LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
Encarnação, de José de Alencar
Edição de Referência:
A Biblioteca Virtual do Estudante
Brasileiro
CAPÍTULO I
Conheci outrora uma família que morava em São
Clemente.
Havia em sua casa agradáveis reuniões de que fazia
os encantos uma filha, bonita moça de dezoito anos, corada como a aurora e
loura como o sol.
Amália seduzia especialmente pela graça radiante e
pela viçosa e ingênua alegria que manava nos lábios vermelhos como dos olhos de
topázio, e lhe rorejava a lúcida beleza.
Sua risada argentina era a mais cintilante das
volatas que ressoavam entre os rumores festivos da casa, onde à noite o piano
trinava sob os dedos ágeis da melhor discípula do Amaud.
Acontecia-lhe chorar algumas vezes por causa de um
vestido que a modista não lhe fizera a gosto, ou de um baile muito desejado que
se transferia; mas essas lágrimas efêmeras que saltavam em bagas dos grandes
olhos luminosos, iam nas covinhas da boca transformar-se em cascatas de risos
frescos e melodiosos.
Tinha razão de folgar.
Era o carinho dos pais e a predileta de quantos a
conheciam. Muitos dos mais distintos moços da corte a adoravam.
Ela, porém, preferia a isenção de menina, e não
pensava em escolher um dentre tantos apaixonados que a cercavam.
Os pais, que desejavam muito vê-la casada e feliz,
sentiam quando ela recusava algum partido vantajoso.
Mas reconheciam ao mesmo tempo que formosa, rica e
prendada como era, a filha tinha o direito de ser exigente; e confiavam no
futuro.
Outra e bem diversa era a causa da indiferença da
moça.
Amália não acreditava no amor. A paixão para ela só
existia no romance.
Os enlevos de duas almas a viverem uma da outra não
passavam de arroubos de poesia, que davam em comédia quando os queriam
transportar para o mundo real.
Tinha sobre o casamento idéias mui positivas.
Considerava o estado conjugal uma simples partilha
de vida, de bens, de prazeres e trabalhos.
Estes, não os queria; os mais, ela os possuia e
gozava, mesmo solteira, no seio de sua família.
Era feliz; não compreendia, portanto, a vantagem de
ligar-se para sempre a um estranho, no qual podia encontrar um insípido
companheiro, se não fosse um tirano doméstico.
Estes pensamentos, Amália não os enunciava, nem os
erigia em opiniões. Eram apenas os impulsos íntimos de sua vontade; obedecendo
a eles, não tinha a menor pretensão à excentricidade.
Ao contrário, como sabia do desejo dos pais,
aceitava de boa mente a corte de seus admiradores. Mas estes bem percebiam que
para a travessa e risonha vestal dos salões, o amor não era mais do que um
divertimento de sociedade semelhante à dança ou à música.
Conservando a sua independência de filha querida e
moça da moda, Amália não nutria prejuízos contra o casamento, que aliás
aceitava como uma solução natural para o outono da mulher.
Ela bem sabia, que depois de haver gozado da
mocidade, no fim de sua esplêndida primavera, teria de pagar o tributo à
sociedade, e como as outras escolher um marido, fazer-se dona de casa, e rever
nos filhos a sua beleza desvanecida.
Até lá, porém, era e queria ser flor. Das suas
lições de botânica lhe ficara bem viva esta recordação, que o fruto só desponta
quando as pétalas começam a fanar-se; se vem antes disso eiva.
Esta moça pertencia a uma variedade de mulher, que
se pode bem classificar como o gênero rosa. São elegâncias que só florescem bem
no clima ardente do baile, ao sol do gás. A luz é a alma de sua formosura. Na
sombra desfalecem e murcham.
Amália vivia no salão; só o deixava para repousar.
Seu dia era a noite com os lustres por astros. Quando em toda a cidade não
havia divertimento algum que a atraísse, ela passava a noite em casa; mas com o
seu piano, o seu contentamento e a sua graça improvisava uma festa.
A volubilidade desse gênio não era, como alguns
supunha, efeito de uma alma fria, indiferente e egoísta. Enganavam-se aqueles
que viam na filha do Sr.Veiga uma dessas moças embotadas pela vida precoce da
sala.
Ao contrário, ou pela severa educação que recebera,
ou por tardio desenvolvimento, Amália conservara-se criança além do período
natural da infância. Aos dezessete anos ainda se lembrava de suas lindas
bonecas, bem guardadas em uma cômoda, onde as conservava como recordação da meninice;
e mais de uma vez aconteceu-lhe no dia seguinte a um baile representar ao vivo
com essas figuras de cera e cetim as quadrilhas que dançara.
Quando o coração menino dessa moça elegante e
espirituosa pulsou pela primeira vez, já tinha ouvido tantas vezes declarações
e protestos ardentes, que não passavam para ela de uma linguagem polida e
lisonjeira, adotada na sociedade.
Gabar-lhe a beleza, ou elogiar-lhe o vestido, era a
mesma fineza. Quando um dos seus apaixonados animou-se o primeiro a dizer-lhe
com a voz trêmula que a amava, ela o ouviu calma, sem a menor emoção, como se
lhe falassem de música ou de pintura. O que lhe causou alguma surpresa foi o
esforço e turbação do cavalheiro ao proferir aquelas palavras.
Entretanto, quem observasse a vida íntima dessa
moca conheceria o fundo de sensibilidade e temera que havia sob aquela
aparência frívola e risonha. Não só tinha amor extremoso à família e dedicação
pelos amigos, mas em certos momentos, como se a afogasse uma exuberância do
coração, cobria a mãe de carinhos.
Alguma vez, nas horas de repouso, quando a
imaginação vagueia pelo azul, ela fazia também como todas as moças o seu
romance; com a diferença, porém, que o das outras era esperança de futuro
ardente aspiração d'alma; enquanto o seu não passava de sonho fugace, ou
simples devaneio do espírito.
Um traço singular destas cismas é que elas faziam
contraste ao modo habitual da moca, ao seu gênio. Essa natureza alegre e
expansiva, esse coração incrédulo e desdenhoso, quando fantasiava os seus idílios,
reservava sempre para si a melancolia, a abnegação e o obscuro martírio de uma
paixão infeliz.
Seria um pressentimento? Creio eu que não era senão
uma antítese natural da imaginação com o espírito. E muito freqüente
encontrarem-se caracteres joviais que têm o sentimento elegíaco, e, ao
contrário, misantropos com uma veia cômica inexaurível.
CAPÍTULO 2
Na chácara contígua à do Sr. Veiga, pelo lado
esquerdo, morava um desses homens que o povo designa com o nome de esquisitos.
Os amigos o chamavam Carlos; os estranhos
tratavam-no por Sr. Hermano; ele, porém, costumava assinar-se H. de Aguiar.
Para merecer do vulgo a qualificação de esquisito,
basta às vezes sair da trilha batida; mas o Sr. Hermano tinha com efeito
hábitos e ações que excitavam o reparo e lhe davam certo cunho de
originalidade.
Não se lhe conhecia profissão; sabia-se entretanto
que era abastado, pois além da chácara de sua residência, possuía apólices e
prédios na cidade.
Sua casa vivia constantemente fechada na frente, e
tinha o aspecto de uma morada em vacância pela ausência do dono. Quem olhava
pela grade do portão, sempre trancado, não descobria outro indicio de habitação
a não ser o fumo da chaminé.
Todavia nas raras vezes em que soava a grossa campa
da entrada, aparecia logo um velho criado, todo vestido de preto, que
introduzia a visita com uma cortesia respeitosa mas fria e taciturna.
O dono da casa costumava ir à cidade três vezes na
semana, para tratar de seus negócios, ou talvez para não se isolar totalmente
do mundo de que já vivia tão apartado. Também saia de passeio, a pé ou a cavalo
pelos arrabaldes.
Certas ocasiões mostrava-se afável, polido,
atencioso e expansivo, retribuindo os cumprimentos que recebia, e dirigindo-os
as pessoas de seu conhecimento. Era então um modelo do homem de boa sociedade e
fina educação.
Outros dias estava de tal modo concentrado que
passava pelas ruas como um incógnito; não falava a ninguém; não fazia caso das
pessoas de maior consideração e a quem acatava. Se algum amigo vinha-lhe ao encontro,
recebia-o sem parar com a mascara muda e impassível da abstração, e logo o
despachava com um aperto de mão automático.
Estas alternativas sucediam-se por fases; duravam
semanas e meses. A fisionomia denunciava logo a conjunção desse espírito com o
mundo. Havia nele, como em todos nós, dois homens, o íntimo e o social; a
diferença é que nele as duas faces revezavam-se, enquanto que nos outros elas
de ordinário são fixas e formam o direito e o avesso do indivíduo.
Ainda mesmo nos seus dias de misantropia o
semblante do Sr. Hermano era tão modesto e sereno que ninguém via na sua
desatenção orgulho ou falta de civilidade.
Atribuíam estas desigualdades de caráter ao gênio e
não se ofendiam com elas. Em geral os vizinhos e conhecidos o saudavam sempre cordialmente,
embora ele passasse sem olhá-los.
Do que poucos sabiam, e só alguns amigos se
lembravam, era da primeira mocidade de Hermano, quando ele passava por um dos
mais brilhantes cavalheiros dos salões fluminenses. Sua graça natural, o primor
de suas maneiras, e as seduções do seu espírito, o distinguiam entre todos como
um tipo de elegância.
Eram os arrebóis dessa esplêndida mocidade que ele
ainda mostrava nos seus momentos de expansão, quando desprendia-se da constante
preocupação.
Um dia, no meio de seus triunfos, quando a sua
estrela mais brilhava, correu a noticia de que Hermano estava para casar-se, o
que não devia surpreender em sua idade. Foi, porém, geral a admiração quando se
soube que D. Julieta, a moça por quem se apaixonara a ponto de sacrificar-lhe a
liberdade, não era rica nem bonita.
Ninguém esperava que ele, nas condições de
pretender as filhas dos primeiros capitalistas e de escolher entre as mais
aristocráticas belezas da corte, fizesse um casamento tão desvantajoso.
D. Julieta não freqüentava a alta sociedade; mas
algumas pessoas da creme' a tinham encontrado por vezes em partidas familiares;
e essas compreenderam a repentina que ela tinha inspirado ao noivo.
Como estátua a moça era um esboço imperfeito, ainda
mesmo com as correções que aplica o molde de um traje elegante, ou a feliz
disposição dos enfeites.
Imagine-se que um cinzel inspirado idealizava esse
esboço e dava às linhas do perfil a harmonia que lhes negara a natureza. Tal
seria, não o retrato de Julieta, mas o tipo que sua pessoa refletia na
imaginação do artista a quem servisse de modelo.
Havia em seu olhar, em sua voz, em seus movimentos,
inflexões maviosas, mas de tão vivo relevo que se esculpiam como se tomassem
corpo. Depois de apagar-se o gesto, sentia-se ainda a sua doce impressão no
vulto a que animara.
O espírito fino, meigo e gentil de Julieta não
tinha expansões brilhantes. Era modesto, e às vezes tímido. Entretanto o que
ela dela por mais simples que fosse, trazia o calor de uma emoção intima. Sua
palavra exalava os perfumes de uma alma em flor.
Ao seu lado e conversando com ela, um homem de
rigor estético poderia esquivar-se ao enlevo que infundia a suprema distinção
dessa moça, e notar em suas feições e em seu talhe a ausência da beleza
plástica.
Mas apartando-se dela e perdendo-a de vista, raro
era o que não levava na fantasia um ideal suave e gracioso, que ofuscava a
imagem das mais radiantes formosuras de salão.
O primeiro encontro de Hermano com a noiva explica
bem a influência que ela devia exercer em sua vida.
Ao sair do teatro lembrou-se do convite que
recebera para uma partida em casa de pessoa de sua amizade, a quem devia
atenções. Dirigiu-se para lá, com a intenção apenas de fazer ato de presença.
Quando entrou no saguão, cantava uma senhora a ária
da Lúcia de Lammemor. A voz, que não era extensa, comoveu-o. Parou para
escutar; e viu desenhar-se em seu espírito a imagem esbelta e vaporosa da
virgem que o amor enlouquecera.
Terminado o canto, subiu. Havia na sala muitas
senhoras algumas de seu conhecimento, outras que via pela primeira vez. Notou
entre estas uma moça alva, de cabelos negros; era Julieta. Sem que lho
dissessem, por uma rápida intuição adivinhou que fora ela a intérprete
inspirada da música de Donizetti.
Teve pois uma decepção. Ele imaginara sempre uma
Lúcia loura como a filha das nevoentas montanhas da Escócia; e vinha achar a
sua cópia em um tipo tão oposto.
Hermano demorou-se mais do que tencionara; ficou
até o fim da partida. Por mais de uma vez aproximou-se de Julieta e conversou
com ela. Quando se recolheu, cantava mentalmente o Bell'anima, que ouvira
executado por Mirati; e pensava que talvez Lúcia apesar de escocesa, tivesse
cabelos pretos como a Maria Stuart de Walter Scott .
Julieta era filha de um coronel reformado de nosso
exercito, que servira por algum tempo em Goiás. Na sua primeira expedição para
aquela província acompanhou-o a mulher apesar de estar mui próxima a dar à luz.
A menina nascera em viagem.
Uma escrava que o oficial trazia, fatigada das
jornadas, mal podia acudir à senhora.
Foi pois o furriel Abreu que serviu de ama-seca a
menina, e tal amizade tomou-lhe que não quis mais separar-se dela. Completando
o tempo de serviço obteve baixa e ficou em companhia do oficial agregado
Hermano freqüentou a casa do coronel Soares. Pouco
mais de mês depois do seu primeiro encontro com Julieta manifestou-lhe os seus
sentimentos, que aliás já eram conhecidos da moça, e pediu-lhe um
consentimento, que tinha razão de esperar.
Ela ficou um momento pensativa; depois disse com o
tom grave de uma convicção profunda:
- O casamento é uma fatalidade.
Como Hermano interrogava-lhe o semblante para
conhecer o sentido de suas palavras, ela acrescentou:
- Meu marido há de pertencer-me de corpo e alma,
como eu a ele, e para sempre. É assim que entendo o casamento.
- Penso da mesma maneira.
- Para sempre é eternamente.
- Compreendi todo o seu pensamento, Julieta. e não
imagina o meu júbilo por encontrar tão perfeita identidade de sentimentos na
mulher a quem amo. Sempre acreditei que o casamento não deve ser uma simples
união social, mas a formação da alma criadora e mãe, da alma perfeita, de que
nós não somos senão as parcelas esparsas. Essa alma uma vez formada, só Deus a
pode dividir e mutilar.
O casamento realizou-se pouco tempo depois; e os
noivos foram morar na casa de São Clemente, a qual tinha sido preparada com
esmero para recebê-los.
Abreu acompanhou sua filha de criação. Ele a tinha
recebido em seus braços ao nascer, e contava não deixá-la senão quando Deus o
chamasse.
CAPÍTULO 3
Aquela casa de São Clemente foi para os noivos o
ninho do amor e da felicidade; mas o ninho perene, sem estações, sem primavera,
sem lua-de-mel.
Essa ardente efusão de duas existências durava
desde o primeiro instante, não tinha lapsos nem desmaios.
Hermano aproximava-se dos trinta anos, e vivera
muito nesse tempo. Julieta aos vinte anos não conhecia o mundo; e seu coração
virgem era um manancial de ternura.
Que diálogo inefável entre aquela inteligência
pródiga e essa inocência ávida de saber, rica de afeto?
O passado de Hermano, desde a primeira infância até
o casamento, Julieta queria vivê-lo, dia por dia, hora por hora, se fosse
possível, para amar seu mando em cada um desses momentos anteriores a ela.
O presente não lhe bastava. nem o futuro. Carecia
de remontar-se à origem dessa existência que lhe pertencia, para soldá-la ainda
mais intimamente a si, de modo que não lhe fosse possível marcar a época de sua
união. Então o casamento teria sido apenas a consagração social do vínculo de
duas almas gêmeas.
Por seu lado Hermano sentia também a necessidade de
vazar no coração ingênuo e casto da esposa, como em um crisol, os seus
pensamentos, as idéias de que a sociedade o imbuíra, e assim apurar sua
consciência naquela chama celeste.
Sua individualidade, escoriando-se da liga mundana,
apagando os traços de uma mocidade fácil, identificava-se de mais em mais com o
espírito puro e imaculado da moça e embebia-se nele como o raio do sol que se
infunde na seiva da árvore e gera a flor.
Hermano e sua mulher freqüentavam a sociedade onde
os chamavam. Iam, porém, aos divertimentos unicamente para se desobrigarem de
um dever de cortesia e posição; ou talvez para certificarem-se de que nada
faltava à sua felicidade.
Depois de uma ou duas horas passadas no teatro ou
nos salões, recolhiam-se pressurosos à sua casa e ao seu amor.
Duas vezes por mês reuniam as famílias de sua
amizade. Essas longas noites, em que se deviam a seus convidados, eram uma
ausência, uma separação para eles. Tinham o mundo entre si.
Que saudades não sentiam um do outro nesses
momentos; e com que anelos encontravam-se de novo na sua querida solidão?
Amália era então uma criança de nove anos. No dia
do casamento tinha vindo do colégio passar o domingo com a família. À noite
vira a chácara vizinha iluminada e os noivos que chegavam com grande
acompanhamento de carros.
Reparando na elegância e garbo do par que subia as
escadas de pedra alcatifadas de fino tapete, a menina pensou no dia de seu
casamento; e desejou que seu noivo fosse tão lindo como aquele.
Nos outros domingos que passava em casa, quando
chegava à janela, via os noivos sempre juntos passeando no jardim, ou sentados
em um banco à sombra dos bambus.
Um dia ardeu-lhe a curiosidade de espiar os
aposentos da noiva. O fundo da chácara dava para a montanha; e o declive fora
cortado em socalco com terraços que se sucediam em degraus.
De uma dessas elevações dominava-se a casa vizinha
especialmente a asa do edifício, que ficava fronteira, a duas braças apenas de
distância.
Foi daí que Amália, aproveitando uma ocasião em que
as janelas estavam abertas, viu o quarto de dormir e o toucador da noiva, ambos
preparados com luxo e primor.
No toucador, sentada junto a uma mesa de charão
Julieta procurava numa caixinha de jóias uns botões para os seus punhos de
cambraia. O mando entrou. Em pé, por detrás da cadeira, colheu nas mãos o rosto
da moça e cobriu-o de beijos.
A travessa que os espiava, disparou a rir, Julieta
corou e quis afastar-se; porém Hermano a reteve e beijou-a de novo
tranqüilamente, como para afrontar a malícia da menina com a castidade de sua
carícia.
Pouco tempo depois desta cena, o Sr. Veiga mudou-se
para o Andaraí, por causa da perda de sua sogra, e alugou a casa de São
Clemente, para onde D. Felícia não quis voltar depois do golpe que ali sofrera.
A existência dos dois noivos continuou sem
alteração; sua felicidade tornou-se com o tempo mais serena e por isso mesmo
mais intensa.
Afinal apareceu uma ligeira nuvem naquele céu
aberto. Estavam casados havia mais de três anos, e não tinham filho. Começavam
a sentir essa falta; era o primeiro desejo não satisfeito.
Engolfados no misticismo do amor, tão grato às
imaginações vivas, eles consolavam-se com uma teoria psicológica um tanto
abstrata, mas original e encantadora.
Hermano dissera uma vez à mulher:
- Um filho é uma porção de nós que se destaca para
formar outro eu. Nós, Julieta, nos queremos exclusivamente, e nos possuímos com
tanta ânsia, que nenhum quer perder do outro a menor parcela, ainda mesmo reproduzir
o nosso ser.
A mulher aplaudia esta explicação que ela primeiro
balbuciara sem poder exprimi-la; e o egoísmo cheio de enlevos desse amor
inexaurível substituía para o feliz casal o outro penhor que a sorte lhes
negara.
Todo esse encanto, a asa negra do infortúnio o
apagou em um momento. Hermano perdeu a mulher; e a perdeu justamente quando sua
união ia ser abençoada com um filho.
Um aborto levou Julieta. Suas últimas ao foram
estas que ela proferiu antes de perder o conhecimento:
- Minha alma não podia separar-se da tua Hermano.
Desde esse momento o marido caiu em um letargo
profundo que o conservou alheio ao que se passava. Esse estado que se
assemelhava à idiotia, durou por muito tempo.
O Dr. Teixeira, amigo de infância de Hermano,
partindo para a Europa a fim de praticar nos hospitais de Paris levou consigo o
infeliz viúvo, na esperança de que a viagem o arrancasse àquela estupefação em
que o deixara a perda da mulher.
Antes de seis meses Hermano voltou da Europa com
Abreu que o acompanhara; foi morar na casa de São Clemente, onde tomou-se o
homem que era, quando o encontramos cinco anos mais tarde.
Dias depois de sua chegada deu-se um incidente que
não escapou à curiosidade dos ociosos da vizinhança. Pararam no portão duas
carroças conduzindo caixotes de tamanho descomunal . O que, porém mais intrigou
os espíritos foi a circunstância de arrombar-se uma parede para introduzir os
volumes no interior da casa.
Em cada bairro há um ou mais parlatórios, que são
uns moinhos onde se tritura a matéria-prima para o fabrico da opinião pública.
Outrora era especialidade das boticas; hoje serve uma loja qualquer. Para ai,
para esses pontos, afluem todos os mexericos que os escravos levam às tabernas,
e todos os boatos e murmurações que os noveleiros se incumbem de propagar.
Muito se falou dos tais enormes caixões. Na opinião
de alguns tinham eles desembarcado na Copacabana e entrado por contrabando na
cidade. Outros, admitindo o contrabando, afirmavam que passara pela própria
Alfândega. Finalmente, choviam as suposições acerca do arrombamento da parede e
da carga misteriosa que se ocultara até dos criados da casa, com exceção do
velho Abreu.
O Sr. Veiga voltou a ocupar sua antiga casa. Amália
teve muitas ocasiões de ver na alameda da chácara contígua passar o vulto,
ainda elegante, mas grave de Hermano.
Não lhe causava, porém, o aspecto daquele homem a
menor impressão. A moça, se guardara as recordações da menina não as tinha
presentes ao espírito. Olhando a casa outrora tão brilhante e admirada por ela,
revendo o feliz noivo agora solitário e abatido, nem sequer notava a diferença
dos primeiros tempos.
Sua alegria ainda era um esplendor sem crepúsculos.
CAPÍTULO 4
Era noite de partida em casa do Sr. Veiga.
Amália ainda não tinha perdido a sua jovialidade, e
continuava a ser uma das mais gentis princesas da moda.
Nesse dia vestira-se mais cedo para ensaiar com uma
amiga o dueto que tinham de cantar logo mais. Deixava ela o piano, quando
entraram na safa ainda erma duas pessoas.
Uma, o Sr. Borges, era íntimo da casa e aparentado
com a família. A outra, que Amália não conhecia, foi lhe apresentada em termos
de anúncio:
- O Dr. Henrique Teixeira. médico muito distinto.
ultimamente chegado da Europa; urna notabilidade oftalmológica.
