses festejos. Aceito o convite foram todos, tendo o reposteiro do paço a dita de dar o braço à filha do ajudante do almoxarife.

 

Correu solenemente o te-deum, sendo orador o franciscano Monte Alverne, que tão alto elevou a fama do púlpito brasileiro.

 

Começando o fogo de vistas ia tudo a contento de todos, quando despregando-se uma das rodas que ardia, caiu sobre o povo, produzindo grande alvoroto e confusão. Corriam os espectadores de um para outro lado, as crianças choravam,  as mulheres gritavam e tinham ataques, e aumentavam o alarido os assobios e vaias ao fogueteiro.

 

Julgou Francisco da Silva azada a ocasião para por em prática o plano de afastar-se com a filha de Antônio Gonçalves. De feito no meio da confusão popular, perdendo de vista os pais de Alice, e simulando querer afastar-se do torvelinho do povo, disse para a donzela.

 

— Fujamos por aqui.

 

E dirigindo-se ao beco do Império foi ter à rua de Santa Teresa, hoje Dr. Joaquim da Silva.

 

Mui pouco habitada era essa rua naquele tempo, especialmente do lado do morro poucas casas tinha, separadas por extensos muros, ou cercas de espinhos.

 

Arredado do lugar do sinistro, e em ponto solitário, disse ele à filha de Gonçalves.

 

— Estamos aqui livres de qualquer perigo, e em lugar de poder fazer-lhe minhas revelações.

 

— Mas, senhor, estou longe de meus pais...

 

— Que receia?

 

— Não sei, mas convém irmos ao seu encontro.

 

— Será difícil por hora, pois é imensa a onda popular, e antes peço-lhe que ouça-me.

 

— Não o atenderei agora, se quiser revelar quais seus intentos deve fazê-lo em presença de meu pai.

 

— Siga-me e será feliz.

 

— Jamais. E Alice afastando rapidamente o seu braço do moço, retrocedeu caminhando apressadamente.

 

— Começou Francisco da Silva a segui-la procurando animá-la e convencê-la.

 

Andavam aflitos os pais de Alice em procura desta, quando encontrando-se com Eduardo Maia referiram-lhe o que acontecera.

 

— Vou procurá-la, disse Eduardo, e partiu logo.

 

Percorreu apressadamente as ruas vizinhas, e no momento em que a moça relutava mais com o reposteiro, apareceu ele.

 

— Pois conduza-me aonde eles estão, disse Alice, reanimando-se e tomando o braço do moço.

 

Retraindo o seu ressentimento, retorquiu Francisco da Silva.

 

— Na ocasião do burburinho popular perdemos de vista ao Sr. Antônio Gonçalves e sua senhora.

 

E contrariado foi acompanhando a Eduardo e a filha do ajudante do almoxarife.

 

Restituída Alice a seus pais mostraram-se estes alegres e satisfeitos, e tal era a confiança, que tributavam ao reposteiro Francisco da Silva, que não causou-lhes o incidente a menor suspeita. Acompanhou Francisco da Silva a família à casa, e Alice ainda bastante abalada pelo que acontecera, não ousou fazer a menor revelação aos pais, e quanto a Eduardo desapareceu no meio da onda popular.

 

 

 

XV

 

 

Referiu o major Mello a Eduardo Maia a conversa, que tivera com Antônio Gonçalves, na igreja da Cruz, relativa ao casamento da filha deste.

 

Ficou o moço contrariado e pesaroso, mas acrescentou:

 

— Estão atualmente fechadas as lojas maçônicas  e dispersos os sócios, e assim não deve o Sr. Gonçalves ter tanto receio dos mações.

 

— Ponderei-lhe semelhante circunstância, replicou o major, mas disse-me ele, que continuava o senhor a pertencer à associação.

 

— E se me comprometesse a deixá-la para sempre!

 

— Não faça tal, se alistou-se nessa seita, e prestou juramento de conservar-se fiel às suas leis, para que renegar seu voto! Não há motivo para isso. Esqueça antes esse amor, que não lhe pode trazer ventura.

 

— Não penso assim, e jamais olvidarei esse amor.

 

— São assim todos os namorados, porque neles pesa mais o coração do que a cabeça. Mostram muito sentimento, porém pouco juízo. Julga então mais fácil renegar os seus compromissos perante uma grande corporação, do que apagar uma paixão, que para si começa tão mal!

 

— Mas procurarei superar todos os obstáculos.

 

— Bem, permaneça firme no seu amor, seja prudente e reservado, mas conserve-se também unido à maçonaria, filiado à essa sociedade útil e importante.

 

E os dois amigos foram conversando até a porta da alfândega, que nessa época era na rua 1º de Março em frente à do Hospício.

 

Separaram-se aí entrando Eduardo para a sua repartição.

 

Apesar de não ter ouvido de Francisco da Silva nenhuma revelação a respeito de casamento, julgou Antônio Gonçalves ser conveniente ir preparando o ânimo de sua filha em favor desse moço, e assim dizia-lhe ele em certo dia.

 

— Ainda não pensaste em ter um noivo.

 

Sorriu-se Alice, e não ousou pronunciar palavra.

 

— Todavia é preciso voltares a tua atenção para um moço conceituado, que sirva, e de posição social e de recursos, que te possa fazer feliz.

 

— É assim, meu  pai.

 

— E creio haver um nessas circunstâncias.

 

— Ah, e qual é ele?

 

— O Francisco da Silva, empregado da casa real, que vem visitar-nos amiudadas vezes, e parece ter por ti decidida inclinação.

 

— Não sei se serão puras as intenções desse moço, acrescentou Alice, dissimulando o seu ressentimento.

 

— E porque não! É moço honesto.

 

— Não sei, mas apesar de desejar obedecer-vos em tudo, não quero semelhante homem para marido.

 

— Não queres, e ousas responder assim a teu pai! Preferes talvez algum pelintra?

 

— Não senhor, amo a um moço pobre, porém honrado e digno.

 

— A quem, perguntou Antônio Gonçalves, como se nada soubesse das relações amorosas de sua filha.

 

— Ao empregado... E a moça hesitou.

 

— Dize, fale.

 

— Ao empregado da alfândega Eduardo Maia.

 

— Vai-te daí tolinha. Queres então casar com um endemoninhado e alma de Satanás!

 

— Porque fala assim meu pai!

 

— Pois não sabes que ele pertence à maçonaria!

 

— E que tem isso? É uma sociedade como qualquer outra.

 

— Bonito, e quem te ensinou semelhante doutrina!

 

— Não dizem que até na casa real há mações!

 

— Não te metas em semelhantes funduras. E fiques sabendo que com semelhante celerado não te casarás. Ou aceitas o noivo que te indiquei, ou encerro-te em um convento.

 

Começou Alice a chorar.

 

— Empregas em vão as lágrimas, porque não me comovem. Se não mudares de pensar, faço-te apenas uma concessão, a de escolheres o convento a que tiveres de pertencer, isto é o de Santa Teresa ou o de Nossa Senhora d’Ajuda.

 

E Antônio Gonçalves retirou-se deixando a filha lavada em pranto.

 

Nessa ocasião ouviu-se junto à porta de entrada da casa uma voz, que repetia:

 

— Esmola para sua devota.

 

Abriu a moça a rótula, e ao dar a esmola à pobre disse-lhe esta:

 

— Aqui tem uma carta do Sr. Eduardo Maia.

 

— Obrigada, mãe Quitéria, balbuciou Alice.

 

Fechando o postigo correu Alice para dentro, e leu imediatamente a carta; e reanimaram-na logo as expressões apaixonadas dessa missiva de amor.

 

Essa cartinha, esse papel enfeitado e perfumado, foi para ela de grande conforto naquele momento de aflição, entornando-lhe n’alma resignação e esperança.

 

 

 

XVI

 

 

Além da fazenda de Santa Cruz costumava D. João VI também passar alguns dias do ano na ilha do Governador, onde o abade beneditino frei João da Madre de Deus mandara edificar um palacete de recreio para o rei sua família. Aí entregava-se o monarca  aos prazeres da caça, e além dos seus folguedos venatórios, ensaiou em um terreno próximo a cultura do chá.

 

Acompanhavam-no ao passeio da ilha os príncipes seus filhos, a princesa Maria Teresa ou alguma outra filha, mas a rainha quase nunca ia.

 

Logo que chegou ao Rio de Janeiro foi a rainha Carlota residir com as filhas na chácara dos Bastos em Botafogo.Julgando-se mal acomodada foi habitar no Rio Comprido uma casa da rua, que desde então chamou-se da Rainha. Ainda não se achou a seu gosto nessa habitação, e por isso mudou-se para a chácara do comendador Gomes Barroso no Engenho Velho. Residiu também algum tempo na fazenda do Capão pertencente à família do bispo Mascarenhas, depois no engenho Meriti, que procurou para si, pelo que ficou se chamando da Rainha, nome que ainda conserva. Tratou depois de fazer aquisição de dois prédios do largo do Machado, hoje praça Duque de Caxias, e aí mandou construir um palacete e capela, que mais tarde serviu de matriz, quando criou-se a freguesia da Glória. Aí permaneceu a mulher de D. João VI até ausentar-se para Lisboa.

 

A custa do Estado fizeram-se obras importantes nesses prédios ocupados pela volúvel soberana, que jamais mostrou-se solícita em pagar alugueis daqueles, que pertenciam a particulares.

 

Vê-se assim que gostava ela de mudar de residência, evitando a convivência do esposo, com quem vivia em constante desarmonia.

 

Apetecia-lhe estar só e livre, maquinando sempre planos e traições, e forjando astúcias e seduções.

 

A rainha Carlota era magra, de pequena estatura e feia. Caprichosa e de gênio volúvel, encontrando aberto o erário para satisfazer a todos seus caprichos e extravagâncias, vivia afastada do esposo como formando outra corte, e outro círculo político. Iludia e maquinava contra o próprio marido, que não sabia, ou não podia domá-la.

 

Havendo resolvido passar alguns dias na ilha Governador para ali dirigiu-se D. João acompanhado da princesa Maria Teresa, dos príncipes D. Pedro e D. Miguel e dos fidalgos e criados de sua casa.

 

Na ilha entretinha-se o rei em caçadas, no cultivo de chá e de outras plantas, em palestras com os monges beneditinos, ou entoando com eles o canto chão no que era perito, e assistindo a atos religiosos, coisa a que era mui inclinado.

 

Tendo chegado à ilha, escreveu, no fim de alguns dias, o seguinte bilhete ao ministro Tomás Antônio.