Borges encontrara o companheiro no portão de
Hermano:
- Por aqui doutor?
- Vim jantar com um amigo, e estou à espera de meu
tílburi, que mandei voltar às sete horas. Receio que o cocheiro me logre.
- Ah! é amigo do Sr. Hermano?
- Amigo de infância.
Borges convidou o doutor para a partida do parente;
e tais e tão repetidas foram as instâncias, que o outro acedeu por fim.
Diversos motivos influíram para aquele convite
reiterado. Além do desejo de obsequiar o médico e de arranjar mais um
cavalheiro para a dança, Borges fora movido sobretudo pela curiosidade de saber
particularidades acerca do excêntrico viúvo.
Depois dos cumprimentos e de algumas ligeiras
observações relativas à Europa, Borges dirigiu a conversa para o assunto que
mais lhe interessava.
- É verdade que o Hermano está sofrendo da cabeça,
doutor?
- Não é exato! acudiu Henrique Teixeira com
vivacidade. Tem a razão tão firme e tão lúcida como nunca; e o senhor deve
saber que ele mostrou sempre muito tino e bom senso. A prova é que deixando-lhe
o pai a livre disposição de sua fortuna, quando não tinha mais de dezessete
anos, não só a conservou, como soube aumentá-la, apesar de sua vida elegante.
- Sei perfeitamente; mas tinham-me dito que ele não
regula desde que ficou viúvo.
- Com efeito, Carlos sofreu um abalo terrível com
esse golpe. A morte de D. Julieta, que ele ainda não esqueceu, nem esquecera,
causou-!he uma espécie de paralisia moral. Durante dois meses não pronunciou
uma palavra; vivia mecanicamente; era um autômato movido por um velho criado, o
Abreu, cuja dedicação por ele é a de um pau extremoso.
- Tenho visto este criado; se não me engano é quem
governa a casa.
- Estava eu resolvido a passar algum tempo em Paris
para dedicar-me aos estudos de minha profissão. Apressei a partida para levar
Carlos comigo e distraí-lo . Nem a viagem , nem o turbilhão da vida parisiense
produziram o resultado que eu esperei Continuava indiferente a tudo: nada o
interessava; nada prendia-lhe a atenção.
- Então, doutor, sempre houve alguma coisa?
- Sem dúvida, mas não demência. O estado de Carlos
era simplesmente uma insensível causa, doutor, disse Amália a sorrir.
- A crítica é espirituosa, minha senhora, e eu já a
tinha lido em seus lábios antes que eles a preferissem. Mas eu quero a este
amigo, como a um irmão; e dói-me profundamente essa suspeita de loucura, que
alguns malévolos se incumbiram de espalhar. Felizmente Carlos restabeleceu-se;
aquela impassibilidade que me assustava dissipou-se como por encanto.
- Em Paris? perguntou Borges com ar de dúvida,
apenas de leve dissimulado pela cortesia
- Em Paris, numa visita que fizemos ao Louvre
Carlos sempre teve gosto e inclinação para as artes; lembrei-me um dia de
mostrar-lhe o museu de pintura e escultura. Deixei-o um instante para falar a
alguém que encontrara na sala; quando o procurei fui achá-lo diante de um
quadro, creio que a Ester ou a Suzana do Veroneso. Voltou-se; já não era o
homem absorto e sombrio que ali entrara: tinha no semblante e em toda a sua
pessoa, a expressão afável dos mais belos dias de sua vida. Vi em seu olhar uma
interrogação e pensando que ela se referia à tela, improvisei admiração, que
não sentia, pois, surpreso e contente daquela transfiguração, eu nenhuma
atenção prestava ao quadro. Não obstante prodigalizei elogios ao desenho, ao
colorido, à criação do grande pintor. "Não; não é isto! disse-me ele. Mas
tu não podes compreender a beleza que este quadro tem para mim". Eu
percebi que ele achara nessa imagem uma reminiscência de sua Julieta.
- Ora, descobriu-se afinal a Fênix dos maridos!
exclamou Amália com uma risada expansiva dirigindo-se à amiga. Nenhum poeta até
hoje, que eu saída, animou-se a inventar um Penélope masculino. Estava
reservada esta glória ao Dr. Teixeira.
- Antes de mim um poeta, e dos mais ilustres, criou
esse no Frei Luís de Sousa, que a senhora talvez não conheça, porque é escrito
em nossa língua.
- Até o vi representar, o que deve parecer-lhe
ainda mais admirável, depois que os senhores fizeram do Rio de Janeiro um pequeno
Paris de bulevar. Mas esse marido que voltou ao cabo de vinte anos de exílio,
foi o amor da mulher que o trouxe, ou a lembrança da pátria, a saudade de seu
velho Portugal?
- Não se lembra de seu desespero por encontrar a
mulher unida a outro? É uma das cenas mais tocantes.
- Esse amor caduco e de cabelos brancos, pois tinha
mais de vinte anos...
- Como o de Penélope, acrescentou Teixeira em nota.
- Esse fóssil conjugal é um monstro ideado por
Garrett para complicar a situação das duas metades, que o aparecimento do
primeiro marido veio separar. O drama está nessa separação realmente incômoda,
para quem não gosta de sair de seus hábitos. Assim o romeiro bem longe de ser o
herói, não passa de um pretexto, de um incidente de um motivo. Faz aí o mesmo oficio
de pai cruel que não deixa a filha casar-se democraticamente com qualquer
cidadão da rua.
A chegada de uma senhora a quem Amália foi receber,
cortou a réplica do doutor, que ria da malícia da moça.
- Mas então o Hermano desde aquela visita do Louvre
restabeleceu-se? perguntou o Borges, que via a conversa apartar-se do tema.
- Completamente. Daí em diante foi outro, ou antes,
foi o mesmo homem que todos conheceram na época de seu casamento. Aquele painel
tinha operado nele uma verdadeira ressurreição.
Amália que tomara o seu lugar, interrompeu de novo
o médico para insinuar uma observação maliciosa.
- Foi o painel, ou alguma estátua?
- Nós estávamos na sala de pinturas, minha senhora.
- Pergunto se não seria alguma estátua viva que
operou o milagre da ressurreição. Alguma Madalena que passava?
- Não o conhece!
- Ou talvez o seu amigo seja como certos escultores
que compõem a sua estátua, tirando de cada modelo as belezas que ele possui e
combinando-as entre si.
O doutor Henrique Teixeira fitou a moça com alguma
surpresa. A candura do sorriso que brincava nos lábios faceiros convenceu-o de
que Amália não compreendia o alcance das palavras que preferia.
O médico chegava da Europa onde se tinha demorado
quatro anos; e não sabia que a invasão do romance realista que nos vem de Paris
tem posto em moda certa gíria de cafés e bastidores que algumas senhoras vão
repetindo como linguagem de bom-tom sem consciência das enormidades que às
vezes escondem tais ditos espirituosos.
O Dr. Teixeira deixou passar a observação da
Amália; e, para não acentuá-la com uma pausa, continuou a referir a Borges o
episódio da viagem de Hermano:
- Pode acreditar no que lhe digo. Carlos não tem o
menor sintoma de perturbação mental. Nesse mesmo dia da nossa visita ao Louvre
emancipou-se da minha solicitude e viveu sobre si. Depois que voltou ao Rio de
Janeiro entretivemos uma correspondência seguida; e nas suas cartas respirava
certo contentamento intimo e sereno, que eu vim encontrar na sua vida habitual.
- Então é feliz o seu amigo? perguntou Amália
- Acredito que sim.
- E o senhor afirmou que ele não tinha esquecido a
mulher e nem a esqueceria nunca?
- Afirmei, e posso prová-lo, acudiu Henrique
Teixeira picado pelo remoque da moça.
- Há de ser difícil.
- Promete-me guardar reserva sobre o que lhe
contar?
- Mais do que reserva. Prometo-lhe não acreditar
nem uma palavra do seu romance, o que não me impedirá de aplaudi-lo, se for
interessante como espero.
Nesse momento a sala enchia-se de convidados; e o
piano dava o aviso da primeira quadrilha.
Amália tomando o braço de seu par, separou-se do
doutor com esta palavra, confeita em um sorriso:
- Depois.
CAPÍTULO 5
Em meio da partida, quando servia-se o chá, Amália
com um aceno do leque indicou a Henrique Teixeira uma cadeira que vagara a seu
lado.
- E o nosso folhetim?
- Refleti, D. Amália; o melhor é falarmos de outra
coisa.
- Confessa, portanto, que seu amigo é como os
outros; mais um exemplar desse compêndio já muito conhecido que se chama
marido.
- Não, senhora, não confesso; calo-me. Não devo
expor à sua zombaria a vida íntima do amigo que mais prezo.
- Esta reflexão, devia tê-la feito em princípio,
doutor. Depois de haver-me aguçado a curiosidade, está na obrigação de
satisfazê-la, e é o mais prudente, porque o seu silêncio compromete o seu
amigo.
- Em quê?
- Dá-me o desejo de fazer acerca dele, e acerca
dessa vida íntima que não pode ser profanada, as mais extravagantes suposições.
- Esta razão me decide.
- A outra devia ter a preferência, por fineza ao
menos.
- Qual outra?
- A de duvidar da minha discrição.
- Perdão; eu a ofenderia se acreditasse nela. Seria
suspeitar de seus dezoito anos, e fazer brancos ou grisalhos tão belos cabelos
louros.
- Entretanto há pouco pedia reserva aos meus belos
cabelos louros, observou Amália com um gesto encantador.
- Sem dúvida. A reserva que eu lhe pedia era a de
contar a história tão enfeitada que já não fosse a mesma referida por mim.
- Terei esse cuidado; e até me incumbo de
ilustrá-la com retratos. Mas antes de tudo preciso conhecê-la.
- Então quer ouvir?
- E dispenso o prólogo.
- Voltando da Europa, há três meses, passei os
primeiros dias em casa de Carlos, que me esperava e foi buscar-me a bordo.
Chegamos a São Clemente pela manhã; e depois do banho clássico, nos reunimos em
uma sala, que fazia parte dos aposentos da mulher e onde esta mais assistia.
Notei então que ele, algumas vezes, distraidamente, voltava-se para o sofá,
permanecia por momentos com os olhos fitos na almofada de veludo a que habitualmente
se recostada D. Julieta.
- E suspirava naturalmente ou enxugava a furto uma
lágrima silenciosa que lhe queimava a face? perguntou Amália com seriedade
picante.
- Não; ao contrário, soma-se.
- Deveras! O seu herói tem um cunho original. Estou
me interessando por ele.
- A sala em que nos achávamos, e a presença de
Carlos, a quem revia depois de anos de ausência, remontavam o meu pensamento
aos primeiros tempos de seu casamento, em que tantas vezes nos reunia-mos ali
em família, ele, sua mulher e eu. Parecia-me ver ainda o talhe elegante de D.
Julieta, que nos escutava, atenta, enlevada na voz do marido, e dando-nos de
vez em quando, com uma observação espirituosa, o tema da conversação. E essa
evocação entristeceu-me. Entretanto Carlos estava contente; e no seu semblante
respirava a satisfação d'alma. Supus que era o prazer da minha volta; mas não
podia conciliá-lo com as recordações vivas que se estavam traindo nos seus
gestos.
- Essas recordações eram puramente cacoetes de
viúvo.
- Vai ver. Pouco depois o Abreu chamou-nos para o
almoço. Carlos tomou o seu lugar de costume; eu sentei-me defronte e notei logo
que havia um talher em frente à cadeira de honra, outrora ocupada pela dona da
casa. Tínhamos pois uma terceira pessoa; talvez alguma velha parenta de Carlos.
- E por que não seria alguma prima moça e bonita,
que viesse tentar aquele modelo de constância? Aposto que adivinhei.
- Não adivinhamos, nem a senhora, nem eu. O Abreu
serviu-nos e eu a convite do dono da casa almocei com apetite de viajante. Uma
coisa me causou reparo. Quando Carlos incumbia-se de trinchar depois de fazer o
prato para mim, fazia outro que passava ao Abreu. Este em vez de advertir o amo
da sua distração colocava o prato na cabeceira, sobre o terceiro talher
intacto, e o meu amigo tirava para si nova porção; depois o criado mudava todos
os três talheres.
- Ah, percebo um eclipse matinal da estrela.
- Ao jantar reproduziram-se todas estas
circunstâncias que referi. A cadeira continuou vazia, sem a menor observação do
dono da casa, e o talher de estada foi ainda servido duas ou três vezes.
Cresceu porem a minha surpresa, quando na ocasião de tomarmos café, Carlos
continuando a conversa, preferiu o nome da mulher, mas de modo que parecia
indicar a sua presença.
Amália deu uma risada.
- Não é romance, então. É um conto fantástico!...
- Estou referindo fatos de vida real. A senhora
dar-lhes-á o título que for mais do seu agrado.
- Bem; vamos ao resto. Eu gosto mais deste gênero.
Tem sua novidade.
- Como lhe disse passei algum tempo na companhia de
Carlos; e do que observei depois, assim de umas revelações a custo obtidas do
Abreu, compreendi o que a princípio me pareceu estranho.
- Ou por outra, compreendeu o incompreensível.
- Para aquele marido a mulher que ele amou
estremecidamente ainda habita a casa, que ela enchia de sua graça e de sua
ternura. Ele já sente perto de si, a seu lado, nas horas em que trocavam suas
mútuas expansões, e nos lugares que ela preferia.
- É poético e sublime não poder negar.
- Os aposentos particulares de D. Julieta estão da
mesma forma como ela os deixou. Não há ali a menor mudança; os mesmos trastes
os mesmos objetos, e cada um como ela os colocara. Ninguém aí penetra senão
Carlos e o Abreu. Esse criado velho adorava a menina, que ele trouxe nos braços
desde o dia de seu nascimento. Também para ele, a dona da casa ainda vive, e
governa o interior.
- Temos, pois, aqui na vizinhança um hospital de
doidos! atalhou Amália.
- Não me entendeu.
- Ora, seriamente, doutor, o Sr. comprometeu-se a
si e ao seu sexo. Obrigou-se a apresentar um modelo de fidelidade conjugal e só
o pode encontrar como enfermidade. Confesse: a constância de seu amigo é apenas
uma mania, e o Sr. não foi sincero quando, há pouco, pretendeu convencer ao
Borges.
- Tão sincero como agora. Carlos não tem o menor
eclipse na sua razão calma e forte.
- Mas como se chama essa alucinação?
- É uma superstição a que estão sujeitos todos os
que vivem pelo espírito.
- Não sabia.
- Só não as têm os materialistas, aqueles para quem
Deus é um absurdo, a pátria e a família uma comandita; gente que reduz a
inteligência a um pouco de fósforo, e a virtude a uma convenção. Esses vivem
fisicamente; são corpos que se transformam. Nós, porém, que nos remontamos à
nossa origem divina, todos temos nossas abusões.
- Eu não as tenho.
- Tem, afirmo-lhe. Mas as suas abusões são risonhas
e brilhantes; chamam-se esperanças. As suas orações também... Quantas vezes não
acreditou a senhora, que Deus, o criador do infinito, comovido por sua prece,
alterava as leis do universo para enxugar-lhe uma lágrima, ou dar-lhe um
sorriso? O que é isto senão uma superstição?
- Bem diversa da que tem seu amigo.
- A senhora nunca perdeu uma pessoa a quem amasse.
Aqueles que já sofreram esse golpe, quando visitam o túmulo que encerra as
cinzas do ente querido, acreditaram que ali está alguma coisa deles, a sua
sombra, a sua alma quando ali não há senão pó . P o mesmo que acontece a
Carlos, com uma diferença: nos outros são os vestígios materiais, é o despojo
mortal, que produz aquele efeito; nele é o espírito unicamente. O que ele
sente, o que vê, é a alma da mulher.
- Chega a vê-la? disse Amália cuja ironia nada
perdoava.
- Com os olhos d'alma. O como nada é e nada era
para ele.
- Desde o momento em que D. Julieta morreu, ele a
abandonou como um objeto indiferente, e não teve o menor desejo de vê-la. Isto
observei eu.
- Em todo caso, doutor, para fazer-lhe a vontade,
convenho em que seu amigo será um homem de muito juízo, mas não aqui neste
mundo; no da lua talvez.
- Devo dizer-lhe que a princípio também
inquietou-me aquele estado; busquei um pretexto para tocar nesse ponto
delicado. Carlos compreendeu-me logo e respondeu com franqueza: "É
verdade, há ocasiões em que sinto Julieta perto de mim, e em que vivo com ela
como outrora. E a sua alma que me acompanha ou é a minha lembrança que a tem
sempre viva e presente ao meu espírito? Seja o que for, isso me consola e me restitui
a felicidade que perdi. Que necessidade tenho eu de investigar este mistério ou
dissipar esta ilusão? Não há maior mistério e maior ilusão do que a vida; e nós
vivemos sem conhecer, nem a nossa origem, nem a realidade de nossa
existência". Eis as palavras que ele me disse, e com a maior simplicidade
e placidez de ânimo. A razão e a ciência não teriam outra linguagem; e quer a
senhora que eu qualifique de
CAPÍTULO 6
No dia seguinte à partida, pelo fim da tarde, a
família Veiga achava-se reunida como de costume na varanda, que ficava à
esquerda, no centro do edifício.
Tinham-se levantado da mesa de jantar e tomavam
café gozando da fresca.
D. Felícia conversava com o marido acerca do Dr.
Henrique Teixeira. Tinha ela notado o interesse e atenção que a filha mostrara
ao médico, a quem vira na véspera pela primeira vez, assim como a rápida
intimidade que se estabelecera entre ambos.
Talvez que esse impulso da moça tão volúvel e
caprichosa sempre com os outros, e ainda mais com os seus apaixonados, fosse o indício
de uma inclinação nascente. O Sr. Veiga acolhia pressuroso essa esperança,
felicitando-se com a mulher pela realização do seu mais ardente desejo e, como
homem positivo, pensava já nos meios práticos de efetuar o negócio:
- Amanhã mesmo vou tirar informações, disse ele, e
acrescentou logo: por cautela! Mas estou convencido de que hão de ser das
melhores. Pareceu-me homem sério.
Enquanto os pais, à meia voz, se ocupavam do seu
futuro, Amália percorria a varanda, repetindo de memória, samezzo, a sua parte
do dueto, cantado na véspera. Avivava assim a recordação dos aplausos que a
tinham saudado nos trechos mais lindos; e ao mesmo tempo apreciava severamente
a sua execução, para corrigi-la e dar-lhe maior realce.
Aproximava-se às vezes do balaústre onde colocara a
taça de porcelana e molhava no café já frio os lábios, que ela sugava depois
com um gesto gracioso para continuar os seus exercícios de vocalização.
Em uma dessas ocasiões seus olhos caíram sobre a
casa vizinha, que muitas outras vezes lhe tinha da mesma forma interceptado a
vista, sem que excitasse o menor reparo de sua parte. Era um edifício como
qualquer de tantos que povoavam a rua por todos os lados.
Nesse momento, porém, seu espírito recebeu uma
expressão mais definida. Lembrou-se de que era aquela a habitação desse Carlos,
de quem na véspera lhe falara com tanta amizade e calor o Henrique Teixeira.
Todas as particularidades de sua conversação com o
médico acudiram à mente. Esquecendo o dueto, repassou de memória as que ouvira
acerca do viúvo e então, como já não estava dominada do sestro de motejar e
meter a ridículo tudo quanto era sentimental, compenetrou-se mais das
observações do doutor e dos fatos por ele referidos.
Quando absorta nestes pensamentos olhava o edifício
meio oculto pelos bambus e avermelhado pelo arrebol, viu Hermano que passava
entre as árvores, e aproximava-se do banco favorito.
A moça, disfarçando a sua curiosidade, recolheu o
airoso busto na penumbra da coluna, para observar o solitário passeador, que se
sentara a pequena distância do muro da chácara, em lugar onde ela o via
perfeitamente por entre a folhagem.
Impressionada pela narração de Teixeira, examinou a
fisionomia, e notou que ela não tinha nesse momento a expressão de recolhimento
e abstração própria do homem que está só. O seu olhar não era de contemplação;
animava-o o raio do espírito em comunicação com outro espírito não era o olhar
que vê, mas o olhar que fala, que transmite a impressão em vez de recebê-la.
Uma vez Hermano ergueu-se; foi até a platibanda,
colheu uma flor lírio, e tomando a seu lugar, conservou-o na mão com o gesto
expressivo de quem o mostrasse a outrem sentado à sua direita.
Então operou-se em Amália um fenômeno psicológico
estranho para ela que vivia unicamente no presente, porém em si mui natural e
freqüente. Assim como na tela de um transparente as figuras assomam de repente
quando as colocam à contraluz da mesma forma na memória da moça desenharam-se
cenas da infância esquecidas por tantos anos.
Pareceu-lhe que via como outrora os dois noivos
sentados no mesmo banco à sombra dos bambus. Uma tarde Hermano tinha colhido a
mais linda flor do lírio e a apresentara à mulher dizendo-lhe:
- É a tua imagem.
- Então guarda-a, respondeu a mulher; e
inclinando-se sobre a flor, bafejou-a com o hálito. Dei-lhe um pouco de minha
alma.
A travessa menina debruçada sobre o moro ouvira
esse rápido diálogo, de cujas palavras agora se recordava como se as estivesse
escutando. Hermano tinha guardado a flor, que ele aspirava com delícia,
sorrindo à mulher.
Lá estava ele ainda, com a flor, o gesto e o
sorriso que ela vira cinco anos antes; só faltava a noiva. Então Amália
revolveu debalde a memória na esperança de achar aquela imagem que se
esvanecera tentou recompor com os traços fugitivos de suas recordações aquela
meiga figura, mas não o conseguiu.
No vislumbre de suas reminiscências aparecia um
vulto formoso e elegante; mas ela não podia distinguir-lhe as feições; e isso a
contrariava. Sentia um desejo de rever aquela moça, de conhecê-la agora que era
moça também. Talvez viessem a ser amigas; com certeza o seriam; e que prazer
não lhe daria a sua intimidade!
Estas vagas aspirações, Amália não as cogitou;
despontavam em seu espírito de envolta com as recordações do passado, e
apagavam-se logo.
Amália tinha muitas vezes lido em romances uns
lirismos de amor semelhantes àquele bafejo da flor; e sabia que nos bailes e na
vida real eles eram freqüentemente copiados e até exagerados pelos noivos.
Todo esse formulário poético do namoro, ela o
achava sumamente ridículo; e sempre que o apanhava em flagrante, o havia
aplaudido com uma risada gostosa, como um lance de comédia.
Entretanto agora que o terno sentimento pela mulher
devia parecer-lhe ainda mais extravagante, pela circunstância de não ser já senão
uma mímica, bem longe de excitar-lhe o riso, ao contrário a tinha comovido.
Assim devia ser. O gesto de Hermano por mais
excêntrico e singular que fosse, aparecia-lhe através da morte cuja sombra o
envolvia. Não era uma fineza banal de namorados, nem uma afetação vã. Havia
naquele diálogo mudo a comunicação de duas almas cujo elo o túmulo não tinha
partido.
Quando o viúvo afastou-se na direção da casa,
Amália sorriu-se; mas de si, de uma idéia de menina.
Lembrou se do desejo que tivera outrora de achar um
noivo como aquele, que a adorasse, como ele adorava a mulher, e lhe desse
muitas jóias, muitas fitas, muitas galantarias.
Tinham corrido os anos. Ela ficara moça e era
bonita; alguns diziam muito bonita, e ela concordava com estes. Seria mais
bonita do que a outra que ela invejava? Não sabia, e tinha uma certa
curiosidade de verificar esta circunstância.
Não lhe faltavam noivos; ela poderia ter escolhido
um entre muitos tão elegantes como esse, talvez mais sedutores. Entretanto os
desdenhara a todos; e não sentia o menor entusiasmo pelo casamento.
De que provinha isto?
Nessa noite Amália foi com a família ao teatro.
Enquanto se vestia e durante o espetáculo, seu espírito algumas vezes se
desprendia das impressões do momento para insistir naquela interrogação.
Até então nunca se preocupava com o motivo de sua
isenção. Era uma questão de gosto. Uns apreciam a música mais do que a pintura;
há quem não pode suportar o burburinho da cidade, entretanto que outros
detestam a monotonia campestre.
Ela preferia a vida de solteira, por ser mais
livre, mais divertida e mais tranqüila.
Ao recolher-se, avistando a casa vizinha,
voltaram-lhe de tropel todos os pensamentos, que a cena da tarde lhe tinha
sugerido. Mas apenas esvoaçaram um instante pela fantasia, e submergiram-se no
repouso de um sono forte e calmo, o sono da saúde e da mocidade.
Pela manhã, ao acordar, dissipado o primeiro torpor
que deixa a longa síncope da vida moral, a moça encontrou em seu espírito a
explicação com que neo atinava na véspera.
Até então não conhecia senão a aparência do
casamento, essa face material, que se vê de fora, e compõe a sua fisionomia
social. Agora compreendia que essa união era mais do que um modo de vida; mais
do que um hábito e uma conveniência. Era, devia ser, um destino.
Aquele marido, neo só fiel à memória de sua mulher
mas unido a ela como no primeiro dia de seu amor; essa afeição alheia ao mundo
e indiferente às vicissitudes da vida, fora uma revelação para Amália.
Entretanto esta revolução, que subitamente se tinha
operado em suas idéias, produziu efeito oposto ao que talvez se devesse
esperar. Bem longe de conciliá-!a com o casamento, ao contrário, acabou de
afastá-la.
Se até então ela evitava essa ligação como um
transtorno à sua mocidade e uma contrariedade à sua índole, atualmente a
considerava como um perigo, e um grande perigo.
Unir-se a outro homem, que não fosse o marido
esperado, não seria falhar a seu destino, sacrificar a existência inteira e
condenar-se ao eterno suplício de um cativeiro cheio de humilhações?
CAPÍTULO 7
Desde aquele dia, que se pode chamar de sua
conversão, Amália ocupou-se com a casa vizinha, que dantes não lhe merecia a
menor atenção.
Agradava-lhe a chácara, o edifício, as árvores.
Achava-lhes alguma coisa de particular, embora não tivessem realmente de
notável senão a solidão e o silêncio que os cercavam.
Acompanhava os movimentos da habitação. Ligava aos
mais casuais e ordinários alguma significação. Uma janela que se abria, um
rumor qualquer, eram como o gesto ou a palavra do edifício, que para ela tinha
uma vida, uma história, uma individualidade.
Por Hermano, Amália sentia um indefinível respeito.
Parecia-lhe que via nele pela primeira vez um homem, bem diverso da gente que
povoava as salas e ruas. Nesse habitava uma alma: e era uma alma superior ao
mundo, que tinha o seu mundo em si.
Ela, que dias antes ria do espiritualismo de
Henrique Teixeira, a propósito do amigo, enlevou-se depois numa ideologia ainda
mais abstrata; e achava simples, naturais, evidentes, os fatos que sua
imaginação fantasiava.
Julgara a princípio uma demência, essa ilusão em
que vivia Hermano. Entretanto que exagerava agora aquele fenômeno moral, e
atribula uma intenção misteriosa aos menores incidentes.
Por quem Amália, porém, mais se interessava era
pela pessoa que já não existia: pela mulher que Hermano amava. Ela a
considerava já como uma irmã sua evocava a sua imagem, falava-lhe e ficava
contente de vê-la feliz por ter inspirado ao marido aquele amor indelével.
Avivava-se-lhe o pesar de não a ter conhecido e de
não lembrar-se de suas feições. Desejava tanto contemplar-lhe a beleza, ainda
que fosse de memória! Hermano possuía necessariamente um retrato fiel de sua
Julieta. Que não daria ela para vê-lo?
Essa mulher que havia merecido um amor tão puro
completamente desprendido dos interesses e misérias sociais; que expressão, que
encanto especial, que magia celeste possuía a sua beleza?
Às vezes Amália tinha uma vaga reminiscência da
alvura deslumbrante de sua tez; do brilho sereno dos olhos; da suave inflexão
do talhe.
E insensivelmente comparava-se a esse modelo; e
sorria-se com desvanecimento, porque achava em si uns traços de semelhança
A sociedade começou a mostrar-se à moça por um novo
aspecto.
As futilidades brilhantes que dantes a alegravam e
que ela chamava as flores da vida, tornaram-se para seu espírito mais calmo,
flores do vento, rosas efêmeras e sem perfumes; e foi assim que a pouco e pouco
se isolou do mundo. Sentia um tédio indefinível pelos divertimentos, e só
achava prazer na solidão.
O Sr. Veiga havia colhido acerca de Henrique
Teixeira boas informações. Era médico de talento e podia contar com um
brilhante futuro, se não lhe faltasse a qualidade preciosa de saber-se
apresentar.
Essa qualidade não é tão comum como se pensa; o que
se encontra a cada passo e em todas as profissões é o abuso dela, o vício muito
conhecido com o nome de charlatanismo. Não se trata, porém, desse grosseiro
arremedo, que está ao alcance de qualquer sujeito desembaraçado, ainda mesmo
ignorante e medíocre.
Os processos e fórmulas do charlatanismo já se
aperfeiçoaram de tal modo, que os adeptos não carecem mais de gênio inventivo;
tudo está feito, desde o anúncio. Até à celebridade artificial.
Aquele que precisa do apetrecho completo, médico,
advogado ou artista, não tem mais do que pagar.
O que faltava a Henrique Teixeira não era pois essa
fancaria a que o seu caráter não se prestava; era sim a verdadeira e fina arte
social que ensina o homem a pôr em relevo o seu merecimento e atenuar os seus
defeitos, sem hipocrisia, unicamente pela simples reserva e discrição.
Os painéis dos melhores mestres carecem de uma
posição favorável para mostrarem todas as suas belezas; colocados contra a luz
ou de esguelha desmerecem completamente e confundem-se com qualquer pintura.
Assim são os homens na sociedade. A atitude é tudo: quase sempre decide de uma
carreira.
O Sr. Veiga era homem prático e muito conhecedor do
seu mundo. Apreciou pois no justo valor a observação do amigo que lhe prestava
esta informação; mas também sabia ele que a riqueza supre perfeitamente na
sociedade a virtude, o talento, o saber, e até a afeição.
O marido de Amália com duzentos contos de réis de
dote, e o dobro em perspectiva, não precisava de apresentar-se; estava apresentado
pela fortuna. Tinha um pedestal; todos o haviam de ver. Nenhuma necessidade
teria ele de insinuar-se de agradar por suas maneiras quando podia impor-se.
Que melhor anúncio e mais pomposo elogio do que um lindo carro tirado por
formosa parelha de cavalos do Cabo, a percorrer as ruas da cidade e a excitar a
atenção pública?
Em conclusão, o Sr. Veiga calculou que o Dr.
Henrique Teixeira lhe convinha para genro especialmente pela circunstância mui
importante de mostrar Amália por ele uma inclinação decidida.
Depois da noite da apresentação o médico fizera à
família a visita de rigor; e nessa ocasião ainda Amália o acolhera com a maior
afabilidade, insistindo para que não faltasse às partidas. Além disso D.
Felícia, que se incumbira de sondar as disposições da filha não teve
necessidade de usar de sua diplomacia. A moça, espontaneamente e sem
reticências, manifestou a impressão agradável que o médico deixara em seu
ânimo.
À vista disto não restava senão entabular a
negociação que o Sr. Veiga queria terminar logo e de pronto com a decisão que
punha em suas transações. D. Felícia, porém, foi de opinião que se deixasse as
coisas seguirem o seu curso natural, facilitando-se apenas o seu casamento.
Este último alvitre prevaleceu. O Sr. Veiga pagou a
visita ao Dr. Henrique Teixeira, e convidou-o para o jantar de família,
combinação lembrada pela mulher para introduzir na intimidade da casa o suposto
pretendente que não era realmente senão um pretendido.
O doutor foi assíduo às partidas e Amália continuou
a distingui-lo com uma atenção especial, deleitando-se na sua conversa. Falavam
acerca de Hermano; a moça interrogava a miude e ouvia com avidez.
Não precisou o médico de grande perspicácia para
conhecer que esse interesse tão vivo da moça denunciava uma afeição nascente,
mas profunda. Hermano ainda ignorava naturalmente; mas quando viesse a
conhecê-la poderia ele partilhá-la?
Henrique era um tanto fisiologista. Ele acreditava
que a natureza amante e apaixonada de Hermano carecia de uma forte expressão de
afeto; e por isso revivia Julieta, para adorá-la. Desde, porém, que outra
mulher o impressionasse, ele transportaria aquela adoração para o novo ídolo e
continuaria neste o mesmo amor romanesco.
E que mulher estava mais nas condições de causar
essa impressão viva do que Amália, cuja beleza luminosa e esplêndida raiava
dentro d'alma como uma aurora de amor?
O médico afagava esta esperança. Ele compreendia a
necessidade de subtrair o amigo à constante preocupação que lhe consumia parte
da vida. Esse estado em todo caso não era natural; cumpria que cessasse. Para
isso o primeiro passo era aproximar Hermano da mulher, que o podia salvar.
Entretanto, parecendo a D. Felícia muito lenta a
marcha dos acontecimentos, consultá-lo resolveu ela provocar uma explicação. Mandou
chamar o médico para consultá-lo sobre a saúde da filha, cuja mudança já a
inquietava.
Expôs o desejo que ela e o marido tinham de ver
Amália casada. Descreveu o tipo do noivo que preferiam; e apesar de sua
modéstia Teixeira foi obrigado a rever-se naquele retrato físico e moral, como
em um espelho do melhor aço. Finalmente rematou dando ela uma consulta
matrimonial ao médico, em vez da consulta profissional que devia pedir a este.
- Amália gosta de alguém, doutor. Tenho a certeza.
- E natural D. Felícia, e até muito provável.
- E o Sr. sabe quem é?
- Não devia entrar em assunto tão delicado; mas a
sua confiança minha senhora, a estima que consagro a toda a sua família, e o
deseje de concorrer para a felicidade de duas pessoas que tanto merecem impõe-me
esse dever.
Henrique revelou o segredo de Amália. D. Felícia
caiu das nuvens. Não podia crer. Apenas retirou-se o médico, ela dirigiu-se ao
aposento da filha.
Amália, de pé junto à janela, com a fronte apoiada
na aba da porta, tinha os olhos presos na casa vizinha; e tão absorta nessa
observação, que a mãe aproximou-se e ficou muito tempo a fitá-la, sem que ela
percebesse
D. Felícia não duvidava mais. Teixeira tinha razão.
Amália amava Hermano e era um amor veemente que se lia em seu formoso semblante
como em uma página aberta.
- Queres casar com ele? perguntou a senhora
afetuosamente.
Amália estremecera a essa voz. Com as faces
inflamadas pelo pejo e os olhos em pranto, atirou-se nos braços da mãe e
escondeu o rosto no seio dela.
D. Felícia acariciou-a com ternura e repetiu a
pergunta que a moça escutara da primeira vez
- Casar?... Com quem?... interrogou ela atônita.
- Com ele! com o Hermano.
Uma palavra prorrompeu do seio da moça, como a
explosão de sua alma.
- Nunca!
E desprendeu-se dos braços da mãe, com uma violenta
expressão de pavor.
Amália passava pelo mesmo espanto que teria se sua
mãe lhe acabasse de propor para marido um homem casado.
CAPÍTULO 8
A primeira abertura de D. Felícia com Henrique Teixeira
estabeleceu entre ambos uma confidência constante sobre o delicado assunto do
casamento de Amália.
Ambos empenhavam-se na realização desse projeto do
qual esperava cada um a ventura da pessoa que lhe era tão cara. Se a graça e os
dotes da moça tinham cativado a simpatia do doutor, que já a estimava como
outra Julieta, também D. Felícia seduzida pelo entusiasmo do amigo, queria a
Hermano como a um filho e apreciava o seu caráter leal e generoso.
Logo no dia seguinte, aflita com o modo por que
Amália recebera a idéia do casamento, e o terror de que se possuíra, a mãe
comunicara ao médico esse fato tanto mais inexplicável, quanto a filha traia
nos seus menores gestos um amor irresistível por Hermano.
Henrique Teixeira compreendeu logo o sentimento de
Amália. Essa moça, outrora tão positiva, pairava agora no mundo da fantasia.
Desde que Julieta vivia para o mando, e o acompanhava ainda e sempre, esse
marido não era para a moça um viúvo, e o seu casamento com outra mulher seria
um crime, um adultério.
Não pareceu prudente ao médico explicar a D.
Felícia o que influíra realmente no ânimo da filha, e evitou de tocar em
qualquer particularidade da viuvez do amigo para não assustar a senhora.
Atribuiu o espanto e emoção da moça à repugnância que ela mostrara sempre pelo
casamento, e de que anteriormente fora informado.
D. Felícia aceitou esta razão, porque não descobria
outra; e combinou com Teixeira os meios de destruir aquela prevenção. Deviam
começar por estabelecer relações entre os dois apaixonados. A senhora os
chamava assim, na convicção em que estava de que Hermano não podia deixar de
ter por Amália um amor ainda mais veemente do que soubera inspirar à filha.
O doutor incumbiu-se de apresentar Hermano em casa
do Sr. Veiga. Essa tarefa não era tão fácil como parecia: ele tinha de lutar
com uma das regras invariáveis a que o amigo submetera a sua existência, desde
a viuvez.
Quando não se achava nos seus dias negros, dominado
pela obsessão que era talvez uma recaída do letargo causado pela morte da mulher,
Hermano freqüentava a sociedade, e concorria aos divertimentos como no seu
tempo de casado. Encontrando nos bailes alguma amiga de Julieta dançava com ela
e a festejava. Não tinha os sestros do viúvo. Não se enternecia, nem suspirava
falando do golpe que sofrera; ao contrário mostrava um doce regozijo ao avivar
recordações de sua felicidade.
Mas também repelia toda inovação.
A sua vida parara no momento em que Julieta
morrera, deixando-o, e portanto mutilando-lhe o ser. O que ele fazia depois
disso não era mais viver; e sim reviver o passado, remontar o curso dessa
existência dupla, que absorvera sua individualidade.
Não tinha relações nem amizades que neo fossem
daquele tempo. Se o acaso o punha em contato com outras pessoas, tratava-as
sempre como estranhas, e não guardava lembrança desses nomes nem dessas
fisionomias desconhecidas.
Não visitava família que não tivesse freqüentado
com a mulher.
Henrique portanto contava que o primeiro impulso do
amigo seria recusa formal de acompanhá-lo à casa do Sr. Veiga; e cogitava
pretextos para induzi-lo e demover-se uma vez da sua inabalável resolução.
Em suas conversas acerca de Hermano, Amália tinha
pedido ao doutor que lhe fizesse o retrato de Julieta; e nessa ocasião lhe
dissera que outrora, bem menina, a tinha visto muitas vezes, mas não se podia
lembrar da fisionomia.
Henrique também não se lembrava senão dos cabelos
negros e da alvura da tez; do mais não reparara ele senão na graça que envolvia
e iluminava toda a pessoa de Julieta. De sorte que Amália nada colheu além do
que sabia.
Sobre estas circunstâncias que a moça lhe referira
de sua meninice, o médico propôs-se a bordar um conto que despertasse a
curiosidade de Hermano. Falou-lhe da vizinha que se lembrava muito de D.
Julieta e imaginou entre ambas uma semelhança, que não o podia comprometer na
sua opinião. Amália era uma beleza deslumbrante que ofuscava a outra.
Hermano, não mostrou o menor desejo de conhecer a
moca: quando Teixeira o convidou para acompanhá-lo à casa do Sr. Veiga ele
respondeu simplesmente:
- Não o conheço.
- Mas ele te visitou quando mudou-se para tua
vizinhança, disse-me a senhora.
- Não sei.
O doutor compreendeu que só havia um meio de
arrancar o amigo àquela vida abstrata. Era perturbar o seu recolhimento,
quebrar os seu hábitos, agitar-lhe o espírito. Antes de fazê-lo hesitou. Tinha
ele certeza de dar felicidade a Hermano? Não seria cruel dissipar-lhe a doce
ilusão em que vivia para lançá-lo em uma triste realidade?
Era caso de refletir.
O pavor que produzira em Amália a idéia de casar-se
com Hermano, deixou em seu espírito uma impressão profunda, que só mais tarde
se foi desvanecendo.
A chácara vizinha excitava nela um sentimento de
repulsão; desviava os olhos daquela direção; passava os dias fora para fugir a
essa vista que a incomodava. Foi para o Andaraí estar uma semana com tia.
A ausência acalmou a sua agitação. Voltando a casa,
D. Felícia acabou de tranqüilizá-la. Disse-lhe que tivera aquela idéia, por
desconfiar que Hermano lhe agradava, mas desde que ela rejeitava o partido não
devia pensar mais nisso; pois nunca se casaria senão de sua livre vontade e com
um homem que escolhesse.
- Mas ele, mamãe, soube de seu desejo? perguntou
Amália inquieta.
- Não; foi só lembrança minha. Ele não deu nenhum
passo.
- Se nem me conhece!
Esta conversa dissipou o susto da moça. Aquele
interesse que ele havia tomado pela constância do viúvo, tomou-se inocente como
dantes. Ela podia sem receio, e sem vexame, abandonar-se de novo aos impulsos
desse capricho.
Voltou pois à contemplação e devaneio, em que se
esquecia a observar os movimentos da habitação vizinha.
Uma tarde, Hermano não veio como de costume
sentar-se no banco dos bambus. Ela impacientou-se com a demora; lastimou
Julieta por aquela primeira inconstância; e afigurou-se-lhe ver a esposa
desdenhada suspirando na sua tristeza e abandono.
Pouco tempo depois Hermano saia à chácara
acompanhado de Teixeira, e dirigiu-se para o sítio habitual. Advertindo, porém,
que não estava só arredou-se e foi sentar-se longe com o amigo.
Amália adivinhou então a causa da ausência que a
afligira. Perdôo a Hermano em nome de Julieta; condoeu-se da contrariedade que
eu devia sofrer naquele momento; e irritou-se contra o Teixeira que vier
disputar o amigo ao amor da mulher e obrigá-lo a parecer ingrato.
À noite fechada Amália via através da folhagem
brilhar a luz do gás nas janelas que ela sabia serem as dos antigos aposentos
de Julieta; nessa ocasião murmurava:
- Está junto dela.
Recordava-se então da vez em que os vira ali
outrora dos beijos que Hermano dera na mulher, e do rubor da noiva quando
percebe que alguém os espiava, e que na de sua ternura. momentos repreendia-se
por aquela travessura de criança, de que se envergonhava.
Henrique Teixeira lhe dissera que esses aposentos
ainda estavam como Julieta os deixara. Que vontade não tinha de os ver de novo,
e agora que podia melhor apreciá-los! Ás vezes dirigia-se para o terraço donde
antigamente espreitava os noivos. Mas a delicadeza de seus sentimentos a
retinha. Repugnava-lhe espiar a casa alheia, e abaixar-se a essa curiosidade
leviana.
Notou, porém, que as rótulas estavam constantemente
fechadas; portanto ela podia sem indiscrição aproximar-se dessas janelas. Para
quê? Para estar mais perto, para ter uma esperança vaga e ilusória de ver
aquilo que fugia de olhar.
Em uma noite cálida e abafada, a moça recostada à
leiva de grama, fatigava, como de costume, os seus belos olhos em distinguir
umas sombras fugitivas e confusas que se agitavam por dentro das venezianas.
As rótulas estavam apenas cerradas, o que ela notou
pela estreita faixa de luz que indicava o interstício das duas abas não
ajustadas. A princípio teve escrúpulo; mas como era impossível enxergar por
aquela fresta deixou-se ficar.
Instantes depois a moça caiu de bruços sobre o
respaldo de grama, sufocando nos lábios o grito doloroso que lhe estalara no
seio.
CAPÍTULO 9
Soprava a viração da noite.
O primeiro luto, cortando o ambiente cálido e
estagnado e derramando no ar uma onda de frescura, rugitou pela folhagem das
mangueiras.
Com a rajada, as rótulas se tinham afastado de modo
a mostrar no quadro da janela o interior do aposento.
No centro havia uma mesa de charão com um vaso de
rosas, colhidas naquela tarde. Amália vira quando Hermano as cortara da haste e
pensou então que eram uma oferenda do mando à esposa querida. Naturalmente iam
ornar o seu toucador.
Junto do vaso estava aberta uma caixa de carvalho
com preparos e utensílios de flores artificiais; e na beira da mesa uma
peanhazinha de bronze que mantinha direita na sua haste de arame uma rosa de
pano ainda por acabar.
Hermano sentado ao lado com um livro aberto lia a
meia voz; e embora o sussurro de suas palavras se perdesse nos rumores da
noite, podia Amália mesmo de longe ver-lhe o movimento dos lábios.
Mas não foi nada disto o que feriu a alma da moça,
quando a veneziana aberta patenteou-lhe aquela cena.
Em face de Hermano e também sentada como ele Amália
viu, cheia de espanto, uma mulher. Era moça e de rara formosura. Na posição que
tomara, o seu talhe moldado por um vestido simples e justo, de azul à princesa,
desenvolvia-se com um garbo indefinível.
A madeixa de cabelos negros sombreava o níveo fulgor
do semblante, cujo delicado perfil pareceu a Amália ser talhado em um jaspe
macio e diáfano, tão suave era o tom dessa carnação.
Descansava sobre a mesa um dos braços, cuja
perfeição estética aparecia no esvazado da manga, e tinha a fronte ao de leve reclinada
para a espádua, como uma flor que se realça para haurir a luz e os orvalhos do
céu.
Amália compreendeu essa expressão de êxtase.
Pensou que a moça interrompera o seu trabalho de
florista para embeber-se no encanto de ouvir as palavras de Hermano, o qual
também abaixara o livro para contemplá-la e encher-se de sua beleza.