 

«  Querendo estar aqui mais alguns dias julgo que me quererá falar, querendo venha amanhã; deve saber que do desembarque até esta casa é longe, e no caso que venha me dirá para lhe mandar pôr cavalo, e o correio vai autorizado para lhe mandar por as mudas do costume, se lhe disser que as ponha.»   

J. C. (4)

 

J. C., isto é, João Carlos, pois era assim que se assinava D. João quando escrevia as suas missivas particulares.

 

Logo que recebeu a carta dirigiu-se o ministro para a ilha, e compareceu imediatamente na residência real.

 

Trazia inquieto o rei a agitação, que se dera na Espanha, e prévia, como aconteceu, que se estendesse ao reino português. Aconselhava-o Tomás Antônio que contentasse ao povo e aos negociantes animando o fabrico de vinho, dos panos de linho, saragoças ou boréis, que impusesse tributos sobre o vinho e mais produtos estrangeiros, e escolhesse e nomeasse outras autoridades, que agrandassem mais o povo de Portugal.

 

Opinavam outros conselheiros, que se transferisse para a Europa a sede do reino, e outros que se enviasse para ali algum membro da família real.

 

Preocupavam semelhantes questões aos ministros e conselheiros régios, sendo divergentes  os votos e diversos os pareceres.

 

Se Tomás  Antônio pensava de um modo, refletia  de outro o conde dos Arcos, tinha opinião controversa o conde de Palmela, e assim outros.

 

Vivia o rei inquieto e aflito com semelhantes questões, e passava horas e horas, encerrado em seu gabinete, lendo ofícios do ministro inglês e de outros diplomatas, ou os pareceres de seus conselheiros e ministros de estado.

 

Enquanto preocupavam-se os políticos com semelhantes projetos e planos, procurando resolver as magnas questões, enquanto o rei vacilava, mostrava-se dúbio e irresoluto, continuava Francisco da Silva no seu enlevo de amor e sedução. Se encontrava-se com a dama do paço rendia-lhe sempre finezas, dirigia-lhe um sorriso, ou beijava-a, ou fazia-lhe uma carícia. Persistia em sua paixão, firme e constante, certo talvez de que aquela mulher breve se renderia a seus afagos.

 

Avistando-a em uma das salas aproximou-se e disse-lhe.

 

— Ainda não a tinha visto hoje.

 

— Estive toda a manhã com a princesa D. Maria Teresa.

 

— E eu sempre firme como o castiçal da sala da tocha para vê-la passar.

 

— É preciso ter prudência e falar, baixo porque vi el-rei no gabinete próximo.

 

— Ah, mas eu amo-a tanto. E com fervor beijou-a.

 

— Eu também o amo.

 

— Ah repita uma e muitas vezes essas palavras, quero ouvir essa confissão de sua boca para sentir todo o prazer em minha alma. E tornou a beijá-la.

 

— Senhor.

 

— Deixe-me abraçá-la, uni-la ao meu peito para sentir o seu coração junto do meu.

 

E no momento em que Francisco da Silva apertava contra o seu  peito o seio agitado e protuberante da mulher, que requestava, abriu-se uma porta e apareceu D. João, que surpreendendo-os bradou.

 

— Que ousadia é essa!

 

— Perdão meu senhor, murmuraram ambos ao mesmo tempo, que se ajoelhavam e procuravam beijar a mão do monarca, mas este afastando-se retorquiu.

 

— Retirem-se para os seus aposentos.

 

Ambos obedeceram imediatamente.

 

Contrariado por ter presenciado em seu palácio semelhante cena amorosa, fechou D. João o semblante, e de cabeça baixa caminhou vagarosamente para seu gabinete.

 

Sabia ele que corria pelo paço muita imoralidade, que eram ali comuns entre damas e cavalheiros os galanteios, juras  entrevistas de amor, que de sua própria esposa murmuravam, censurando a vida impudica, os seus modos desenvoltos, mas desejava ostentar toda a moralidade. Comedido em seus atos, reservado em suas ações, patenteando quanto possível a sua gravidade, exasperava-se quando era informado de qualquer ação desonesta ocorrida no paço, e mais contrariado ficava quando ele próprio era testemunha de qualquer ato contra o decoro e a decência.

 

Nervoso, irritado pelo que presenciara, tocou o rei com força a campainha, que tinha sobre a mesa. Compareceu  imediatamente o seu criado particular Tomás Carneiro.

 

— Que deseja, meu senhor, perguntou o criado entrando e fazendo profunda cortesia

 

— Onde está o guarda-roupa Matias Lobato.

 

— Está passeando no jardim.

 

— Vá chamá-lo.

 

Saiu o criado depois de competente reverência. Vindo o guarda-roupa pediu-lhe o rei o seu chapéu armado, o seu bastão de jacarandá, e disse-lhe.

 

— Vamos passear.

 

E em passeio para distrair-se da contrariedade, que há pouco experimentara, foi caminhando até o poço d’água nascente, distante um quarto de hora do convento, e de cuja água se servia D. João quando se achava na ilha.

 

Chamava-se a fonte do Caricó, e ainda hoje vêem-se as paredes velha e as ruínas da casa de telha, que cobria semelhante poço.

 

Pediu ao guarda-roupa que lhe desse um pouco d’água, e regressou para o palacete.

 

Durante o passeio não dirigiu o rei uma única palavra, ao seu guarda-roupa sobre o incidente, que se dera em sua casa, nem este ousou, segundo a etiqueta, fazer a menor pergunta.

 

 

 

XVII

 

 

Na noite do dia, em que se dera o incidente amoroso presenciado pelo rei, conversavam o reposteiro do paço Francisco da Silva e a dama Eugênia.

 

— Estamos perdidos, murmurava ele.

 

— Que desgraça, acrescentava a dama.

 

— Convém fugir, quando não serei vergonhosamente despedido deste paço, dizia ele.

 

— Eu vos acompanharei; mas para onde iremos?

 

— Mandarei aparelhar dois cavalos, que nos levarão ao ponto de embarque, e aí em qualquer canoa de pescador  navegaremos para a cidade.

 

— E depois?

 

— Chegados à cidade, irei às cachoeiras do paço, na rua Fresca, e pedirei uma sege, que nos conduzirá à chácara de um amigo, no Cosme Velho.

 

— E seremos recebidos?

 

— Com certeza porque esse indivíduo deve-me favores de muito peso e valia.

 

— Mas fugirmos da residência de el-rei, não será isso praticar um escândalo?

 

— Mas assim talvez procure el-rei lançar ao desprezo o ato que presenciou, e se permanecermos aqui virá a pena.

 

Mostrando-se convencida com este argumento, e desejando acompanhar o homem que amava, recolheu-se a dama ao seu aposento para preparar-se para a partida, enquanto tratava o reposteiro de mandar aparelhar os cavalos.

 

Disposto tudo veio ele buscar a amante, e montando a cavalo seguiram os dois para o ponto de embarque. Tomando aí uma canoa seguiram para a cidade.

 

Desembarcaram no largo do Paço, hoje praça 15 de Novembro; Francisco da Silva foi buscar a sege, e entrando nela com a sua companheira seguiram para o Cosme Velho.

 

Chegados à casa indicada desceu ele só, falou com o amigo, e passados instantes veio buscar a amante, e ambos recolheram-se a um aposento.

 

— Estamos salvos, disse ele abraçando a Eugênia.

 

— Assim não decrete el-rei algum castigo contra nós; articulou Eugênia.

 

— Agora que só o amor nos deve preocupar para que empanar a nossa felicidade com idéias tristes, disse Francisco da Silva beijando a amante.

 

Na manhã, seguinte logo que o rei acabou de fazer a barba e vestir-se, referiu-lhe o seu criado particular a fuga da dama do paço com o reposteiro.

 

Mostrou-se o rei admirado, como se nada houvesse presenciado na véspera entre namorados, mas franzindo repentinamente a testa e fechando o semblante ordenou ao criado, que fosse chamar o ministro Tomás Antônio, que ainda se achava ilha.

 

Algum tempo depois apresentou-se Tomás Antônio e beijando a mão do monarca disse-lhe.

 

— Estou às ordens de vossa majestade.

 

— Deu-se ontem aqui um fato vergonhoso e impróprio desta casa, falou D. João. Surpreendi o reposteiro Francisco da Silva beijando a dama Eugênia, e acabo de saber agora que, seduzindo a dama, fugiu com ela ontem à noite deste paço. Eles não podiam continuar no serviço desta casa, mas seriam simplesmente despedidos, tendo porém o reposteiro tornado público o seu delito raptando a dama, resolvi castigá-lo severamente. Leve esta minuta e mande lavrar um aviso, que deverá ser remetido ao corregedor do crime da corte e casa.

 

— Cumprirei as ordens de vossa majestade. E o ministro saiu depois de haver saudado o rei.

 

Dois dias depois publicava a Gazeta do Rio de Janeiro o aviso seguinte:

 

* Não devendo ficar impune o desatino, em que caiu o reposteiro da câmara Francisco da Silva de aleivosamente aliciar e raptar a mulher de F.F., é el-rei nosso senhor servido que vossa mercê faça intimar o sobredito  reposteiro que não entre mais no paço, e que deve sair para fora da corte para a distância de dez léguas até segunda ordem. O que participo a vossa mercê para que assim o execute. Deus guarde a vossa mercê. (5)

 

Era D. João homem probo e justo. Se davam-se em sua casa, em sua corte, cenas censuráveis, indecorosas, se lavrava a imoralidade entre alguns dos seus criados e cortesãos, não eram provenientes do procedimento mau do rei.

 

Homem cordato e bom não desejava fazer mal a ninguém, porém fraco e irresoluto não sabia dissipar os abusos, e raras vezes era  pronto e enérgico em punir os culpados.

 

Se não tinha energia para corrigir as faltas, os delitos contra a moral praticados contra a sua esposa, como poderia impedir os atos vergonhosos de sua numerosa criadagem e dos seus orgulhosos e ignorantes válidos!

 

Havendo porém, presenciado aquela cena amorosa em seu palácio, e considerando-a como uma afronta à sua pessoa e à sua dignidade, mostrou-se decidido e expedito na decretação da pena. Tratou imediatamente de infligir o castigo contra o culpado, dando ele próprio a minuta para o aviso, que foi publicado na Gazeta dessa  época.

 

Causou grande sensação na cidade a publicação daquele aviso. Todos leram-no e todos comentaram; durante dias de serviu de tema para todas as palestras.

 

Se uns censuravam a imoralidade que ia pelo paço, outros a corrupção geral dos costumes, louvavam alguns o procedimento moralizador do rei.

 

Conversando na sacristia da capela real os cônegos Januário, tão distintos nas letras pátrias, e Plácido Carneiro, que ocupava o cargo de reitor do Seminário de S. Joaquim, dizia o primeiro.