Do primeiro relance Amália não viu senão naquele
aposento, que pertencia a Julieta: não sentiu senão o golpe de tão indigna
profanação; e foi este sentimento que lhe despedaçou a alma em um grito de dor,
e atirou-a convulsa e fulminada sobre o cômoro de grama.
A cólera a reanimou. Ergueu-se e foi então que viu
tudo. Seu olhar repassado de ódio correu todas as linhas daquela estátua
harmoniosa como o faria o severo buril de um escultor; e não achou uma
aspereza, um lisim. Ela poderia notar naquela fisionomia a fixidez de
expressão, que a amortecia; mas era precisamente essa elação do amor, a maior
sedução da rival de Julieta, a sua beleza ideal e celeste.
Um criado velho, o Abreu, entrara no aposento.
Arranjou os objetos que estavam sobre a mesa; colocou ali uma salva com serviço
de chá para duas pessoas; e reparando nas rótulas abertas pelo vento, fechou-as
com o trinco.
Amália não viu mais nada senão a luz coada entre as
lâminas das venezianas.
Não se imagina a indignação que sublevou sua alma,
quando refletiu naquele acontecimento.
Se um homem amado por ela, depois de ter-lhe jurado
fidelidade, a enganasse vilmente, não o puniria com o desprezo, que tinha por
Hermano nesse momento.
Era uma traição torpe e infame a que havia cometido
esse marido. Não lhe bastara esquecer a mulher, faltar ao seu juramento. Fez
mais: insultou a sua memória, cobrindo com o véu de uma constância exemplar
outro amor, que ele próprio se envergonhava de mostrar ao mundo.
Amália identificava-se com a esposa traída; supunha
Julieta rediviva em si e erguendo-se implacável para castigar o pérfido marido.
Mas como? Morrendo outra vez; porem morrendo
eternamente para ele; rompendo a cadeia que os unia, e abandonando-o a essa
infeliz, como um sobejo da traição.
Nos dias que seguiram esta cena, Amália foi má. Sua
alma se tinha saturado de fel; os sentimentos afetuosos eram recalcados por um
despeito violento.
Anunciara-se a estréia de uma companhia italiana no
Teatro Lírico.
Amália assistiu à representação. Queria vingar
Julieta cobrindo de desprezo a todos os homens, especialmente os homens que
fingiam o amor. Desejava sobretudo encontrar Henrique Teixeira para
exprobrar-lhe a indignidade do amigo.
Os cantores eram medíocres fossem embora insignes
Amália não lhes prestaria atenção naquela noite. Abriu o binóculo, e correu-o
pelos camarotes, não para apreciar os trajes como costumava, mas para os
criticar e às donas também; para dar alvo a seu pungente sarcasmo.
Em um camarote fronteiro descobriu Hermano e
perturbou-se.
Que vinha fazer aquele homem ao espetáculo? Antes,
devia este fato surpreendê-la; agora não; era tão natural!
A mulher que em uma das noites passadas ela vira no
aposento da esposa traída a rival de Julieta, com certeza estava no teatro; e o
indigno amante só viera para acompanhá-la, e gozar da admiração produzida por
sua beleza.
Amália notou que Hermano, apesar de estar só no
camarote, deixara o lugar fronteiro à cena, e sentara-se no outro voltado para
o fundo da sala. Parecia escutar atentamente a ópera; mas olhava com
insistência para a segunda ordem.
Acompanhando a direção desse olhar, Amália fitou um
camarote diagonal ao seu. Havia ali uma mulher vestida com muito luxo.
A sala de gorgorão verde com rendas finíssimas
atufava-se por entre as grades.
Estava de costas. A moça não podia enxergar-lhe o
rosto, que se retraía com o movimento do corpo ao voltar-se. Descobria, porém,
uma madeixa de cabelos negros; e descansando sobre o acolchoado de veludo
escarlate um braço alvo e torneado mesmo molde do outro, que vira na mesa de
charão.
Esta observação irritou a indignação de Amália.
Antes de terminar o espetáculo ela deu-se por incomodada e realmente estava.
Quando já se retiravam, apareceu Henrique Teixeira; a moça não lhe deu atenção.
A vontade que tinha de lançar-lhe em rosto a traição do amigo cedera a outro
sentimento , ao pudor. Agora tinha vergonha de conhecer essa intriga vil e de
ocupar-se com ela.
Quando se esmerada na cantoria, Amália tomara o
hábito de recordar os trechos de ópera que ouvia no teatro. Assim fixava as
suas observações de véspera; imitava as belezas, e corrigia o seu método.
Por isso ao acordar lembrou-se do piano já tão
esquecido; e depois do almoço dirigiu-se à sala. Se ao recolher-se perguntassem
que ópera se tinha cantado, ela com certeza não poderia responder. Agora,
porém, recordava-se perfeitamente; fora a Lúcia de Donizetti. A música
ficara-lhe no ouvido.
Abriu a partitura e cantou a parte de soprano.
Disse admiravelmente o delicioso allegro da fonte; mas na grande ária da
loucura excedeu-se. Não era o delírio da noiva escocesa que a inspirava: era o
desespero de Julieta, a dor da esposa traída.
Estava aberta uma das janelas. E o sol entrando
pela sala, chamejava nos espelhos e cristais. A claridade impacientou. Amália
estava triste, e achava insuportável essa alegria do céu que vinha
importuná-la.
Ergueu-se para fechar a janela, onde a esperava uma
surpresa.
Hermano, de pé, à sombra de uma árvore, escutava o
canto, em profundo recolhimento. Sua fisionomia denotava que ainda depois de
ter cessado a voz, ele ouvia dentro d'alma o eco, e esperava o seu retorno.
Tinha na mão um jornal e estava sem chapéu, como
quem fora surpreendido em casa, a meio da leitura, e viera pressuroso, não lhe
importando sair de cabeça descoberta.
Quando Amália recobrava-se da emoção, Hermano
erguia a fronte; pela primeira vez o olhar doce, profundo e exuberante desse
homem encontrou o seu; e subjugou-a.
Ela estremeceu como se recebesse um insulto; e
arrebatadamente num assomo de cólera, bateu a janela.
O que ela sentia era não ser homem para nesse mesmo
instante precipitar-se do sobrado, saltar o muro, e açoitar as faces daquele
insolente.
CAPÍTULO 10
O gênio faceiro e jovial de Amália mudou
completamente. A moça tornou-se pensativa: tinha longas horas de cisma e
melancolia, ela que dantes não sabia senão rir e brincar.
Algumas vezes já se esquivava de freqüentar a
sociedade, que então fora para ela uma necessidade. Inventava pretextos para
recusar os convites: e ficava em casa solitária, distraída, vagas
contemplações.
Passava noites inteiras, recostada à sua janela com
os olhos fitos, o seio palpitante, tão alheia de si que não ouvia a voz da mãe
a chamá-la, e tão presente aos seus pensamentos que estremecia e
sobressaltava-se a cada instante sem causa aparente.
Outras vezes saía ao jardim, e vagava pelos
passeios talhados na relva, a desfolhar as flores que sua mão distraída ia
colhendo, e a arrular palavras submissas que, pela cadência da voz melodiosa
pareciam trechos de poesia.
Amália admirava outrora as estrelas como umas jóias
mimosas de que Deus havia recamado o seu manto azul ou como umas violetas do
céu a luzir por entre as sombras da noite. Era bonito; mas ela preferia um
adereço de brilhantes sobre um vestido de cetim ou uma grinalda de miósotis.
Agora um místico sentimento a atraia para essas
flores de luz , gostava de conversar com elas. Pensava que talvez tivessem um
coração irmão do seu.
Quem sabe se não eram os anjos da guarda que
velavam sobre as almas exiladas na terra?
Ela própria achava ridículas estas abusões, quando
repassava na mente as cismas da véspera mas isto não impedia que de novo se
embalasse naquela e noutras fantasias, em seus momentos de devaneio.
Toda a sua pessoa ressentia-se da revolução que lhe
transformava o gênio.
Os movimentos sempre tão vivos e cintilantes
tornaram-se frouxos e lentos. Sua beleza já não irradiava como no tempo feliz;
agora embebia-se em uma sombra diáfana, que velava o matiz da cútis aveludada.
Ao piano, a sua execução não perdera em correção e
limpidez; mas ou tocasse ou cantasse, havia na música, se esta era triste, uma
repercussão íntima e profunda. Sentia-se palpitar a dor nas teclas como na voz.
De repente, sem motivo, e sem consciência,
enchiam-se-lhe os olhos d'água. As lágrimas doutros tempos eram orvalhos para
as boninas de seu gentil sorriso; estas de agora comam lentamente e deixavam
nas faces um brilho lívido.
A família assustou-se com esta mudança. Às
perguntas inquietas da mãe, Amália respondia que andava aborrecida; e
entretanto recusava as distrações que lhe ofereciam.
Afinal, tendo perscrutado debalde a causa da súbita
transformação da filha, D. Felícia a atribuiu a uma cessas moléstias nervosas a
que são muito sujeitas as moças fluminenses, pela falta de educação higiênica.
Resolveu então a família passar algum tempo fora da
corte. Foram para Petrópolis.
Nos primeiros dias, Amália recobrou a sua antiga
alegria; e voltou à vida agitada e folgazã. Os passeios de carro descoberto, as
apostas a cavalo, e as partidas campestres, reanimaram-lhe o gosto da sociedade
e a restituíram ao seu natural.
A moça conseguiu durante alguns dias atordoar-se e
submergir as suas recordações num turbilhão de prazeres ruidosos, mas que não
lhe davam senão a alegria artificial do momento.
Ao cabo de alguns dias cansou. A tristeza que tinha
espancado à força de movimento e agitação, voltou e mais intensa. Com esta
vieram as saudades da casa de São Clemente. A moça lembrou-se da sua doce
solidão; e desejou-a, como nunca havia desejado os divertimentos.
Fizeram-lhe a vontade. Recolheram-se à corte depois
de um mês de ausência. Por diversas vezes quiseram levá-la para a Tijuca ou
para Juiz de Fora; mas ela resistiu sempre e com energia; foi preciso ceder.
A família então uma viagem à Europa, como único
meio que lhe restava para salvar a filha querida. Quando os pais comunicaram
essa intenção à moça, ela recebeu o anúncio com espanto; depois foi se
habituando à idéia, e, em vez de a repelir, já por fim a acolhia
favoravelmente, e dizia à mãe, num ingênuo assomo de ternura
- Não se aflija tanto, mamãe, eu lhe prometo ficar
boa com a nossa viagem à Europa.
O Sr. Veiga, pai de Amália, começou a dispor os
seus negócios. Contava partir no futuro mês de março, por ser já fim de ano, e
não convir, na opinião dos médicos, nem à filha nem a ele, uma transição brusca
do nosso verão para o inverno europeu.
D. Felícia depositava grandes esperanças nessa
viagem; mas sua convicção era que só o casamento podia restituir a Amália a
saúde e a felicidade perdidas
Desde que voltara de Petrópolis, Amália trazia no
fundo d'alma uma esperança, que não se animava a afagar, mas que se derramava
por sua mágoa como uma gota de bálsamo. Talvez que tudo quanto vira naquela
noite não fosse mais do que um momento de loucura, uma alucinação passageira do
marido de Julieta
Hermano seduzido por aquela mulher fatal esquecera
o seu juramento; mas passada a primeira fascinação, o remorso o tinha pungido;
e ele sem dúvida repelira de si com horror a culpada. Amália ia pois achá-lo
restituído ao amor puro e legítimo da esposa.
Com efeito o marido de Julieta, quando não saia e
ficava em casa a sós, passava as tardes no sino habitual, junto aos bambus;
submerso no mesmo profundo recolhimento, que Amália observara da primeira vez.
A casa continuava solitária, tranqüila, silenciosa,
como um retiro; mas à noite ainda aparecia nas janelas de Julieta o clarão
sinistro, que batia nos olhos de Amália como o facho lúgubre de um sacrilégio.
Que se estava passando dentro daquele aposento,
enquanto ela com os olhos cravados na veneziana feria sua alma de encontro às
réstias de luz, que se enfiavam pelas rótulas?
Não poder arrancar esse obstáculo, que lhe ocultava
o interior! Já não tinha escrúpulos, já não considerava essa curiosidade uma
indiscrição. Ali não era Amália quem estava, mas Julieta na pessoa dela;
Julieta que tinha o direito de defender contra uma intrusa a santidade de seu
amor e o recato de sua câmara nupcial.
Esta ansiedade, e as decepções que daí lhe
provinham a todo instante, aumentaram a tristeza de Amália; pelo que o Sr. Veiga
cedendo às instâncias da mulher, decidiu a viagem à Europa.
A moça, a quem a idéia de uma separação assustara,
compreendeu todavia a necessidade de arrancar-se à fatal dominação que sobre
ela exercia aquele homem, a quem não amava, e nem poderia amar nunca.
Ela sente que faltavam-lhe as forças para conter os
impulsos de sua alma; e conhecia o poder da irresistível atração que a prendia
ali, e que a trouxera de Petrópolis aonde se tinha refugiado.
Era preciso pois interpor o oceano e afastar-se
para longe, onde a maligna influência que a tiranizava não pudesse chegar.
Afinal o acaso favoreceu a curiosidade da moça. Por
esquecimento ficara aberta uma janela, não do toucador, mas da sala próxima.
Foi o Abreu, ao escurecer, quando andara ali a espanar, contando fechá-la mais
tarde.
Amália alvoroçou-se com esta circunstância; logo
conheceu que nada adiantava. Era-lhe impossível distinguir coisa alguma na
escuridão da sala. Já ia se retirar, quando renasceu-lhe a esperança.
A lua assomara sobre o dorso do Corcovado; a sua
claridade alva e doce como a luz coada por um globo de cristal diáfano
estampou-se nessa face da casa.
À medida que o astro elevava-se no horizonte, essa
faixa de luar cortada pela cornija do teto, desdobrava-se sobre a parede.
Amália seguia com ansiedade o perfil luminoso,
impaciente de que penetrasse no aposento e o esclarecesse.
A princípio nada pode distinguir porque as réstias
mutilavam os objetos, deixando uma parte na sombra.
Chegou, porém, o momento em que viu. A sala fora
inundada pelo luar e o interior aparecia como uma cena de teatro, iluminada
pela eletricidade.
A moça não teve a mesma súbita comoção que da outra
vez. Então ela nada suspeitava, e o fato se havia apresentado a seus olhos de
repente em toda a sua realidade. Agora, além de já temer a repetição do golpe,
fora a pouco e pouco, reunindo os traços, lobrigando os vultos indecisos, que
ela vira afinal desenhar-se o painel.
Lá estava a mesma mulher da outra noite, não
sentada como da primeira vez mas reclinada em uma conversadeira acolchoada de
cetim azul, e ainda mais encantadora.
Tinha adormecido, com a cabeça pousada na curva do
braço, e o corpo meio voltado. O roupão de fina cambraia, fechado na gola e nos
punhos envolvia o seu talhe, moldando os contornos graciosos, que não se podiam
ver, mas palpavam-se com os olhos.
Amália admirava com toda a violência do ódio, que
lhe inspirava semelhante criatura. Envergonhava-se de ser bonita também como
ela; e ao mesmo tempo senta não ter uma formosura ainda mais esplêndida para
humilhá-la.
Um instante depois Amália recuou precipitadamente,
cobrindo o rosto com as mãos. Hermano que tinha entrado no aposento, achava-se
de pé junto à conversadeira.
As faces da moça abrasaram-se do pejo que sentiu..
Revoltou-se contra a audácia daquele homem; e a indiferença dessa mulher que
dormia quando um olhar indiscreto devassava o seu recato.
Tinha medo de ver; e uma irresistível tentação de
olhar. Voltou as costas para a janela; mas não teve coragem de afastar-se.
Entretanto Hermano aproximara-se silenciosamente da conversadeira, sentara-se
ao lado e ficou imóvel, como se receasse levantar o menor rumor no aposento.
Esta cena exacerbou a cólera de Amália e o seu
escândalo pela traição de Hermano. Nasceu-lhe um desejo veemente de vingar
Julieta. Se ela pudesse subtrair o marido pérfido à sedução da amante;
arrastá-lo a seus pés humilde e submisso; exprobrar-lhe o seu perjúrio; e
restituí-lo arrependido ao amor da esposa!
Que não daria ela em troca desse poder? Que
satisfação não teria de infligir o justo castigo a esse crime?
Mas bem compreendia, no seu despeito, que não tinha
sobre Hermano a menor ação. Ela, uma das belezas mais festejadas da corte,
rainha nos salões, e dos mais brilhantes vassalos; querida e adorada por tantos
admiradores, que todas as tardes faziam uma légua de carro ou a cavalo, só para
a verem ao longe e de passagem; ela, Amália, não merecia a atenção daquele
excêntrico, seu vizinho, que poderia se quisesse olhá-la a todo momento,
comodamente, sem o menor sacrifício.
Talvez nem a conhecesse, e não soubesse que ela
habitava ao lado de sua casa.... Mas não; da vez em que o surpreendera
ouvindo-a cantar; curiosidade que a tinha irritado a ponto de bater-lhe a
janela.
Agora arrependia-se do seu arrebatamento. Devia
ter-se contido naquele momento, e servir-se dessa impressão produzida por sua
voz para atrair esse homem, fasciná-lo também com a sua beleza, dominá-lo, e
então esmagá-lo com todo o seu desprezo.
Fora mal inspirada. Hermano ofendido com a desfeita
que sofrera, não se arriscaria a nova repulsa. Entretanto por que não havia ela
de tentar o meio que lhe restava para reatar o primeiro e único movimento desse
homem para ela?
No dia seguinte, depois do almoço, Amália sentou-se
ao piano; abriu a partitura da Lucia; e hesitou por algum tempo As portas das
janelas estavam abertas; foi cerrá-las e pela fresta lançou um olhar à chácara
vizinha. Estava erma e tranqüila.
Então a moça decidiu-se, e cantou com emoção que nunca
tivera em suas estreias de sala. Também nunca ela cantou melhor, com mais alma
e paixão.
Terminando, ergueu-se precipitadamente. Arfava-lhe
o seio, menos do esforço que fizera, do que do anelo de uma esperança que a
agitava. Sentia que esse momento podia decidir de seu destino.
Calcando com a mão esquerda as pulsações do
coração, caminhou para a janela, pálida e trêmula, e procurou com os olhos o
lugar onde Hermano a escutara da outra vez.
Não havia ninguém.
CAPÍTULO 11
A noite apareceu Henrique Teixeira, que andava um
tanto arredio
O médico desistira do seu plano de trazer Hermano
às partidas do Sr. Veiga, desde que D. Felícia tinha abandonado a idéia do
casamento. Continuou, porém, a freqüentar a casa com a mesma assiduidade. Foi
só quando percebeu certa repulsão de Amália para ele, que se retirou.
A causa dessa repulsão não a podia precisar; mas
suspeitou que se referia a Hermano, Seda porque fora ele quem envolvera o amigo
na existência da moça; ou era ao contrário porque não tivera força de
aproximá-lo dela?
A verdadeira causa, nós a sabemos.
Era a indignação que Amália sentira contra o esposo
infiel e que ressaltava sobre o amigo, como sobre tudo o mais que lhe
pertencia.
- Já tive o prazer de ouvi-la hoje, disse o doutor
apertando a mão de Amália.
- Passou por aqui?
- Estive na sua vizinhança.
Amália entendeu a alusão.
- Ah! exclamou com indiferença.
Quando a moça começou a cantar naquela manhã
Teixeira estava em casa de Hermano e conversavam os dois no gabinete. As
primeiras notas este levantou-se; esqueceu a presença do amigo e saindo à
chácara aproximou-se da casa vizinha, resguardando-se com a folhagem do
arvoredo.
Teixeira que o acompanhara, sentou-se junto dele e
escutou. Aquela vivacidade do amigo, tão alheio a tudo que não se prendia à sua
antiga existência, e a emoção com que ele ouvia a Amália, o surpreenderam.
Interrogou as suas recordações. Julieta cantava essa ária, o que explicava
tudo.
Terminado o canto, Hermano voltou e gabinete a
conversa, sem a menor alusão ao incidente. Henrique de seu lado também
absteve-se de qualquer observação, e mui de propósito.
Deixando o amigo, lembrou-se o doutor de fazer à
noite uma visita à família Veiga; e no primeiro ensejo referiu a Amália todas
as circunstâncias do que ele chamava um triunfo.
- Um triunfo artístico bem entendido, acrescentou
sorrindo.
- Os outros não são para mim, observou Amália em um
tom de modéstia desdenhosa, que tornava ambígua sua frase.
A moça conteve e dissimulou a alegria produzida
pela confidência do doutor. Agora sabia que Hermano a tinha ouvido e que sua
voz atraia aquele homem indiferente ao mundo. Esta certeza encheu-a de
confiança
Desde esse dia não cantou mais a Lucia. As vezes
ensaiava uns prelúdios, como quem se preparasse, e de chofre passava a outra
peça, que executava primorosamente.
Compreende-se bem o que devia ser Amália nesses
dias, convencida como estava de que o seu encanto, o seu condão, estava na voz.
Todos os esplendores de sua formosura, todas as seduções de sua pessoa, toda
sua graça e gentileza, ela os transportou para a música e idealizou em arpejos
e melodias.
Quem já lhe tivesse admirado a beleza a
reconheceria nesse canto inspirado que era como uma transfusão de sua radiante
imagem. Seus lábios somam num trinado, com a mesma garridice com que
desabrochavam a sua rubra flor.
A moça já não duvidara de seu império. Ela senta em
torno de si, a envolvê-la incessante a admiração de Hermano. A cada momento via
ou adivinhava na espessura das árvores, na penumbra de uma janela, o olhar que
a buscava com ansiedade e a seguia infatigável.
Entretanto mostrava-se despercebida dessa
contemplação. Se aparecia à varanda ou passeava no jardim, não dava o menor
sinal de ocupar-se com a casa vizinha que antes a absorvia tão completamente.
Saia agora mais vezes para ter o gosto de ver-se acompanhada de longe e
respeitosamente; ou para tornar mais desejada a sua presença.
Amália não tinha cultivado a arte de fazer-se amar
que se chama faceirice; mas parece que é esse um dom natural da mulher. São as
asas da borboleta, que nascem na estação própria, quando é tempo de voar.
As partidas do Sr. Veiga tinham continuado; menos
brilhantes do que outrora, porque Amália já não as animava com sua alegria e
espírito; mas sempre concorridas. D. Felícia insista nessas recepções, com a
esperança de distrair a filha.
Uma noite, Amália, que mostrava certa volubilidade
nervosa, dirigia a miúdo os olhos para a porta, como se esperasse alguém. Eram
oito horas. Henrique Teixeira entrou, acompanhado por um cavalheiro alto e
elegante.
A moça estremeceu reconhecendo Hermano; entretanto
tinha um pressentimento mais do que isso, a certeza dessa visita. Ninguém lhe
dissera coisa alguma; mas ela percebeu por certos antecedentes que o fato ia
realizar-se enfim.
Hermano apresentou-se ele próprio a Amália, como um
admirador de sua bela voz que o tinha por muitas vezes arrebatado.
- Já me ouviu cantar? Onde? perguntou Amália
simulando ironicamente uma surpresa.
- Não me conhece então? interrogou o cavalheiro por
sua vez, pousando no semblante da moça um olhar comovido.
- Se nunca o vi! .. observou a moça com a mesma
estranheza.
- Nunca?
Ela cerrou as pálpebras corando; quando as ergueu
de novo todo o segredo de sua alma estava nos seus olhos límpidos e no meigo
sorriso que veio à flor dos lábios.
Depois disso falaram sobre mil nugas dessas que
servem às conversas de sala. Eles bem sentiam a insignificância de suas
palavras; mas achavam prazer nessa troca de futilidades que os retinha juntos,
e dava-lhes pretexto para comunicarem-se pelo olhar e pelo gesto.
O mesmo aconteceu nas outras noites. Quem os visse
tão presos um do outro, tão entretidos na sua conversa, pensaria talvez que
tratavam de coisas importantes, quando efetivamente não se ocupavam senão de
trivialidades já muito repetidas.
Nessa fase da existência de Amália e Hermano, nada
há de novo e de particular. Foi o que tem sido sempre e há de ser eternamente a
aurora do amor Quem não conhece essas doces alvoradas do coração, que espancam
todas as sombras e nos transformam a vida em um esplendor?
Hermano, não se lembrava mais do homem que fora;
nem tinha consciência de outra vida, senão essa que lhe trouxera Amália. Quanto
à moça, os seus primeiros terrores, a indignação que sentira, o segredo que
surpreendera; tudo se dissipara como por encanto. Ignorava o passado. A viuvez
de Hermano, as relações dele com a desconhecida; ela não sabia mais disso; não
sabia senão que amava.
Como se havia operado esse milagre? Ninguém o poderia
explicar, nem eles mesmos que não tinham consciência da revolução profunda
consumada em sua vida no espaço de alguns dias apenas.
Mais de três anos foram vizinhos, avistando-se
freqüentemente, sem que se preocupassem um do outro. De repente algumas palavras
de uma conversa, algumas notas de uma ária, decidirem de seu mútuo destino..
D. Felícia enchera-se de esperanças e julgou-se
dispensada do sacrifício da viagem à Europa, à qual só extremos de mãe a
obrigariam. A prudente senhora sempre entendera que, de todas as mudanças de
clima, a mais proveitosa para uma menina depois dos dezoito anos era essa que
ela faz da casa paterna para o domicilio conjugal.
- Qual Vichy!... dizia aos médicos. Não há como
água da pia.
Entretanto os dias comam; e o acontecimento
esperado não se realizava. Debalde a senhora chamava constantemente a conversa
para o assunto da viagem, e insistia na proximidade da partida, lembrando as
mágoas da separação.
Os dois apaixonados, absorvidos consigo não a
escutavam. Para eles não havia nem passado, nem futuro. A vida resumia-se no
presente; e o presente era aquela íntima efusão em que se isolavam dos outros,
em um canto da sala.
Uma vez, porém, D. Felícia interrompeu a
confidência de todas as noites para interpelar diretamente a filha.
- Amália, teu pai amanhã vai escolher os camarotes.
Não queres ir com ele?
- Tão cedo! observou o Borges. Ainda faltam dois
meses.
- O Sr. Veiga quer prevenir-se com antecedência
para obter os melhores lugares.
- Mamãe não vai? perguntou Amália.
- Eu não; só de falar em vapor já estou enjoada.
- Irei com papai. A que horas?
- Depois do almoço.
- Às dez horas, disse a moça enviando a Hermano em
um olhar essa indicação.
Ele compreendeu.
- Então sempre se resolve a deixar o seu Rio de
Janeiro?
- Mamãe vai.
- Mas a senhora podia ficar.
- Com quem? perguntou ela surpresa.
· Com seu marido.
Amália enrubesceu.
- Posso falar a seu pai?
A moça ergueu-se perturbada e aproximou-se da mãe
para dizer-lhe ao ouvido:
- O Sr Hermano pergunta se pode falar a papai.
D. Felícia voltou-se para o seu hóspede, e
disse-lhe com um sorriso:
- Pode; ele está no gabinete.
CAPÍTULO 12
Guiado pelo aceno de D Felícia, Hermano dirigia-se
ao gabinete do Sr. Veiga, que tinha por costume fazer diariamente a sua caixa
particular antes do chá.
Ninguém ouvira na sala o breve diálogo dos dois
namorados; e menos a pergunta que Amália transmitira à mãe, calando aliás a
verdadeira intenção que Hermano lhe havia dado. Mas as pessoas presentes
suspeitavam que se tratava do pedido formal de um casamento, que todas já
previam.
Quanto a D. Felícia, tinha certeza do fato. A
confusão da filha e o alvoroço que se traia na voz e nas palpitações do seio,
revelavam bem o sentido da pergunta de Hermano e a significação do seu ato.
Amália, para esquivar-se à curiosidade geral que
lhe interrogava a atitude e a expressão da fisionomia, fora sentar-se ao piano;
e tocava com um brio nervoso, para dissimular na agitação do exercício musical
e na excitação da fadiga os sobressaltos involuntários bem como os rubores que
lhe abrasavam as faces e o colo.
Pelo seu gosto se teria retirado da sala; mas
Hermano devia ressentir-se dessa ausência, e ela mesma não podia privar-se da
sua presença pelo resto da noite. Sair para voltar depois da decisão era
expor-se ainda mais ao reparo.
Durou meia hora a expectativa
Ouviu-se abrir a porta do gabinete e todos os olhos
volveram-se para o corredor, com exceção dos de Amália que se abaixaram a
pretexto de decifrar uma frase.
Ela não viu nada, nem ali, nem no papel, nem em
torno; tinha uma névoa nos olhos. Ouviu, porém, uma voz comovida pronunciar seu
nome e sentiu que lhe apertavam a mão.
Quando recobrou-se desse soçobro e ergueu-se
correndo a sala com o olhar, Hermano partia.
Voltara ele do gabinete grave e sombrio;
despedira-se de Amália e da dona da casa com um aperto de mão, cortejara as
outras pessoas e retirou-se sem uma explicação daquele procedimento estranho.
Fora tal a surpresa, que ninguém, nem D. Felícia,
tivera a presença de espírito necessária para fazer a menor observação. Não
havia para este fato senão uma interpretação: e foi a que todos lhe deram
imediatamente, apesar de a considerarem inadmissível. Hermano tinha sofrido uma
repulsa do Sr. Veiga.
Mas como era isso possível, sabia-se do desejo que
tinha o capitalista de casar a filha; e dos avanços que a família fazia ao
pretendente, e tão a contento da moça?
D. Felícia foi ao encontro do marido que entrava na
sala e perguntou-lhe a meia voz, com sofreguidão, o que se havia passado com
Hermano.
- Nada, respondeu o Sr. Veiga mais admirado do tom
do que da pergunta. Ofereceu-me recomendações para a Europa e prometeu dar-me
algumas informações úteis para a viagem.
- Só? perguntou a senhora.
- Só.
O pasmo foi geral. D. Felícia não se pôde conter.
- Não se precisa das suas informações; ele que as
guarde e nos livre de sua presença
O Borges encartou a sua mofina:
- Eu sempre o tive por maluco
O Sr. Veiga dissera a verdade. Quando Hermano
estava no gabinete, o capitalista estava no meio de uma adição.
Para não perder o trabalho começado, e usando já da
liberdade de futuro sogro; pediu ao hóspede o favor de esperar um instante, dois
minutos, enquanto fechava a conta.
Mal sabia ele que estes dois minutos iam decidir da
felicidade da filha.
Hermano esperou, com a emoção que assalta todo
homem de caráter ao tomar grande responsabilidade. Não era a primeira vez que
tinha essa emoção. Lembrou-se do momento em que pedira a mão de Julieta. O
passado, que parecia morto, ressurgiu e apoderou-se dele.
Ficou estupefato, vendo-se ali naquela casa e
encontrando-se nessa última fase de sua existência, que ele se espantava de ter
vivido. Parecia-lhe sonho esse período. Não compreendia como ele, o marido de
Julieta, acreditara que pudesse nunca substitui-la por outra mulher.
O capitalista concluiu a sua conta e voltou-se para
a visita. Trocaram algumas palavras sobre o calor que tinha feito durante o
dia, e calaram-se.
- Está próxima a sua viagem à Europa? disse Hermano
depois de uma pausa.
- E verdade! Daqui a dois meses.
- Sabe que já fiz esta viagem? Posso dar-lhe
algumas informações úteis.
Hermano falou um quarto de hora sobre Paris e Londres
sem consciência do que dizia; o Sr Veiga ainda absorvido nas suas parcelas de
caixa não lhe prestou a menor atenção; e assim terminaram a entrevista.
Os convidados compreenderam a conveniência de
retirarem-se mais cedo; o que, porem os decidiu a usar dessa atenção foi o
desejo de espalharem logo, naquela mesma noite, a noticia do rompimento, pois
outra coisa não era o que se acabava de pensar.
O Teixeira que chegara tarde, quis atenuar o
procedimento do amigo, e teve com D. Felícia longa explicação.
Parece que tocou nas excentricidades do viúvo
atribuindo a elas a sua hesitação, o que a senhora moralizou com esta
exclamação:
- Então bem diz o Borges. E um maluco e foi uma
felicidade que eu o descobrisse, antes de dar-lhe minha filha
Amália tinha-se recolhido. A mãe foi achá-la
pensativa:
- Tu sabes quanto desejo ver-te casada, Amália; mas
antes fiques toda a vida solteira, do que teres a desgraça de aturar um doido.
- A sua doidice, mamãe, também eu a tenho. Ele
ama!...
- A ti? perguntou D. Felícia com ironia
- A mim também; mas não me ama bastante para
fazer-me sua mulher.
- Não te faltam maridos.
Amália, durante as suas breves relações com
Hermano, costumava à tarde sentar-se no jardim, em um caramanchão que ficava
perto da grade, mas oculto pelas trepadeiras. Ali viam-se de passagem,
conversavam um instante, e separavam-se para de novo reunirem-se à noite na
sala.
Passados os primeiros dias depois do rompimento, a
moça tornou a esse hábito, talvez na esperança de que ele facilitasse a
aproximação de Hermano. Ela adivinhara a razão que havia determinado a súbita
mudança do amante; mas queria ouvi-la de seus lábios.
Com efeito uma tarde, ao escurecer, ouviu o rangido
da areia sob os passos de alguém que se aproximava; não ergueu os olhos do
livro, mas pressentiu que era ele; e não se enganava.
- Não venho pedir-lhe perdão. Não o mereço; e a
senhora não pode e não deve conceder. Desejo, porém que saiba a causa do meu
procedimento, para que não duvide um instante de si e do respeito e admiração
que me inspirou. Quer ouvir-me?
- Fale, murmurou a moça comovida.
- No momento de ligar para sempre o seu ao meu
destino, hesitei; apoderou-se de mim um grande tenor. Tive medo de fazer a sua
infelicidade.
- Por quê?
Hermano concentrou-se um momento.
- Quem possui a sua beleza e a sua alma, tem o
direito de ser amado exclusivamente, sem reservas e sem partilhas. A senhora
não pode ser a simples companheira do homem a quem se unir. Preciso que esse
homem lhe pertença, que viva inteiramente de sua afeição, que se consagre todo
à sua felicidade. Se ele tivesse uma idéia, uma preocupação, uma reminiscência,
que o disputasse ao seu amor cometeria uma infidelidade; e a senhora havia de
exprobrar-lhe o tê-la enganado. Podia eu, conhecendo-a como a conheço,
sacrificar o seu futuro, que deve ser tão brilhante?
Amália pousou os seus belos olhos no semblante de
Hermano.
- Tem razão, disse ela docemente. O meu amor não
basta para encher tão completamente a sua vida, que não haja lugar nela para
outra afeição. Desde que o passado ainda vive em sua alma, o que iria eu fazer
senão perturbar a tranqüilidade de seu espírito e profanar as suas recordações?
É melhor assim; guardaremos pura e sem ressaibo a lembrança desses poucos dias
que vivemos juntos.
Ela ergueu-se, estendendo a mão ao amante.
- Adeus, Hermano.
-- Amália!... Talvez.-- Não façamos do nosso amor
um galanteio de sala. Já esqueceu Julieta e poderia esquecê-la nunca? Hermano
não respondeu.
- Bem vê que é impossível.
A moça afastou-se lentamente Hermano entrou na sua
chácara, e sentou-se no primeiro banco A lua vinha assomando no horizonte.
Ouviram-se prelúdios de piano; e uma nota
melancólica e suavíssima cortou o silêncio da noite
Era a voz de Amália que soluçava o Addio del
passato da Traviata
CAPÍTULO 13
Amália, durante a longa vigília daquela noite, se
compenetrara bem da situação, em que a tinham colocado os acontecimentos.
A proximidade do homem que amava, e a quem não
podia pertencer; a facilidade de vê-lo a cada instante involuntariamente, ou a
casa onde habitava; essa certeza de sua presença, ali, a alguns passos dela,
era um suplício cruel.
Cumpria quebrar de uma vez esse elo material, já
que não podiam unir-se pelos vínculos d'alma.
Amália lembrou-se a princípio de passar fora da
corte algumas semanas que faltavam para a viagem; mas pareceu-lhe melhor
apressar de uma vez a partida para a Europa.
Com esta idéia, ergueu-se pela manhã, e saindo do
seu quarto, encaminhou-se ao gabinete do pai resolvida a fazer-lhe o pedido.
Foi, porém na sala de jantar que o encontrou em companhia da mãe.
Veiga abraçou a filha muito risonho; e
prendendo-lhe a loura cabeça no peito, pôs-lhe diante dos olhos uma carta
aberta, na qual a moça reconheceu a letra de Hermano.
Antes que ela se recobrasse da surpresa e pudesse
ler a carta, D. Felícia lhe comunicara sofregamente o assunto.
Era um pedido de casamento, no qual Hermano
manifestava o desejo de obter pessoalmente de Amália o seu consentimento
- Pode vir? perguntou o pai à filha depois que esta
acabou de ler a carta.
-Ainda não, respondeu Amália agitada.
- Quando? disse D Felícia.
- Quero pensar, mamãe.
A senhora, para quem Hermano agora era o homem mais
sensato do mundo, fez à filha mui judiciosas observações acerca da conveniência
de apressar a decisão: e não se esqueceu de citar em seu abono o conhecido
anexim que dá por transtornado o casamento adiado.
Amália persistiu não obstante, e com uma razão que
desarmou a mãe.
- Se é preciso que responda imediatamente, mamãe,
recuso porque desejo aceitar, que peço a liberdade de refletir. Para dispor de
minha vida inteira, não são muitos alguns dias. - Pois bem, Amália, pensa à tua
vontade; mas lembra-te de que a viagem está próxima. É verdade que pode-se
adiar, até mesmo porque o tempo não anda bom. Tem havido tantos temporais. Que
diz, Sr. Veiga?
O capitalista que lia os jornais, levantou os
óculos para observar:
- Mas o câmbio é ótimo. A ir não devemos perder
esta ocasião
Amália hesitou durante alguns dias. Ela tinha
naquela carta, lida tantas vezes, e guardada consigo, a prova cabal, além de
muitas outras, do amor que Hermano lhe consagrava. Mas podia ela confiar a sua
sorte desse amor?
Hermano era uma alma nobre, um caráter leal, incapaz
de iludi-la. Não duvidava dele; mas duvidava de si. Receava não ter força para
dominar e possuir esse coração generoso, arrancá-lo ao passado em que se havia
sepultado, e ressuscitá-lo felicidade.
Ela acreditava que o marido de Julieta ainda amava
a primeira mulher e vivia de sua lembrança
Mas esse afeto de além túmulo não podia encher-lhe
a existência; e por isso aquela alma rica de paixão e mocidade se desprendia da
sua idolatria para buscar no mundo uma expansão, um sentimento de que se
nutrisse.
Nesse impulso, Hermano se lançara na realidade,
fascinado pela beleza da desconhecida; mas, em breve a ilusão desvanecera-se. O
homem regenerado pelo amor casto de Julieta não podia corromper-se numa lição
impura. Passada a alucinação, tornara ao seu culto.
- Foi então que ele, desesperado pela recordação da
mulher, e crendo em mim outra Julieta, começou a amar-me, pensava Amália; e
talvez esse amor o tenha salvado, dando-lhe forças para reabilitar-se. Sem ele,
sem um afeto que o obrigue e o ampare, não se deixará dominar ainda pela beleza
fatal daquela mulher, ou de outra como ela? E poderá reerguer-se da nova queda?
A moça decidiu então na generosidade de seu amor
votar-se à guarda e arrimo desse homem infeliz pela exuberância de sua alma.
-Mas, se o amor que inspirei, e que ele
sinceramente acredita sentir por mim, não for mais do que um capricho efêmero
um reflexo apenas da paixão que tem por Julieta? Quando dissipar-se o encanto
me perdoará ele ter profanado o culto da esposa e rompido para sempre o elo que
o prendia à primeira e única mulher amada? Não terei eu sacrificado a minha
vida, não para dar-lhe a felicidade, mas para fazer a sua desgraça?
Era esse o grande problema do seu destino. Amália
bem o compreendia; e sem deliberação para resolver por si, deixava isso ao
tempo esperando uma inspiração do céu. Entretanto passavam os dias
aproximava-se a época da viagem; e talvez fosse esta o melhor e o único
desenlace.
Toda essa hesitação, bastou um olhar para
dissipá-la. Amália indo com a mãe à cidade, encontrou Hermano e não pôde
resistir ao gesto de doce resignação com que ele a saudou.
É o meu destino, pensou a moça. O meu e o seu.
Respondeu ao cumprimento, parando para falar-lhe; e
na despedida, ao apertar-lhe a mão disse:
-Até à noite.
Ao escurecer, quando Hermano chegou, Amália o
esperava no jardim. Antes que ele preferisse qualquer palavra, a moça,
espontaneamente e como se continuasse um diálogo não interrompido, entregou-lhe
a mão dizendo:
- Com uma condição.
- Qual?
- Se até o último instante eu perceber o menor
sinal de arrependimento ou mesmo de hesitação, fica-me o direito de
restituir-lhe a liberdade.
- Duvida de meu amor, Amália? Depois de ter-lhe
dado a maior prova? tornou Hermano magoado. Que conceito lhe mereço então?
- Não! acudiu a maca vivamente. Não duvido; nem do
seu amor nem da sua lealdade, Hermano. Po interesse pela sua felicidade que me
inquieta.
A noite as visitas receberam com a notícia do
malogro da viagem à Europa, a participação ainda confidencial do próximo
casamento de Amália com Hermano.
A certeza dessa união, esperada pelas pessoas que
freqüentavam a família Veiga, foi bem recebida; todos felicitaram cordialmente
os noivos. O Borges, porém, embora se mostrasse dos mais pressurosos em
aplaudir, ia pelos vários grupos de convidados insinuando um veremos
significativo.
O Teixeira que o ouviu, incomodou-se; e receou
talvez o agouro daquela dúvida. Entretanto ele acabava de conversar com o
amigo; e embora na sua qualidade de médico calcasse na cicatriz dessa alma para
conhecer se doía-se ainda do golpe, não descobriu perplexidade no espírito de
Hermano. A sua resolução era firme e calma; tinha sido friamente meditada, não
provinha de um assomo de momento.
No dia seguinte começaram os preparos do casamento,
que por parte de Amália já estavam adiantados. Desde a apresentação de Hermano
em sua casa D. Felícia vira nele o marido que tanto desejava para a filha e por
isso a pretexto de arranjos de viagem, o que ela tinha encomendado às
costureiras e modistas era um rico enxoval de noiva, já quase pronto.
Por parte do noivo também não havia muito que
fazer. A casa estava pronta; e não faltava senão a pintura, pois ainda
conservava a primitiva que recebera por ocasião do primeiro casamento. Isso e a
substituição dos móveis era negócio para um mês.
Amália acompanhou de longe e com indiferença esses
pormenores domésticos, que têm geralmente um especial encanto para os noivos,
como primícias que são da vida conjugal, e flores de uma primavera casta e
serena.
A moça tinha outra preocupação mais séria que
absorvia a sua solicitude. Observava o noivo e estudava a sua alma, atenta ao
menor sintoma de desfalecimento que porventura se manifestasse na sua
resolução. O que ela temia sobretudo era um erro fatal.
- Se depois de unidos para sempre a sua alma
separar-se de mim, eu serei um obstáculo, um tormento para sua existência.
Longe, nunca mais deixará de amar-me; entretanto como meu marido, pode até
odiar-me.
Esta reflexão íntima revela o que se passava em
Amália. O seu tempo de noiva, que para as outras é o idílio suave de um amor
partilhado, para ela foi todo cheio de inquietações, de sustos e de graves
pensamentos.
Ela velava sobre o seu futuro guardando-se para
mais tarde gozar sem receios de sua felicidade, se Deus a abençoasse.
Poucos dias antes da época marcada para o
casamento, D. Felícia. a pedido do noivo fez com a filha uma visita à casa que
já se achava preparada. Nessa ocasião Amália foi assaltada por uma idéia que
ainda não lhe tinha ocorrido, e que a fez estremecer.
A mãe falara do seu toucador e quarto de dormir.
Estas palavras desenharam em seu espírito pela primeira vez a realidade
doméstica de sua futura posição naquela casa. Ela vinha substituir outra mulher
que ali fora dona e senhora antes dela.
Seus aposentos seriam os mesmos aposentos de
Julieta, fechados desde a morte desta e respeitados durante cinco anos como um
santuário?
E teria ela, Amália, a coragem de profaná-los como
o fizera uma dessas mulheres, que não conhecem a santidade da família?
CAPÍTULO 14
Depois de pequena demora na sala, Hermano convidou
as senhoras para verem o interior da casa.
- Em primeiro lugar o toucador, disse D. Felícia,
que pretendia aferir a ventura da filha pelo luxo desse aposento especial.
Amália que passara adiante dirigia-se para o lado
do edifício em que ela sabia desde muito achar-se a sala que servia de toucador
a Julieta. Hermano, porém, adiantou-se com visível precipitação e tomou-lhe a
passagem.
- Por aqui, Amália, disse ele um tanto perturbado e
indicando com o gesto a direção oposta.
Ai estavam efetivamente os aposentos da noiva, onde
a arte reunira todas as comodidades domésticas sob a forma mais graciosa, dando
à riqueza dos móveis os realces da elegância.
Enquanto D. Felícia. regozijava-se com esse luxo,
que esperava encontrar, e distribuía os seus elogios a cada peça, Amália
observava silenciosamente, estudando com uma prevenção que não podia vencer, o
aspecto e arranjo do aposento que lhe estava destinado.
A primeira circunstância que provocou sua atenção,
foi o contraste saliente deste toucador com o outro, o anterior, que ela vira a
primeira vez quando menina, e tornara a ver ultimamente..