 

— E o fato vergonhoso que deu-se no paço real!

 

— Meu amigo, o povo não é educado, e estamos no tempo em que se manda transformar um seminário em quartel, redargüiu o cônego Plácido.

 

Referia-se ao seminário de S. Joaquim, que foi extinto, indo aboletar-se no mesmo edifício uma divisão de soldados chegados de Portugal.

 

— Escolhem para mestres homens ignorantes, retorquiu Januário, os quais adotam o péssimo costume de ensinar os meninos à força de pancada.

 

— Dizem os tais mestres que o ensino deve entrar no sangue.

 

Excelente método! Não se recorda daquele menino aleijado pelos castigos rigorosos do mestre, e que mais tarde viveu esmolando na portaria do convento de Santo Antônio! (6)

 

— Viu-o ali muitas vezes, era filho de Manuel Luís.

 

— Também qual será o homem instruído e de bom procedimento, bradou Januário, que sujeite-se a ensinar meninos pelo mesquinho ordenado anual de cento e vinte mil réis!

 

— Certamente, pois não chega tão insignificante quantia nem para modesta e parca subsistência.

 

Continuavam os dois cônegos a sua palestra, quando tiveram de interrompê-la despertados pelo dobre do sino anunciando a hora da reza do coro.

 

Vestindo a sobrepeliz sobre a batina, e tomando o livro de oração colocado sobre o arcaz, encaminharam-se em companhia dos outros sacerdotes para o recinto da igreja.

 

 

 

XVIII

 

 

Ficou estupefato Antônio Gonçalves tendo o aviso da Gazeta relativo ao reposteiro da câmara. Jamais pensou que praticasse esse moço semelhante ação, tal era o conceito vantajoso que dele fazia.

 

— Que escândalo praticado na residência real por um próprio criado da casa, bradou ele, ao terminar a leitura do aviso.

 

Se ficou surpreendido lendo aquele aviso, também teve Eduardo Maia certa satisfação. Viu assim demorados e talvez desvanecidos planos de Antônio Gonçalves sobre o casamento da filha com o reposteiro da câmara. Como todos praguejou contra a imoralidade do paço, e riu-se consigo pensando no marido modelo, que o ajudante do almoxarife desejava para a filha.

 

Mas vivia o moço perplexo e inquieto; amava mas perdia cada dia a esperança de realizar seu casamento, pois sempre que a moça escrevia-lhe referia-se à oposição que os pais manifestavam ao casamento por ser ele maçom.

 

Passava Eduardo Maia triste e pensativo pela rua da Quitanda, quando encontrou o pardo Ângelo Rondon, soldado reformado do regimento de artilharia.

 

Era um homem alto e descarnado e tinha falta de dois dedos na mão direita, que perdera na campanha do Rio Grande do Sul. Andava fardado, porém sem apuro e sem uniforme completo. Usava de farda e boné, quanto a calça era do molde e cor, que lhe aprazia. Dizidor de conceitos chistosos gabava-se de vaticinar o futuro.

 

Era um maníaco, um vagabundo das ruas, semelhante a outros muitos, que então existiam. Punha os dedos na boca e dando assobios e estalos gritava.

 

— É foguetório.

 

Aplaudia-se a si mesmo, e alegre e pacato era um tipo popular estimado por todos.

 

Apesar de robusto e forte nada fazia, não trabalhava, vagava pela cidade, e vivia vida folgada e inútil. Costumava repetir.

 

— O for meu às mãos me há de vir.

 

Se propunham dar-lhe qualquer trabalho oferecendo-lhe boa paga, recusava-se dizendo.

 

— Para quê! A quem Deus promete um tostão, de seis vinténs não passa por mais que faça.

 

Preguiçoso e indolente não se ocupava com coisa alguma, acreditando, como alguns, que a sorte está escrita, que nasce o destino no berço com o homem, e que de nada valem o esforço e o trabalho.

 

Não sabia ou não queria lutar com a sorte, vivia na inércia e preguiça, e cooperava o povo para isso dando-lhe esmolas e alimentando a sua indolência.

 

Concorria assim para que esse infeliz nada fizesse, e acreditasse que, tendo nascido pobre, pobre teria de morrer.

 

Encontrando-se com Eduardo Maia, que mostrava-se triste e taciturno, repetiu-lhe o soldado Rondon a seguinte quadra.

 

Chora, menino, chora

Vá-se embora pra Campinas,

Vá cumprir o seu degredo,

Quem tem amores tem medo.

 

— Vai-te Ângelo, disse-lhe Eduardo

 

Sabia o pardo do amor, que o moço tinha à filha de Antônio Gonçalves, e por isso acrescentou.

 

— Ora venha cá, quer ouvir o que há de acontecer com o seu amor.

 

— Dize lá.

 

— Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

 

— Mas quem ama não pode esperar muito.

 

— Tenha paciência, porque quem anda alcança, e quem corre cansa.

 

— Ora não me atormente com teus adágios. E Eduardo foi se afastando do saldado.

 

— Olhe, retorquiu Ângelo cantarolando.

 

Querer bem não é bom, não

Faz a gente enlouquecê,

Abre as feridas por dentro,

Por for fora ninguém as vê.

 

E lá se foi o pobre no seu caminhar sem destino dando estalos e assobios, ou cantando versos populares. A garotada chamava-o para ouvi-lo repetir anexins ou cantar modinhas em troca de alguns vinténs, que ele agradecia fazendo caretas e trejeitos.

 

 

 

XIX

 

 

Viveram alguns dias Francisco da Silva e Eugênia ocultos na casa cercada de denso arvoredo do Cosme Velho.

 

Apressados correram os dias na embriaguez do amoré na expansão da paixão. Mas uma amigo do reposteiro da câmara remeteu-lhe a Gazeta, onde viera publicado o aviso.

 

Lendo-o ficou Francisco da Silva sucumbido, tremeram-lhe as pernas e inundou-lhe o corpo um suor frio. Repetiu a leitura três ou quatro vezes, e ficou perplexo sem saber o que resolver. Chamou a sua companheira e disse-lhe.

 

— Lê isto.

 

Eugênia leu, e comovida perguntou-lhe.

 

— E agora!

 

Devemos sair imediatamente daqui, cumprindo o que el-rei ordena, quando não estarei perdido. Serei ou degradado para a Índia, ou encerrado em uma fortaleza, na qual morrerei esquecido.

 

— E para onde iremos!

 

— Tenho em Itaguaí um amigo que nos guiará, facilitando-nos todos os recursos. Hoje mesmo  empreenderemos a viagem, deste modo cumprirei a ordem do rei.

 

— Eu te acompanharei para qualquer lugar.

 

Entrando em preparativos de viagem, partiram os dois amantes nesse mesmo dia, e após dois dias de viagem a cavalo, suportando diversas contrariedades e maus caminhos, chegaram ao seu destino.

 

Entregues aos enlevos do amor esqueceram-se logo quer da condenação do rei, quer das vicissitudes da sorte. Viviam embebidos nos encantos da paixão. Passavam horas e horas abraçados, arrebatados em sonhos de fantasias e esperanças. Tudo encantava-os, tudo cobria-se para eles de uma cor celeste, porque sorria-lhes a felicidade, afagava-os em seus devaneios, e os anjos pareciam entoar-lhes aos ouvidos harmonias cadentes e sonoras. Se Eugênia prendia aos cabelos uma rosa gabava Francisco da Silva o perfume da flor e também a beleza das tranças de sua amada. Se tomava um vestido de cor mais viva tecia elogios à cor do vestuário, mas acrescentava que a forma do manequim é que fazia realçar a elegância da toalete. Se lançava ao redor do pescoço um colar extasiava-se notando-lhe o arfar e o volume dos seios.

 

Também para Eugênia ninguém tinha os cabelos mais sedosos, nem o olhar mais penetrante, nem o sorriso mais sedutor do que seu amante.

 

Se iam passear quedavam-se os dois horas e horas à sombra das árvores, e ali inventavam idílios de amor e repetiam palavras amorosas, que só o anjo da felicidade lhes poderia ensinar. Se encontravam regato deixavam-se ficar nas margens e beijando-se repetiam que o murmúrio das águas ocultava o murmúrio dos seus beijos. Se passeavam a cavalo apostavam carreira levando os animais a toda brida, ou agitando um o seu ginete, seguia o outro atrás, e ao encontrarem-se abraçavam-se e beijavam-se.

 

Tudo se desvanecera da mente desses dois entes. Já não se lembravam das pompas, solenidades, honras e cerimônias da casa real. A sua vida passada era como um sonho, de que se não recordavam. O mundo deles era ali só, não havia mais para eles rei, nem rainha, nem príncipes nem cortesãos. Existiam só eles dois ou antes só viam, só rendiam culto ao amor ingente, que enchia-lhes o coração, transbordavam-lhes o cérebro de idéias  alegres, e semeava na estrada de sua vida, flores, prazeres, alegrias e risos.

 

 

 

XX

 

 

Correram assim alguns meses vivendo envolvidos os dois amantes nas ondas da felicidade, e embalados pelas asas da paixão e do prazer.

 

Mas foi depois arrefecendo o entusiasmo do amor, e foram eles compreendendo o mal, que haviam feito.

 

Foi Francisco da Silva o primeiro, que começou a lastimar-se.

 

— Grande loucura pratiquei em deixar o meu emprego honroso  da corte  para vir sepultar-me neste retiro.

 

— Mas não és feliz!

 

— Sou porque vivo em tua companhia, mas perdi tudo, nome, honras, emprego, consideração, futuro, tudo, tudo.

 

— Em compensação tens o meu amor.

 

— Ah, mas as galas, as grandezas, a pompa do paço!

 

Ele que até então esquecera-se de sua vida de outrora para só cuidar da mulher querida, ele que varrera da idéia todo o passado, por que só lhe bastava o presente, principiava agora a recordar-se das solenidades, das festas do paço real, das honras, condecorações, títulos e grandezas, que o rei costumava distribuir com a mão pródiga pelos seus vassalos. A vida alegre e principesca do palácio despertava-lhe agora idéias de ambição, e cogitando na posição elevada, a que poderia ter chegado, mostrava-se triste e abatido.

 

— Que vida temos nós aqui, repetia ele, neste ermo silencioso e triste.

 

— E o nosso amor!

 

— Sim foi o amor, ou antes essa vertigem louca, que apoderou-se de mim.

 

— E já não existe, não é assim!

 

— Amo-te, porém isso não é viver. Cada dia mínguam os nossos recursos, e cada dia vejo-me mais só e repelido de todos.