Apesar de corresponder exatamente a repartição das
duas asas do edifício e de terem portanto as salas o mesmo plano e as mesmas
dimensões, tão opostas eram no adereço e arranjo que denunciavam o propósito de
torná-los o mais diferentes que fosse possível.
O antagonismo manifestava-se em tudo, na pintura, na
tapeçaria, nos ornatos, nos móveis. As cores desdiziam inteiramente. O primeiro
toucador era azul e branco; este rosa e ouro. Os trastes daquele, de erable; os
deste, de ébano. A colocação dos objetos inversa.
Quando D. Felícia. passou ao quarto de dormir, a
filha disfarçou para não entrar; mas de relance percebeu que ali havia dominado
o mesmo intuito.
Para Amália esta antítese foi uma cifra do
pensamento recôndito de Hermano; e ela embalde perscrutou-lhe na fisionomia o
verdadeiro sentido. O noivo satisfeito e contente com os elogios de D. Felícia
e com o interesse que a moça tomava por seu toucador, não revelava no semblante
a menor preocupação.
Todavia Amália persistiu em descobrir um desígnio
naquela circunstância que podia ser casual. O susto que sentira a princípio,
com a idéia de ocupar os mesmos aposentos de Julieta, acabava de transformar-se
em uma fria suspeita e que transpassava-lhe o coração.
Pensativa, reservada, seguiu a mãe durante a visita
minuciosa, que fez ao resto da casa. Hermano, ocupado em mostrar à senhora os
vários objetos do trem doméstico, não teve ensejo de reparar na frieza da noiva
Se alguma vez achou-a recolhida e silenciosa, atribuiu sua timidez ao recato
natural da menina, ante esse prólogo da vida conjugal, que se desdobra aos seus
olhos de virgem noiva.
Nesse dia, quando Amália só e em liberdade, pôde
coligir suas impressões e refletir sobre o incidente da visita, a suspeita que
se aninhara em seu espírito cresceu, e tornou-se em certeza. A alma de Hermano
estava escrita naquele símbolo, que ela a princípio não pudera decifrar.
Julieta ainda tinha naquela casa um templo onde era
adorada ainda ela dominava e possuía tão completamente o coração do marido que
este, apaixonado por outra mulher a quem ia ligar-se eternamente e na véspera
dessa união, não podia banir de si o passado e divorciar-se do primeiro amor.
Era por isso, era para conjurar as recordações
implacáveis que surgiam a cada instante; para iludir-se emprestando uma
virgindade artificial a emoções já outrora sentidas, que Hermano recorrera
calculadamente àquela diversidade dos objetos que deviam cercá-lo na fase nova
de sua vida.
Tinha feito como o pintor que obrigado a repetir um
quadro histórico, buscasse na divergência das cores e na mudança das posições,
uma novidade que faltava ao assunto; e sem a qual a monotonia lhe matava a
inspiração.
Amália recordava-se de uma observação anterior.
Pintava-se a casa, notou que a asa direita do edifício continuava fechada; mas
não deu a isso nenhuma importância, distraída como andava com outros cuidados.
Agora tinha a explicação. Essa parte da casa, que fora particularmente habitada
por Julieta, ficara intata. Era uma relíquia.
- É preciso romper este casamento! disse então
Amália consigo.
Tomada a resolução, ela espreitou o ensejo de
levá-la a efeito de modo que poupasse a suscetibilidade de Hermano. Quando
estava só fortalecia-se no seu intento; mas quando chegava o noivo e ela o via
tão feliz e tão regenerado por seu amor, não tinha ânimo de precipitá-lo
daquele faqueiro transporte, que também a arrebatava.
Uma vez o amante exprobrou-lhe a esquivança que ela
mostrava acerca desses projetos de futuro, os quais não passam muitas vezes de
fantasias, mas são para os noivos como uma antecipação da felicidade conjugal.
- Quer saber a razão? disse Amália.
- Não é preciso que o diga. Se me amasse como eu a
amo, achada o mesmo prazer nestas futilidades.
A moça respondeu-lhe com uma expressão grave e um olhar
repassado de tristeza:
- Se não o amasse, como o amo, achada decerto
prazer em falar nessas esperanças e promessas de uma ventura que é o meu sonho.
Mas ao contrário elas me entristecem.
- Por quê, Amália? perguntou ele surpreso e
inquieto.
-Tenho um pressentimento.
- Não diga isto!
- Não serei sua mulher, Hermano.
O amante adivinhou a razão dessa dúvida que afligia
o espírito da moça; e respondeu-lhe com uma queixa:
-Mostrei-lhe acaso, Amália, o menor indicio de
arrependimento e hesitação para que retire o consentimento que me deu?
- Não o retiro; dei-lhe a mão; ela pertence-lhe.
- Mas então quem se oporá à nossa felicidade?
- Não sei; mas tenho medo que ela não se realize.
- Faltam tão poucos dias!
- Até à hora, ninguém sabe o que pode acontecer.
Hermano esforçou-se por dissuadir Amália daquela
idéia, e com tanta efusão falou-lhe de seu amor, que ela deixou-se convencer, e
creu enfim na possibilidade de ser feliz.
Se a moça cogitasse em um meio de fascinar o seu
amante, de o prender ainda mais a si, não poderia escolher melhor do que este
receio sincero por ela manifestado. Desde aquele diálogo Hermano redobrou de
extremos; e se já havia resumido sua existência em Amália, não viveu mais senão
das horas que passava junto dela.
Ao chegar interrogava ansiosamente o semblante da
moça receoso de ler nele a sua condenação. Depois de retirar-se, inventava
pretextos para voltar uma e mais vezes, como para certificar-se de que nenhum
acidente ameaçava de novo a sua felicidade.
Esse tempo foi para ele um continuo sobressalto - e
para Amália o mavioso enlevo de sentir-se amada com todas as emoções e todas as
energias dessa alma opulenta. As dúvidas e receios de seu espírito
dissiparam-se completamente. Tinha agora a confiança de seu poder, e a convicção
de que Hermano lhe pertencia, e a ela unicamente.
E não advertiu que essa impulsão era talvez o
efeito de um anelo estremecido pelo temor, e ao qual talvez sucedesse uma
reação violenta.
No dia marcado celebrou-se o casamento. Não sábado,
dia tão impropriamente pelo uso para esse ato solene. É com efeito difícil
atinar com a relação que possa haver entre a véspera do repouso e o instante em
que principia para o homem a grave responsabilidade de família Saturno
devorando os filhos é um mau signo para a fecundidade do matrimônio.
Amália estava deslumbrante com seu traje de noiva.
Os esplendores de sua beleza ardente tomavam através dos cândidos véus uns tons
suavíssimos.
Hermano era o mesmo cavalheiro fino e elegante, que
seus amigos tinham conhecido dez anos antes Se a flor da primeira mocidade
passara, a fisionomia, como o porte, ganhara em distinção e naturalidade.
O Sr. Veiga festejou o casamento da filha com um
baile suntuoso. Às duas horas começou uma dessas intermináveis quadrilhas que
servem de remate ordinário a semelhantes reuniões dançantes.
A alegria era geral; e os noivos foram dos que mais
se divertiram. Ambos eles renasciam para a vida brilhante dos salões da qual se
tinham por algum tempo afastado; ela durante a sua tristeza, ele durante a sua
viuvez
Já o nascente bruxuleava, quando o baile formou-se
em procissão para acompanhar os noivos à casa.
CAPÍTULO 15
Voltando de reconduzir os seus hóspedes, Hermano
aproximou-se do sofá onde Amália sentara-se.
- Estou caindo de sono, disse a moça conchegando-se
com um gesto gracioso na longa capa de caxemira que lhe cobria as espáduas, e
as vestes de noiva.
- Por que não se recolhe? perguntou o mando.
Ela hesitou um instante; mas afinal erguendo-se com
um faceiro assomo para romper o casto enleio, dirigiu-se ao toucador e ali
achou sua criada.
Às pressas açodamente, como costumava quando
recolhia-se tarde e fatigada dos divertimentos, trocou as sedas e atavios por
um alvo e fresco roupão de cambraia com fitas escarlates, delicioso traje no
qual ela parecia vestida de sua candidez e de seu pudor.
Sentou-se então no divã.
Estava tão fatigada! Tinha dançado como uma menina
de colégio que vai ao seu primeiro baile. Não sentia o cansaço do corpo somente;
o espírito também havia sofrido as emoções daquela noite e dos dias anteriores.
Era feliz, tão feliz, que sua alma carecia de repouso.
Reclinou a cabeça no recosto do divã, e
insensivelmente o seu lindo talhe descaiu lânguido. As pálpebras cerravam-se a
seu pesar: mas ela fazia um esforço para abri-las. Tinha um vago susto de
abandonar-se ao sono ali, sozinha; e também vexame de que Hermano viesse
encontrá-la a dormir
O marido entrou no toucador e chegando uma cadeira
sentou-se defronte cautelosamente, para não perturbar o repouso da noiva. Ela
não o sentira entrar; mas abrindo os olhos viu-o em face a contemplá-la com
enlevo.
Sorriu-se, e dando-lhe a mão que ele guardou entre
as suas, adormeceu como uma criança. A presença de Hermano inspirou-lhe nesse
momento a mesma confiança, que outrora o afago materno; o amor a ninou.
Hermano demorou-se algum tempo a admirar a graça de
Amália assim adormecida. Involuntariamente seu pensamento enleando-se nas
reminiscências o transportou ao passado, à noite de seu primeiro casamento.
De repente, tornando daquele recordo ao presente
volveu o olhar em tomo e ficou atônito de ver ali em face dele a mulher que
pouco antes admirava, a esposa a quem se ligara havia poucas horas.
Ergueu-se pálido, desmudado, espavorido, e
afastou-se.
No dia seguinte, eram dez horas da manhã quando um
raio de sol brilhante e alegre entrou pelo aposento de Amália como para
festejá-la. Durante a noite, a moça acordara, e tonta do sono, buscara no
próximo aposento o leito, onde refugiou-se.
Pela manhã a mucama abriu a janela do toucador; e
uma réstia de sol batendo no espelho refrangera acariciando o rosto mimoso da
moça pousado em um ninho de rendas.
Ela abriu os olhos e saltou da cama, alegre como um
passarinho.
- Sinhá quer tomar alguma coisa? perguntou-lhe a
mucama.
- Eu quero almoçar, que estou com muita fome.
- Mando pôr na mesa?
- Não; aqui mesmo, no toucador.
Amália teve então uma idéia que lhe sorriu.
Sentou-se à sua secretária, um mimo de marcenaria, e escreveu a seguinte canta
em papel que ali achou, com o seu monograma:
"D. Amália Veiga de Aguiar tem a honra de
convidar seu marido Carlos Hermano de Aguiar para almoçar em sua companhia,
hoje, às onze horas, no seu toucador. O ménu fica por conta do convidado."
A moça fechou o seu convite e mandou-o entregar a
Hermano de quem senta a falta perto de si. Ela não o censurava pela ausência;
mas parecia-lhe que ele devia ter-se apressado em saudá-la logo pela manhã, e
sobretudo nesse primeiro dia em que dormira na sua casa.
Hermano acudiu pressuroso ao convite; e os dois
noivos almoçaram jovialmente perto de uma janela, que dava para o jardim,
ouvindo cantar os passarinhos e aspirando a fragrância das flores que o vento,
soprando nas roseiras esparzia sobre a mesa.
O resto do dia passaram nesse mesmo devaneio
amoroso lendo e recitando versos, recordando a breve história de sua afeição, e
estremecendo ainda dos incidentes que os ameaçavam tantas vezes de uma
separação eterna.
No meio destes lirismos, Amália escreveu à mãe uma
carta cheia de ternuras; e D. Felícia veio fazer à filha uma rápida visita que
a encheu de júbilo por ver seu contentamento.
O jantar foi a reprodução do almoço. Comeram ali
mesmo no toucador em uma mesa volante, servidos pela mucama. Amália achava
encanto nessa solidão a dois, em que nenhum olhar estranho e indiscreto vinha
perturbar a sua casta felicidade.
No fim do crepúsculo, quando as sombras se
condensavam entre as árvores, saíram os noivos à chácara para espairecer. Sem
intenção e sem consciência, Amália dirigira o passeio justamente para aquele
banco onde outrora Julieta sentava-se todas as tardes com o mando.
Hermano a princípio a tinha acompanhado sem
observação, mas visivelmente contrariado, o que a noiva não percebeu por ter
volvido os olhos para a casa paterna. Quando, porém, a moça ia sentar-se no
banco, ele irrefletidamente impediu-lhe o movimento com o braço, e obrigou-a a
afastar-se.
- Não se sente ai, Amália.
Amália, surpresa por aquele gesto, que não era um
abraço, reconheceu o sito e adivinhou a razão da repugnância do narco. Sua alma
confrangeu-se. O erro, o erro fatal, que ela tanto receou, estava consumado.
Calou-se, porém, e seguiu silenciosamente o marido
que para que a ocorrência, falava-lhe com volubilidade dos planos que tinha
para embelezamento da chácara, a fim de que Amália achasse ai todos os
encantos, quando, fatigada da sociedade, se deixasse ficar no seu retiro para
repousar.
Notando afinal a mudez e esquivança da moça
compreendeu que a impressão fora profunda; e para serenar-lhe o espírito
renovou os protestos tantas vezes de que ela era sua felicidade, sua vida, sua
alma.
- lludiu-se, Hermano, e eu também. A sua
felicidade, se alguém lha pode dar neste mundo, não sou eu; e Deus sabe que
sacrifícios eu não faça para merecer esta graça'
Amália proferiu estas palavras com uma tristeza
maviosa e afastou-se para que o mando, apesar do escuro, não lhe visse as
lágrimas.
- Não tem razão, Amália. Se eu me lembrasse de
oferecer-lhe uma flor, já usada por outra senhora, não a rejeitada ofendida? E
me condenara, se eu procurasse antes para dar-lhe uma destas violetas, abertas
agora mesmo com o sereno da noite, cheias de perfume e colhidas por mim em sua
intenção? Pois assim deve ser também com as flores d'alma. Eu não pude nascer
no dia em que a conheci, para que minha vida começasse com o meu amor. Quero,
porém, despir-me do homem que fui, porque esse não lhe pertence. e portanto não
existe mais.
- Então é por mim? perguntou a moça com surpresa
- Pois duvidava?!
Amália sorriu. A nuvem se tinha desvanecido: seu
céu de amor estava outra vez límpido e sereno
Entretanto quando, ao recolher, ficou só como na
véspera, pensou consigo que se Hermano a amasse, tanto quanto ela o amava não
teria lembrança para quanto não fosse o seu amor. A filha não esquecia perto
dele a mãe de quem nunca se apartara até aquele dia? Por que não esquecia ele
também uma pessoa finada desde cinco anos?
Achava alguma razão nas palavras do marido, mas
dispensara de bom grado aquela delicadeza Desejada antes ser querida por
Hermano com tanto anelo e transporte que tudo para ele fosse novo nessa casa,
nesses sítios, cheios do passado.
Apreciava a pureza das flores d'alma recém-abertas
ao seu influxo; mas também pensava que em uma alma completamente regenerada
pelo amor, já não devia de haver flores murchas e fanadas, como eram essas
recordações que pungiam o mando.
Os três primeiros dias depois do casamento, Amália
e Hermano os passaram no mesmo delicioso a sós. Comiam no retiro do toucador,
não como casados da véspera, mas como namorados em partida campestre, às
ocultas.
Esse cunho de improviso e de folia era o que mais
encantava Amália. Ela que sempre fora menina e travessa queria descontar agora
os dias de tristeza. A solenidade da vida conjugal e a serenidade da posição de
dona de casa, assustavam a seu gênio faceiro. Assim esquivando-se a pretexto de
recato e acanhamento, retardava o momento de assumir suas graves funções
Chegou porém, o dia.
A mesa estava servida para o almoço. Amália tomou a
cabeceira e o marido sentou-se ao lado.
- Onde está Abreu? perguntou o dono da casa.
Chame-o!
A voz de Hermano tinha uma severidade desusada.
Nunca Amália ouvirá aquele timbre. Ela fitou o semblante do marido, e notou a
expressão áspera de sua fisionomia e o olhar imperativo com que ele recebeu o
velho criado.
Abreu aproximou-se da mesa com o passo dos
soldados; dobrou a cerviz por um movimento de engonço, e perfilou-se
Quando Hermano passou-lhe o prato destinado a
Amália ele o conservou na mão imóvel. Foi preciso que o amo lhe desse ordem
terminante:
- Para a senhora!
Então sem voltar-se, estendeu o braço e pôs o prato
na cabeceira. Nem então, nem depois, durante todo o almoço, o seu olhar, que
ele tinha sempre levantado, buscou a dona da casa.
Não a queria ver, e não a viu.
CAPÍTULO 16
Tinham decorrido quinze dias depois do casamento.
Amália já não podia esconder a sua tristeza. As
apreenções, que a haviam assaltado antes, ai estavam realizadas. Sacrificara-se
para fazer a felicidade do homem a quem amava, essa união ia tomar-se um
suplício cruel para ambos.
Nos primeiros dias, a moça enlevada pelos lirismos
do coração virgem, sentiu-se feliz. Em sua inocência, não desejava mais do que
possuía. As efusões de Hermano, sua palavra comovida, seu olhar temo e faqueiro
sorriso bastavam para encher-lhe a alma e transbordar.
Havia, porém, nesse afeto uma timidez que ela não
podia definir. Ainda não recebera uma só carícia; quando solteira tomada tais
demonstrações como desacato. Mas agora o seu título de esposa as santificava.
Parecia-lhe que seu mando devia ter o mesmo direito que seu pai, de beijar-lhe
a face e estreitá-la ao peito.
Talvez Hermano se acanhasse, e não tivesse ânimo de
tomar essa liberdade. Compreendia o seu enleio pela comoção, que tinha ela
também, só de pensar nisso. Mais tarde vida a intimidade.
Então o espírito da moça lançava-se no vago,
ansioso de perscrutar o desconhecido; e coligindo em suas recordações idéias
outrora incompreensíveis, rasteava um pensamento que a fazia enrubescer. Não
sabia nada; não suspeitava; mas pressentiu.
Julgou-se humilhada, não somente em sua beleza, mas
em sua dignidade de senhora.
Ao mesmo tempo outras circunstâncias concorriam para
agravar a sua posição já melindrosa. Hermano que a princípio se mostrava cheio
de atenções e somente ocupado dela, agora tinha freqüentas distrações,
sobretudo na mesa.
Seus olhos a evitavam ainda mesmo quando lhe
dirigia a palavra. Ficava por muito tempo calado e absorto. Às vezes no meio
daquela concentração, fitava a mulher, observava-lhe as feições com estranheza,
e no seu semblante pintava-se a surpresa. Desviava então a vista, e de novo
caia na sua abstração.
Uma manhã, Amália mandou mudar a disposição da mesa
colocando seu talher na outra cabeceira, para não ter o sol de face. Veio o
marido que tomou maquinalmente o seu lugar costumado. Pouco depois reparando na
alteração, lançou à moça um olhar de espanto; e saiu precipitadamente da sala
onde não voltou esse dia, dando-se por incomodado.
Amália adivinhou que era o lugar de Julieta na
mesa. Hermano não querendo que ela o ocupasse, lhe havia destinado outro. Daí a
sua contrariedade. Não obstante a impressão que lhe causou o fato, a moça
procurou disfarçar, e convidou o mando para jantarem nessa tarde à sombra das
mangueiras.
O Abreu por seu lado continuava para ela, o mesmo
homem de pau do primeiro dia. Em quinze dias, ainda não lhe tinha dirigido um
olhar, nem uma palavra. Com a sua máscara impassível isolava-se dela
inteiramente.
Durante a viuvez de Hermano, foi o velho quem
governou a casa, onde por seu intermédio as ordens de Julieta eram ainda
executadas, como no dia em que ela as dera. Os outros criados obedeciam-lhe
como a um chefe; e tinham-lhe senão mais respeito, decerto que mais temor do
que ao amo. Era este que os pagava; mas era aquele que os alugava e os
despedia.
A presença da nova dona da casa não alterou esse
regime. Era preciso que alguém mandasse, e o ex-furriel levado pela hábito ia
determinando o serviço como dantes. Assim, quando Amália quis ensaiar a sua
autoridade doméstica achou uma resistência muda mas tenaz.
Se mandava mudar um traste, ou fazer alguma leve
alteração no arranjo da casa, ninguém lhe opunha a menor observação. Mas no
outro dia as coisas voltavam ao estado anterior. Indagada a razão os criados
respondiam repetindo a palavra de Abreu a ordem". Isso queria dizer que
assim se havia feito por vontade de Julieta.
Amália retraiu-se para evitar conflitos que a obrigavam
a um ato de rigor. Muito a afligida se a sua união com Hermano desse causa à
expulsão do velho criado, que era já um amigo da casa. Ela tinha bom coração; e
lembrava-se de que o Abreu fazia aquelas coisas pelo muito amor à sua filha de
criação.
Todavia, quando pensava na sua posição, não podia
dissimular que era naquela casa uma intrusa, que estava ocupando o lugar de
outra não só nos atos da vida doméstica, mas também no coração do mando. A cada
instante a realidade fazia-se, para mostrar-lhe que era demais ali
D. Felícia. não tardou em aperceber-se da tristeza
da filha e interrogou-a. Nada colheu. Amália guardou o seu segredo. Não queria
afligir a mãe; e ainda menos expor Hermano a uma censura ou queixa que talvez
ainda mais o separasse dela.
Uma noite, porém, a inquietação materna venceu o
delicado escrúpulo da sogra, e D. Felícia. tomando à parte Hermano,
perguntou-lhe o que tinha Amália
- Nada. Ela queixou-se?
- Não, e é o que mais me aflige. Pois ainda não
reparou na mudança que ela tem feito nestes últimos dias?
A senhora mostrou-lhe de longe a moça que nesse
momento sentada de perfil e pensativa era a mais bela estátua de melancolia,
que um artista poderia imaginar. O mando ficou a olha-la compassivo.
- Eu lha dei, Hermano, para fazê-la feliz.
- E é o meu ardente desejo; e se bastasse o meu
amor!...
A entrada do Sr. Veiga pôs termo a esse diálogo. D.
Felícia. aproximou-se da filha e tentou ainda surpreender a causa daquela
mágoa. Desta vez não fez nenhuma pergunta direta; indagou disfarçadamente de
mil coisas a ver se descobria algum arrufo. A moça, porém, não manifestava a
mais leve sombra de ressentimento..
Eram dez horas.
Amália estava só e pensava no seu destino quando
Hermano veio, como costumava, sentar-se perto dela. Conversaram algum tempo.
- Anda triste, Amália? disse por fim o marido.
- E não tenho razão, Hermano?
Ele tomou a mão da mulher, e atraindo-a a si
reclinou-se para beijar-lhe o rosto. Amália, cheia de rubores e júbilos,
palpitante de emoção, abandonou-se ao doce impulso; mas de repente,
faltando-lhe o apoio, o talhe descaiu sobre o recosto.
Hermano soltara-lhe as mãos, no momento em que seus
lábios iam tocá-la; e erguera-se pálido, hirto, com a visão pasmada, como se um
espectro surgisse a seus olhos.
- Perdão! murmurou com a voz abafada.
Esta súplica, porém, Amália conheceu que não se
dirigia a ela, pois o olhar do marido passava por ama de sua cabeça e fitava-se
além.
Afinal dominando-se, sentou-se de novo, reportando
à mulher aquela mesma exclamação com a voz mais livre.
Amália sob a influência daquele estranho pavor,
emudecera. O marido não se animou a quebrar esse doloroso silêncio. Depois de
um instante de perplexidade, murmurou umas palavras de despedida, levantou-se e
saiu do toucador.
O primeiro sentimento de Amália depois da surpresa
que lhe causara esse fato foi a revolta contra o império que exercia a
lembrança de Julieta no ânimo do marido, e a fraqueza desse homem que se deixara
subjugar àquele ponto.
A mulher, ou antes, a sombra que sala do seu túmulo
para disputar-lhe o marido, ela a odiava. Que direito mais tinha Julieta sobre
Hermano? Deus não os havia separado, levando-a deste mundo e deixando-o, a ele,
livre de amar e escolher outra esposa?
Esse marido lhe pertencia agora; e ninguém lho
podia roubar. Tinha-lhe jurado fidelidade; e só ela podia dar-lhe a ventura.
Essas recordações que afligiam incessantemente o espírito de Hermano, eram uma
vingança de Julieta. Essa mulher nunca tinha amado sinceramente o esposo; pois
não sabia sacrificar-lhe o egoísmo de sua afeição.
A este assomo, ou talvez delírio de sua imaginação
exaltada pela idéias fantásticas do mando, sucedeu, como era natural, o
desânimo, o abatimento, a prostração do como e do espírito.
Vergou ao jugo da fatalidade que a oprimia; e
compreendeu que só havia para aquela situação insolúvel uma saída. Era a
separação.
Cumpra romper quanto antes o laço que não era mais
vínculo de união, e sim a algema de um.
Mas como? Que razão daria a seus pais e ao mundo
para aquele ato de tamanha gravidade e escândalo! De si não se preocupava. O
que não queria era lançar qualquer mácula sobre o marido, a quem amava, e
sujeitá-lo à reprovação geral.
Falada a Hermano logo no dia seguinte, e combinaram
o melhor meio.
Separar-se-iam como dois irmãos queridos que o
destino aparta e longe, lembrando-se um do outro revivendo os dias felizes que
haviam precedido o seu casamento se amariam eternamente.
Mais tarde, talvez!...
Essa meiga esperança veio afagar o seu pensamento,
cerrou-lhe as pálpebras e trouxe-lhe um sono plácido, depois de tão violentas
emoções.
CAPÍTULO 17
Era tarde quando Amália acordou deitada ainda e
envolta nas alvuras de suas roupas de linho, entrou a olhar amorosamente os
objetos que a cercavam, os móveis, as decorações da parede, as árvores do
jardim que ensombravam as janelas.
Tinha saudades deste sonhado ninho de seu amor,
onde, se neo havia achado a ventura, fruira tão doces momentos de enlevo
conversando com seu Hermano.
E agora era preciso e com eles as ilusões de uma de
que lhe fugira quando a supunha segura. Sua esperança despedia-se de todos
estes companheiros de solidão, que lhe haviam sorriso nos primeiros dias.
Hermano desde muito cedo andava na chácara. Ao
entrar em casa viu a mulher sentada na sala, a cismar. Ela revolvia as
dolorosas impressões da véspera, para fortalecer-se em sua primeira resolução.
Vendo o mando que parara indeciso, enviou-lhe o seu
melancólico e resignado sorriso.
Hermano aproximou-se então e disse-lhe
impetuosamente com uma voz sufocada:
- Sou um miserável, Amália; sacrifiqueia-a
indignamente. Amei com paixão, jurei fazer a sua felicidade, que era a minha,
uni o meu ar, seu destino: e eu não me pertencia, não era livre, não podia
dispor de mim! Sou um miserável!.. Trai a minha primeira mulher, e à segunda
enganei!...
- Não me enganou, Hermano; afaste semelhante idéia.
Eu sabia o que se passava em seu espírito e previ o que veio acontecer. Se
alguém errou, fui eu que me iludi numa esperança falaz, mas tão grata, que
ainda me deixaria enlevar por ela se fosse possível.
- Sabia, Amália?... Mas por que não me repeliu? E
eu, cego que estava, roubei-lhe a felicidade, a existência inteira!
- Tinha esse direito. Ela lhe pertencia.
Hermano afastou-se arrebatadamente com um gesto de
desespero. Amália foi a ele com o pensamento de acalmar essa agitação e de
convencê-lo da necessidade de uma separação que aplacada os seus escrúpulos, e
pouparia a ela novos e cruéis martírios.
O marido, porém, voltara para dizer-lhe:
- Não se aflija, Amália!... Cometi uma perfídia,
mas não passou de uma alucinação!... A minha honra e a minha lealdade não me
abandonaram ainda e espero em Deus que não me hão de desamparar nua cá. Juro
restituir-lhe intata a sua liberdade que eu tive a desgraça de comprometer.
Resigne-se por alguns dias a este constrangimento. Ele cessará, deixando-a
outra vez senhora de si.
- É sobre isto mesmo que desejava falar-lhe,
Hermano. Refleti, penso que uma separação é necessária para o sossego de ambos.
Devemos porém fazê-la de modo que não nos fique mal. O meio é que eu não sei.
Se fosse possível!... Lembrei-me que na Europa, com a viagens, ninguém
suspeitada, nem mesmo mamãe.
- Oh! ninguém suspeitará! Terei o cuidado de
ocultar! Tomarão por um incidente um acaso!
Hermano, preferindo estas palavras com um tom
equívoco e um sorriso pungente, deixou a moça entregue a suas tristes
reflexões.
A princípio ela não penetrou o verdadeiro sentido
daquela resposta do mando. Pensou que ele se referia apenas ao pretexto da
separação prometendo achar um que poupasse desgosto à família e não desse azar
à maledicência.
Mas aquele estranho sorriso, e a qualificação de
acidente dada pelo marido ao fato que devia desligá-los, lançou em seu espírito
uma dúvida cruel. Que pretendia ele fazer então, simuladamente, para que os
outros o atribuíssem a uma casualidade?...
Amália ergueu-se, trêmula de horror. Adivinhara!
Hermano tinha resolvido matar-se. Era essa a significação daquele juramento que
fizer de restituir-lhe a liberdade. Para não expor a reputação dela, de sua
esposa, é que prometia levar a efeito o plano sinistro de modo que ninguém
desconfiasse do suicídio.
Ansiosa buscou o marido; mas este se havia
recolhido ao gabinete onde ela não animou a entrar.
Imagine-se o que devia sofrer, pensando que naquele
mesmo instante em que tremia atenta ao menor rumor, ele, Hermano, talvez
carregava o revólver, armava-o e... despedaçava a cabeça com um tiro!
Nessa aflição foi até a porta do gabinete para
escutar, e volveu mais tranqüila lembrando-se de que o marido lhe falara em uma
demora de alguns dias. Tornou, porém, assaltada de novos terrores, e chegou a
bater.
Hermano abriu. Encontrando Amália, saiu. Fechou
vivamente a porta sobre si, e dirigiu-se com a moça para a sala próxima. Sua
expressão era calma e natural; ninguém diria que ele ocultava um desígnio
funesto.
Essa placidez aquietou a agitação da moça que para
não toldar novamente o ânimo do marido absteve-se de revelar o seu terror.
Hermano como se nada houvesse ocorrido entre ambos, passou a conversar acerca
de coisas indiferentes, lembrando à mulher vários divertimentos, que ela
recusou.
Na continuação da conversa, Amália confiada nessa
tranqüilidade, e querendo de uma vez acabar com a sua inquietação, perguntou ao
marido de que meio se tinha lembrado para realizar a separação.
- O meio? disse ele. Só há um, Amália.
- Qual?
- A morte.
- Então, é verdade, quer matar-se? exclamou a moça
com desespero, e travando das mãos do marido, como para retê-lo junto a si.
- Já sou um morto. Metade do meu ser há cinco anos
desceu à sepultura. A outra metade que ficou neste mundo, para expiação de suas
culpas, não teria perturbado a sua felicidade, se estivesse reunida àquela e
restituída ao pó.
- Mas eu não quero que morra, Hermano! Deu-me sua
vida; ela me pertence; a mim também.
- Não a podia dar, Amália! Não lhe confessei já que
sou indigno, que a enganei?
- Pois bem! Esta união é nula; não existe. Mas a
culpa é toda minha: carregarei com ela. Direi a minha mãe que arrependi-me, que
não tinha propensão para o casamento, que não sei fazer a felicidade de meu
marido... Direi o que for preciso, contanto que viva, Hermano!
- Para quê, Amália, se a amo, e não posso e não
devo amá-la! respondeu o marido.
- Também eu o amo; mas não penso em matar-me!
Hermano sorriu:
- Não preciso matar-me; basta morrer.
- Jura-me que não atentará contra sua vida?
- Já disse, Amália. Não careço do suicídio. Para
que soprar a luz, se ela apaga-se por si?
- Mas dê-me sempre esse juramento para sossegar o
meu coração.
- Juro.
- Por ela?... Por Julieta?
- Sim.
Estas cenas abalaram profundamente o espírito de
Amália, que abandonou a idéia de separar-se do mando, naquelas circuntâncias,
deixando-o sob a influência de tão sinistros pensamentos. Apesar da confiança
de Hermano, o juramento deste não lhe dissipara as apreensões. Não suspeitava
um ardil; mas temia uma fatalidade.
Até ali, o recato tão natural em uma noiva, e ainda
aumentado pela reserva do mando, lhe tolhia a liberdade na própria casa em que
devia ser dona. Nunca se animara a penetrar no aposento de Hermano nem se
lembrara disso.
Agora, porém, sua posição. Tinha o dever de guardar
e defender a vida do marido; e para isso carecia de toda sua vigilância e
solicitude. Era mais que tempo de assumir a sua autoridade doméstica sem a qual
não poderia isentar-se da grave responsabilidade de esposa.
Assim, quando no dia seguinte Hermano foi à cidade,
ela depois de haver obtido dele a promessa de voltar cedo e de o ter
acompanhado com os olhos até perdê-lo de vista, saiu da janela resolvida a
ensaiar o seu papel de dona de casa.
Abreu, conforme o costume, acabava de arranjar o
aposento do amo, e ia sair fechando a porta para guardar a chave no bolso,
quando Amália entrou. Passado o seu espanto, o velho decidiu-se a ficar de
guarda à moça, que se sentara em uma cadeira de balanço.
Esse intento, porém, frustrou-se.
- Pode retirar-se, Abreu, disse a senhora com um
tom brando, mas firme.
O ex-furriel estremeceu, como se outrora o seu
capitão lhe desse uma ordem contrária ao detalhe; e ficou imóvel.
- Não ouviu?
Aquela interrogação e o olhar que a acompanhara,
expulsaram o criado do gabinete. Ficando só, Amália fechou-se por dentro e
começou a sua investigação. Temia que o marido tivesse armas ocultas ou veneno.
O que achou foram algumas chaves de aço, dourado, enfiadas em um aro de prata.
Adivinhou de que aposentos eram estas chaves, e
abrindo com uma delas a porta de comunicação, passou ao toucador de Julieta. As
janelas cerradas deixavam o interior em um tênue crepúsculo.
Ao dar o primeiro passo, Amália recuou e presa de
súbita vertigem, cairia, se as mãos não agarrassem convulsivamente as cortinas
da poda.
Instantes depois, recolhendo-se precipitadamente ao
seu quarto a moça caia de joelhos, banhada em lágrimas e murmurando:
- Louco!.. Louco, meu Deus!...
CAPÍTULO 18
Entrando no toucador de Julieta, escassamente
alumiado pela claridade que filtrava entre as lâminas das rótulas, Amália tinha
visto, ali sentada junto à mesa de charão, tal como lhe aparecera três meses
antes a desconhecida.
Fora o abalo dessa visão que lhe causara a
vertigem. Tomando a si, ainda a viu no mesmo lugar, impassível. Encheu-se de
indignação e adiantou-se para expulsar de sua casa aquela indigna.
Apesar do estrépito dos móveis arrastados, a
desconhecida permanecia imóvel.
Amália travou-lhe do pulso, e achou-o gelado. Era
então um cadáver que tinha diante dos olhos? Não; apesar do horror que a
invadiu, pôde afina conhecer a verdade.
Era uma figura de cera.
Atônita com esta descoberta, a moça lembrou-se da
vez que avistara a desconhecida recostada no sofá; e correndo ao quarto de
dormir lá encontrou-a no mesmo lugar, coberta com um véu de seda.
Era outra figura de cera representando a mesma
mulher com a única diferença da posição. Não podendo imprimir movimento à
estátua, o artista o tinha suprido com a mudança da atitude e do gesto.
Qual era, porém, essa mulher assim reproduzida?
Amália não duvidava um instante que fosse Julieta, embora as figuras não no
espírito a lembrança vaga que tinha da primeira esposa de Hermano.
Mas o retrato de Julieta ali estava, suspenso à
parede do toucador, em um grande quadro a óleo, que representava a moca em
corpo inteiro. Pela data via-se que fora tirado um ano depois de seu casamento.
Entre a estátua e o retrato havia muita afinidade
de expressão; mas nos traços e contornos das feições, a diferença era sensível.
Poderiam ser duas irmãs; não eram, porém, a mesma pessoa.
Hermano amara então outra mulher depois de Julieta?
Amália repelia essa conjetura, que repugnava com o culto do mando pela esposa a
quem primeiro se ligara.
A caixa de carvalho com preparos de flores
artificiais, tinha embutido na tampa o nome de Julieta. O lenço e as roupas das
figuras de cera estavam marcadas com três iniciais J. S. A.; e da mesma forma o
livro que Hermano lia à noite, um volume de Spirite de Teófilo Gautier.
A perturbação que a descoberta de tais
particularidades lançou no espírito de Amália, cresceu com a leitura salteada
de alguns trechos daquela obra fantástica. Uma luz sinistra, como a do
relâmpago, feriu o seu pensamento; compreendia enfim!
O amor de Hermano era uma demência. Não fora uma
mulher que ele havia adorado, e adorava ainda; mas um fantasma, um ente de sua
imaginação. Esse ideal, ele tinha encarnado em Julieta, desde o primeiro
momento em que a vira.
Por que misteriosa relação se havia operado essa
transfusão, ninguém o poderia explicar, senão por uma afinidade moral.
Morta Julieta, o ideal se tornara outra vez
fantasia ou sonho, até que pela mesma ignora afinidade se encarnara de novo na
imagem de painel do Veroneso, Ester ou Suzana, como dissera o Teixeira,
referindo a visita ao Louvre.
Estas figuras, pensava Amália, são a cópia daquela
imagem, a que Hermano dera o nome de Julieta por ser o da primeira encarnação
viva de seu ideal. Mas elas não tinham nada de comum com a morta senão essa
misteriosa relação, que transparecia em uns longes da fisionomia .
Julieta não era formosa; e toda a sua graça estava
unicamente na expressão. A mulher reproduzida em cera era uma beleza estatuária
que ofuscava inteiramente o retrato. Como pois tinha Hermano identificado essas
duas imagens tão diversas?
Este fenômeno só podia explicar-se por um modo.
Hermano não idolatrava a forma, embora a admirasse quando ela realizava a sua
imaginação . O que ele amava era uma larva, um espírito, um duende de beleza
imaterial, que transportara a princípio para uma mulher, depois para urna
imagem e afinal para uma estátua.
Estes pensamentos trabalhavam na mente de Amália,
quando recolhida a seu toucador, e atirada em uma poltrona baixa, ela cogitava
sobre a cruel revelação que se fizera em sua consciência.
-Achou em mim alguma coisa que recordou Julieta ou
antes seu ideal. Foi minha voz cantando a ária da Lucia que o atraiu; mas
falta-me esse encanto, essa fascinação misteriosa que um momento supôs
encontrar.
Lançando um olhar ao espelho, onde se refletiam as
suas formas esplêndidas, ela suspirou:
- De que vale minha beleza? Ele não a vê, não a
percebe. Julieta não era bonita: seu retrato está muito parecido; agora
recordo-me bem dela, de quando passeava no jardim. Entretanto ele a amou. Eu
podia ser feia e muito feia; que também me amaria se eu fosse a mulher que ele
criou sua imaginação.
Mas por que não seda ela sua mulher?
Seu amor cheio de abnegação inspirou-lhe então uma
resolução generosa. Sua existência, que já não tinha sedução nem fim ela a
dedicada à felicidade do homem a quem amava. Adivinhara o segredo dessa criação
ideal da mente enferma de Hermano, e a realizaria em si.
Deus lhe daria forças para operar essa nova
encarnação. Dominando então o espírito do mando, o restituiria à razão, ao
mundo, ao verdadeiro amor; e seriam felizes.
Para isso era preciso, ela bem o compreendia, fazer
um sacrifício de sua personalidade; sacrifício doloroso para as almas
superiores, que têm uma individualidade, e que não podem a exemplo das outras
almas de estalão, despir o seu eu, e receber como a cera o molde da
vulgaridade.
Ser outro, negar-se a si mesmo, suprimir-se
moralmente, não se pode imaginar mais terrível suplício para uma consciência
altiva; e foi a este que Amália se condenou no intento de salvar o marido ou
perder-se com ele.
Decerto, naquela moça travessa, risonha, incrédula
e leviana, que antes enchia de sua alegria as salas e os divertimentos, ninguém
pensara encontrar um ano depois a mulher dominada pela paixão mais sublime, e
capaz de um heroísmo de amor raro na vida ordinária.
Semelhante aberração não era senão aparente. Ai
nesse contraste manifestava-se o efeito de uma evolução psicológica muito
natural. A insensibilidade de Amália fora apenas a infância prolongada de uma
alma extremosa que só muito tarde conheceu a paixão.
Em vez de gastar-se nos ensaios precoces de amor,
com que as meninas antecipam a adolescência, exaltando os perfumes de sua flor,
Amália preservara o coração dessa babugem e quando amou foi com todas as
energias e arrojos da mulher.
Este romance de Amália, a incompreensível
encarnação do delírio de um cérebro enfermo, essa admirável intuição, é que me
propus contar; e agora sinto que não o conseguirei.
Como descrever a paciente eliminação de uma ama a
despojar-se de sua individualidade para infundir em si o ser imaginário, filho
de uma alucinação?
Hermano voltara da cidade. Encontrando-se com ele à
hora do jantar, Amália notou a sua expressão esquiva e o olhar suspeitoso que
lhe perscrutava a fisionomia. O Abreu sem dúvida contara que ela estivera no
gabinete; e o marido receava-se dos efeitos dessa investigação.
O modo expansivo e natural com que o tratou a
mulher, foi dissipando as suspeitas de Hermano, que por vezes mostrou um
contentamento sincero.
Quando se levantaram da mesa, Amália, disse ao
marido com meiguice:
- Eu tinha tanta vontade de conhecer Julieta!
Hermano disfarçou por delicadeza; mas insistindo a
mulher e reiterando perguntas sobre as feições de Julieta, ele foi ao gabinete
donde voltou com uma fotografia colorida. Era a mesma imagem do retrato a óleo.
- Como é bonita! exclamou Amália com um entusiasmo
que o seu amor a obrigava a simular.
- Isso é apenas a sombra de sua beleza. Falta-lhe o
olhar, o gesto, a voz.
- De que cor eram os olhos? - A cor... Não sei: mas
o olhar ainda o sinto: era como o seu agora, Amália.
A moça corou e as pálpebras rosadas vendaram os
seus belos olhos cheios de luz
Continuaram a conversar acerca de Julieta
Mais tarde Hermano ficou distraído, absorto. Amália
sabia agora o motivo Eram os sintomas da alucinação que, em certa horas e
ocasiões, desvairava o espírito do marido
A moça foi sentar-se ao piano e abriu a ária do
Fausto. Hermano lhe dissera um momento antes que era uma das peças favoritas de
Julieta.
Ela cantou: e o marido que já se tinha retirado,
veio sentar-se outra vez a seu lado, e ficou ali preso a sua voz.
À última nota ele estremeceu e partiu. Esse canto
era de Julieta que o chamava.
CAPÍTULO 19
Cala a tarde
Amália e Hermano sentados no jardim, contemplavam
em silêncio as esplêndidas decorações, que os arrebóis desfraldavam no
horizonte sobre as encostas da montanha.
A moça afinal curvou a fronte e cerrando a meio os
cílios para concentrar-se disse ao marido:
- Ainda havia neste mundo uma felicidade para mim,
Hermano: e essa não lhe custaria o menor sacrifício.
O olhar do mando interrogou-a: ela respondeu com a
voz súplice;
- Não me pode dar o seu amor; bem o sei, e não o
exijo; mas a sua amizade, sua confiança, por que motivo a recusa a quem não tem
outro pensamento senão a sua felicidade? Não lhe mereço nem esta prova de
estima?
Hermano quis interrompê-la: ela não consentiu:
- Não poderíamos viver como dois irmãos que se
querem, e se amparam mutuamente nas suas tristezas e infortúnios? Por que há de
ter segredos para mim que nada lhe oculto do que se passa em minha alma? Cuida
que tenho ciúmes de Julieta? Engana-se.
Vendo pintar-se a dúvida no semblante do marido,
Amália apressou-se em desvanecê-la:
- Quer uma prova? Estive ontem no toucador de
Julieta e entretanto, quando voltou da cidade, ainda achou-me nesta casa, onde
me conservo. Se eu não o amasse e a ela também, com amor de irmã, sofreria essa
preferência, que era uma humilhação cruel para a esposa?
Desde esse momento, Hermano não teve mais segredos
para Amália; e esta, durante as suas longas confidências pôde ler nas
recordações do marido como nas páginas de um livro inédito, toda a história do
homem a quem se unira.
Hermano contou-lhe uma e muitas vezes as menores
circunstâncias de sua vida com Julieta. As impressões nessa alma opulenta eram
profundas. A efígie da mulher amada ficara ali fundida como uma estátua ideal.
Amália passava as horas nos aposentos, que tinham
pertencido, e ainda pertenciam, à sua rival. Ali coligia todos os traços, todos
os vestígios, deixados pela pessoa que os habitara e com esses indícios
esforçava-se em recompor a mulher que ela não conhecera, e que mal vira de
longe com olhos de criança.
Ao cabo de uma semana, sabia os gostos de Julieta,
os seus perfumes prediletos, os moldes de que ela mais gostava, as cores de seu
agrado, as músicas favoritas; todas essas simpatias que formam a originalidade
de um caráter.
Amália tinha o mesmo corpo de Julieta com alguma
diferença das formas que nela eram mais ricas e harmoniosas. Vencendo a
repugnância que a principio sentira, a moca chegou a trajar-se completamente
com as roupas e enfeites da morta.