 

— E também eu não desprezei o meu lugar honroso da corte, o meu marido. Não manchei para sempre o meu nome de mulher honesta.  Não abandonei as galas, os prazeres, os passatempos galantes do paço, as minhas relações com as damas e princesas, os meus vestidos ricos, adereços e jóias!

 

— Queres sem dúvida fazer-me recriminações; se não dou-te vestidos de valor é porque não tenho dinheiro.

 

— Nem penso em tal, mas deves ver que também fiz pesado sacrifício acompanhando-te.

 

— Mas não sofreste a condenação, que caiu sobre mim. Se delinqüiste, repetem todos que fui eu o culpado, eu o sedutor, eu que desonrei a casa real cometendo grave desacato.

 

— Sossegue Francisco, talvez mais tarde sejas perdoado, o rei é clemente e bom.

 

— E qual perdão que eu posso esperar para lavar o meu desatino, e a minha desonra!

 

— Ah, a condenação de o rei fulminou-me, expôs-me à vergonha, à execração pública.

 

E o moço levava as mãos nos cabelos percorrendo o aposento, em que se achava, com passos largos.

 

— E moralmente não estou eu também envolvida nessa lei de condenação, e não será meu nome todos os dias amaldiçoado por meu marido e por meus pais!

 

Repetiam-se essas cenas, e de dia para dia tornavam-se mais freqüentes e acerbas essas lamentações, mais vivas essas recriminações.

 

E não era só Francisco da Silva que se lastimava, que se exasperava, era também Eugênia, quando começou a compreender que já não era mais amada.

 

— Ah, na minha idade, dizia ela, na primavera da vida, quando tanto poderia gozar, ostentando meus encantos, os meus atrativos de mulher formosa em uma numerosa corte, lisonjeada por todos, e ver-me hoje encerrada nesta casa sem divertimentos e sem carinhos!

 

E a moça vertia sentidas lágrimas recordando-se dos dias felizes, que passara em companhia do marido, no palácio do rei, no camarim das princesas e das infantas, nos aposentos das damas, ostentando os seus vestidos de luxo, as suas jóias de brilhantes e topázios.

 

Quer no coração de um, quer no do outro foi de dia para dia apagando-se o amor, e em vez desse sentimento veio o aborrecimento, veio o tédio.

 

Francisco e Eugênia já não podiam viver juntos. Entre eles havia cada dia exprobrações e acusações veementes. A cada instante um deles lamentava a sua sorte, a cada momento um acusava o outro da sua infelicidade.

 

Não existindo mais o amor, que os embriagara, e os unira, compreendiam agora a posição vergonhosa e triste em que se achavam. Já não havia aquele sentimento, que lhes obscurecera a vista, enchera-lhes o coração, e por isso compreendiam a realidade feia e má da sua existência.

 

Passavam eles dias e dias sem trocarem uma palavra entre si, e um como que procurava evitar o outro.

 

Numerando cada um deles as suas alegrias de outrora, seus divertimentos, e sua felicidade passada, maldizia o erro, a desgraça, o crime, que pesava-lhe sobre a existência. Atribuía um ao outro os males, que sofria, e qualquer motivo originava entre os dois uma discussão, contenda ou desavença.

 

— Não pode continuar isso assim, observava o reposteiro.

 

— Pois acabe com tudo isso, que o mesmo desejo eu, repetia Eugênia.

 

— Então tens novos amores, não é assim?

 

— Não sei.

 

Qualquer deles saía a passeio sem convidar o outro, se ia Eugênia para uma casa da vizinhança, ausentava-se Francisco para ponto diverso.

 

Na mesa do almoço ou do jantar comiam sem trocar uma palavra, e já haviam separado os leitos alegando excessivo calor. Não eram mais dois amantes, nem dois amigos, eram como pessoas indiferentes  ou antes rivais, que viviam sob o mesmo teto.

 

Compreendeu o reposteiro que já não amava a Eugênia, antes aborrecia semelhante mulher, e que também ela não tributava-lhe mais nenhum amor.

 

Assim resolveu deixá-la o mais breve possível.

 

Firme nessa idéia, reuniu dentro de uma mala alguma roupa, guardou algum dinheiro, e ao amanhecer do dia seguinte saiu de casa, deixando sobre uma mesa o bilhete seguinte.

 

— Não havendo laço algum que nos uma, tendo desaparecido o amor, que um consagrava ao outro, julguei dever retirar-me deixando-te livre para procurares outra vida de mais liberdade e prazer, outro que ocupe o teu coração donde fui expulso. Eu farei o mesmo.

 

Ao despertar avistou Eugênia o escrito sobre a mesa, leu-o, ficou receosa e sobressaltada por ver-se só e sem recursos. Mas passou depressa a comoção, amarrotou o bilhete, lançou-o ao chão, e sorrindo murmurou.

 

— Já era tempo, foi melhor assim, Também já não podíamos viver um ao lado do outro. Hei de achar outro, que o substitua. E a moça foi preparar o almoço, entoando uma canção popular.

 

A Eugênia moça rica de dotes físicos, de olhos sedutores e atraentes, formas esculturais, ancas desenvolvidas, seios exuberantes, e dificilmente contidos pelas barbatanas do colete, não faltaram adoradores.

 

Começou a vê-la todas as tardes na janela um moço da vizinhança, conseguiu depois ser admitido em casa, e algum tempo depois ele cantava vitória.

 

Corridos alguns meses ausentaram-se os dois para lugar distante e recôndito.

 

A andorinha, depois de haver feito verão em um ponto, emigrava satisfeita para outro diferente.

 

  

 

XXI

 

 

— Estão desvanecidas as esperanças do casamento de nossa filha com o reposteiro Francisco da Silva, dizia Antônio Gonçalves a sua mulher.

 

— Depois da ação revoltante por ele praticada no paço real não devemos pensar mais em semelhante homem.

 

— E como persiste a menina em esposar o Eduardo Maia vou levar por diante o meu projeto de encerrá-la em um convento.

 

— Diz ela que se não casar com o Eduardo Maia, prefere ficar para sempre solteira.

 

— E não se receia a tolinha de unir o seu destino àquele renegado!

 

— Não, e não, repete ela.

 

— Mas com essa alma de satanás não se casará ela, prefiro vê-la freira.

 

— Coitadinha.

 

— Queres por ventura vê-la antes nos braços daquele endemoninhado do que na casa de Deus!

 

— Isso não, se ele é pedreiro livre, como disseste, vá antes ela para um convento; serve-se assim a Deus Nosso Senhor.

 

Considerava-se relevante serviço prestado ao céu consagrar-se, naqueles tempos idos, um filho à vida religiosa. Violentando a vocação acreditavam os pais alcançar o perdão dos seus pecados condenando os filhos a uma clausura perpétua. Era apanágio de honra e glória ter um filho revestido de batina de padre ou de hábito de monge. As vestes religiosas de um membro de uma família nobilitavam toda a geração, embora o infeliz arrastasse no claustro uma vida inútil e péssima, e amaldiçoasse, em seus momentos de reflexão, àqueles que segregaram-no da sociedade.

 

— Mas falta-me dinheiro, continuou Antônio Gonçalves, para realizar esse meu intento.

 

— E por que não falas, ponderou a mulher, ao compadre Miguel Afonso para que to empreste?

 

Residia o padre Miguel Afonso, padrinho de Alice, na rua do Sabão, hoje do General Câmara. Era alto, magro, seco de carnes, olhos vivos e pequeninos, boca regular e nariz adunco. Não saía à rua, como então era uso, senão de batina, chapéu tricórneo, e trazendo ou um grosso bastão com castão de ouro, ou um chapéu de chuva de pano encarnado. Sacerdote bom e caritativo distribuía diariamente esmolas aos pobres e mensalidades a famílias necessitadas. Legou em testamento diversos prédios à ordem terceira do Bom Jesus, da qual era irmão, para ser o rendimento deles distribuído anualmente por viúvas e filhas dos irmãos pobres da mesma confraria. E até hoje, e perpetuamente, as moedas legadas por esse piedoso padre, caem no regaço de viúvas pobres, de donzelas, que entre lágrimas de gratidão e súplicas ao céu, recebem a esmola repetindo o nome do seu perpétuo benfeitor. 

 

 

 

XXII

 

 

Corridos alguns dias dizia Antônio Gonçalves a mulher.

 

— Lembraste bem, vou procurar o padre Miguel Afonso e falar-lhe sobre minha pretensão.

 

E tomando os seus melhores calções, a sua casaca, sapatos com fivelas douradas, chapéu armado e bengala de castão amarelo, dirigiu-se à casa do sacerdote.

 

Expôs-lhe as suas circunstâncias e o desejo, que nutria em ver a filha freira no convento da Ajuda.

 

— Mas terá a menina vocação para a vida da clausura, perguntou o padre.

 

— Tem, balbuciou Gonçalves mentindo, pois não ousou declarar qual o motivo por que queria  encerrar a filha em um convento.

 

— É bom refletir e pensar bem no caso.

 

— Ela quer ser religiosa, repetiu o velho.

 

— Não vá sacrificar em vão a sua filha.

 

— Desejo prestar  um serviço a Deus, Senhor Nosso.

 

— Aceita Deus os sacrifícios espontâneos, a abnegação verdadeira, os atos de contrição pura, mas não agradam-lhe, nem aproveitam os que praticam, as violências, as ações, que acarretam remorsos.

 

— Minha filha servirá a Deus com humildade e resignação.

 

— Permita o céu que assim seja. Mas que deseja, quer que fale ao Sr. Bispo?

 

— Sim, e venho também suplicar outro favor de sua amizade.

 

— Fale.

 

— Falta-me dinheiro para certas despesas de papéis e enxoval, e se o compadre me adiantasse qualquer quantia...

 

— Farei tudo que estiver no meu alcance, pois estimo a  minha afilhada, e desejo concorrer sempre para obras meritórias.

 

— Fiado no seu bom coração vim pedir o seu auxílio.

 

— E não lhe há de faltar, mas indague, perscrute bem a inclinação de sua filha, que tudo farei em benefício dela.

 

Beijou Antônio Gonçalves o anel do padre, como era uso naqueles tempos, e despediu-se agradecido e satisfeito.

 

 

 

XXIII

 

 

Regressando para casa disse Antônio Gonçalves.

 

— Falei com o compadre e...

 

— E ele prometeu dar o dinheiro, perguntou a mulher interrogando-o.

 

— Sim, e que falaria com o Sr. bispo para a menina ser admitida no convento.

 

Alice que estava em um quarto próximo ouvindo a conversa, ficou aflita. Horrorizava-a a idéia da clausura, e teve ímpetos de fugir da casa paterna. Seu pai a ameaçava de fazê-la freira, mas não acreditava que semelhante projeto se realizasse com tamanha presteza. Triste, inquieta e lagrimosa recolheu-se ao seu aposento, onde escreveu imediatamente a Eduardo relatando-lhe tudo. Fechada a carta, guardou-a no seio, e veio à janela da rua para ver se passava a velha Quitéria  afim de entregar-lhe a carta.