Pensava acaso que esses objetos lhe transmitiriam
pelo contato alguma coisa da pessoa a quem haviam servido? Ou buscava apenas
criar uma semelhança que favorecesse a ilusão de Hermano?
Ela própria não sabia que tenção era a sua. Não
calculava: cedia à influência de um desejo intenso. Queria ser a mulher que
Hermano amava, como Julieta fora antes dela.
Nos livros que achou na pequena estante do
toucador, também Amália colheu muitas idéias, de que se apropriou para imitar o
misticismo do original que ela se propunha copiar.
Um dia disse a Hermano:
- Eu acredito que Julieta me quer bem. Quando estou
aqui, no seu quarto, tenho um contentamento, como se estivesse em sua
companhia. Às vezes parece que ela me abraça.
Outro dia, no meio de uns idealismos romanescos,
teve esta inspiração:
- O amor uniu a alma de Julieta à sua, Hermano. Por
que não poderá unir da mesma forma a alma dela à minha, que também o ama?
A transformação de Amália já era tão perfeita, que
enganava Hermano e até o Abreu, sobretudo quando ela disfarçava com uma renda
preta os seus lindos cabelos louros, ou mesmo tingia com algum cosmético.
O velho criado habituou-se a ver nela a imagem de
Julieta, e desde então envolveu-a na afeição que votara à sua filha de criação.
Estimou-a, como se estima um retrato de pessoa a quem se quer
Quanto a Hermano, tinha momentos de completa
ilusão, em que supunha se transportado aos tempos de seu primeiro casamento.
Apagava-se então de sua memória todo o tempo que vivera depois da morte de
Julieta e ele era feliz como se ainda tivesse a seu lado a mulher a quem amava.
De repente, porém, uma circunstância qualquer um
incidente mínimo, que Amália não percebia, talvez um volver dos olhos, uma
inflexão de gesto, o contato das mãos, rompia o encanto; e ele recuava como o
homem que vê abrir-se por diante um abismo.
Fugia então; e ia abrigar-se daquela sedução no
quarto de Julieta perto da estátua, que para ele representava o despojo
material da alma de sua primeira mulher.
Amália recomeçava então com a mesma energia e
perseverança aquela indução paciente, que terminava em decepção. Crescia-lhe a
esperança, porque a sua fascinação aumentava a cada instante ela não podia
duvidar. Hermano resistia ainda mas chegaria o momento, em que se deixaria
vencer, e então ele lhe pertenceria e seriam felizes.
Se adivinhasse o efeito que essa luta produzia no
ânimo do marido, e o extremo a que o arrastava, ela decerto a abandonaria,
cheia de horror.
Com efeito Hermano, quando libertava-se da
fascinação que Amália exercia sobre ele, enchia-se de pavor pelo perigo que o ameaçara.
Estivera a ponto de cometer esse crime que era para ele o mais indigno por ser
o roubo da honra e da vida.
Via-se já réu de um adultério infame!
Ter enganado a moça a quem se unira em segundas
núpcias sacrificando a sua felicidade, que ele não podia dar-lhe, era já uma
vilania de que se envergonhava, e da qual decidira resgatar-se com a morte. Que
nome teria essa indignidade, se a agravasse com a mácula da virgem pura e
ingênua que se confiava de sua lealdade?
Era preciso, ele o senha, pôr um termo a esta
situação, e salvar-se de um perjúrio atroz que o condenaria à eterna separação
de Julieta. Mas tinha de esperar não podia dispor de sua vida antes de oito
dias.
Quanto lhe custou a passar esta ultima semana!
Na ocasião em que cegamente apaixonado por Amália,
decidiu pedi-la em casamento, Hermano refletiu sobre o destino que devia dar às
relíquias da primeira mulher. Não podia guardá-las como tinha feito até ali,
porque seria isto uma infidelidade à esposa atual: não se animava, porém, a
abandonar e como que expelir de si essas imagens e objetos, tão impregnados de
sua vida, que faziam parte dela. Seria mutilar-se moralmente.
Tomou uma resolução que pudesse conciliar tais
escrúpulos Reuniu naqueles dois aposentos de Julieta tudo que lhe pertencera e
fechou-os como se fossem a sepultura onde jazia a alma da primeira mulher.
Quanto à outra sepultura, onde jaziam as cinzas, dessa não se lembrava, nem a
conhecia: era um pouco de pó.
Depois, quando na própria noite do casamento o
indefinível terror de um adultério fantástico apoderou-se de seu espírito
enfermo, ele refugiou-se nos aposentos de Julieta, encerrou-se ali naquele
túmulo, onde encontrava o sossego e a ressurreição do passado.
Agora, porém, já não tinha esse refúgio já não
podia transpor os umbrais da eternidade para encontrar-se com Julieta e amá-la.
Até ali, nesse mesmo santuário, onde guardara todas as relíquias da morta, até
ali o perseguia a formosa imagem de Amália.
Sentia a tépida fragrância que a moça deixara na
sua passagem, e que derramava um sopro de vida nesses objetos frios e
abandonados. O toque de outras mãos animara aquela solidão e as mesmas estátuas
de cera pareciam influir-se de outra alma mais ardente, mais apaixonada do que
a de Julieta
Assim, quando Hermano corria a abrigar-se ai da
sedução de uma Amália parecida com Julieta, ele já não encontrava a mulher de
outros tempos, mas sim uma nova Julieta semelhante a Amália e mais formosa que
a primeira
Quantas vezes não voltou buscando essa visão
encantadora! Mas já não a via; Amália tinha-se feito Julieta aquela esplêndida
beleza de outrora se eclipsara.
Se em um desses momentos, a formosa criatura se
mostrasse qual era, em seu fulgor, Hermano teria sucumbido: e talvez aquela
insana obsessão que o afligia se dissipasse para sempre.
Mas a coincidência não se deu; e afinal chegou a
época em que Hermano julgou-se livre de dispor de sua vida. Só faltava a
ocasião esta não tardou.
Havia um baile no dia seguinte. Amália a princípio
repugnou ir, por fim cedeu às instâncias do marido. Seu traje era copiado de um
que achara no guarda-roupa de Julieta, um vestido de tule com sombra e laivos
escarlatres.
Estava encantadora, mas sentia-se inquieta e
nervosa. Durante a dança não tirava os olhos de Hermano, e a cada instante
chamava-o para perto de si.
De repente perdeu-o de vista. Acabada a quadrilha,
ansiosa perguntou por ele a D. Felícia.
- Ah!... Esqueceu a carteira e um amigo convidou-o
a jogar. Foi a casa não tarda. Pediu-me que te prevenisse.
D. Felícia voltando à conversa que interrompera
para dizer rapidamente estas palavras, não viu a palidez da filha.
Amália dominou o tenor que a invadira, dirigiu-se
ao toucador, envolveu-se na capa e desceu as escadas apressadamente. No patamar
encontrou o lacaio e mandou chegar o carro.
- Para casa! Depressa!... disse abrando-se sobre as
almofadas do cupê.
Depois, enquanto os cavalos trotavam pela calçada
da Glória, ela travando as mãos convulsivamente, murmurava:
- Chegarei a tempo, meu Deus?
CAPÍTULO 20
Amália tinha razão de assustar-se.
Hermano deixara o baile, decidido a realizar a sua
idéia fatal. Contava que o pretexto do esquecimento da carteira lhe daria uma
hora de liberdade, e tanto bastava para consumar o plano medonho que havia
concebido.
Ele prometera à mulher e a si mesmo jurara, dar à
sua morte aparências de acidente, de desastre casual. Escolhera o incêndio.
Sempre fora sectário da cremação. O corpo abandonado da alma era para ele
matéria em corrupção: o fogo a purificava e consumindo imediatamente a forma
humana, evitava a sua profanação, pois outro nome não têm certas cerimônias
fúnebres
Mas o seguro de sua casa não estava findo; e a
consciência não lhe permitia fraudar os seguradores com a indenização que
teriam de pagar a seus herdeiros pelo dano do incêndio Por isso foi obrigado a
adiar o seu projeto. O termo da apólice tinha expirado na véspera estava livre
enfim.
Ao sair do baile, tomou um tílburi que o levou a
casa. O portão estava cerrado apenas, e o Abreu, que fumava sentado na escada,
veio ao seu encontro, admirado de não ver a senhora.
- Esqueci a minha carteira e vim buscá-la para
pagar uma dívida de jogo mas sinto-me tão fatigado que não tenho ânimo de
voltar ao baile vou escrever um bilhete à senhora.
Deste modo afastou o velho criado cuja vigilância
temia que pudesse frustrar o plano. No bilhete que por ele enviara à mulher,
depois de escusar-se de ter saído do baile e de não ir buscá-la, rematava com
estas palavras.
"Agora, Amália, é que eu conheço quanto a amo:
pois esta curta ausência de alguns instantes parece-me uma separação
eterna."
Ficando só Hermano trancou-se no toucador de
Julieta. Depois de fechar as portas e janelas, abriu os bicos de gás, e
sentou-se em face da figura de cera. O aposento era apenas esclarecido pela
vela do castiçal colocado sobre a mesa.
Acreditava aquele visionário que era bastante a
vontade de reunir-se a Julieta para que sua alma deixasse este mundo e se
restituísse à sua metade. Nessa convicção, havia jurado a Amália não matar-se;
e tinha consciência de respeitar o seu juramento.
Quando o gás que se exalava dos bicos abertos, se
fosse condensando no aposento quase hermeticamente fechado, e afinal se
inflamasse à luz da vela produzindo uma explosão, o incêndio o acharia morto
já, e não serviria senão para destruir o seu despojo e as relíquias de Julieta,
que não devia abandonar à alheia profanação.
Ele e tudo quanto amara não seriam mais do que
cinzas, dispersas pelo vento; e no dia seguinte ninguém suspeitaria da verdade.
Um incêndio é fato comezinho e tão freqüente!
Em cima da mesa estava uma fotografia em ponto
grande, cuja moldura inclinada em estante mostrava um lindo retrato. Amália o
havia tirado poucos dias antes; e naquela tarde, aproveitando-se de uma
ausência do marido, o colocara ali para fazer-lhe uma surpresa.
Esse retrato não era a imagem fiel da beleza
radiante de Amália, mas a cópia da transformação que sofrera a moça depois de
seu casamento, e especialmente nos últimos dias. Assim como o louro brilhante
de seus cabelos se ofuscara na sombra de uma renda preta, também os fulgores
dos grandes olhos, e o sorriso cheio de graça, eram amortecidos por uma doce
melancolia. Parecia que um véu de timidez apagara-lhe a formosura cintilante.
A luz da vela dava de chapa sobre a fotografia.
Hermano olhou e viu pela primeira vez o retrato. Reconheceu o vulto, a atitude,
o gesto, as roupas, as jóias e uns matizes indefiníveis que só ele talvez
percebesse. Era Julieta: mas através da sombra de Julieta, ao longe, como uma
estrela imersa no azul surgia a imagem luminosa de Amália.
Foi então que esse cérebro já tão exaltado
precipitou-se na derradeira e mais violenta das alucinações que o tinham
abalado. As duas mulheres que Hermano havia amado neste mundo, erguiam-se em
sua alma, como duas soberanas em campo de batalha, para disputarem o seu
despojo.
Quando já a consciência da realidade o ia
abandonando, ouviu rumor na casa e teve um rápido momento lúcido para recear
que o viessem perturbar na consumação de sua idéia sinistra. Ergueu-se e saiu
fora, lembrando-se de fechar a porta, para que não se escapasse o gás, já
condensado no aposento.
Foi mesmo às escuras trancar a comunicação para o
fundo da casa onde estavam os criados, e livre do receio, caiu de novo no
delírio, que o havia acometido, e no qual se apagaram os últimos lumes da
razão.
Nos raptos da imaginação, viu outra vez as duas
esposas, a quem havia jurado fidelidade. Às vezes, elas se aproximavam, perto,
muito perto, uniam-se estreitamente, e fundiam-se numa só massa vaporosa, donde
surgia afinal essa mulher dúplice, essa Julieta-Amália, que estava pintada no
retrato.
Pouco depois a imagem da esposa gêmea também por
sua vez apagava-se em uma sombra indecisa, da qual se destacavam as duas moças,
cada uma no seu tipo distinto. Julieta com a esquisita elegância, que vestia de
uma graça divina a sua figura apenas regular e Amália com a deslumbrante
beleza, que materializava a sua alma, vazando-a em formas esplêndidas
Em face uma da outra Amália triunfava. Ela era a
aurora: e sua rival o crepúsculo suave e encantador. Assim Julieta timidamente,
envolta no seu perfume de modéstia, afastava-se: e a sombra gentil e
melancólica ia-se desvanecendo até esvair-se no fulgor que derramava a
formosura da rival.
Foi então que Hermano sentiu uma dor agudíssima,
como se lhe arrancassem vivo o coração. Arrojou-se com todo o ímpeto de seu
amor para chamar a esposa, que se separava dele pela eternidade. Era ela a
primeira amada, e nesse momento a única. A ela devia pertencer exclusivamente
por isso iam unir-se outra vez: a morte que os tinha apartado não tardaria em
ligá-los de novo, revertendo-os um ao outro.
- Julieta! exclamou ele em um grito de ânsia.
A esposa o tinha ouvido ali. Ali estava ela a seu
lado. A luz desaparecera e os seus raios se haviam transformado em estrelas.
Foi ao trêmulo dessa luz celeste que ele divisou a sombra amada. Ela trazia o
seu traje favorito de baile, o mesmo com que a viu da primeira vez.
Julieta lhe cingira o colo com o braço e ele sentia
o doce contato do talhe gentil na sua espádua e no seu flanco. Depois a voz
terna e queixosa da esposa murmurou-lhe ao ouvido como um arpejo:
- Ingrato!...
- Perdão, Julieta, perdão! confesso que Amália me
fascinou: mas o que eu amei nela foi unicamente a tua lembrança, a tua alma que
às vezes eu ouvia em seus lábios, e via em seus olhos. O que era ela, e só ela,
a sua beleza, essa eu a admirava mas enchia-me de terror. Resistia à tentação,
refugiando-me em teu amor: e se tu não me amparasses, teria sucumbido!
Salvei-me, preservei minha alma e ela está pura como a deixaste, e vai
reunir-se à tua pela eternidade. Eis o momento. Recebe-me em teu seio; não me
deixes mais um instante neste mundo, pois aqui mesmo, perto de ti, próximo a
infundir-me no teu ser, eu a vejo, eu a sinto, a ela, a Amália: e tenho medo
que venha arrebatar-me e separar-nos para sempre.
A voz de Julieta murmurava-lhe então ao ouvido:
- Não tenhas este receio, meu Hermano. Queres saber
por que tu vês Amália, em mim, em tua Julieta? É porque ela te ama como eu te
amei, com igual paixão. Ela e eu não somos senão a mesma e única mulher que tu
sonhaste. Podes dar-te a ela: é como se te desses novamente a mim. Vi que
estavas triste e só no mundo; que a minha lembrança não te bastava; e então
revivi em Amália, transmiti-lhe minha alma para que fosse tua esposa; para que
tu me adorasses em uma imagem viva, que te retribuisse, e não em uma estátua de
cera.
- Embora; estou cansado de viver; quero reunir-me a
ti, em espírito, desprendendo-me dessa materialidade impura, que pode subjugar
a alma, e arrastá-la ao crime. Amália é minha esposa perante os homens; e desde
que nela está a alma de minha Julieta, ela é também minha esposa perante Deus;
poderei pertencer-lhe legitimamente, porque te pertenceria a ti: mas essa
poderosa sedução de sua beleza, se eu a sofresse de outra mulher?.. Não
passaria de novo pelo martírio que me atormentou?... Melhor é nos reunirmos no
céu recolhe a alma que deste a Amália, e leva-nos com ela.
A voz melodiosa suspirou outra vez:
- Queres morrer, meu Hermano? Queres deixar o
mundo? Pois bem, dá-me tua alma: deixa-me absorvê-la na minha, e confundi-las
que não formem senão uma só. Então abandonaremos a terra e iremos esconder-nos
no seio de Deus, que nos criou.
Então Hermano sentiu uns lábios que se embebiam nos
seus e hauriam-lhe a vida. Esse beijo ideal foi como a inalação do espírito que
animara o seu corpo e que absorvido por Julieta, o desamparou. Desde esse
momento ele não foi mais do que uma múmia.
E assim, como um corpo ermo de vontade e
pensamento, seguiu Julieta, ou melhor diria, a alma gêmea em que se tinham
condensado a sua e a da esposa. Atravessaram uma série de anos eram os de sua
existência, cujo curso haviam remontado, e agora de novo repassam. Todas as
fases de sua história, ele as reviveu com uma mulher que não era nem Julieta,
nem Amália mas as duas vazadas em um só molde.
O passado e o presente se travavam e confundiam. O
seu primeiro casamento que fôra de manhã, e o segundo que celebrara à noite as
noivas, de tipos diversos; aqueles dois toucadores, um azul e branco, e outro
rosa e ouro; todas essas coisas se haviam identificado.
A mulher que ele amara tinha a beleza de Amália e a
alma de Julieta. Com essa mulher percorreu toda a sua vida até aquele momento
em que resolvera deixar o mundo para consumar o consórcio da eternidade.
Uma nuvem branca e nítida vendava-lhe o céu. Ali
estava um objeto cuja forma não distinguia; parecia-lhe o corpo, depurando a
alma e preparando-a para a bem-aventurança.
Ele estava só; junto dele não havia outro corpo,
mas uma essência divina, em que se imergia; um resplendor que se condensava em
formas voluptuosas para envolvê-lo de luz. As chamas dessa luz o abrasavam, mas
com uma lava doce e inebriante, que lhe acrisolava o ser. Enfim ele sentiu que
sua alma desprendendo-se das cinzas, remontava ao céu.
Nesse momento D. Felícia que voltava do baile com o
marido soltou um grito de terror vendo o grande clarão que avermelhava o
horizonte.
Um incêndio violento devorava a casa de Hermano.
CAPÍTULO 21
Cinco anos permaneceram em abandono as ruínas da
casa incendiada. Um ilhéu que alugara a horta para negócio, tratava da chácara.
Já se tinha desvanecido a lembrança do sinistro,
quando uma manhã, cerca de onze horas, parou ao portão uma vitória descoberta,
conduzindo pessoas com o aspecto muito conhecido de viajantes que desembarcam.
O assento principal era ocupado por uma senhora de
rara formosura, trajada com elegância, e por um homem de parecer distinto,
ainda moço apesar dos fios de prata que matizavam os seus cabelos negros.
Em frente a eles ficava uma gentil menina de quatro
anos, na qual reproduzia-se como em uma miniatura a beleza da senhora, porém,
com certo contraste de fisionomia. Tinha as feições da mãe, os mesmos traços, a
mesma expressão; mas os cabelos e os olhos eram castanhos, e não louros.
Um criado velho, que vinha ao lado do cocheiro
saltara do carro e abrira o portão, enquanto o cavalheiro apeava-se com a
família.
- Espera-nos aqui, Abreu, disse a senhora
entregando a filha ao criado, e não deixe Julieta apanhar sol.
Tomando então o braço do marido, seguiu pelo
passeio gramado da chácara na direção das ruínas que apareciam por entre as
árvores e indicavam o lugar onde fora a casa.
O incêndio desmoronando o teto e consumindo todo o
madeiramento, deixara em pé as paredes do edifício de modo que de fora via-se
como um esqueleto a antiga habitação com seus aposentos e divisões.
- Lembras-te, Hermano? perguntou a senhora fitando
no marido seus grandes olhos cheios de luz.
- De tudo, Amália, respondeu simplesmente o marido.
Como para confirmar a sua asseveração, Hermano
começou a recordar as reminiscências dos dias que ali vivera com Amália,
apontando os menores incidentes e os lugares da casa em que tinham ocorrido.
Amália respirou do soçobro em que trazia a alma e
que debalde tentava abafar. A casa, que a memória de Julieta enchia
antigamente, agora não era mais povoada senão de sua lembrança.
Daí passaram à chácara e percorreram os sítios, em
que tão viva era para Hermano a presença de sua primeira mulher. Essas
recordações primitivas tinham sido apagadas pelas outras recordações mais
recentes de seu amor por Amália.
Outrora o passado surgia com tanto vigor na vida
desse homem que anulava o presente. Agora era o presente que reagia de modo a
substituir-se ao passado. Hermano não se lembrava de ter amado nunca outra
mulher senão a sua Amália e identificava tão completamente as duas esposas, que
Julieta já não era para ele senão um primeiro nome daquela a quem se unira para
sempre.
Afinal sentaram-se para descansar, em um sombrio
formado pela copa de uma mangueira frondosa, donde pendiam ramas de maracujá
Hermano recolheu-se, como para penetrar mais
profundamente em suas recordações, e murmurou:
- Não me lembro do incêndio!
Amália conchegou se, e apoiando o rosto na espádua
do marido começou a sussurrar-lhe ao ouvido, cobrindo a face com a mão para
esconder o rubor:
- Tu me deixaste no baile... Eu tive um
pressentimento cruel e corri... Felizmente ainda encontrei-te; estavas na sala
em pé. Foi talvez o rumor de meus passos que te perturbou. Eu prendi-te nos
meus braços com receio que me fugisses. Tu me contaste tudo Querias morrer para
não ser infiel a Julieta e tinhas preparado o incêndio que devia consumir o teu
corpo, e a imagem daquela que amavas. Eu também devia morrer, e consumir-me
contigo. Foi então que nossos lábios se tocaram. Tu me pertencias. e eu
salvei-te para o meu amor. Era preciso arrancar-te desta casa; quando partimos,
sem que nos vissem deixei nela o incêndio que a devorou Depois partimos para a
Europa e...
- E eu renasci para a felicidade, disse Hermano,
cingindo a loura cabeça da moça e pousando-lhe um beijo na face.
- Esta manhã, vendo ao longe, de bordo do vapor a
praia de Botafogo, tive medo, e por isso trouxe-te aqui apenas desembarcamos.
Se estes lugares ainda conservassem para ti alguma sombra do passado,
partiríamos hoje mesmo para Montevidéu, para qualquer parte do mundo, onde a
tua felicidade não corresse perigo. Mas estou tranqüila, podemos reconstruir a
nossa casa e viver aqui, onde nasceu o nosso amor.
- De tudo isto só uma coisa não compreendo, disse
Hermano.
- O que? perguntou Amália assustada.
- Fica tranqüila; a alucinação passou; tenho a
razão inteiramente livre. O que não compreendo é como sendo tu e Julieta tão
diferentes uma da outra, têm aos meus olhos uma semelhança tão grande, que
parecem a mesma.
Nesse momento as folhas rumorejaram.
A menina que estava impaciente pela mãe, iludira a
vigilância do velho criado e correra para Amália cujo vestido descobrira
através da folhagem.
- Olha! disse a moça apresentando ao marido o
rostinho gracioso da filha.
- É verdade!
FIM
Núcleo de Pesquisas em
Informática, Literatura e Lingüística