 

De feito a velha não se fez esperar, assomou na esquina da rua, e a moça chamando-a entregou-lhe a carta.

 

Vendo que Alice chorava perguntou-lhe:

 

— Que tem, menina, por que chora assim.

 

— Quer meu pai fazer-me freira.

 

— Sossegue, sossegue, e tenha fé no céu. Aqui está a oração a Santo Antônio, reze-a todas as noites, e verá que seu casamento se realizará.

 

— Quanto à carta será entregue hoje mesmo.

 

Despediu-se Quitéria de Alice, que encerrou-se em seu quarto, onde entre lágrimas e suspiros leu a oração, que lhe dera a devota.

 

Eram naqueles tempos mui preconizadas as orações, os breves, as relíquias. Julgava-se que por esse meio sanava-se tudo. Era tido como bom e infalível tudo que vinha da igreja. A felicidade era sempre uma dádiva do céu, e a desgraça um castigo. Era considerado quase sempre milagre o bom acontecimento, e nada se resolvia sem antes pedir-se a intercessão de qualquer santo ou santa da corporação celeste. E se não provinha resultado vantajoso e feliz quer das orações, quer das promessas, bradava o padre, ou o fanático.

 

— Foi a falta de fé, que arruinou o caso.

 

E assim vivia-se, sustentando os padres princípios errôneos, fanáticos para extorquir o dinheiro do povo, e conservá-lo manietado ao seu poder e influência. Confiava-se tudo da providência, não se empregando o esforço próprio e individual. E desse modo concorria a igreja para o atraso da civilização, para a paralisação do progresso, e do adiantamento social. 

 

 

 

XXIV

 

 

Publicado o aviso régio para o corregedor do crime da corte e casa contra Francisco da Silva tratou o magistrado de dar-lhe pronto cumprimento. Enviou cópia do citado aviso ao delinqüente, mas este, como vimos, já havia se afastado para lugar distante da corte, curvando-se à  ordem régia.

 

Tendo abandonado a amante e vendo-se sem recursos, escreveu o reposteiro ao marquês da Vila-Nova da Rainha, com quem entretinha relações íntimas, e pediu-lhe intercedesse por ele ao rei.

 

Esse fidalgo, valido de D. João VI, era por ele estimado, e um daqueles com quem o monarca mais confidenciava nas palestras particulares. Era homem corpulento e bem apessoado, mas tinha as pernas um pouco  inchadas, como Luís XVIII, e por isso pouco saía, vivendo constantemente no paço da cidade.

 

Sabendo que o rei tinha de assistir a uma festividade na capela real foi o marquês esperá-lo na sala da Tocha.

 

Era assim denominada a sala do paço, onde havia um grande tocheiro dourado, como os que usam-se nas igrejas, sustentando uma tocha de cera, que conservava-se acesa dia e noite no palácio, em que se achasse o rei.

 

Aproximando-se D. João VI com a sua comitiva correu o marquês ao seu encontro, curvou o joelho, e beijando-lhe a mão disse,

 

— Venho implorar uma graça de Vossa Majestade.

 

— Diga o que quer.

 

— Condenou Vossa Majestade com toda justiça o reposteiro Francisco da Silva, que cometeu o feio delito de seduzir uma dama casada; mas desterrado para fora da cidade vive esse moço na miséria, vendo-se impossibilitado de angariar meios de subsistência em lugar tão distante e ermo.

 

— Está sendo punido pelo crime que praticou.

 

— Sim, real senhor, mas ele ainda é considerado criado da casa real, e por isso não deve passar tão rudes e vergonhosas privações.

 

— E por que não soube respeitar o paço real e a sua posição?

 

— Grande foi a sua culpa, real senhor, mas como pai de todos os seus súditos, podia Vossa Majestade permitir que regressasse ele para a cidade.

 

— E voltasse talvez para o serviço de minha casa, não é assim, interrogou o rei com o olhar carregado.

 

— Não, meu senhor, mas aliviando-o de parte da pena, isto é ordenando que ele possa regressar à cidade, terá  Vossa Majestade facilitado ao desgraçado meios de subsistência.

 

— Bem, verei se posso atender ao seu pedido, mas desde já declaro-lhe que semelhante criado não terá mais exercício no paço real.

 

— Beijo as mãos de Vossa Majestade.

 

— Escreverei ao ministro do reino a semelhante respeito.

 

— Sim, meu senhor, disse o marquês fazendo profunda cortesia ao rei.

 

Acompanhado do camarista conde de Parati, do guarda-roupa Lobato, e de outras pessoas da corte, atravessou D. João as salas do paço, o passadiço, que uniu o antigo palácio dos governadores ao convento dos Carmelitas, transformado em paço real, e chegando à capela tomou assento na tribuna régia aberta na capela mor. Mais tarde chegou a rainha Carlota, e foi sentar-se junto do esposo, indo as damas ocupar uma das tribunas do corpo da igreja.

 

Logo que o rei desapareceu das salas do palácio, recolheu-se o marquês de Vila-Nova da Rainha aos seus aposentos.

 

Apareceu três dias depois estampado na Gazeta do Rio de Janeiro o aviso seguinte:

 

« El-Rei Nosso Senhor é servido ordenar que o seu criado Francisco da Silva, que foi mandado sair para fora desta cidade, na distância de dez léguas, possa para voltar livremente, conservando-se com tudo, até segunda ordem, a proibição de entrar no paço.»

 

O que participo a V. Mercê para que assim lhe faça constar e se execute. Sr. Corregedor do crime da corte e casa. (7)

 

Lendo semelhante aviso ficou Eduardo Maia contrariado, pois talvez se despertassem as intenções de Antônio Gonçalves de casar a filha com o reposteiro. Se cometera este escândalo público tivera minoração na pena, e em breve ninguém mais falaria do delito, nem do delinqüente. Acresce que não havia sido ele rebaixado do cargo, que exercia em palácio, e naqueles tempos era considerado e digno de todas as distinções os indivíduos da casa real.

 

Relatara-lhe Alice na carta, que lhe escrevera, a firme resolução do pai em fechá-la em um convento, mas talvez ela ainda o comovesse com suas lágrimas, ou soubesse resistir-lhe; acresce que poderia ela falar com o bispo D. José Caetano, e denunciar a violência, que tencionavam praticar com a infeliz donzela.

 

E era o douto diocesano D. José Caetano homem firme e consciencioso, e jamais consentiria que, constrangida, violentada pelos pais, professasse essa moça em uma ordem religiosa.

 

Mas, refletia Eduardo Maia, o que mais grave lhe parecia era o recente aviso régio, que talvez arrastasse o Antônio Gonçalves a mudar de idéia e projeto, entregando a filha em casamento ao digno e honrado reposteiro da casa real!

 

 

 

XXV

 

 

Contentíssimo ficou Antônio Gonçalves lendo o aviso régio na Gazeta do Rio. Viu aliviado da sentença um colega seu na casa real, e de novo veio encantar-lhe a imaginação a idéia de  tomar o reposteiro como seu genro. Se praticara um ato indecoroso fora punido, e talvez o fizesse arrastado pelos galanteios da dama, e como extravagância do rapaz. Sabia ele Gonçalves quais as seduções, os enredos e conquistas amorosas, que se davam constantemente no paço. Acresce que se o rei permitira ao moço reposteiro o regresso para a cidade era sem dúvida por não estar muito irritado contra ele, e nem julgá-lo tão culpado como a princípio. E se D. João não afastara ainda toda a sua proteção do seu criado, talvez voltasse este ao exercício de seu cargo no paço real. A comutação da pena fazia crer que o rei ainda se interessava pelo seu reposteiro, e se ele pensava assim, toda a criadagem devia regular-se pela cabeça do seu rei e senhor.

 

Ainda mais. Dispunha o reposteiro da proteção do marquês da Vila-Nova da Rainha, fidalgo de invejada influência na corte.

 

Mas também pensava Antônio Gonçalves nos gastos, que já fizera para a filha recolher-se ao convento, no que dissera ao padre Miguel Afonso sobre a inclinação da afilhada para a vida mística. E até já conversara com a abadessa do convento da Ajuda sobre a admissão de sua filha nessa clausura.

 

Estava assim indeciso no seu  modo de resolver, via a filha manifestar oposição em vestir o hábito, e via também restituído ao seio da sociedade o reposteiro Francisco da Silva, que desprezara a amante, como era público e notório, e assim era um genro mesmo ao pintar.

 

Quanto ao Eduardo Maia obteria ele facilmente, por intermédio do marquês da Vila-Nova da Rainha, que, preso como maçom e conspirador do trono e do altar, fosse recolhido à alguma fortaleza, e daí degradado para a Índia. Eram tão fáceis aqueles tempos de domínio absoluto essas salutares providências em benefício da igreja e da pessoa sagrada de el-rei nosso senhor!

 

E talvez vendo o noivo condenado a desterro perpétuo aceitasse Alice por marido o reposteiro Francisco da Silva.

 

Povoavam-lhe o cérebro semelhantes cogitações, quando ouviu Antônio Gonçalves bater à porta da rua. Foi ver quem era e encontrou-se com o padre Miguel Afonso, que cumprimentando-o, disse.

 

— A graça de Deus esteja nessa casa.

 

— E convosco, senhor reverendo.

 

— Como vai a afilhada?

 

— Na paz do Senhor.

 

— Está em casa?

 

— Não, foi com a mãe ouvir missa na igreja de S. José.

 

— Pois vim trazer-lhe o que prometi. E tirando do bolso da batina um saquinho de veludo preto entregou-o ao pai de Alice acrescentando.

 

— É o dinheiro para a ajuda das despesas, afim de ser minha afilhada contada entre as servas da Senhora do Carmo, como freira no convento da Ajuda.

 

— Agradeço-lhe meu compadre, e de Deus receberá a recompensa de tão boa ação.

 

— Coisa diminuta.

 

— Vou já passar-lhe uma obrigação de semelhante quantia.

 

— Tem tempo.

 

— Seja como vossa reverendíssima determinar. Tenciono recolher a menina ao convento em dia de Santo Antônio.

 

— Deus a faça feliz, e transforme seu véu de freira em auréola de santidade.

 

— E já falou ao Sr. bispo?

 

— Ainda não, mas breve o farei.

 

— E desejo também que consulte a abadessa.

 

— Tudo farei para iniciá-la na vida do retiro e amor de Deus, assim tenha ela vocação e fortaleza para suportar as privações e martírios, que acompanham o hábito religioso.

 

— Há de ter.

 

— Mas não posso demorar-me mais, pois ainda tenho de dizer missa.

 

Deus o siga.

 

E separaram-se os dois amigos osculando Antônio Gonçalves com sinais de verdadeira piedade o anel do padre. 

 

 

 

XXVI

 

 

Haviam se precipitado os acontecimentos políticos.

 

Resolvera D. João VI inopinadamente partir para Portugal, deixar nas mãos do seu filho D. Pedro o governo do Brasil, e mandar eleger deputados às cortes de Lisboa.

 

Instalada no edifício da nova praça do Comércio, na rua hoje Primeiro de Março, a assembléia eleitoral, para eleger os deputados às cortes de Lisboa, apresentou-se o ouvidor Joaquim José de Queiroz, e procedeu à leitura de decretos, que não eram da competência da assembléia tomar conta deles. Manifestava semelhante procedimento, que nada entendia do sistema representativo constitucional, quer o governo, quer os governados.

 

Tornou-se a assembléia tumultuária, arvorou-se em constituinte, e começou a legislar como se fosse assembléia de toda a monarquia. Mas na noite de 21 de abril de 1821 foi dissolvida violentamente por um forte destacamento da divisão portuguesa, que dando uma descarga, invadiu a casa à baioneta calada.

 

Procuraram fugir os eleitores pelas portas, pelas janelas, que deitavam para o mar, porém foi o maior número repelido pelas baionetas. Pereceram alguns e muitos ficaram feridos.

 

Fechou-se o edifício, e adiou-se a reunião dos eleitores.

 

Conversando sobre este acontecimento político Frei Sampaio e o capitão-mor Rocha, os quais teriam de tornar-se notáveis na luta da independência do Brasil, dizia o frade franciscano.

 

— E o atentado da praça do Comércio!

 

— Veio tornar mais profundo o sulco, que separa os Brasileiros dos Portugueses, objetou o capitão-mor Rocha.

 

— Não houve nem advertência, nem intimação prévia, e a descarga de mosquetaria foi o anúncio da violência.

 

— Foi um crime cometido pelo governo do rei; se assembléia abusou, o governo foi violento e cruel.

 

— Mas dizem que o rei foi estranho ao ato.

 

— Não sei, afirmou Rocha, mas do paço partiu a ordem, e se não foi o rei, foi seu filho D. Pedro o autor da carnificina.

 

— E consta que entre as vítimas foi encontrado o cadáver de Anselmo da Costa.

 

— Quem, o denunciante do infeliz Luís Prates?

 

— Ele mesmo, morreu varado por uma bala.

 

— Talvez lá comparecesse como espião do governo!

 

— Se mais uma vez quis ser relator, uma bala tapou-lhe a boca.

 

Nessa ocasião atravessou a rua o soldado Rondon entoando o seguinte estribilho.

 

— Se isto vai como vós vedes,

Meu compadre Belchior,

Males a males sucedem, 

Tudo vai de mal a pior.

 

Riram-se os dois brasileiros amigos, e logo após separaram-se.

 

 

 

XXVII

 

 

Determinara Antônio Gonçalves que fosse sua filha recolhida ao convento da Nossa Senhora da Ajuda no dia de Santo Antônio, festejando ele na véspera, como costumava com fogueira e fogos de vistas, o santo de seu nome.

 

Eram naqueles tempos muito usados os festejos em honra de Santo Antônio, S. João, S. Pedro e Santana. Erguiam-se fogueiras em quase todas as ruas da cidade, e queimava-se muito fogo artificial. Os foguetes, rodinhas, busca-pés, bombas, pistolas e traques de fogo atropelavam os transeuntes, que se queriam fugir das fogueiras, viam-se perseguidos pelos fogos do ar. Era um brinquedo perigoso e fatal, no qual alguns indivíduos adquiriam aleijões, e outros faleciam vítimas desse divertimento em ruas estreitas de uma cidade já bastante populosa.

 

Mandara Antônio Gonçalves armar a fogueira em frente de sua casa, e despendera bastante dinheiro em fogos de vistas.

 

Entretendo-se com jogos de prendas, queimando fogos artificiais e saboreando as canas, batatas e carás assados, ao som de vivas a Santo Antônio, determinara Antônio Gonçalves, em companhia da família e de diversos amigos, passar toda a noite em claro.

 

Corria alegre o festejo quando aconteceu cair sobre o telhado da casa alguns foguetes, que penetraram no madeiramento e produziram incêndio.

 

A alegria, a distração, a que se entregavam todos, concorreu para que não fosse pressentido o fogo, que em breve invadiu todo o prédio, e era iminente o perigo, quando foi de todos conhecido.

 

Não existiam naquele tempo no Rio de Janeiro meios regulares de abafar os incêndios, que eram por isso sempre fatais. No meio de grande tumulto e desordem corriam os vizinhos com vasilhas d’água, subiam outros aos telhados por meio de escadas de mão, gritavam, lastimavam-se, espalhavam-se pelas ruas clamando pelos pretos, que vendiam barris d’água, e sem ordem, sem método dificultavam e baralhavam tudo pouco conseguindo. Todos queriam mandar, ninguém obedecia, e semelhante desordem facilitava a propagação do fogo.

 

Apresentavam-se às vezes no lugar do sinistro o intendente de polícia e outras autoridades, mas como não houvesse corpo arregimentado para semelhante serviço, tinham de obrigar os transeuntes a ofícios de bombeiros.

 

Não eram freqüentes os incêndios, mas quando se davam devoravam todo prédio.

 

Prestaram os vizinhos bons serviços à família de Antônio Gonçalves na ocasião do perigo, e entre aqueles, que mais concorreram para subjugar o fogo, notou-se um moço, que desde o princípio do festejo da noite, aproveitara-se da confusão e do entretenimentos dos outros, para trocar palavras de amor e galanteio com a sua amada.

 

Mas logo que o incêndio tomou incremento, foi ele um dos mais denodados em subjugar as chamas. Afrontou diversas vezes o perigo, percorrendo os pontos mais elevados e arriscados, trabalhou de machado, carregou baldes de água, e empregou esforços inauditos para circunscrever o fogo.

 

Só restaram do prédio as paredes, porque tudo mais as chamas devoraram, ficando os moradores só com a roupa do corpo.

 

Teve a família de Antônio Gonçalves de abrigar-se em uma das casas da vizinhança.

 

Durante a confusão de tão grande desastre encontrou-se Eduardo Maia várias vezes com Alice.

 

— Ardeu tudo, e ficaram meus pais sem coisa alguma, repetiu a moça lagrimosa.

 

— Até o hábito de noviça foi-se, acrescentou Eduardo fitando-a.

 

— É certo, o fogo devorou-o.

 

— É porque Deus não quer vê-la freira.

 

— Pensa assim?

 

— Creio. E quem sabe se este fatal acontecimento não nos será propício!

 

— Ah, e meus pais que ficaram na pobreza.

 

— Se para amá-la tenho o coração, para proteger a seus pais tenho os braços. E Eduardo Maia estreitando a moça em íntimo abraço, deu-lhe um ardente beijo, como desejando testemunhar a sua proteção com essa expansão de amor.

 

Entretanto não cessava Antônio Gonçalves de repetir.

 

— Que desgraça, que fatalidade.

 

— Quem sabe se não foi praga daquele maldito rapaz Eduardo, retorquiu a mulher.

 

— Pode ser, visto como é maçom, e irmão portanto de Satanás.

 

— Afaste-o Deus de todos nós.

 

E continuaram os velhos a lastimar-se.

 

 

 

XXVIII

 

 

Tendo abandonado a amante retirou-se Francisco da Silva para a casa de um amigo residente na real fazenda de Santa Cruz. Dali escreveu ao marquês de Vila-Nova da Rainha pedindo-lhe suplicasse ao rei a permissão de regressar para a cidade. Já vimos que atender D. João ao pedido do velho fidalgo.

 

Logo que soube que consentira o rei que voltasse para a cidade, ficou Francisco da Silva contentíssimo. Lendo o aviso régio alimentaram-no fagueiras esperanças. Veio imediatamente aboletar-se em casa de um velho criado do paço residente na rua chamada atualmente da Assembléia.

 

Pensou em pedir em casamento a linda filha de Antônio Gonçalves, que tanto desejava, que se realizasse semelhante enlace, e contraindo esse consórcio manifestar a todos que tencionava seguir conduta moralizada e séria. Mas informado que tudo perdera o ajudante do almoxarife no incêndio, que devorou-lhe a casa, considerou que nada adiantaria em recursos pecuniários com semelhante união. Refletiu que não lhe convinha tomar qualquer resolução sem consultar antes ao seu amigo e protetor o marquês de Vila-Nova da Rainha.

 

Escreveu-lhe agradecendo ter obtido a clemência do rei a seu favor, e pediu-lhe ditasse os conselhos sobre a norma de vida, que teria de trilhar.

 

Dedicava o marquês muito estima a este moço, tanto que, propalava-se no paço, que era ele seu filho.

 

Dizia-se que, quando estudante da universidade de Coimbra, apaixonara-se esse fidalgo por uma camponesa, e dela tivera um filho. Mais tarde regressando para Lisboa casara-se com uma rica herdeira da casa dos condes de Resende, esquecendo-se da camponesa e do filho. Corridos anos faleceu a pobre aldeã, e ficou o menino abandonado.

 

Despertaram-se então os sentimentos de paternidade no coração do fidalgo. Mandou procurar o menino, e sendo encontrado trouxe-o para a sua companhia, educou-o, e matriculou-o em um colégio.

 

A espada invencível de Napoleão amedrontou a família de Bragança, que veio foragida buscar asilo no Brasil. Na comitiva régia veio o marquês de Vila-Nova da Rainha, que já havia colocado o filho entre os criados da casa real. Exercendo o cargo de camarista era desvelado protetor de Francisco da Silva, porém jamais declarou-lhe, quem era seu  pai.

 

Recebendo a carta de Francisco da Silva  ordenou o marquês, que se achava na quinta de S. Cristóvão, que preparassem a sua sege, e entrando nela seguiu para a casa do seu protegido.

 

Ficou lisonjeado Francisco da Silva vendo o fidalgo, o favorito do rei,  em sua casa, e fazendo-lhe cerimoniosa cortesia agradeceu-lhe a honrosa visita.

 

— Vim aqui vê-lo, porque poderemos conversar mais livremente.

 

  E desejo muito ouvir a opinião de V. Ex. sobre a conduta, que devo seguir.

 

— Convém proceder como homem de juízo, esquecendo o seu passado, e procurar honrar o  lugar, que ainda ocupa, no paço de el-rei.

 

— Passando um destes dias em frente do paço da cidade, acrescentou Francisco da Silva, e avistando  el-rei em uma das janelas, saudei-o curvando o joelho.

 

— E ele o que fez?

 

— Retirou-se logo da janela.

 

— Soube disso, retorquiu o marquês, contou-me o guarda-roupa Lobato.

 

— Desejava casar-me para que el-rei compreendesse que tenciono mudar de vida e de procedimento.

 

— Não pense em tal por ora, seria necessário pedir a permissão de el-rei, e ele agora não a daria.

 

— Por quê?

 

— Ainda está muito recente o ato indecoroso, que o senhor praticou no paço.

 

— Mas.

 

— Espere algum tempo. Caminham rapidamente os acontecimentos políticos; D. João VI e a família real devem regressar breve para a Europa.

 

— E devo também embarcar-me na esquadra?

 

— Não. Fica no Brasil o príncipe real D. Pedro, que é moço, apaixonado do belo sexo e facilmente desculpará as travessuras, os irrefletidos de um rapaz.

 

Dele obterá a permissão de voltar ao serviço ativo da casa real, se proceder bem, como espero.

 

— E V. Ex. acompanha el-rei a Lisboa.

 

— É meu dever.

 

— Ficarei assim sem a sua valiosa proteção. E porque não pede ao rei para antes de partir incluir-me no número de criados que estão em serviço?

 

— Não julgo conveniente, pois o Sr. D. João é teimoso, e não me atenderá. Mas hei de deixar quem o proteja na minha ausência.

 

E o marquês sensibilizado, e como receoso de expandir-se mais com o seu protegido, abraçou-o, e despedindo-se dele entrou na sege,  que o levou para S. Cristóvão.

 

Ficou Francisco da Silva perplexo, irresoluto e contrariado. Via que não podia voltar à pátria em companhia da família real, não podia casar-se por talvez ser-lhe negada a competente licença, que talvez tão cedo não fosse admitido no exercício do seu cargo na residência real, e ia ausentar-se o poderoso fidalgo, que até então servia-lhe de pai, e tanto o protegera.

 

Ficava só, isolado, em posição precária, e entregue aos caprichos de um príncipe muito moço, arrebatado; extravagante e de gênio altivo e irascível.  

 

 

 

XXIX

 

 

Na manhã de 26 de abril de 1821 cortava as águas da baía do Rio de Janeiro a esquadra, em que regressavam para Portugal D. João VI  e sua família, exceto o príncipe D. Pedro, que ficava como regente do Brasil.

 

Receoso e irritado pelo ato violento da praça do Comércio, praticado pelo governo, viu o povo com indiferença, e talvez com contentamento, a partida dos navios, que afastavam-se da América o rei, sua mulher, seus filhos, e os fidalgos e numerosos criados do paço, e também muitos capitalistas e negociantes portugueses, formando todos uma comitiva de mais de três mil pessoas.

 

Três dias antes da partida da esquadra conversava na portaria do paço da cidade o marquês de Vila-Nova da Rainha com Francisco da Silva.

 

— Com bastante pesar, dizia o marquês, retiro-me para Lisboa deixando-o neste país, mas já recomendei-o ao conde dos Arcos, que fica como ministro do príncipe.

 

— E o rei parte satisfeito?

 

— Não; vai triste por deixar o Brasil, onde viveu treze anos feliz e tranqüilo, mas os negócios públicos obrigaram-no a partir.

 

— E irá mais tarde o príncipe?

 

— Creio que não. Esse é moço, ágil, ambicioso e saberá resistir à política das cortes de Lisboa, que se aterrou seu pai, não o atemorizará.

 

— E o Brasil permanecerá unido a Portugal?

 

— Não julgo também provável, pois está nublado o horizonte político, salienta-se de dia para dia a rivalidade entre os filhos daqui e os do velho Portugal, e não é possível que, este pequeno país, possa reter por muito tempo em suas mãos o grande território brasileiro.

 

E o velho marquês vendo que fora mais expansivo sobre a política, do que devera ser, como conselheiro e camarista do rei, abraçou triste e muito saudoso o seu amigo ou antes seu filho despedindo-se.

 

Na nova fase, que abria-se para o Brasil, surgiram acontecimentos , que alarmaram o espírito público.

 

Exaltou os ânimos dos Brasileiros a política do congresso português, que pensou em recolonizar o Brasil. Abriu-se no Rio de Janeiro a válvula da imprensa. Mostrou-se ameaçadora e exigente a tropa portuguesa, pretendeu apoderar-se da pessoa de D. Pedro,  o regente, e fazê-lo embarcar à força para Portugal. Tomando armas foi acampar no morro do Castelo. Para resistir-lhe reuniram-se os nacionais, armaram-se, e resolveram pelejar com muito valor e muito patriotismo. O campo de Santana, hoje praça da República, transformou-se em campo de guerra do povo e tropa do Brasil, e essa altivez, essa atitude enérgica aterrou os soldados portugueses.

 

No número dos Brasileiros alistados entre os defensores da pátria estava Eduardo Maia, tenente de milícias, que bons serviços prestou à causa nacional.

 

Conseguiu prender um indivíduo suspeito, que, envolto em capote de baeta azul e chapéu desabado, procurava perscrutar qual o número e a posição aguerrida da força brasileira.

 

Apresentado ao marechal, que comandava a divisão brasileira, foi o espião reconhecido; era João de Avilez, irmão de Jorge Avilez, general do exército português. Quis desculpar-se o criminoso declarando que tomara aquele trajo para poder penetrar em uma casa, onde entretinha amores secretos. Sentenciou-o o marechal à morte, mas intercedeu por ele o tenente Eduardo Maia, e assim teve o traidor a vida salva. (8)

 

Havendo escassez de munições e não podendo fornecê-las o arsenal de guerra, por que o respectivo inspetor o brigadeiro Raposo bandeou-se com os revoltosos, disfarçou-se Eduardo Maia em aguadeiro, e conduzindo em uma carroça uma pipa vazia, penetrou na praça de guerra, encheu a pipa de munições, e veio salvo e jubiloso entregá-las a seus camaradas, aos defensores, como ele, do pavilhão e da honra nacional. (9)

 

Coagida a deixar o ponto ameaçador, que tomara, embarcou a divisão portuguesa para Niterói.

 

Ainda aí quis cerrar fileiras, travar peleja, mas a força nacional, que, transpondo a baía, foi fazer-lhe frente, a posição estratégica dos navios, e a atitude decidida e enérgica do regente, forçaram os batalhões portugueses a recolher-se aos navios, que levaram-nos para a Europa.

 

Os feitos guerreiros, o civismo e a coragem de Eduardo Maia na luta pela pátria tinham-no tornado saliente entre os fortes, e era seu nome repetido com louvor.

 

Ouvira Antônio Gonçalves mencionar as façanhas do  moço, e convencido dos ingentes esforços e da solicitude, que empregara para abafar o incêndio, que, como vimos, consumiu todo o prédio, em que residira, começou a dedicar ao valente e denodado militar viva simpatia. 

 

Indo de passeio com a família e encontrando-o junto de um posto de guarda, disse-lhe o velho jubiloso.

 

— Sei, Sr. Eduardo Maia, que bastante tem batalhado pela causa santa da pátria.

 

— Pouco tenho feito, respondeu Eduardo.

 

— Muito, replicou Alice, lançando sobre o mancebo um olhar fixo e ardente, como desejando dizer-lhe!

 

— Amo-te.

 

          

 

XXX

 

 

Designado para ficar ao serviço do príncipe D. Pedro, na categoria de almoxarife do paço da cidade, não acompanhou Antônio Gonçalves o rei a Lisboa.

 

Empossado do novo emprego  veio residir no pavimento térreo do palácio, e mostrou-se desde então muito grato e dedicado ao regente, que dera-lhe graduação maior entre os criados de sua casa. Não perdia ocasião de elogiá-lo, e, apesar de ser português, achava bom tudo, que o príncipe resolvia em prol do Brasil.

 

Antes de partir para a Europa mandou o marquês de Vila-Nova da Rainha entregar ao seu protegido Francisco da Silva uma bolsa cheia de moedas de ouro, e também uma carta de despedida com salutares e paternais conselhos.

 

Mas apesar disso não seguiu direção inversa da que costumava seguir, persistiu em aventuras amorosas; todavia levado do desejo de voltar ao serviço ativo do paço, determinou atar ao rosto a máscara da decência e da simulação, e afetar sentimentos, idéias e conceitos de homem sisudo  e circunspecto.

 

Ponderosos motivos levaram-no a proceder assim. Sabia que seria privado da proteção do marquês se não fosse sensato e correto o seu procedimento, e era preciso passar por homem de boa organização moral, de austeridade de princípios para alcançar a proteção dos amigos, afim de regressar à vida ativa do paço.

 

Aparentando integridade, que não tinha, conseguiu o seu fim. O seu novo patrono conde dos Arcos intercedeu por ele ao príncipe regente.

 

Moço de caráter libidinoso, expansivo, alegre, inclinado a conquistas amorosas, facilmente D. Pedro esqueceu a fraqueza, a falta cometida pelo antigo criado de seu pai, e ordenou fosse ele reintegrado no exercício do cargo. Voltou Francisco da Silva  às salas, às grandezas, às festas, ao luxo do paço. Vestiu a sua farda agaloada e achou-se bonito, e o que é mais, homem de importância e valia.

 

Extravagante e dissoluto soube insinuar-se no ânimo do príncipe, angariou a sua confiança e a sua estima, tornou-se dedicado, serviçal ao extremo, e compreendendo que era sua índole semelhante à do seu senhor, acompanhou-o em todas as ações de libertinagem, e lisonjeou-o em todos os atos de devassidão.

 

D. Pedro sensualista e pródigo, entregue a seus instintos e às sua paixões, necessitava de confidentes, que desprezando os ditames da moral, o acompanhassem em suas extravagâncias e desvarios de mancebo; dispunha de favoritos, que tanto mais subiam nas honras, quanto mais bajulavam e  sujeitavam-se aos caprichos do soberano. Francisco da Silva, conhecido pela alcunha popular de Chalaça, achou-se logo à testa desses validos do monarca, e por isso, de simples criado, foi rapidamente subindo em honras e em postos; foi nomeado ajudante da guarda de honra, secretário privado, e tanta ascendência ganhou no ânimo do seu grande protetor, que decidida influência chegou a obter na política geral da nação.   

 

 

 

XXXI

 

 

Depois da partida do rei para Lisboa, do insólito ataque contra a assembléia reunida no edifício da praça do Comércio, exacerbou-se a rivalidade entre brasileiros e portugueses. Afrontosos epítetos dirigiam uns aos outros; se os portugueses chamavam os brasileiros de cabras, apelidavam-nos estes de pé de chumbo, e qualquer incidente originava uma questão, um conflito mais ou menos grave entre os dois povos.

 

Tendo desertado diversos soldados da divisão portuguesa revoltada, foram incorporados aos batalhões brasileiros.

 

Aconteceu que, atravessando alguns desses soldados portugueses a praça hoje denominada Quinze de Novembro, foram provocados por soldados brasileiros.

 

Armou-se entre os dois grupos viva contenda, que terminou em renhida luta. Tomou o fato caráter grave, e tanto que reconquistou-se força do quartel do Campo. Veio para abafar o  motim o tenente Eduardo Maia comandando uma companhia. Travou-se peleja entre os grupos das duas nacionalidades, e após forte tiroteio de fogo foram repelidos os portugueses, ficando mortos dois e feridos alguns. Da força brasileira ficaram feridos diversos, entre outros o tenente Eduardo Maia.

 

Espalhou-se pela cidade a notícia do motim, que assustou o povo, e obrigou muitos negociantes a fecharem as portas dos negócios.

 

Logo que cessaram os tiros e terminou a luta, saiu Antônio Gonçalves de casa, e foi saber o que ocorrera. Atravessava a praça, quando viu uma padiola carregada por quatro soldados. Desejou ser informado e perguntou-lhes.

 

— Camaradas quem vai aí?

 

— É o tenente Eduardo Maia, que recebeu grave ferimento, responderam as praças.

 

— Ah! o valente moço, que tão forte e corajoso se tem mostrado na defesa nacional! Infeliz.

 

E o velho afastou-se sumamente comovido. 

 

 

 

 XXXII

 

 

Chamava-se Afonso o novo amante de Eugênia. Era moço esbelto e desempenado. Filho de um fazendeiro rico de S. Paulo, dispunha de dinheiro suficiente para conquistar os amores de mulheres fáceis.

 

Afonso conduziu Eugênia para uma casa de campo na Tijuca; e aí passaram ambos uma existência de amor, ou antes de prazer e volúpia.

 

Sentados ou deitados debaixo de frondosas árvores, viam correr as horas em cenas de amor e luxúria.

 

Se ele era libidinoso, ela era ardente e fogosa. Esgotavam a existência nessa orgia sensual e cotidiana.

 

Quiseram por fim mudar de cenário, e resolveram vir para a cidade, aboletando-se em uma casa da praia de Botafogo.

 

Teatros, bailes, passeios, carros, cavalos, tudo teve a amante do mancebo rico, e alegres corriam-lhe os dias, vivendo no luxo e na lascívia.

 

Contavam os dois as horas pelos beijos, ou antes pelos prazeres, que fruíam. Viviam nas ânsias da paixão, em uma  verdadeira embriaguez de gozos e delícias.

 

Mas tudo cansa e fatiga. Como já não bastassem para passar as horas a beleza e encantos de Eugênia, procurou Afonso outra distração; entregou-se ao jogo. Se de dia vivia envolvido nos braços da sereia, ia de noite consumir no jogo o tempo e o dinheiro.

 

Começou Eugênia a estranhar a ausência do amante, a sentir-se só; e se a princípio lastimou-se e chorou, foi depois reconhecendo que Afonso já não lhe satisfazia, não sabia cumprir a sua missão de homem apaixonado, e por isso procurou descobrir outro, que melhor o substituísse.

 

Também Afonso já sentia-se fatigado, e iam-lhe rareando os recursos colhidos na casa paterna.

 

Apesar da vida extravagante, inebriante de prazer, que levava Eugênia, ostentava-se ainda esplêndida a sua beleza. Era rosa, que apesar de lhe terem experimentado muito o perfume, ainda conservava o encanto da cor e a contextura brilhante das pétalas. Era mulher sedutora e provocadora.

 

Atraiu depressa ao seu domínio um negociante rico.

 

Por sua vez notou Afonso certa frieza nessa mulher de fogo, que soubera subjugá-lo. Já não havia tantos carinhos em seu s afagos, nem tantas delícias em suas ânsias de prazer. Ele também foi pouco a pouco se retraindo. Acresce que recebera do pai uma carta, chamando-o à fazenda, pois já era avultada a soma de dinheiro, que esbanjara no Rio de Janeiro com os seus prazeres.

 

Determinou partir, mas não sabia  qual o meio de desvencilhar-se da áspide, em que se achava enroscado.

 

Correu assim algum tempo sem o moço atinar qual a melhor resolução a seguir, porém voltando uma noite, já bem tarde do jogo, ao entrar em casa, não encontrou Eugênia.

 

Procurou-a em todos os aposentos, chamou-a, mas em vão, ela havia desaparecido.

 

— Foi-se, murmurou Afonso, e foi melhor assim, livrou-me do embaraço em que vivia, desejando-lhe dizer que ia ausentar-me, ou mandá-la sair desta casa.

 

Preparou no dia seguinte as suas malas, dispôs a viagem, e daí a dois ou três dias, estava de volta à casa paterna, esperando encher de novo a carteira para conquistar outra amante, que viesse ocupar o  lugar da que tinha fugido.

 

 

 

XXXIII

 

 

Ficara penalizado Antônio Gonçalves sabendo do grave ferimento de Eduardo Maia, e para não causar profunda mágoa à sua filha, que vivia triste e abatida, nada referiu-lhe sobre semelhante acidente.

 

Os feitos do distinto moço em defesa da pátria, que erguia-se livre e independente, que surgia como nação entre outras nações, haviam-no tornado benquisto e elogiado por todos, e era Antônio Gonçalves um dos entusiastas do destemido mancebo.

 

Além disso estavam extintas as aspirações, que acalentara de ter como genro Francisco da Silva. Subira este na escala social, era vulto proeminente no paço imperial, e certamente se pensasse em casar-se, iria buscar alguma dama das mais distintas da sociedade fluminense.

 

Quanto ao fazer da filha uma freira, era idéia, que já desprezara, não só porque considerara, como aviso do céu ou antes castigo, o incêndio de sua casa na véspera de Alice receber o hábito monacal, como também porque informado o padre Miguel Afonso da violência, que ia-se praticar contra aquela moça, retirara a sua proteção, e ameaçara revelar ao bispo a crueldade, que se tencionava fazer, clausurando uma donzela, para não deixá-la casar com quem pedia-lhe o coração.

 

Entretanto fiel e dedicado conservava-se Eduardo Maia ao seu amor, e nos dias de luta da nação, procedera como um forte, como homem dotado de todas as energias.

 

Era assim esse moço, quem  convinha para noivo de sua filha, cogitava consigo Antônio Gonçalves.

 

Recolhido ao hospital militar foi considerado grave o ferimento de Eduardo, e por muitos dias guardou o leito, sobrevindo-lhe hemorragias, febre e dores cruciantes. Mas depois de longo tratamento foi debelado o mal, e o doente restabeleceu-se.

 

Mais de uma vez fora visitá-lo Antônio Gonçalves, e tendo o moço alta do hospital por estar inteiramente são, foi Antônio Gonçalves ter com ele, e falou-lhe no casamento com a sua filha.

 

Aceitou Eduardo Maia com grande efusão de contentamento.

 

Encheu-se também de alegria o coração de Alice, quando soube da permissão de seu pai; abraçou-o, e lançou-lhe um olhar de tanta gratidão e contentamento, que ele leu em seus olhos a felicidade, que lhe inundava a alma.

 

Decorrido pouco mais de um mês, celebrou-se na igreja de S. José, o ato religioso unindo os noivos Eduardo Maia e Alice.

 

Ao sair do templo avistou a moça a velha Quitéria, que disse-lhe  baixinho.

 

— Foi milagrosa a oração a Santo Antônio.

 

Alice sorriu-se, e Eduardo, tirando do bolso uma moeda, deixou cair entre as mãos mirradas da velha.

 

Ao entrar em casa disse Eduardo Maia abraçando a sogra.

 

— Ainda tem medo dos mações?

 

— Já não tenho tanto, respondeu a velha, e batendo-lhe no ombro, acrescentou, especialmente deste, por que terá sempre junto de si um anjo.

 

 

 

XXXIV

 

 

E Eugênia!

 

Viveu algum tempo com o terceiro amante, mas no fim de alguns meses deixou-o para receber outro. Desprezada por este, aceitou mais um, mais dois, mais três, nem sei quantos, por que o último era o número das notas da carteira dos visitantes, que fazia-lhe abrir a porta da casa.

 

Quando saía à rua usava de luxo excessivo; trajava vestido de sede ou de veludo, ornavam-lhe o pescoço grossos cordões de ouro, como então se  usava, e os braços ricos braceletes de brilhantes.

 

Dirigindo-se um dia o distinto franciscano Monte Alverne para os seu convento em companhia do negociante Insua, sínodo do Seminário de São Joaquim, que havia sido restabelecido por ordem de D. Pedro, viu passar uma mulher ricamente vestida.

 

Ainda nesse tempo conservava o notável orador sagrado Monte Alverne a luz dos olhos, que trinta anos depois perdeu, ficando porém intacta a grande luz, que iluminava-lhe o cérebro.

 

— Conhece aquela mulher, perguntou Insua ao ilustre franciscano.

 

— Não, respondeu este.

 

— É a dama, que no tempo do rei D. João  VI, fugia do paço em companhia de um reposteiro.

 

— Ah, recordo-me pelo aviso então estampado na Gazeta do Rio. E agora é talvez uma mulher mundana.

 

— Presumo que sim, e por isso procura atrair a atenção pública com o brilho de suas jóias e o farfalhar da seda do seu vestido.

 

— É a devassidão ostentando a sua grandeza.

 

— É certo, o vício excitando os vícios.

 

— Infeliz, caminhará vestindo galas até cair  coberta de lepra no leito de um hospital, ponderou Monte Alverne.

 

E o eminente franciscano despediu-se do amigo.

 

Nessa ocasião lançando Eugênia um olhar malicioso sobre o negociante e sobre o frade sorriu-se, e continuou no seu passeio, exibindo a sua beleza, que ainda não era pouca, e o seu luxo, que então era muito.

 

 

FIM

 

 

 

NOTAS

 

 

(1) É fato nacional.

 

(2) Palavras textuais proferidas pelo rei.

 

(3) É fato tradicional.

 

(4) Autêntico.

 

(5) Autêntico. Veja a Gazeta do Rio de Janeiro.

 

(6) Fato verdadeiro ocorrido nessa época.

 

(7) Veja a Gazeta do Rio desta época.

 

(8) É fato referido por pessoas do tempo.

 

(9) Também é fato tradicional referido em algumas crônicas da época.